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Educação superior e complexidade: integração entre disciplinas no campo das relações internacionais

Higher education and complexity: disciplinary integration in the field of international relations

Educación superior y complejidad: integración entre asignaturas en el ámbito de las relaciones internacionales

Resumos

Expressões como "multi", "pluri", "inter" e "transdisciplinaridade" difundiram-se de forma extraordinária no meio acadêmico, convertendo-se em critérios de avaliação institucional em numerosos países. Este artigo analisa a integração entre as disciplinas no campo das relações internacionais, jovem área do conhecimento que bem expressa a complexidade do mundo contemporâneo em seus temas e conteúdos e que oscila entre a necessidade de afirmação como disciplina autônoma e a multidisciplinaridade inerente à formação internacionalista. Após um panorama conceitual, questionamos a integração entre as disciplinas como critério de avaliação, especialmente do currículo dos cursos de relações internacionais. Por fim, relatamos uma experiência realizada no bacharelado nesse curso da Universidade de São Paulo.

interdisciplinaridade; relações internacionais; educação superior; complexidade


Expressions such as "multi-", "pluri-", "inter-" and "transdisciplinarity" have spread out in extraordinary manner in the academic milieu, actually becoming institutional assessment criteria in a number of countries. This paper analyses how disciplines are incorporated in the field of international relations, a recent field of knowledge that expresses quite well the complexity of the contemporary world, with its themes and contents, and that oscillates between the need for acknowledgement as an autonomous discipline and the multidisciplinarity inherent to its internationalistic nature. Following a conceptual overview, we inquire about the use of disciplinary integration as an assessment criterion, especially concerning the international relations curriculum. Lastly, we report on an experiment carried out in this undergraduate course of the Universidade de São Paulo.

interdisciplinarity; international relations; higher education; complexity


Expresiones como "multi", "pluri", "inter" y "transdisciplinariedad" se difundieron de forma extraordinaria en el medio académico, convirtiéndose en criterios de evaluación institucional en numerosos países. Este artículo analiza la integración entre las asignaturas en el campo de las relaciones internacionales, joven área del conocimiento que bien expresa la complejidad del mundo contemporáneo en sus temas y contenidos y que oscila entre la necesidad de afirmación como asignatura autónoma y la multidisciplinariedad inherente a la formación internacionalista. Después de presentar un panorama conceptual, cuestionamos la integración entre las asignaturas como criterio de evaluación, sobre todo en lo que concierne a los cursos de relaciones internacionales. Por fin, relatamos una experiencia realizada en el ámbito de graduación en este curso de la Universidade de São Paulo.

interdisciplinariedad; relaciones internacionales; enseñanza superior; complejidad


OUTROS TEMAS

Educación superior y complejidad: integración entre asignaturas en el ámbito de las relaciones internacionales

Deisy de Freitas Lima VenturaI; Maria Antonieta del Tedesco LinsII

IProfessora Associada do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo - USP deisy.ventura@usp.br

IIProfessora Doutora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo - USP madtlins@usp.br

RESUMO

Expressões como "multi", "pluri", "inter" e "transdisciplinaridade" difundiram-se de forma extraordinária no meio acadêmico, convertendo-se em critérios de avaliação institucional em numerosos países. Este artigo analisa a integração entre as disciplinas no campo das relações internacionais, jovem área do conhecimento que bem expressa a complexidade do mundo contemporâneo em seus temas e conteúdos e que oscila entre a necessidade de afirmação como disciplina autônoma e a multidisciplinaridade inerente à formação internacionalista. Após um panorama conceitual, questionamos a integração entre as disciplinas como critério de avaliação, especialmente do currículo dos cursos de relações internacionais. Por fim, relatamos uma experiência realizada no bacharelado nesse curso da Universidade de São Paulo.

Palavras-chave: interdisciplinaridade; relações internacionais; educação superior; complexidade

ABSTRACT

Expressions such as "multi-", "pluri-", "inter-" and "transdisciplinarity" have spread out in extraordinary manner in the academic milieu, actually becoming institutional assessment criteria in a number of countries. This paper analyses how disciplines are incorporated in the field of international relations, a recent field of knowledge that expresses quite well the complexity of the contemporary world, with its themes and contents, and that oscillates between the need for acknowledgement as an autonomous discipline and the multidisciplinarity inherent to its internationalistic nature. Following a conceptual overview, we inquire about the use of disciplinary integration as an assessment criterion, especially concerning the international relations curriculum. Lastly, we report on an experiment carried out in this undergraduate course of the Universidade de São Paulo.

Keywords: interdisciplinarity; international relations; higher education; complexity

RESUMEN

Expresiones como "multi", "pluri", "inter" y "transdisciplinariedad" se difundieron de forma extraordinaria en el medio académico, convirtiéndose en criterios de evaluación institucional en numerosos países. Este artículo analiza la integración entre las asignaturas en el campo de las relaciones internacionales, joven área del conocimiento que bien expresa la complejidad del mundo contemporáneo en sus temas y contenidos y que oscila entre la necesidad de afirmación como asignatura autónoma y la multidisciplinariedad inherente a la formación internacionalista. Después de presentar un panorama conceptual, cuestionamos la integración entre las asignaturas como criterio de evaluación, sobre todo en lo que concierne a los cursos de relaciones internacionales. Por fin, relatamos una experiencia realizada en el ámbito de graduación en este curso de la Universidade de São Paulo.

Palabras clave: interdisciplinariedad • relaciones internacionales • enseñanza superior • complejidad

HÁ QUASE VINTE ANOS, NO CONVENTO DA ARRÁBIDA, EM PORTUGAL, o Primeiro Congresso Mundial de Transdisciplinaridade denunciava a ruptura contemporânea entre o saber e o ser humano: o primeiro, cada vez mais cumulativo, resultado da vertiginosa proliferação das disciplinas acadêmicas e não acadêmicas; e o segundo, cada vez mais empobrecido, desprovido de visão global sobre si mesmo. Segundo a célebre carta de encerramento do Congresso, somente uma inteligência capaz de ultrapassar as disciplinas poderia enfrentar a complexidade do nosso mundo e evitar a autodestruição da nossa espécie (NICOLESCU; MORIN; LIMA DE FREITAS, 1994).

Tal manifesto não constitui, porém, uma novidade histórica. A interdisciplinaridade emergiu no início do século XX como uma necessidade real de gestão das sociedades ocidentais, resultante de uma estratégia orquestrada não pelas universidades, mas da aplicação técnica dos saberes nos laboratórios industriais de pesquisa (PESTRE, 2003). Nas últimas décadas, porém, expressões como "multi", "pluri", "inter" e "transdisciplinaridade" difundiram-se de forma extraordinária no meio acadêmico como uma resposta metodológica à complexidade de nosso tempo. Alguns dos maiores progressos científicos recentes provêm das interações entre as disciplinas (SPERBER, 2003). Além disso, mais do que inspirar incontáveis experiências de ensino, pesquisa e extensão, a integração entre disciplinas converteu-se em critério de avaliação institucional da educação em numerosos países. Não obstante, as tentativas de integrar ou ultrapassar as disciplinas ainda parecem ser mais pensadas e faladas do que efetivamente vivenciadas nas universidades.

Este artigo tem por objetivo analisar algumas das dificuldades de integração entre as disciplinas no campo das relações internacionais - RI - , jovem área do conhecimento que bem expressa a complexidade do mundo contemporâneo em seus temas e conteúdos. Ela oscila entre sua necessidade de afirmação como disciplina autônoma e a multidisciplinaridade inerente à formação internacionalista. Para os críticos dos cursos de RI, o resultado dos currículos multidisciplinares seria a formação de um generalista, alguém que conhece diversas disciplinas sem ser capaz de atuar, de fato, em nenhuma delas.

O presente texto é um convite ao debate sobre os dilemas da integração entre disciplinas que, de forma aberta ou velada, estão no cotidiano de nossa prática docente nas escolas de RI. Com base em uma revisão crítica da literatura, apresentamos um panorama dos conceitos vinculados à temática. A seguir, sob o prisma da complexidade, identificamos algumas especificidades dessas definições na área das RI. Posteriormente, buscamos identificar em que medida a integração entre as disciplinas constitui, de fato, um critério de avaliação no Brasil, especialmente do currículo dos cursos de RI, com base em documentos oficiais gerais e da área. Por fim, relatamos brevemente uma experiência de integração entre disciplinas que realizamos no bacharelado em RI da Universidade de São Paulo - USP - , baseado em nosso testemunho e na avaliação discente, que subsidiam as nossas considerações finais.

MULTI, PLURI, INTER E TRANSDISCIPLINARIDADE: UM CONTINUUM

A revisão de literatura indica que uma vasta produção acadêmica sobre os diferentes graus de integração entre as disciplinas emergiu, especialmente a partir da década de 1990, em todos os campos do conhecimento, caracterizando-se pelo "casuísmo" e pela "polissemia".

Por casuísmo queremos dizer simplesmente que a literatura revisada versa, em sua maior parte, sobre casos determinados. Os métodos escolhidos e os resultados obtidos parecem profundamente relacionados ao perfil dos atores envolvidos e no contexto que os cercou. Referimo-nos tanto à reflexão teórica sobre a integração de disciplinas específicas (por exemplo, estudos sobre as relações entre direito e economia, entre história e ciência política etc.) como o relato de experiências concretas de especialistas de disciplinas diversas que atuam conjuntamente em projetos, grupos de pesquisa ou comitês técnicos. Dessa produção, de qualidade bastante variada, não resultam generalizações com pretensão de universalidade, entre outras razões, porque seus autores reconhecem as várias "dificuldades intransponíveis da lógica indutiva" (POPPER, 2004). Por conseguinte, não encontramos uma "teoria geral" da integração entre disciplinas; ao contrário, cada experiência, por ser datada e singular, tende a reafirmar a impertinência de receitas ou fórmulas.

É importante frisar que, quando uma dessas experiências de integração perdura no tempo e se difunde, nossa cultura acadêmica disciplinar acaba por fazer com que se converta em nova disciplina ou nova subespecialidade.

Quanto à polissemia, as expressões "multi", "pluri", "cross", "trans" e "metadisciplinaridade" aparecem na literatura como divisões pouco claras do também impreciso conceito de interdisciplinaridade que, na verdade, parecem ser diferentes estágios de um mesmo "fluido", de um "continuum multidimensional" (NISSANI, 1995).

A nosso ver, esse continuum pode ser representado e trabalhado com maior precisão por meio da expressão "integração entre as disciplinas". Elucidaremos esses conceitos adiante, ressalvando que as definições aqui mencionadas estão longe de ser consensuais.

Consideramos disciplina o domínio relativamente autossuficiente e isolado da experiência humana que possui sua própria comunidade de especialistas (NISSANI, 1995). "Multi" ou "pluridisciplinaridade" referem-se à situação de ensino, pesquisa ou prática em que diversos especialistas trabalham diferentes aspectos de um mesmo problema, com a simples justaposição de dados produzidos em cada disciplina, reunidos e editados por um receptor ou coordenador (INTERNATIONAL CENTRE FOR DEVELOPMENT ORIENTED RESEARCH IN AGRICULTURE [ICRA], 2009). A metáfora ideal para os estudos multidisciplinares seria a do cesto de frutas: as disciplinas estão apenas próximas umas das outras. Ou, nos melhores casos, a da salada de frutas: há uma associação dos diferentes sabores, porém eles ficam individualmente preservados (NISSANI, 1995).

Já na interdisciplinaridade, expressão que predomina tanto no debate internacional como no brasileiro, há fecundação recíproca pela transferência de conceitos, métodos e resultados de uma disciplina à outra (POMBO, 2005; LÉTOURNEAU, 2010). Nesse caso, a metáfora ideal seria a do smoothie - bebida feita com frutos frescos mixados por vezes misturados com sorvete ou iogurte; mas que não é nem suco de frutas nem milk shake (NISSANI, 1995). Trata-se de iniciativas limitadas no espaço e no tempo para enfrentar um problema de pesquisa específico (REPKO, 2012).

Por fim, a transdisciplinaridade teria como princípio essencial a recusa à abordagem compartimentada que caracteriza a concepção disciplinar tradicional. Reúne saberes para além das disciplinas, ultrapassando as fronteiras de cada uma para dedicar-se a um objeto preciso, pressupondo a pluralidade de níveis da realidade (NICOLESCU, 1994). Implica a produção de conteúdos e métodos novos a partir do mundo real, explorando numerosas disciplinas sem aderir a elas (ICRA, 2009).

Contudo, os esforços para conceituar "inter" ou "transdisciplinaridade" parecem pouco produtivos quando confrontamos a dificuldade objetiva de compreender o funcionamento do paradigma "inter" ou "transdisciplinar" (SILVA, 2011). O fato é que, malgrado a imprecisão conceitual, essas noções conquistaram seu lugar não apenas no vocabulário científico, mas igualmente no léxico das agências de fomento e nos critérios de avaliação institucional. No Brasil, em especial, sua suposta presença "conta pontos" na avaliação de projetos, cursos e artigos, e pode até mesmo ser uma condição de participação ou um critério de desempate em processos seletivos. No caso das RI, a "multi" e a "interdisciplinaridade" aparecem com destaque tanto no vocabulário dos atores da graduação como na pós-graduação.

FORMAÇÃO INTERNACIONALISTA PARA UM MUNDO COMPLEXO

Parece-nos que a primeira dificuldade específica da área de RI para a promoção de integração entre as disciplinas é o escasso intercâmbio com as ciências da educação e cognitivas. Começamos, então, recordando que a condição de educadores deveria primar sobre qualquer identidade proveniente de nossas respectivas especialidades. Todo campo do saber inscreve-se em finalidades educativas fundamentais, mas elas são frequentemente ocultadas pela compartimentalização disciplinar, que remonta à origem de grande parte das instituições modernas. O princípio cartesiano de separação entre as matérias terminou por erodir a unidade do objeto da ciência humana (ALBORNOZ, 2010). Assim, é preciso resgatar a ideia de que, entre os fins da educação, em todos os níveis, encontra-se o desafio de formar pessoas capazes de organizar e mobilizar seus conhecimentos, não de apenas consumi-los e acumulá-los em compartimentos - "melhor uma cabeça bem feita do que uma cabeça bem cheia", como formulou Montaigne (apud MORIN, 1999).

Consideramos, portanto, que um dos amálgamas capazes de reunir docentes egressos de disciplinas tão diversas quanto a ciência política, o direito, a economia, a história e a sociologia, entre outras, é a incorporação crítica da vasta literatura sobre a complexidade dos saberes e o compromisso com a criação de novas metodologias à altura de nosso tempo.

No caso das RI, há consenso no Brasil sobre o fato de que "o crescimento da área, academicamente, se dá à medida que o país se projeta no cenário internacional" (MIYAMOTO, 2003). Em resposta ao mundo complexo em que vivemos, emergem novos métiers, dotados de habilidades específicas, resultantes da combinação de elementos de diferentes disciplinas tradicionais. Um dos mais populares guias do estudante define o bacharel em RI como sendo alguém que

[...] analisa o cenário mundial, investiga mercados, avalia as possibilidades de negócios e aconselha investimentos no exterior. Promove entendimentos entre empresas e governos de diferentes países, abrindo caminho para exportações, importações e acordos bilaterais ou multinacionais. A internacionalização da economia amplia o campo de atuação desse profissional, que pode trabalhar em ministérios, embaixadas e ONGs. (E-GUIA DO ESTUDANTE, 2013)

Tal definição vincula o perfil do internacionalista à globalização econômica e dá ênfase aos negócios internacionais. Segundo o Censo da Educação Superior, em 2011 funcionavam no Brasil 112 cursos de RI, com mais de vinte mil alunos matriculados, sendo cerca de 79% em instituições de ensino superior privadas (BRASIL, 2012d).

O vertiginoso crescimento de um "mercado" de cursos de RI insere-se perfeitamente na "mitologia pós-moderna sobre o funcionamento do mercado de trabalho", pois "a grife do diploma é um indicador, mais do que de competência técnica, de competência social", que vende "a ilusão da mobilidade social perfeita", contrastando com a realidade de uma população que "experimenta no cotidiano uma das mais altas taxas de desigualdade do planeta" (ALVES; ALMEIDA, 2009).

Essa ideia de um "novo mercado" impulsiona a busca de uma tecnicidade singular rumo a uma autoafirmação de sua identidade. Em alguns casos, essa busca termina por afastar a área da tradição humanista de diversas disciplinas que a constituem em prol da suposta funcionalidade dos futuros profissionais e de sua inserção no mercado de trabalho. Todavia, o curso de RI "não tem caráter profissionalizante, isto é, refere-se essencialmente a um campo do conhecimento e não a um conjunto de técnicas aplicáveis a sistemas operacionais associados genericamente a profissões" (UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA, s.d.). Empresas que atuam na educação superior sustentam a total adequação entre a oferta universitária e a demanda laboral, convertendo em propaganda a utopia do pensamento tecnocrático: a aplicação da ciência viria antes da ciência, com critérios "práticos" ou até exclusivamente de "lucro" (FOLLARI, 2010).

Da busca desenfreada de um "lugar no mercado" pode resultar o risco de arrefecimento da adesão de discentes e pesquisadores a valores fundamentais, como a democracia e os direitos humanos. Nada é mais falso do que tê-los como um acervo já conquistado: "nossas democracias precisam educar em defesa própria" (SAVATER, 2010). Especialmente no campo das ciências humanas, a educação pode ser uma alavanca para a democracia e o conhecimento de outras culturas (NUSSBAUM, 2010).

Nesse diapasão, para não se reduzir à mera formação técnica, a educação superior não pode "dar as costas ao resto da sociedade, porque então a cultura já terá deixado de impregnar o conjunto da sociedade" (VARGAS LLOSA, 2012). Ora, se a cultura não é "saber tudo sobre um quase nada", também não é "saber quase nada sobre um pouco de tudo": ela é "um cimento que permite construir um sentido integrando os conhecimentos", possibilitando aos jovens que encontrem, além de uma profissão, o sentido do respeito ao outro, da abertura e da tolerância (ROSNAY, 1999). Assim, a hiperespecialização turba a necessária contextualização dos conhecimentos, transformando especialistas em "idiotas culturais, ignorantes em relação a tudo que concerne problemas globais e gerais", alimentando "a mais vazia das ideias gerais: a de que não se deve ter ideias gerais" (MORIN, 1999).

Por outro lado, a integração entre disciplinas é também um desafio político no campo acadêmico. A área de RI emerge historicamente como uma subespecialidade da ciência política. Mas, sem dúvida, ela "serve-se do direito internacional, da economia política internacional, dos estudos sobre defesa, dos estudos políticos, da geografia, da história, das questões estratégicas, sem confundir-se com nenhum destes campos ou disciplinas" (SUR, 2011).

Sabemos que nem todas as disciplinas se igualam em termos de legitimidade científica, tanto institucionalmente, no campo científico, como de um campo social a outro - cultural, político, econômico etc. (BOURDIEU, 2001). Por conseguinte, as lutas disciplinares perpassam o debate e as próprias práticas interdisciplinares: neles aparecem "estéreis rivalidades disciplinares e nefastos enfrentamentos entre lobbies universitários" (SUR, 2011). Resulta que, na prática da integração entre disciplinas, a utilidade de cada uma delas acaba por ser aferida conforme a representação de que ela desfruta diante das demais.

Ademais, cada área constitui o campo de uma disputa entre diferentes atores, interesses e concepções. Nesse diapasão, as RI são consideradas uma disciplina norte-americana. A quase totalidade das obras mais citadas no meio internacionalista foi escrita por norte-americanos, "e o mais obscuro entre eles se vê dotar de uma dignidade e de um interesse que são mais fruto da influência americana que de suas qualidades intrínsecas" (SUR, 2011).

Acreditamos que a integração entre as disciplinas não é capaz de "anular o poder que todo saber implica", mas aumenta a possibilidade de que os atores da formação internacionalista desejem partilhar os seus respectivos poderes (POMBO, 2005).

A INTEGRAÇÃO ENTRE DISCIPLINAS NO CURRÍCULO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Interdisciplinaridade? "Todo mundo fala, mas ninguém sabe o que é", respondeu à nossa entrevista exploratória um ex-funcionário do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais - Inep - , cuja identidade nos comprometemos a proteger.

No Brasil, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB - de 1996 determina que uma das finalidades da educação superior é "suscitar o desejo permanente de aperfeiçoamento cultural e profissional e possibilitar a correspondente concretização, integrando os conhecimentos que vão sendo adquiridos numa estrutura intelectual sistematizadora do conhecimento de cada geração" (Lei n. 9394, art. 43 V, grifo nosso). Superando essa vaga fórmula, o conceito de integração entre disciplinas mais utilizado em nosso país é o da interdisciplinaridade.

Conforme o Instrumento de avaliação de cursos de graduação presencial e a distância do Ministério da Educação - aplicável aos processos de autorização, reconhecimento e renovação do reconhecimento de cursos nos graus de tecnólogo, licenciatura e bacharelado - a interdisciplinaridade é

[...] uma estratégia de abordagem e tratamento do conhecimento em que duas ou mais disciplinas/unidades curriculares ofertadas simultaneamente estabelecem relações de análise e interpretação de conteúdos, com o fim de propiciar condições de apropriação, pelo discente, de um conhecimento mais abrangente e contextualizado. (BRASIL, 2012c)

Assim, a interdisciplinaridade deve estar presente nas Diretrizes Curriculares Nacionais - DCNs - de cada área:

Os currículos dos cursos devem apresentar coerência com as DCNs no que tange à flexibilidade, à interdisciplinaridade e à articulação teoria e prática, assim como aos conteúdos obrigatórios, à distribuição da carga horária entre os núcleos de formação geral/básica e profissional, às atividades complementares e às atividades desenvolvidas no campo profissional. (MEC/INEP/SINAES, 2012, grifo nosso)

Contudo, no formulário geral de avaliação do mesmo instrumento, há apenas um indicador que afere a interdisciplinaridade. Trata-se do item "1.5. Estrutura curricular", que pode compreender também a análise da pesquisa e da extensão do curso, "caso estejam contempladas no PPC". Tal indicador prevê o conceito 1 para a estrutura curricular que "não contempla, em uma análise sistêmica e global, os aspectos flexibilidade, interdisciplinaridade, compatibilidade da carga horária total (em horas), articulação da teoria com a prática, e nos casos de cursos a distância, mecanismos de familiarização com essa modalidade"; conceito 2 para a que contempla tais quesitos de maneira insuficiente; conceito 3, de maneira suficiente; conceito 4, muito bem; e conceito 5, de maneira excelente (BRASIL, 2012c). Por conseguinte, a interdisciplinaridade dilui-se num vasto indicador de avaliação.

Quanto à avaliação de nossa área, o documento disponível no momento, Padrões de qualidade para os cursos de relações internacionais, parece caminhar mais para a autoafirmação como disciplina do que para a integração entre disciplinas:

O entendimento de que um conjunto determinado de conhecimentos constitui uma área distinta de estudo é, na verdade, o fato básico que justifica a criação de cursos de graduação e pós-graduação específicos para essa área. É óbvio que, do mesmo modo que em outros domínios, o estudo das RI exige o conhecimento de conceitos desenvolvidos e utilizados em outras disciplinas como História, Política, Economia e Direito. Esse fato, contudo, não faz do estudo das RI uma "colcha de retalhos" de noções e práticas definidas como "internacionais" no âmbito de uma variada gama de áreas do conhecimento. (BRASIL, s.d.)

Provavelmente, esse documento responde a vozes da própria área, para as quais "a grade curricular multidisciplinar do bacharelado em RI não forma alunos com habilidades específicas, como a maioria dos cursos universitários" (MIYAMOTO, 2003). São notórios os dilemas identitários de nossos graduandos em relação ao seu futuro profissional, engendrando uma literatura a respeito de o "que fazer com seu diploma" (GUIMARÃES, 2009).

Tal "crise de identidade" é, amiúde, atribuída ao currículo:

Pouco se divulga informações sobre o que é um internacionalista, ficando a ilusão para o mercado de que sua tarefa é idêntica à realizada pelo profissional de Comércio Exterior. Também tem sido reduzido o seu esforço a um trabalho que pode ser executado por vários outros profissionais de ciências humanas, tais como juristas, economistas, sociólogos, antropólogos, historiadores etc., o que não é o caso. Talvez, uma grande parcela de responsabilidade por essa confusão se deva à maneira como são organizados os cursos de RI no Brasil e a forma como são concebidos os conteúdos das disciplinas, que acabam formando generalistas desvinculados do real universo de atuação desse profissional. (SUANO, 2005)

Os já citados Padrões de qualidade para os cursos de relações internacionais de fato recomendam a multidisciplinaridade, sob a forma de uma estrutura tripartite para os currículos, elaborada tendo como referência um curso de oito semestres de duração, correspondentes a cerca de 2.400 horas/aula, que prevê três tipos de disciplinas: as específicas; as de suporte e diretamente correlatas; e as optativas (BRASIL, s.d.).

Quanto às específicas, "caracterizam o curso, uma vez que é através delas que os conceitos e as categorias empregadas nesse campo de estudo são ministradas", com o mínimo de 480 horas/aula, compreendendo uma disciplina introdutória que procure caracterizar noções fundamentais empregadas no estudo das RI; disciplinas voltadas ao ensino das principais correntes teóricas no estudo das RI, incluindo a análise da política internacional; disciplinas de história e análise da política externa brasileira; disciplinas de história das RI; e disciplinas de análise das instituições políticas e econômicas internacionais.

Vê-se, portanto, que as disciplinas consideradas específicas são essencialmente oriundas da ciência política e da história.

Quanto às disciplinas de suporte e diretamente correlatas, "que devem tratar de matérias de formação básica e das áreas no âmbito das quais os fenômenos internacionais se manifestam", com cerca de 1.200 horas/aula, devem obrigatoriamente incluir:

[...] disciplina introdutória de Ciência Política apresentando os conceitos fundamentais da área; disciplinas introdutórias de Economia, Direito e Sociologia (ou Filosofia); Teoria Política (do século XVI aos nossos dias); Metodologia aplicada à Ciência Política e RI; Estatística e métodos quantitativos; disciplinas de Relações Econômicas Internacionais a partir dos enfoques oferecidos pelas modernas abordagens da economia política internacional e não nas visões estritamente econômicas Economia Brasileira; disciplinas de Direito Internacional; [e] prática de idiomas. (BRASIL, s/d)

Por fim, as optativas "podem ser voltadas à orientação profissional", podendo, ainda,

[...] variar de acordo com os diferentes cursos individualmente, dependendo das disponibilidades regionais e locais, podendo incluir: cooperação internacional, prática de negociação, integração regional, estudos regionais e estudos de temas específicos sobre o meio internacional, entre outros. (BRASIL, s.d.)

Os estágios profissionalizantes, por sua vez, devem ser relacionados à área internacional.

Conclui-se que os padrões não se referem à "inter", e sim à multidisciplinaridade. Logo, recorrendo às metáforas já referidas, consistem num típico cesto de frutas, com largo predomínio, na primeira vertente do currículo ("disciplinas específicas"), da justaposição entre ciência política, história e RI.

Ao longo do ano de 2012, a Associação Brasileira de Relações Internacionais - ABRI - , promoveu um debate sobre os cursos de RI, a fim de elaborar um documento de base que contribuísse à elaboração das ainda pendentes DCNs para nossa área. A proposta resultante estipula que os projetos pedagógicos dos cursos de RI deverão prever "formas de realização da interdisciplinaridade" (ABRI, 2013).

Tal documento indica, ainda, os conteúdos que deverão ser contemplados nos projetos pedagógicos e na organização curricular por meio de um "referencial fundamental":

1. Teoria e Epistemologia das Relações Internacionais

2. Instituições Internacionais

3. Política Externa

4. História das Relações Internacionais e História das Relações Internacionais do Brasil

5. Economia Política Internacional

6. Segurança Internacional

7. Formação Complementar (único momento em que há referência a "estudos opcionais de caráter transversal e interdisciplinar para o enriquecimento do perfil do formando")

8. Formação Específica da vertente escolhida pela IES

9. Atividades Laboratoriais próprias da atuação profissional do futuro bacharel (ABRI, 2013).

Constata-se que, malgrado a referência esporádica à integração entre as disciplinas, os conteúdos II e VI podem vir a ser construídos a partir da interdisciplinaridade, como é o caso das instituições internacionais, ou são temas com vida própria acima ou fora das disciplinas, como é o caso da segurança internacional.

Ademais, o documento da ABRI (2013) prevê o seguinte "núcleo estruturante" para o currículo:

1. Introdução ao Estudo das Relações Internacionais (Fundamentos das Relações Internacionais ou disciplinas afins)

2. Metodologia Científica (Introdução à Ciência ou disciplinas afins)

3. Teorias das Relações Internacionais

4. História das Relações Internacionais (Evolução do Sistema Internacional ou disciplinas afins)

5. História das Relações Internacionais do Brasil (ou disciplinas afins)

6. Análise das Relações Internacionais do Brasil

7. Instituições Internacionais (Organizações Internacionais ou disciplinas afins)

8. Economia Política Internacional (ou Relações Econômicas Internacionais, ou Economia Internacional)

9. Segurança Internacional (Problemas estratégicos contemporâneos ou disciplinas afins)

10. Relações Internacionais Contemporâneas

O núcleo estruturante combina, então, a afirmação da autonomia da área com a justaposição de outras áreas em sua subespecialidade internacionalista.

Por sua vez, o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes - Enade - , no componente específico da área de RI,1 1 Os cursos de RI participaram pela primeira vez do Enade em 2009. Os conceitos variam de 1 a 5, sendo 5 a nota máxima. Classifica-se como "Sem Conceito" - SC - o curso que não possuir estudantes ingressantes ou concluintes selecionados para fazer a prova. No Enade 2009, dos 81 cursos de RI avaliados, 30 ficaram SC. Entre os 51 cursos efetivamente analisados, 47,1% obtiveram conceito 1 ou 2; 39,2% atingiram o conceito 3; e 13,7% alcançaram os conceitos 4 e 5 (CESA, 2012). assim a caracteriza: "formação geral e humanística que possibilite a compreensão das questões internacionais no seu contexto político, econômico, histórico, geográfico, jurídico, cultural e social" (CESA, 2012). A prova do Enade 2012 elegeu os seguintes "objetos de conhecimento":

I - Formação Teórica: teorias clássicas e contemporâneas das Relações Internacionais; abordagens de economia política internacional;

II - Formação Geral: Regimes Internacionais; Organizações Internacionais; Análise de Política Externa; Política Externa Brasileira; Integração Regional; Segurança Internacional; Comércio e Finanças Internacionais; Cooperação Internacional; Direitos Humanos; Meio Ambiente;

III - Formação Histórica: História das Relações Internacionais; História das Relações Internacionais do Brasil (CESA, 2012).

Note-se que não há correspondência direta entre os padrões de qualidade vigentes e os conteúdos aferidos pelo Enade, e tampouco em relação à proposta da ABRI. Portanto, ainda não há consenso a respeito do equilíbrio desejado entre as diversas disciplinas no currículo de RI.

Acrescentamos que o debate sobre o currículo de RI deve ser instruído pelo atento acompanhamento dos egressos, cujos depoimentos podem contribuir para que se constatem alguns dos efeitos práticos das características da grade sobre a formação profissional e humana.

Entretanto, não nos parece que mazelas como o divórcio entre a realidade profissional e o currículo ou a superficialidade da transmissão do conhecimento sejam, atualmente, um atributo exclusivo dos cursos multidisciplinares. Ao contrário, essa inquietação também se faz presente na discussão de diretrizes curriculares das carreiras liberais tradicionais, como direito ou medicina.

Por fim, salta aos olhos que há pouco acúmulo em matéria de "inter" e "transdisciplinaridade" no âmbito da graduação.

A INTEGRAÇÃO ENTRE DISCIPLINAS NO ÂMBITO DA PÓS-GRADUAÇÃO E DA PESQUISA

De acordo com o Plano Nacional de Pós-Graduação - PNPG - para 2011-2020, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes - , "entende-se por multidisciplinaridade o estudo que agrega áreas do conhecimento em torno de um ou mais temas, no qual cada área ainda preserva sua metodologia e independência"; e entende-se por interdisciplinaridade

[...] a convergência de duas ou mais áreas do conhecimento, não pertencentes à mesma classe, que contribua para o avanço das fronteiras da ciência e tecnologia, transfira métodos de uma área para outra, gerando novos conhecimentos ou disciplinas e faça surgir um novo profissional com um perfil distinto dos existentes, com formação básica sólida e integradora. Tal convergência se aplica notadamente no caso da abordagem de temas e problemas complexos que desafiam a ciência contemporânea, envolvendo, além da referida transferência de métodos, trocas recíprocas e mesmo criação de novos conceitos e metodologias interdisciplinares. Assim, a diferença parece clara e depende do semântico dos verbos agregar e convergir [...]. Todavia, é indiscutível que também as áreas multidisciplinares visam ao conhecimento novo e à geração de novos produtos, criando uma nova cultura e moldando um novo profissional. (BRASIL, 2010, grifo nosso)

No mesmo documento, a Capes reconhece que não dispõe de números ou estatísticas sobre grupos "inter" e multidisciplinares que atuam na pesquisa e no ensino de pós-graduação no Brasil, porque sua apuração recobriria as ações de diferentes ministérios, das agências federais de fomento e das fundações estaduais de amparo à pesquisa. A Capes observa ainda que, nos últimos anos, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - Fapesp - e o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação - MCTI - , tiveram uma ação indutora, especialmente por meio de editais temáticos coordenados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq - e pela Financiadora de Estudos e Projetos - Finep - , favorecendo a constituição de grupos transversais de pesquisa (BRASIL, 2010).

Quanto aos tradicionais Diretórios de Grupos de Pesquisa do CNPq, haveria "grande heterogeneidade, sendo esses, em boa parte, disciplinares", o que poderia ser atribuído a "uma questão de cultura e de esprit de corps, oriunda de um longo processo de criação das disciplinas e de seu encastelamento nas estruturas das Universidades" (BRASIL, 2010).

No caso das agências de fomento, é de se destacar a experiência do CNPq, que, no início da década de 1990, instituiu, sem êxito, um comitê multidisciplinar, formado por membros de comitês disciplinares que se reuniam ao final dos trabalhos de seus respectivos grupos:

A composição [do comitê] era, nesse sentido, ad hoc e não obedecia ao critério de perfil interdisciplinar. Por sua duvidosa legitimidade e baixa efetividade, a experiência foi logo abortada. Cabe assinalar que sendo cada membro também vinculado a uma área disciplinar, sua disposição em dividir suas quotas de recursos com os projetos interdisciplinares era bem pequena. Isso resultava em baixíssimo índice de aprovação das demandas. (BURSZTYN, 2005, p. 51)

A experiência relatada por Dan Sperber é emblemática em relação a esse tipo de comitê. É o que ele chama de "interdisciplinaridade cosmética":

[...] e aqui estou eu, mais uma vez, participando de um comitê encarregado de avaliar projetos de pesquisa que supostamente satisfazem um critério explícito de interdisciplinaridade. Como de hábito, o comitê é interdisciplinar no sentido de que ele é composto essencialmente por pesquisadores de diversas disciplinas, cada um reconhecido e poderoso em sua disciplina particular. No entanto, pouquíssimos entre nós estivemos implicados de forma intensiva em pesquisas interdisciplinares. (SPERBER, 2003, p. 3; tradução das autoras)

Além da capacidade de julgamento dos comitês, o autor denuncia igualmente a qualidade dos projetos apresentados, considerando que, na maior parte deles, "o conteúdo científico real" consiste "numa justaposição de projetos monodisciplinares com um certo esforço para articulá-los na apresentação"; ou, quando há projetos "verdadeiramente interdisciplinares", eles tendem a não ser tão bem elaborados quanto os disciplinares, e a oferecer ainda maior incerteza quanto aos resultados que podem ser obtidos (SPERBER, 2003). Na gestão de escassez de financiamento, os comitês tendem a preferir a garantida interdisciplinaridade cosmética à incerta interdisciplinaridade efetiva.

Por fim, o PNPG 2011-2020 destaca alguns problemas da "multi" e da "interdisciplinaridade":

[...] a exigência de diploma na área disciplinar, dificultando aos candidatos oriundos de programas e cursos Inter e Multi a participação em concursos de admissão de professor; as revistas hiper-especializadas e os comitês ultradisciplinares, que barram a veiculação da produção acadêmica contendo elementos outros que não apenas aqueles disciplinares; os comitês e pareceristas das agências, quase todos disciplinares e pouco dispostos a reconhecer tanto a pertinência quanto a relevância de experiências não estritamente disciplinares. A isso, somam-se o próprio mercado e o setor privado, ainda conservadores em importantes segmentos e pouco propensos a profissionais com perfil Inter ou Multidisciplinar. (BRASIL, 2010)

Registre-se que, apesar de seu discurso favorável à integração entre disciplinas, a Capes é frequentemente objeto de críticas: a dificuldade de enquadramento e a subjetividade das propostas "[têm] levado muitas vezes a incompreensões e erros na avaliação, que dificultam o reconhecimento de formas interdisciplinares e intersubjetivas de construção do conhecimento" (OLIVEIRA; ALMEIDA, 2011, p. 55).

Ao longo de 2012, o Conselho Técnico-Científico da Educação Superior - CTC - deflagrou um debate sobre a interdisciplinaridade no âmbito da Capes. Há relatos de que vários membros do CTC expressaram preocupações, que podem ser assim resumidas:

[...] pouco entendimento do tema nas IES envolvendo questões como definição de concursos públicos disciplinares sem uma abordagem aberta e ampla para currículos multi/interdisciplinares; falta de mecanismos para lidar com temas interdisciplinares; falta de políticas indutoras do tema; pouco conhecimento do tema e de sua vinculação no cenário internacional; pouco conhecimento de indicadores da absorção dos egressos dos PPGs verdadeiramente interdisciplinares; falta de amadurecimento e maturidade das IES para tratar com esse tema, aliado a falta de orientação clara e adequada sobre o mesmo. (FÓRUM NACIONAL DE PRÓ-REITORES DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO DAS IES BRASILEIRAS, 2012, p. 2)

De modo geral, a Capes tem dado grande importância ao tema da interdisciplinaridade, inclusive por meio de seminários nacionais que têm promovido "o debate sobre aspectos teórico-conceituais que fundamentam a inter e a transdisciplinaridade como concepções de produção de conhecimento e de práticas" (BRASIL, 2010).

No bojo desse debate, a área de ciência política e RI elaborou um breve documento, que aborda sobretudo a ciência política, considerando que "sua vocação interdisciplinar fica evidenciada ao observar-se o tratamento conferido aos principais temas de investigação científica, empreendidos pela disciplina" (BRASIL, 2010). Passa, então, a percorrer as diversas interações entre a ciência política e outras disciplinas. Sobre RI, o documento limita-se a mencionar que:

Uma área de estudos que apresentou forte expansão na última década, com a implantação de cursos de graduação e programas de pós-graduação foram as RI. Aqui também podemos identificar os efeitos positivos da cooperação acadêmica com outras áreas como a História, a Economia, Geografia e Direito. (BRASIL, 2010)

Encontra-se, porém, literatura sobre as práticas interdisciplinares em RI, sempre remetendo ao relacionamento específico entre certas disciplinas e as RI - por exemplo, entre filosofia e RI (MAPA, 2011) - ou a experiências concretas de interdisciplinaridade. Acreditamos, porém, que a análise, ainda que muito breve, do perfil dos programas de pós-graduação em RI explica, mais do que a literatura, as dificuldades da integração entre disciplinas: "no Brasil foi difícil definir os limites da área de RI, tendo em vista as diferenças metodológicas e conceituais que marcam a disciplina e, especialmente, a sua natureza 'inter' e 'multidisciplinar'" (LESSA, 2006).

O primeiro programa de pós-graduação na área de RI teria surgido, no Brasil, com base na produção científica das áreas de história das RI e de política internacional da Universidade de Brasília - UnB, desenvolvida a partir da década de 1970; o segundo polo de formação em nível de pós-graduação de expressão seria o da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio, que "pode ser caracterizado como de política internacional stricto sensu, uma vez que predomina em seus quadros profissionais com atuação marcadamente caracterizada pelos aparatos analíticos da politologia, em especial de inspiração anglo-saxônica" (LESSA, 2006). As RI apareceram, ainda, em áreas de concentração de programas disciplinares, como foi o caso do programa em história da Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ.

As experiências multidisciplinares são, por conseguinte, bem mais recentes:

A partir de 2001, novos programas de pós-graduação foram lançados com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes, que por meio do programa San Thiago Dantas procurou fomentar a formação de quadros para o ensino e a pesquisa sobre relações internacionais no Brasil. Nesta última safra foram então organizados os programas de mestrado em relações internacionais que têm feições mais multidisciplinares, como o que surgiu da cooperação das três grandes universidades do estado de São Paulo (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, Universidade de Campinas - Unicamp - e Universidade Estadual Paulista - Unesp). O programa de mestrado em relações internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS - , por seu turno, tem como área de concentração os processos de integração regional, e entre os seus colaboradores estão especialistas em história das RI, direito, economia, geografia e ciência política. Finalmente, o último dos programas de pós-graduação em RI que surgiram ao final dos anos noventa foi o da Universidade Federal Fluminense - UFF - , que tem como área de concentração economia e política das relações internacionais. (LESSA, 2006)

Apesar de incompleto, acreditamos que esse panorama ajuda a compreender por que a integração entre disciplinas na área de RI ainda possui um imenso caminho a explorar.

Devemos nos perguntar o quanto o campo poderia crescer em densidade acadêmica e em repercussão social, caso conseguisse com maior frequência pautar sua produção científica, não apenas pelo enfrentamento de temas transversais, mas com enfoques e métodos também transversais - isto é, transdisciplinares, fora ou acima das disciplinas; ou interdisciplinares, com fecundações recíprocas entre disciplinas.

Salvo engano, no Brasil, o que predomina atualmente na produção acadêmica de nossa área é ou a justaposição de respostas disciplinares a temas transversais, ou simplesmente a pauta típica das grandes disciplinas sociais, humanas e aplicadas em suas subespecialidades internacionais.

Do ponto de vista institucional, algumas recomendações gerais aos programas de pós-graduação encontram-se no já citado PNPG 2011-2020:

  • a instauração de programas, áreas de concentração e linhas de pesquisa que promovam a convergência de temas e o compartilhamento de problemas, em vez da sua mera agregação ou justaposição;

  • a existência de pesquisadores com a ancoragem disciplinar e formação diversificada;

  • a instituição da dupla ou até mesmo tripla orientação, conforme os casos específicos;

  • a flexibilização curricular, em molde supra-departamental. (BRASIL, 2010)

Por enquanto, porém, parece consensual na literatura e nos documentos estudados que, em matéria de integração entre disciplinas, persiste "uma distância entre o falado, o pensado e o efetivamente praticado no contexto universitário" (PELEIAS et al., 2011, p. 499).

RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA

Criado em 2004, o Instituto de Relações Internacionais - IRI - da USP tem por objetivo a abordagem multidisciplinar das questões mundiais, reunindo competências nas áreas do direito, da ciência política, da economia e da história (USP, 2013). O IRI oferece um curso de bacharelado e, desde 2009, um programa de pós-graduação (mestrado e doutorado), todos em RI.

Seu quadro docente é formado por 14 professores com dedicação exclusiva e 12 professores de outros departamentos da USP com dedicação parcial ao Instituto, todos voltados, nas respectivas áreas, a temáticas internacionais.2 2 Para determinadas disciplinas, o Instituto conta, também, com professores alocados por outras unidades da universidade, não computados aqui por não integrarem o quadro docente permanente. Indica-se a área de origem dos docentes (considerando sua atuação principal) no quadro seguinte.

Ainda que se constate um claro predomínio da ciência política no recrutamento docente do IRI/USP, o número total de professores oriundos de outras áreas é a ele superior. Isso se deve à busca de equilíbrio entre a presença das áreas na grade curricular do bacharelado. Conforme o projeto pedagógico do curso, o perfil do egresso é o de um cidadão polivalente, com domínio dos fundamentos históricos, econômicos, jurídicos, políticos e sociológicos das RI, de modo a explorar uma variada gama de oportunidades profissionais.

O ciclo básico distribui-se em dois anos, ao longo dos quais os alunos devem cursar cinco disciplinas da área de ciência política, quatro disciplinas de história, quatro de direito, quatro de economia, duas de métodos empíricos de pesquisa e uma de sociologia. São ainda obrigatórias duas disciplinas a serem cursadas no quinto semestre, uma de direito e uma de ciência política. Uma vez concluída a formação de base, os estudantes podem moldar o restante de sua graduação de acordo com seus interesses específicos, cursando disciplinas eletivas, inclusive em outras unidades da USP. Na prática, o futuro bacharel em RI da USP tem então a possibilidade de escolher uma ênfase em sua formação. Devido à proximidade com os professores das respectivas unidades, ele o faz, em geral, nos campos de ciência política, direito, economia ou história.

Como professoras de disciplinas de direito e economia nos cursos de RI, vivemos cotidianamente a dificuldade de, num curto espaço de tempo e diante de motivação bastante volátil por parte dos alunos, transmitir os rudimentos (os "móveis e utensílios") de nossas disciplinas de origem. Essa transmissão parece crucial para que os alunos possam compreender, mais adiante, as subespecialidades internacionalistas de nossas disciplinas (no caso, direito internacional e economia internacional). Aparentemente, isso nos reserva um duplo papel: nas atividades de ensino, somos referenciais tanto dos conhecimentos do núcleo duro de nossas disciplinas de origem, como de nossas subespecialidades.

Na verdade, porém, nosso papel é triplo: como pesquisadoras e docentes credenciadas no programa de pós-graduação, nossa produção acadêmica deve ser classificada como afeita à área de RI para que seja computada nos diferentes âmbitos de avaliação institucional. Ora, quando se trata da temática internacionalista, são tênues as fronteiras entre o que pode ser considerado um trabalho de direito ou de economia ou RI. Não raro, somos tratadas de modo caricatural, particularmente nas surpreendentes análises que os comitês disciplinares, inclusive editoriais, fazem de nossos projetos. Assim, somos percebidas por economistas e juristas tradicionais como "sui generis" ou "desertoras", embora na área de RI jamais sejamos consideradas "puro sangue".

Não obstante, dispomos de pouco espaço para tratar ou produzir o novo, algo que possa ser catalogado como propriamente de RI ou como interdisciplinar, tanto no âmbito da graduação como da pós-graduação. Logo, acreditamos que as disciplinas eletivas constituem um espaço privilegiado para o avanço da integração entre disciplinas.

A iniciativa que aqui relataremos é a disciplina eletiva de Integração Regional, oferecida no IRI/USP no segundo semestre de 2011, que foi ministrada por três docentes, das áreas de ciência política (Kai Lehmann), direito e economia (as autoras).

Em sua primeira edição, o programa da disciplina caracterizou-se pela multidisciplinaridade, pois teve três módulos justapostos, com o objetivo principal fazer com que os estudantes tivessem contato com vocabulário, a estrutura teórica e os distintos métodos utilizados pelas três disciplinas. Combinaram-se conteúdos disciplinares básicos com temas transversais, a fim de permitir que as áreas "conversassem entre si" ao longo do curso. Procuramos selecionar o que havia de mais relevante na bibliografia e no olhar de cada disciplina sobre a integração regional, realizando também um grande esforço de síntese.

O módulo de economia teve quatro aulas, com os seguintes conteúdos:

1. integração econômica e acordos preferenciais de comércio: classificação dos acordos de integração;

2. integração europeia e integração latino-americana: principais características e fatos econômicos;

3. teoria das áreas monetárias ótimas e elementos da integração monetária e financeira: o processo europeu de unificação monetária e a integração financeira no Mercosul; e

4. desafios e problemas atuais nos processos de integração: o lado econômico da crise na União Europeia (UE) e as assimetrias.

O módulo de direito teve igualmente quatro aulas, com os conteúdos seguintes:

1. evolução jurídica da integração europeia e os reflexos do aprofundamento e do alargamento nos tratados constitutivos, noção de ordem jurídica autônoma e tipologia normativa;

2. a elaboração das ordens jurídicas regionais: governança regional comparada: quadro orgânico e processo legislativo da UE, do Mercosul e da Unasul;

3. jurisdição versus arbitragem: princípios do direito da integração e sistemas de solução de controvérsias do Mercosul; e

4. cidadania regional e política migratória na Europa e na América do Sul.

Por fim, o módulo de ciência política teve cinco aulas, desenvolvendo os seguintes conteúdos:

1. conceitos e abordagens teóricas das RI e análise dos processos de integração regional;

2. funcionalismo e neofuncionalismo: interdependência e integração;

3. política externa e integração regional: intergovernamental versus supranacional;

4. política externa em perspectiva comparada: obstáculos e facilitadores da integração;

5. crise e integração regional: análise da situação política atual da UE.

Graças ao programa da USP de avaliação de disciplinas, podemos trazer ao artigo a perspectiva dos alunos. Ao final de cada semestre, questionários individuais são preenchidos voluntariamente pelos alunos, nos quais o desempenho docente e outros aspectos da disciplina são mensurados por meio de critérios qualitativos e quantitativos, aferidos em questões objetivas e de livre resposta. Do total de 29 alunos matriculados em nossa disciplina, 17 responderam ao questionário (58,62%).

Consideramos que, globalmente, a avaliação foi satisfatória: 76,5% dos alunos responderam que a disciplina proporcionou aquisição de novos conhecimentos, e 88,2%, que o conteúdo é importante para sua formação profissional (alternativas sim ou não); 87,5%, que os professores dominavam a matéria, e 75%, que o programa foi cumprido (opção por conceitos 4 e 5 numa escala de 1 a 5); 61,5% consideraram a carga horária adequada, e 88,2% consideraram a exigência de empenho e dedicação dos alunos também adequada (alternativas insuficiente, adequada e excessiva).

O aspecto negativo da parte objetiva da avaliação foi o programa da disciplina. Numa escala de 1 a 5, 93,3% dos alunos atribuíram notas entre 1 e 3. Destacamos os comentários feitos na parte livre dos questionários (Q):

Q1 - A ideia de essa disciplina ser dada por 3 professores diferentes foi muito boa, mas faltou uma real articulação entre as partes e a ordem delas poderia ter sido melhor pensada. Uma aula final para pensarmos as 3 abordagens em conjunto também faz falta.

Q2 - A disciplina trata de assuntos interessantes e a proposta de três visões diferentes foi interessantíssima. Principalmente quando as professoras assistiam às aulas conosco.

Q3 - 3 professores tornaram a matéria desconexa, melhor seria se fosse um só.

Q4 - A dinâmica com três professores poderia ser usada de forma estratégica gerando uma dinâmica mais rica entre as diferentes áreas de conhecimento.

Q5 - Acredito que a divisão de disciplinas em três professores foi negativa, por falta de um link entre as aulas. Sugeriria uma divisão das aulas não por tema, mas por organização regional.

Q6 - Boa iniciativa ter três áreas em uma disciplina.

É sintomático que as críticas se tenham centrado justamente no escasso vínculo entre as três abordagens. Em primeiro lugar, nota-se a confusão entre o número de professores e a conexão entre os módulos da disciplina (Q3). Tal crítica não procede porque, em tese, um só professor pode ministrar uma disciplina desconexa, do mesmo modo que três professores poderiam estar perfeitamente entrosados em um programa comum.

Outro aspecto digno de nota é a sugestão de adotar o programa tradicional que os cursos de RI oferecem sobre integração regional, que corresponde a uma lista das organizações regionais de integração (Q5). Tais programas, eminentemente descritivos, são, por via de regra, executados a partir de um só campo (ciência política, direito, economia, história etc.), subestimando a riqueza da temática da integração regional. Acreditamos que, nas próximas edições dessa disciplina, deveremos dar maior ênfase ao pacto prévio com os alunos, a fim de insistir sobre os benefícios e os limites, tanto da experiência em curso, como dos programas tradicionais, uma vez que essa sugestão revela o desconhecimento da tentativa de inovação empreendida.

Em terceiro lugar, aparece a censura ao isolamento que resultou da justaposição dos três enfoques (Q1 e Q4). Parece-nos que essa é uma das mais comuns objeções à multidisciplinaridade: "cada 'especialista' dá sua opinião conforme a visão de sua respectiva 'área', sem se deixar abalar ou esvaziar para perceber o novo que chega a partir de outras visões" (PINTO NETO, 2010). Assim, uma das respostas ressalta que a disciplina se tornava interessantíssima "quando as professoras assistiam às aulas conosco"; leia-se "quando uma professora participava da aula da outra" (Q2). Comungamos dessa opinião porque houve um significativo grau de convergência em nossos pontos de vista ao debater os temas da disciplina. Mas essa convergência operou-se presencialmente, e não na programação da disciplina. Ou seja, nosso objetivo de que as disciplinas "conversassem entre si" realizou-se graças à interação direta entre os docentes no debate que se seguia à aula expositiva.

Por outro lado, ficou claro, em nossa prática docente, que as tentativas de integração entre disciplinas não dispensam o pleno conhecimento dos respectivos campos mobilizados - ou seja, não se trata de uma recusa dos saberes das disciplinas, mas apenas de uma ruptura da "zona de conforto" de seu jargão. Por isso, o seu sucesso depende também do grau de domínio dos respectivos saberes disciplinares, a fim de mobilizá-los de novas maneiras. Por exemplo, uma forma de destacar a importância da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia - TJUE - foi escolher processos judiciais cuja repercussão econômica fosse evidente, e procurar discernir o papel que o direito representou para a economia, ao menos naquele contexto. Isso não significa propriamente uma integração entre disciplinas, mas um esforço pedagógico capaz de criar pontes para que ela venha a florescer.

Ademais, um especialista pode ser surpreendido por uma produção inovadora surgida no seio de sua própria disciplina, trazida por um colega de área diversa. É ilustrativo o exemplo da pesquisa sobre incorporação das normas do Mercosul, elaborada no campo da ciência política, cuja conclusão é de que apenas cerca de 50% das normas elaboradas no âmbito do Mercosul estão vigentes no direito brasileiro (VENTURA et al., 2012). Baseada em estudos quantitativos que indicam, entre outras variáveis, o tempo médio de incorporação de normas, os Estados e os setores com melhor performance, essa pesquisa aporta uma grande contribuição à área do direito, em geral pouco afeita à pesquisa empírica ou mesmo científica (NOBRE, 2011). Esse tipo de estudo explora a tangibilidade de uma ordem jurídica internacional por outra via, anterior à jurisprudência, uma vez que a vigência ou não da norma é, em geral, determinante da sua aplicabilidade pela jurisdição. Assim, por vezes, reconhecer a diversidade de sua própria área pode ser mais importante do que assimilar os rudimentos das demais disciplinas.

Nesse sentido, concluímos que os principais obstáculos à efetivação de projetos interdisciplinares estão em nós mesmos: "resistência a abrir mão do poder de sua disciplina, falta de tempo para participar de projetos, falta de preparo pedagógico em sua formação na área, entre outros" (PELEIAS et al., 2011).

Nosso balanço é de que a disciplina cumpriu seu papel de transmitir os conteúdos básicos relativos à integração regional, embora ainda não sob a forma interdisciplinar. Isso nos leva a sublinhar que o grau de integração entre as disciplinas não implica diretamente a qualidade do ensino, ou mesmo da pesquisa de que se fala, pois "em algumas circunstâncias, uma simples manga vai ultrapassar todos os smoothies do mundo; em outras, apenas uma salada de frutas o fará" (NISSANI, 1995). Diga-se de passagem, por vezes o número de frutas numa cesta pode objetivar apenas um apelo visual (REPKO, 2012), configurando a já referida interdisciplinaridade cosmética.

No entanto, entendemos que a integração regional é um terreno fértil para ir além da multidisciplinaridade. Por conseguinte, o grande desafio nas novas edições da disciplina será conceber integralmente o programa e os conteúdos de cada aula a partir de objetos ou problemas reais de integração regional, de modo "inter" ou "transdisciplinar", sem módulos isolados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste artigo, fornecemos elementos que embasam diversas propostas com vista a favorecer a integração entre disciplinas: que os docentes, independentemente de sua área de origem, aproximem-se das ciências da educação e se vejam, antes de mais nada, como educadores, renovando seu engajamento na discussão global do currículo e da identidade profissional de RI; que se valham da literatura sobre a complexidade do saber, a fim de aprofundar seu senso crítico em relação aos efeitos da compartimentalização das disciplinas de que somos reféns; que recusem a visão de RI como "novo mercado", comprometendo-se com a difusão dos valores e da riqueza das diferentes culturas.

Além disso, após conceituar as expressões típicas da integração entre disciplinas ("multi", "inter" e "transdisciplinaridade"), demonstramos a modéstia e a ambiguidade das instituições públicas ao materializar esses conceitos sob a forma de critérios de avaliação dos cursos de graduação e de pós-graduação em RI.

Procuramos, ainda, demonstrar que o incremento da integração entre disciplinas requer não apenas a busca de mecanismos comuns capazes de articular o que aparentemente não é articulável, mas exige também uma atitude que englobe curiosidade, abertura de espírito e gosto pelo trabalho em comum (POMBO, 2005). Nessa linha, relatamos aqui um esforço de integração que, embora limitado à multidisciplinaridade, ajudou-nos sobremaneira a identificar falhas e acertos, no intuito de avançar rumo à interdisciplinaridade no ensino de integração regional.

Duas ressalvas devem ser feitas nestas considerações finais. Primeiramente, temos consciência de que integrar disciplinas implica um investimento de largo fôlego, fadado a avanços e recuos. Numerosos relatos de experiências põem em relevo o fato de que as comunidades disciplinares possuem vocabulários, pressupostos, referências e critérios muito diferentes; por vezes, "é fascinante, e ao menos tempo desencorajador, observar como semana após semana, ano após ano, os mesmos desacordos entre disciplinas, e até no seio de uma mesma disciplina, expressam-se quase nos mesmos termos" (SPERBER, 2003).

Em segundo lugar, o que defendemos é a abertura às possibilidades de integração entre disciplinas, e não uma adesão incondicional a elas. É preciso ter claro que, do ponto de vista do progresso da ciência, a interdisciplinaridade nem sempre é a melhor estratégia, e jamais será, por si só, uma garantia de sucesso. Em certos domínios, as disciplinas e subdisciplinas estabelecidas produzem resultados ótimos; em outros, ao contrário, as fronteiras disciplinares perfazem um obstáculo ao desenvolvimento desejado, enquanto a interdisciplinaridade pode ajudar a otimizar a pesquisa (SPERBER, 2003).

Finalmente, não é possível, nem desejável, dar receitas sobre quando e como integrar as disciplinas. Nossa principal conclusão, fundada na teoria e na prática, é a de que

Sem interesse real por aquilo que o outro tem para dizer não se faz interdisciplinaridade. Só há interdisciplinaridade se somos capazes de partilhar o nosso pequeno domínio do saber, se temos a coragem necessária para abandonar o conforto da nossa linguagem técnica e para nos aventurarmos num domínio que é de todos e de que ninguém é proprietário exclusivo. (POMBO, 2005, grifo nosso)

Recebido em: JUNHO 2013

Aprovado para publicação em: FEVEREIRO 2014

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  • Educação superior e complexidade: integração entre disciplinas no campo das relações internacionais

    Higher education and complexity: disciplinary integration in the field of international relations
  • 1
    Os cursos de RI participaram pela primeira vez do Enade em 2009. Os conceitos variam de 1 a 5, sendo 5 a nota máxima. Classifica-se como "Sem Conceito" - SC - o curso que não possuir estudantes ingressantes ou concluintes selecionados para fazer a prova. No Enade 2009, dos 81 cursos de RI avaliados, 30 ficaram SC. Entre os 51 cursos efetivamente analisados, 47,1% obtiveram conceito 1 ou 2; 39,2% atingiram o conceito 3; e 13,7% alcançaram os conceitos 4 e 5 (CESA, 2012).
  • 2
    Para determinadas disciplinas, o Instituto conta, também, com professores alocados por outras unidades da universidade, não computados aqui por não integrarem o quadro docente permanente.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Jun 2014
    • Data do Fascículo
      Mar 2014

    Histórico

    • Recebido
      Jun 2013
    • Aceito
      Fev 2014
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