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Autoria e autorização: questões éticas na pesquisa com crianças

To be an author and to authorize: ethical questions concerning research on children

Resumos

O texto analisa questões éticas enfrentadas na pesquisa com crianças de diferentes idades, grupos e contextos. Trata da concepção de infância subjacente às pesquisas em debate e analisa três questões. A primeira focaliza os nomes (verdadeiros ou fictícios) de crianças observadas ou entrevistadas e analisa se devem ou não ser explicitados na apresentação da pesquisa. A segunda discute a utilização de imagens de crianças - seus rostos - em especial a autorização do uso de imagens (em fotografias, vídeos ou filmes). A terceira trata das implicações ou do impacto social de resultados de trabalhos científicos e pergunta se é possível contribuir e devolver os achados, evitando que as crianças ou jovens sofram com as repercussões desse retorno, no interior das instituições educacionais que freqüentam e que foram estudadas na pesquisa. Tais questões emergiram na orientação de monografias, dissertações e teses.

CRIANÇAS; INFÂNCIA; PESQUISA DE CAMPO; ÉTICA


This paper analyses ethical questions faced in research developed with children of various ages, groups and contexts. It discusses the childhood conception that underlines research presented in monographs, dissertations and thesis that are presented or commented along the text. The article refers to three issues. The first issue focuses on names (true or fictional) of children observed or interviewed. The second issue discusses the use made of children's images (in photographs, videos and films). The third issue deals with the implications or the social impact of scientific texts and it asks if it is possible to contribute with data or results, preventing children and young people from suffering the consequences of the institutional situations which are revealed by the research.

CHILDREN; CHILDHOOD; RESEARCH; ETHICS


TEMA EM DESTAQUE

Autoria e autorização: questões éticas na pesquisa com crianças

To be an author and to authorize: ethical questions concerning research on children

Sonia Kramer

Departamento de Educação da PUC-Rio

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Sonia Kramer sokramer@edu.puc-rio.br

RESUMO

O texto analisa questões éticas enfrentadas na pesquisa com crianças de diferentes idades, grupos e contextos. Trata da concepção de infância subjacente às pesquisas em debate e analisa três questões. A primeira focaliza os nomes (verdadeiros ou fictícios) de crianças observadas ou entrevistadas e analisa se devem ou não ser explicitados na apresentação da pesquisa. A segunda discute a utilização de imagens de crianças — seus rostos — em especial a autorização do uso de imagens (em fotografias, vídeos ou filmes). A terceira trata das implicações ou do impacto social de resultados de trabalhos científicos e pergunta se é possível contribuir e devolver os achados, evitando que as crianças ou jovens sofram com as repercussões desse retorno, no interior das instituições educacionais que freqüentam e que foram estudadas na pesquisa. Tais questões emergiram na orientação de monografias, dissertações e teses.

CRIANÇAS — INFÂNCIA — PESQUISA DE CAMPO — ÉTICA

ABSTRACT

This paper analyses ethical questions faced in research developed with children of various ages, groups and contexts. It discusses the childhood conception that underlines research presented in monographs, dissertations and thesis that are presented or commented along the text. The article refers to three issues. The first issue focuses on names (true or fictional) of children observed or interviewed. The second issue discusses the use made of children's images (in photographs, videos and films). The third issue deals with the implications or the social impact of scientific texts and it asks if it is possible to contribute with data or results, preventing children and young people from suffering the consequences of the institutional situations which are revealed by the research.

CHILDREN — CHILDHOOD — RESEARCH — ETHICS

...eu desejo ser astronauta porque me dá

emoção de ver as estrelas (Daniel, 8 anos)

Algebaile,1996, p. 131

Este texto visa a discutir questões de caráter ético que tenho enfrentado na pesquisa com crianças de diferentes idades, grupos e contextos. São questões comuns, presentes em procedimentos usuais, que pareceriam de início exigir apenas uma decisão arbitrária do pesquisador e uma explicitação dessa decisão no corpo de seu relatório ou texto. Vejamos algumas: os nomes verdadeiros das crianças — observadas ou entrevistadas — devem ou não ser explicitados na apresentação da pesquisa? No caso de serem usadas e produzidas imagens das crianças (fotografias, vídeos ou filmes), a autorização dada pelos adultos, em geral seus pais, é suficiente, do ponto de vista ético, para a sua divulgação? Que implicações ou impacto social têm os resultados de trabalhos científicos? Ou, dizendo de outra forma, é possível contribuir e devolver os achados, evitando que as crianças ou jovens sofram com as repercussões desse retorno no interior das instituições educacionais que freqüentam e que foram estudadas na pesquisa?

Essas questões me preocupam há anos e têm estado presentes na orientação de monografias, dissertações e teses. Ao orientar, acompanhamos o desenvolvimento de investigações com uma interessante combinação de proximidade e afastamento, necessários para a pesquisa nas áreas das ciências humanas e sociais, que nunca é objetiva, consistindo sempre num movimento de objetivação e subjetivação. Ao refletir sobre tais questões, trago o diálogo que venho travando com autores de pesquisas que orientei ou examinei.

Aparentemente, pareceria simples responder a cada uma das indagações. No entanto, aspectos polêmicos emergem. Quando trabalhamos com um referencial teórico que concebe a infância como categoria social e entende as crianças como cidadãos, sujeitos da história, pessoas que produzem cultura, a idéia central é a de que as crianças são autoras, mas sabemos que precisam de cuidado e atenção. Elas gostam de aparecer, de ser reconhecidas, mas é correto expô-las? Queremos que a pesquisa dê retorno para a intervenção, porém isso pode ter conseqüências e colocar as crianças em risco. Outras vezes, elas já estão em risco e não denunciar as instituições ou os profissionais pelo sofrimento imposto às crianças nos torna cúmplices! Nesse sentido, as respostas ou decisões do pesquisador podem não ser tão fáceis como pareceria à primeira vista.

O texto começa apresentando a concepção de infância subjacente às pesquisas em debate. Analisa, a partir daí, três questões: os nomes (verdadeiros ou fictícios), relacionando este tema à autoria das ações e produções; os rostos, discutindo a autorização do uso de imagens de crianças em teses, livros, internet; a devolução de achados, falando de pesquisa, compromisso e cumplicidade. Ao longo de todo o texto, minha intenção é compartilhar perguntas mais do que oferecer respostas.

CRIANÇA, SUJEITO DA HISTÓRIA E DA CULTURA: UMA CONCEPÇÃO EM PROCESSO

Temos feito no Brasil, nos últimos vinte anos, um sério esforço para consolidar uma visão da criança como cidadã, sujeito criativo, indivíduo social, produtora da cultura e da história, ao mesmo tempo em que é produzida na história e na cultura que lhe são contemporâneas. As pesquisas discutidas neste texto são também fruto desse esforço.

A construção desse referencial ocorre desde o aparecimento do trabalho de Ariès (1978), no final dos anos 70, quando começa a pesquisa sobre a história da infância brasileira, considerando aspectos sociais, culturais e políticos que interferiam na nossa formação: a presença da população indígena e seus costumes; o longo período de escravidão e a opressão a que foi submetida expressiva parte da população brasileira; as migrações; o colonialismo e o imperialismo, inicialmente europeu e mais tarde americano, forjaram condições que deixaram marcas no processo de socialização de adultos e crianças. Com Ariès ficou evidenciada a natureza histórica e social da criança.

Outra influência foi a de Charlot (1977). Discutindo a idéia de infância, questionando a significação ideológica da idéia de infância, Charlot permitiu a compreensão de que "a visão de criança baseada numa suposta natureza infantil, e não na condição infantil, mascara a significação social da infância" (Kramer, 1982, p. 20). A dependência da criança perante o adulto é um fato social e não natural e o sentido dessa dependência varia de acordo com a classe social: as relações entre crianças e adultos são heterogêneas, e é diverso o valor dado às crianças. Tratar das populações infantis em abstrato, sem levar em conta condições de vida, é dissimular a significação social da infância. Ao fazer essa dissimulação, despreza-se a desigualdade social real existente entre as populações, inclusive as infantis. Se Ariès, articulando infância, história e sociedade, fundamentou uma posição contrária à miniaturização da criança, Charlot favoreceu a crítica à naturalização da criança e consolidou a análise de caráter histórico, ideológico e cultural. Assim, contra a idéia de criança-ser-da-natureza, foi possível delinear uma visão das crianças a partir de suas condições concretas de existência. Porém, a aparente contradição entre a singularidade (focalizada por Ariès) e a totalidade (enfatizada então por Charlot) só seria enfrentada dez anos depois, ao encontrar, com Walter Benjamin, as pistas de uma antropologia filosófica capaz de compreender o ser humano e, portanto, a infância, na sua microdimensão, sem abdicar da totalidade1 1 . Refiro-me à tese de doutorado sobre linguagem e educação, Por entre as pedras: arma e sonho na escola, publicada pela Ática, São Paulo, 1993, em que tratei dessas dicotomias. .

Para além dessas influências, vários campos teóricos têm tido papel relevante na constituição da infância como categoria social no Brasil. A sociologia de tradição francesa originou uma reflexão que permitiu a crítica à ação reprodutora da escola, ampliou o questionamento quanto ao caráter ideológico do conceito de infância presente na pedagogia, em especial na sociedade capitalista. Esse processo foi também marcado pela ruptura que se manifestou no âmbito da psicologia, seja a provocada pela psicanálise, seja a que foi gerada por uma psicologia fundamentada na história e na sociologia. Da psicologia a que a pedagogia se curvara e se submetia, operou-se um rompimento conceitual importante. A visão idealizada de infância, com a qual a pedagogia lidara até então, não poderia ficar incólume. Assim, a releitura da psicanálise, por um lado, e o referencial sócio-histórico, por outro, tornaram possível compreender que o sujeito é constituído com o outro e no contexto, sendo ao mesmo tempo ativo e criativo neste processo. Enfim, permitiram entender como os signos da cultura — a linguagem — não só marcam, mas constituem a consciência e o inconsciente.

Em que pesem as seduções exercidas pela psicanálise e o reducionismo de sua dimensão epistemológica à prática terapêutica, e apesar da difusão aligeirada da perspectiva sócio-histórica e a absorção quase mágica feita pelos sistemas de ensino, no Brasil, esses dois campos dão grande contribuição para a concepção de infância historicamente situada; geram, em decorrência, inúmeras possibilidades férteis de investigação. Esboça-se, aos poucos, um campo teórico em que o conhecimento provisório, dinâmico, flexível, em processo de constituição, ocupa o lugar de certezas positiva e instrumentalmente formuladas. Um conhecimento que não apenas evolui, mas reevolui, que indaga de seu próprio processo de construção, e que foi delineando uma concepção de infância que não é só natureza biológica, etapa idealizada de desenvolvimento psicológico ou germe de uma ambígua sociedade futura.

A antropologia fornece também elementos importantes: enfatizando a dimensão da cultura, a necessidade de pesquisar a diversidade, de estranhar o familiar e de compreender o outro nos seus próprios termos, a antropologia muda radicalmente a reflexão sobre a educação e os estudos da infância em particular. Por outro lado, a pesquisa etnográfica fornece estratégias e procedimentos metodológicos, influenciando estudos do cotidiano escolar, da prática pedagógica e das interações entre as crianças e os adultos. Aliadas à sociologia e à história, a antropologia e a pesquisa etnográfica — exercício de encontro com o outro e, portanto, consigo mesmo — combinam um cuidadoso mergulho crítico no trabalho de campo com um severo questionamento quanto ao processo de pesquisar. Indagando-se sobre o que torna humano o ser humano, a antropologia traz a diversidade à ordem do dia e mostra como diversidade e pluralidade constituem a singularidade dos seres humanos, embora até hoje continuem sendo engendradas formas sutis ou explícitas de tentar eliminar as diferenças.

Todos esses campos reforçaram a necessidade de pesquisas que permitissem conhecer as crianças. Diante dessa multiplicidade de áreas do conhecimento e diante da diversidade de linhas teóricas dentro de cada área, a infância é hoje um campo temático de natureza interdisciplinar, e essa visão se difunde cada vez mais entre aqueles que pensam a criança, atuam com ela, desenvolvem pesquisa e implementam políticas públicas. O campo não é uniforme nem unânime, felizmente. Diversos são os modos de ler e se apropriar das teorias; diversas são as portas de entrada, as abordagens, as posições, temas de interesse, estratégias. Aquele ser paparicado ou moralizado, miniatura do homem, sementinha a desabrochar cresceu como estatuto teórico. Nesse contexto, muitos pesquisadores têm buscado conhecer a infância e as crianças com um conceito de infância e uma prática de pesquisa que podem ter enfoques teórico-metodológicos diversos, mas com os quais as crianças jamais são vistas ou tratadas como objeto.

Além disso, a epistemologia das ciências humanas e sua análise crítica das relações entre saber e poder colocam em destaque a centralidade da linguagem para a compreensão da condição e da dimensão humanas. No nosso caso, as teorias de Benjamin, Bakhtin e Vygotsky têm-se constituído em referências fundamentais para estudar a sociedade contemporânea e a infância nas suas várias facetas (ver Souza, 1994; Freitas, 1994; Kramer, 1993). Especialmente Benjamin, porque, na sua obra, a criança, filhote do homem, ser em maturação, cidadão do futuro, esperança de uma humanidade que não tem mais esperança, é desalojada por uma criança parte da humanidade, fruto da sua tradição cultural, que é também capaz de recriá-la, refundá-la; criança que reconta e ressignifica uma história de barbárie, refazendo essa história a partir dos despojos de sua mixórdia cultural, do lixo, dos detritos, trapos, farrapos, da ruína. E aqui, a arte, em geral, e o cinema e a literatura, em particular, ajudam a constituir esse outro modo de olhar a infância, revelando o seu próprio olhar e como ela pensa, sente e imagina o mundo e também a encontrar outra maneira de falar da infância e de ouvir as crianças. História, sociedade e cultura vão se delineando como categorias importantes para se reconceber a infância, e a própria infância passa a ocupar esse outro lugar em uma concepção de história que se vê e se quer crítica. Fica instaurada uma nova ruptura conceitual, no entendimento da infância, que tem nítidas repercussões para a prática de pesquisa. Nessa ruptura, a linguagem irá desempenhar papel central.

Ao contrário dos animais, o homem tem uma infância, não foi sempre falante, e precisa, para falar, constituir-se em sujeito da linguagem. A linguagem é, pois, condição da humanidade do homem, já que só o ser humano pode ser in-fans (aquele que não fala) e, nessa descontinuidade é que se funda a historicidade do ser humano. Se há uma história, se o homem é um ser histórico, é só porque existe uma infância do homem, é porque ele deve se apropriar da linguagem. Se assim não fosse, o homem seria natureza e não história, e se confundiria com a besta2 2 . Este parágrafo traz uma reflexão de Agamben (1989, p. 67-68) com tradução, adaptando o texto, feita por mim. . Pesquisar a infância com este olhar significa pesquisar a própria condição humana, a história do homem. Desvelando o real, subvertendo a aparente ordem natural das coisas, as crianças, para Benjamin, falam não só do seu mundo e da sua ótica; falam também do mundo adulto, da sociedade contemporânea. Imbuir-se desse olhar infantil crítico é aprender com as crianças e não se deixar infantilizar. Conhecer a infância passa a significar uma das possibilidades para que o ser humano continue sendo sujeito crítico da história que o produz.

Hoje, dispondo de um referencial teórico que questiona a prática da pesquisa e a forma de olhar a infância, temos procurado conhecer as crianças. Dessa experiência, muitas indagações emergem. Neste texto, como disse anteriormente, focalizo três: os nomes, os rostos (item apenas insinuado e que acaba se configurando como sugestão de pesquisa que precisa ser desenvolvida) e a difícil e necessária devolução dos dados, às crianças, à escola e a outras instâncias da vida política e social.

OS NOMES: AUTORIA OU ANONIMATO?

Acompanhei várias dissertações de mestrado, teses de doutorado e monografias que apresentam pesquisas feitas com crianças numa abordagem qualitativa, em que a questão dos nomes se tornou uma dificuldade. Desde o trabalho de campo e no momento de elaboração dos primeiros relatórios, emergiu a necessidade de uma narrativa direta, na qual os sujeitos aparecessem nomeados. De antemão recusamos alternativas tais como usar números, mencionar as crianças pelas iniciais ou as primeiras letras do seu nome, pois isso negava a sua condição de sujeitos, desconsiderava a sua identidade, simplesmente apagava quem eram e as relegava a um anonimato incoerente com o referencial teórico que orientava a pesquisa. Por outro lado, aquelas alternativas comprometeriam a forma da escrita do trabalho, por prejudicar a narração das histórias e interferir na transcrição e força dos diálogos entre as crianças. Com a preocupação, no entanto, de não revelar a identidade das crianças, seja porque estudavam na única escola da região e seus depoimentos traziam muitas críticas à escola e às professoras, seja porque denunciavam problemas graves vividos por elas mesmas e por suas famílias e, nesse caso, a revelação dos nomes se constituía em risco real, tornou-se necessário, em muitas situações, usar nomes fictícios. Em alguns contextos, diante do grande envolvimento e da integração entre pesquisador e crianças, decidimos pedir para as crianças escolherem os nomes com que queriam aparecer na versão oficial do trabalho. Os estudos de Algebaile (1995), Leite (1995), Earp (1996) e Ferreira (1998) permitem-me discutir essa alternativa metodológica e analisar algumas de suas implicações ou decorrências.

Algebaile (1995) pesquisou crianças entre 6 e 11 anos que freqüentavam uma escola pública de um bairro situado no centro do município do Rio de Janeiro. Das suas falas, emergiram depoimentos sobre trabalho, brincadeira, ser criança, ser menino ou menina, violência. Confrontada com o dilema de como se referir às crianças, depois de dois anos em pesquisa de campo numa escola em que havia trabalhado muito tempo como professora, Algebaile decidiu omitir o nome da escola e tratar as crianças pelo primeiro nome apenas, sem revelar o sobrenome. Na medida em que existem mais de mil escolas públicas municipais na cidade do Rio de Janeiro, a identidade das crianças ficava protegida, mas, ao mesmo tempo, elas poderiam depois se ler, se ver, o que nos pareceu um princípio ético coerente com a concepção de infância do estudo. Ou seja, a autora optou por trazer os nomes verdadeiros das crianças.

Leite (1995) estudou crianças de uma área rural, com a finalidade de ouvir o que falavam sobre escola e saber. Observou suas brincadeiras, fotografou, entrevistou as crianças, brincou com elas, desenharam juntos. Sobre esse processo diz Leite que sua relação com as crianças

...se construiu na base da confiança, do respeito e da afetividade... trabalhava com sujeitos, ressaltando a importância da criança-cidadã, sinalizando a relevância da voz, da autoria, ainda tinha um desafio metodológico: como resolver a questão dos nomes das crianças? Usar nomes verdadeiros? (1996, p. 94)

Ela relata sua opção por resguardar a integridade das crianças, omitindo seus nomes e o da localidade estudada, e a iniciativa de pedir que cada uma escolhesse o nome com que gostaria de aparecer no texto: "discutir com eles os nomes que desejariam ter foi momento rico. Alguns animaram-se a escolher heróis ou ídolos (Bruce Lee, Van Damme, Daniela Mercury3 3 . Cantora de música popular brasileira de grande sucesso. , Angélica4 4 . Apresentadora de programas infantis, também de grande sucesso, em uma rede de televisão brasileira. )". A região em estudo é muito pobre e as casas em que moram as crianças sequer têm luz elétrica, não tendo acesso direto a programas de televisão. Contudo, isso não impediu que nomes de artistas (brasileiros ou estrangeiros) e jogadores de futebol circulassem e tivessem significados de identificação e pertencimento. O conceito de circularidade da cultura (Ginzburg, 1987) ajudaria a compreender como esses nomes divulgados pela televisão se tornam conhecidos por pessoas que não são espectadores usuais de TV. Além disso, a questão delicada e complicada é que a pesquisa precisou apagar os nomes para circular academicamente!

O estudo de Sá Earp (1996) traz também esse impasse. Ela pesquisou crianças de 7 a 14 anos internas ou semi-internas em uma escola pública que mantinha um projeto de alunos residentes, numa vertente de atuação da assistência social que era a tônica da política educacional implementada no estado do Rio de Janeiro naquele momento (bastante criticada por sinal). Entrevistou crianças com o objetivo de conhecer suas histórias, a visão que elas tinham da própria instituição (escola), das famílias e o projeto em que estavam inseridas. Ao propor que as crianças escolhessem nomes para figurar na pesquisa, ouviu, de quase todas, apelidos e nomes de jogadores de futebol famosos naquela época: Sávio, Romário, Ronaldinho, Túlio. De um lado, essa escolha mais uma vez aponta para o valor social e de prestígio bem como a carga de desejo de ser conhecido, de ser querido, de ter fama. A significação dos nomes e aquilo que está presente também no imaginário infantil mereceriam uma análise mais detalhada e aprofundada do que o espaço deste texto permite. O fato é que diante do impasse, a pesquisadora optou por utilizar as três primeiras letras dos nomes escolhidos (Sav, Tul, Ron): fazer menção aos nomes verdadeiros (ainda que fosse às primeiras letras ou às iniciais) revelaria a identidade dos meninos e os exporia à ação da instituição. Nesse caso, além da dimensão ética, colocava-se um aspecto jurídico: os meninos estão protegidos pela lei5 5 . Trata-se do Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, uma conquista importante da sociedade brasileira, que substituiu o Código de Menores anterior e institui uma série de direitos de crianças e jovens. , especialmente por se encontrarem sob proteção e tutela do Estado, em uma instituição pública. Ao contrário, trazer, na íntegra, nomes que evocam sentidos institucionalizados socialmente, tornava o texto estranho, deslocava os sentidos, mudava o foco da leitura, dispersava o leitor.

Exatamente o mesmo problema se manifestou no estudo de Ferreira (1998). Em pesquisa realizada com crianças de 8 a 13 anos, a autora, procurando conhecer crianças que moram em uma favela no município do Rio de Janeiro, provocou — em relação aos nomes das crianças — a mesma situação das três pesquisas citadas, pedindo às crianças que escolhessem os nomes com que gostariam de aparecer no texto. Os nomes escolhidos foram também Romário, Túlio, Ronaldinho, Sávio, jogadores de futebol. Trazendo os discursos das crianças, explicitando as condições de produção dos discursos, revelando como as crianças conhecem o contexto em que são inseridas, Ferreira mostrou as contradições e a diversidade presentes entre as crianças e suas relações com o trabalho, a brincadeira, o ser menino, menina, criança ou adulto. No entanto, são seus relatos sobre violência e escola os que melhor elucidam por que não puderam revelar os nomes verdadeiros das crianças.

ADULTO: Você gosta de morar aqui?

ROBERTA: Gosto. Porque é legal, é muito bom de brincar. O ruim é que tem uns bandidos que fica soltando tiro, bala perdida.

ADULTO: Isso atrapalha a vida das pessoas aqui?

ROBERTA: Por que os filhos tão na rua, aí vai começar a soltar tiro, as pessoas fica nervosa procurando os filhos que tão sumido... Os filhos não tá perto da mãe. Aí a mãe fica igual maluca procurando.

Em quase todas as falas das crianças, a violência emergiu com muita força. Principalmente a violência provocada pela polícia.

ANA CAROLINA: Tem um tempo que tava um montão de gente, de bandido lá no meu beco, em frente da minha casa. Aí cagüetaram eles, só tava eu e minha mãe em casa, a polícia veio, cercaram eles, veio pelo beco da d... Aí um montão pulou para minha casa, passaram pelo telhado, a polícia cercou tudo... Mataram três e minha mãe queria sair para fora para falar com a polícia que se chegasse dois garotos pra não fazer nada com eles... Minha mãe chorando falou, mas a polícia não deixou... por que já tinha matado e não deixaram nem minha mãe passar. Minha mãe gritou lá de casa: moço! moço! minha mãe gritou lá de dentro de casa... se aparecesse dois garotos um atrás do outro... não faz nada com meus filhos não! que eles são meus filhos... Aí ele falou: tá moça, agora entra, agora entra. Foi puxando minha mãe... E começou aquele tiroteio\bala pra todo lado. Aí minha mãe me pegou, me puxou e levou prá dentro do banheiro, ficamos abaixadas dentro do banheiro. Meus irmãos chegaram, iam prender eles, aí minha mãe viu e foi gritando não! solta os meus filhos! e começou a chorar, foi e soltou e mandou correr. Eles rapidinho pularam o portão, nem esperaram minha mãe abrir pra eles. Aí começou o tiroteio: bá! bá! bá!

Dentre os aspectos mais complexos da pesquisa de campo de Ferreira, alguns acabaram nem sendo incluídos na versão final da dissertação: várias crianças (de 6, 7 ou 8 anos) relataram que os traficantes costumam dar armas de brinquedo para iniciá-las no crime. Idênticas às verdadeiras, essas armas são usadas por crianças em assaltos comandados por jovens e adultos. Outras crianças contaram da exploração sexual de meninas e a verdadeira produção dos "soldados", filhos de traficantes com moças muito jovens, geograficamente espalhadas pela favela. Pergunto, no fim do texto, mas já adianto aqui: como ouvir, saber, proteger as crianças, não denunciar?

Na forma final dos trabalhos de Algebaile, Leite, Earp e Ferreira, observamos o mesmo problema: o anonimato das crianças. Se isso parece positivo por um lado (o lado que os protegia), o anonimato impediu que esses meninos, expropriados de bens materiais e culturais primários, cujo nome é machucado como eles mesmos o são, tivessem uma identidade na pesquisa, na mesma pesquisa que os considerou como sujeitos e supostamente pretendeu ouvir sua voz. Eles contaram suas histórias, riram e se emocionaram com elas, revelaram segredos, fizeram denúncias, mas embora considerados autores pelo marco referencial que orientou a pesquisa, tiveram sua autoria negada e, no lugar desta importante autoria, mais uma vez foram mantidos anônimos. Anônimos como vivem nas ruas ou nas instituições totais que os recolhem, fruto de uma situação econômica tão desigual e que impõe tanto sofrimento à população.

Por outro lado, vimos, no início deste item, a opção de Algebaile pelos nomes verdadeiros. Parece ideal a forma sensata com que resolveu a questão: revelou os primeiros nomes das crianças; omitiu o nome da escola. Qual não foi minha surpresa, no dia da sua defesa, ao ouvir uma das examinadoras da banca (uma ativa e conhecida militante de movimento de direitos humanos) dirigir uma feroz crítica à maneira como Algebaile teria exposto as crianças, ficando ela mesma em posição frágil diante do Estatuto da Criança e do Adolescente. Ocorre que, nos agradecimentos, Algebaile mencionara de forma sutil e carinhosa a escola em que foi realizada a pesquisa. Como, ela perguntou à examinadora, nada falar sobre a escola que a recebeu, abriu-lhe as portas, incentivou e acolheu a pesquisa? Como? Indago aqui.

Segundo o referencial teórico-metodológico que nos tem orientado nesses e em outros estudos, a criança é sujeito da cultura, da história e do conhecimento. Pergunto: é sujeito da pesquisa? Embora os estudos transcrevam seus relatos, elas permanecem ausentes, não podem se reconhecer no texto que é escrito sobre elas e suas histórias, não podem ler a escrita feita com base e a partir dos seus depoimentos. As crianças não aparecem como autoras dessas falas, ações ou produções. Permanecem ausentes.

OS ROSTOS. AUTORIZAÇÃO? A CRIANÇA É SUJEITO DA PESQUISA?

A segunda questão que proponho ao debate será abordada de modo breve: como um flash, um instantâneo, uma fulguração, como diz Benjamin (1987a) a propósito do conhecimento: trata-se da fotografia como metodologia de pesquisa qualitativa. Gostaria de aproveitar esse fórum e a presença de pesquisadores que mais respeito, pela solidez teórico-metodológica da sua abordagem no campo relativo à infância e imagem6 6 . Refiro-me especialmente a Lopes (1996) e Souza (2000). , para trazer um problema que tem-me preocupado muito.

Buscando conhecer experiências de leitura e escrita de professores, entrevistamos alguns de várias gerações (Kramer; Souza, 1996). Ao lembrar, as professoras começaram a trazer objetos e fotografias de fatos da infância e situações marcantes de sua vida pessoal e profissional. A fotografia foi processo deflagrador, ampliando a possibilidade de resgate da história de vida desses professores. Mais que documento ou prova do acontecido, a imagem foi tratada como objeto de cultura, intermediado pelo equipamento (aparato técnico de registro e revelação), pelo fotógrafo (sujeito que retrata) e, quando revelada, pela interferência do contemplador. Cada fotografia está impregnada da realidade à mostra e suas influências ideológicas, da possibilidade técnica (que muda a cada vez que é reproduzida, ampliada, copiada, reduzida) e do entrelaçamento das subjetividades de fotógrafo e contempladores, independentemente de seus tempos ou espaços. Segundo Lopes (1996), a foto mostra sempre o passado lido aos olhos do presente, já não é o mesmo passado, mas sua leitura ressignificada7 7 . Lopes faz uma densa revisão bibliográfica sobre o tema; sobre a foto como passado, cita Dubois (1994). .

Abordando ângulos diversos de um mesmo objeto de pesquisa, a fotografia ensinou a equipe a dirigir um outro olhar à realidade; mudou o modo de observar, atuou como desvio metodológico, por trazer a possibilidade de compreender o tempo de maneira não linear (Benjamin, 1987). A fotografia é, na verdade, um constante convite à releitura, a uma forma diversa de ordenar o texto imagético. Pode ser olhada muitas vezes, em diferentes ordens e momentos, pode ter outras interpretações: ela é sempre uma outra foto ali presente, pois uma foto se transforma cada vez que é contemplada, revive a cada olhar. Para Miriam Moreira Leite, é "uma narrativa interrompida, imobilizada num quadro único" (1993, p.28). Cada história, fragmento, foto repete o movimento de fotografar as imagens já capturadas pela lente. Resgatar a memória e recontar a história é ressignificar o olhar. No caso daquela pesquisa, a fotografia favoreceu o conhecimento de experiências de leitura e escrita de professores em suas histórias de vida. No caso da pesquisa com crianças, a fotografia é também um vigoroso e potente instrumento de resguardar a memória e de constituir a subjetividade, por permitir que crianças e jovens possam se ver, ver o outro e a situação em que vivem.

Pois bem. Em que medida a análise dessa questão se relaciona ao nosso debate? Em que se configura sua dimensão ética? À medida que o uso, na pesquisa, de imagens de crianças apresenta problemas. Como os nomes, os rostos e as ações constituem o sujeito: somos sujeitos da cultura visto que marcamos a história, mudamos a natureza, agimos sobre as coisas. Essas marcas têm nome, rosto, sentidos. Um procedimento ético fundamental tem sido o de consultar pessoas fotografadas ou filmadas, solicitando sua autorização e indagando às pessoas que mostram seu rosto e o deixam fixar, na imagem, se essa imagem pode ser impressa, projetada, vista como texto. No entanto, dois aspectos controversos, que estão subjacentes a esse processo, merecem atenção.

No caso de pesquisas com adultos, uma assinatura aposta a um documento assegura aparentemente que o pesquisador está autorizado a usar a imagem e o protege na sua divulgação. Mesmo assim, isso não o isenta de problemas e, por vezes, impede a publicação de seus trabalhos. Ouso citar a questão sem explicitar (também por cuidados éticos) estudos em que constatei algumas dificuldades sérias que isso acarreta: muitas vezes, ainda que dispondo da autorização para usar a imagem, ao analisar as fotos e discutir as situações observadas, o pesquisador dá, com seus comentários, outros sentidos às imagens; além disso, tanto a prática da instituição quanto os profissionais ficam expostos também. A leitura de um texto, composto de palavras e imagens, que explicita problemas, revela e identifica rostos, provoca reações de surpresa e constrangimento. As imagens falam e, ainda que autorizadas, dizem coisas que soam diferentes das que foram ditas, aos ouvidos de quem as pronunciou.

No caso das fotografias de crianças, há que se perguntar: quem autoriza a participação, o nome, a gravação? Quem autoriza a utilização de fotografias? Sabemos que é o adulto, e concordamos que é necessário que assim seja, mais uma vez para proteger as crianças, para evitar que suas imagens sejam exploradas, mal-usadas. Mas, se a autorização quem dá é o adulto, e não a criança, cabe indagar mais uma vez: ela é sujeito da pesquisa? Autoria se relaciona à autorização, à autoridade e à autonomia. Pergunto: como proteger e ao mesmo tempo garantir autorização? Como resolver esse impasse?

Talvez um caminho que possa ajudar a encontrar alternativas de natureza ética, condizentes com a concepção de infância que nos orienta, seja diferenciar os tipos de imagens, se são de crianças, de profissionais e de instituições. Hoje, parece que se lida com esses três níveis indistintamente. Porém, tal distinção é mais fácil postular do que obter. Por outro lado, há iniciativas em curso que merecem ser discutidas. Lopes (1998) enfatiza a importância de as crianças tirarem fotos, porque a fotografia ajuda a reconstruir o próprio olhar do observador. Também Brasileiro (2001), entre outros, descreve o uso que faz da fotografia, dando a câmera para adultos fotografarem seu cotidiano. Essas perspectivas podem se configurar em estratégias viáveis para superar o impasse.

Outra preocupação que justifica levantar essa questão tem origem no uso abusivo, indiscriminado, generalizado de imagens de crianças. Parece, por vezes, que também no espaço da pesquisa não se tem conseguido evitar ou impedir, barrar a sedução que a imagem exerce sobre todos. Não estaremos contribuindo para essa generalização gratuita da imagem? Não há uma contradição entre o cuidado exagerado com os nomes das crianças e a exibição gratuita da sua imagem? Pergunto: como enfrentar esse paradoxo?

Estaremos agindo como se a pesquisa tivesse um patamar mais elevado que o cotidiano e não devesse haver regulamentação dessa questão? Para além da dicotomia entre a dimensão jurídica e a censura às imagens contraposta à exposição das crianças e jovens em função da pesquisa, talvez seja preciso definir princípios éticos que ajudem a enfrentar o uso indevido e leviano da imagem em práticas que por vezes parecem movidas pela idéia de que o show deve continuar.

PESQUISA: COMPROMISSO OU CUMPLICIDADE NA DEVOLUÇÃO DOS ACHADOS?

A terceira questão diz respeito à devolução de pesquisas feitas com crianças. Sabemos que o trabalho científico não precisa gerar resultados, suscitar ações nem ser incorporado às políticas. O caráter desinteressado garante a fertilidade da produção do conhecimento. Ocorre que, em países como o Brasil, a exploração do trabalho, inclusive infantil, a expropriação de bens materiais e culturais, a exclusão de serviços básicos de grande parte da população acaba por transformar um pesquisador comprometido com a sociedade em intelectual crítico que, além de produzir ciência, quer interferir. No mínimo, mesmo quando o pesquisador não se considera como um militante ativo, mesmo quando não se interessa pela apropriação crítica de suas idéias ou pelo delineamento de alternativas de ação baseadas nos seus estudos, só o fato de se deparar, na prática da pesquisa, com certas situações exige uma tomada de posição. Nas ciências humanas e sociais, a neutralidade é não só um equívoco teórico, mas também uma impossibilidade prática; isto tem decorrências éticas que merecem a nossa atenção e cuidado. Três exemplos de pesquisa qualitativa podem ajudar a enfrentar essa discussão: Salgado (1998), Nunes (2000) e Ferreira (1998).

Focalizando escrita e poder, Salgado realizou uma pesquisa etnográfica densa com meninos de um internato. Analisou textos escolares, exigidos como tarefa escolar, e textos escritos na escola e no internato a partir de situações planejadas, com o objetivo de conhecer a escrita de crianças e jovens em situação de exclusão social. A partir de referencial baseado em Bakhtin (1988), os textos foram tomados como enunciados que se vinculam ao contexto social, cultural e histórico, sendo a escrita concebida não como instrumento, mas como ponto de encontro entre a subjetividade do autor e a sua cultura. Os textos escritos pelos meninos descortinam sua história, uma sofrida crítica à situação em que vivem, as tensões e conflitos com valores e práticas do internato, além do bonito e inesperado papel desempenhado pela escola. Muitos meninos concebem o internato como uma casa boa que livra muita gente da rua. Entretanto, para muitos meninos o internato era ruim por causa dos castigos e dos serviços; porque aprisiona, obriga a trabalhar e castiga, priva-os do lazer.

Os meninos dizem que o internato, apesar de oferecer moradia e comida e se constituir como alternativa à rua — lugar no qual, segundo eles, estariam passando fome, dormindo nos bancos das praças, tomando droga, apanhando da polícia e aprendendo e fazendo coisas erradas — não compensa a saudade de casa, da família, da mãe, dos pais, dos avós e dos amigos. Eles vivem o dilema entre a necessidade da instituição que os enclausura (mas garante o suprimento de necessidades básicas) e o desejo do retorno à família e da liberdade. Muito foi contado à pesquisadora. Os meninos falaram que é proibido brincar de tiroteio, falar palavrão, dedurar o outro, sair do portão, "porque senão os funcionários pensam que eles estão fugindo". Assim, é proibido fugir. Ora, essas proibições presentes nas falas das crianças confirmam os fundamentos e regras da instituição. Por outro lado, não é proibido jogar bola; brincar; molhar área. Ou seja, é proibido não trabalhar, ficar no ócio, ter tempo livre, como forma de prevenir "maus pensamentos" e "malfeitos", conforme prescreve o discurso institucional.

Um dia, um menino pediu o gravador durante a entrevista, foi para o banheiro e falou dos castigos e maus-tratos sofridos no internato. A pesquisadora, embora tenha relatado o fato, optou por não incluir detalhes na versão final do texto. Seu medo era que as crianças ficassem em risco. Depois da defesa e a divulgação do trabalho, a dissertação foi incluída no material usado em denúncias feitas ao Conselho Tutelar, sobre o perigo que a instituição representava para as crianças. A pesquisadora tinha feito severas críticas à instituição, mas temia pela integridade das crianças. Seu compromisso com as crianças, seu respeito por elas leva a indagar: como evitar que as crianças sofram represálias e, ao mesmo tempo, garantir a denúncia de maus-tratos que lhes são impostos?

Outro exemplo pode ser encontrado na tese de doutorado de Nunes (2000). Procurando conciliar a abordagem macro, relativa a questões de natureza política e econômica, com questões de ordem micro, relativas ao cotidiano das creches e ao que dizem as profissionais sobre seu trabalho e as crianças, Nunes busca conhecer a brincadeira infantil. Apresenta uma infância marcada pela humilhação, na qual as crianças são saco de pancada, são tratadas como moleques, vadias, delinqüentes ou abandonadas (p. 31, 48, 49), crianças não reconhecidas como crianças. A autora trata da infância brasileira que não tem direito à infância e procura recuperar, na história, as iniciativas de assistência, tutela e educação.

A tese é baseada em entrevistas a profissionais que atuam em creches comunitárias do município do Rio de Janeiro. Mas a leitura da pesquisa de Nunes é inquietante: nela, uma educadora de creche relata ter visto uma criança ser coagida, maltratada, humilhada. Depois da página 215 (em que esta situação foi descrita) tornou-se difícil prosseguir e continuar a leitura. Após ver o menino humilhado, como continuar? Pergunto: como lidar com essas situações? Em princípio acreditar ou desconfiar da sua veracidade? Ao trazer a descrição feita pela entrevistada, a pesquisadora torna o fato material, como diz Bakhtin (1988), e todos nós, a autora, a banca, os futuros leitores, vocês que me lêem agora, nos tornamos cúmplices da moça. O que fazer? Calar? Denunciar? Como nos mantermos simplesmente os mesmos? Não sou a mesma depois da leitura deste texto, como não sou a mesma depois de ler em Salgado o trecho do menino que relata, ao gravador, cenas de tortura. Esta é uma questão ética, política, e também acadêmica. Quantas vezes não nos comportamos como muitas mulheres entrevistadas por Nunes, que pedem para as crianças só falarem da parte boa, canalizarem os assuntos para a parte boa "porque é muito complicado falar sobre essas coisas" (p.194). Como ouvir e falar de situações que provocam indignação? Como prosseguir na pesquisa, como relatar na escrita, como continuar a leitura com compromisso e sem cumplicidade com o ato perpetrado contra a criança?

Ao tratar dos nomes, vimos estes aspectos na pesquisa de Ferreira (1998). Entrevistando crianças moradoras de favelas, a autora mostra como a relação dessas crianças com os adultos é atravessada pela violência. A agressão se naturaliza: há tensão permanente entre brigar e conversar, como formas de conviver e enfrentar os problemas. A violência atravessa de modo perverso o cotidiano das crianças, invade suas casas, espaços e momentos de brincadeiras. Seu direito à infância plena e sadia é negado; os policiais são os primeiros a não cumprir a lei. A ação coercitiva da polícia é apenas uma das formas da negação da cidadania. Há outras mais perversas: os moradores dizem que sua relação com os bandidos é amistosa, mas convivem com o medo: os bandidos impõem sua presença pela força armada e por mecanismos de cooptação (ajudam famílias em enterros etc.). Essa convivência produz sentimentos e opiniões conflitantes, confusas, e leva os moradores — também crianças — a criar regras e códigos para sobreviver em meio a um poder que, como dizem os relatos, não se pode contestar, já que a ameaça de morte é real e, mesmo que não se concretize, basta que paire no ar para amedrontar.

As crianças percebem tudo; brincam de bandido e mocinho; aprendem expressões faladas pelos bandidos. Com freqüência são alvo de bandidos que procuram de todas as maneiras cooptá-las, confundi-las com atitudes ambíguas. Em decorrência disso, muitas crianças oscilam entre ver bandidos como heróis ou como vilões, o que é preocupante. Por sua vez, segundo os relatos, a polícia não é confiável, deixa a população à mercê do crime, além de freqüentemente se aliar ao crime, em vez de zelar pela segurança e integridade da vida dos cidadãos. Muitas vezes é a primeira a violá-los. Diante de uma polícia ineficiente e violenta, diante de bandidos que, por meio de mecanismos coercitivos e de cooptação, impõem sua presença, não resta aos moradores outra alternativa senão calar, conviver silenciosamente com essa realidade. A violência cotidiana não apenas cala, mas marca a população, que passa a ser tratada como fonte de marginalidade. A lógica que impera é que toda criança de favela pode ser, no futuro, um marginal. De fato, o tráfico de droga ganha cada dia mais espaço entre os jovens. Ferreira menciona (p. 138) o grande número de crianças cujas famílias têm ou tiveram alguém envolvido com o tráfico: para muitos jovens da favela, diz ela, o tráfico parece ser o único caminho possível para a sua (breve) vida futura.

Diante de uma população expropriada, excluída, mantida no silêncio, as vozes que esses pesquisadores escutam e registram precisam ser ouvidas, divulgadas, sobre isso não há dúvida. A pergunta que se faz é: como denunciar sem expor as populações? Elas precisam falar, mas nossa indignação e a ousadia da escrita não podem aumentar o risco de vida que correm. Essa questão e suas implicações éticas merecem mais atenção do que lhes temos dado.

O compromisso de devolver dados exige que o pesquisador e sua equipe discutam a natureza dos relatórios, a forma da escrita, os modos de circulação de informações. Surge, desse modo, a delicada necessidade de repensar modos de abordar nomes, rostos e fontes. A devolução pode se restringir a dar, aos entrevistados, cópias dos relatórios, artigos ou a apresentar, socializar resultados e se expor à crítica. Mas quando se pesquisam instituições ou políticas, a devolução direta se torna mais delicada. E tensa. As instituições têm tempos diferentes aos da pesquisa e as situações de interação nem sempre são bem resolvidas: há pesquisadores que divulgam resultados pela imprensa sem qualquer cuidado ético, e há instituições que evitam divulgar resultados para não expor problemas. Por outro lado, questões de natureza política precisam ser levadas em conta: pesquisadores e profissionais não são neutros ou ingênuos; os papéis que desempenham, as posições que ocupam, as idéias que defendem influenciam essas relações. Muitos são os impasses e continua difícil a interação da pesquisa e das políticas públicas. Nesse âmbito, as crianças certamente têm sido ainda menos ouvidas que os adultos e a elas o retorno das pesquisas quase não ocorre.

É inútil continuar a pesquisa se não há retorno imediato? Não; publicações favorecem retornos indiretos para outras equipes e professores que querem mudar. É absurdo supor que pesquisadores são os maiores interessados em ver resultados de seu trabalho incorporados. Devemos desconfiar de nós mesmos, se pensamos assim. Mas quem paga a pesquisa é a população (os recursos são, em geral, públicos) e é com a população que precisamos reafirmar nosso compromisso. Mais uma vez, vale indagar: como tornar público sem expor nomes e rostos? Quando dizemos população, incluímos as crianças? Elas têm sido sujeitos da pesquisa?

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  • Endereço para correspondência
    Sonia Kramer
  • 1
    . Refiro-me à tese de doutorado sobre linguagem e educação,
    Por entre as pedras: arma e sonho na escola, publicada pela Ática, São Paulo, 1993, em que tratei dessas dicotomias.
  • 2
    . Este parágrafo traz uma reflexão de Agamben (1989, p. 67-68) com tradução, adaptando o texto, feita por mim.
  • 3
    . Cantora de música popular brasileira de grande sucesso.
  • 4
    . Apresentadora de programas infantis, também de grande sucesso, em uma rede de televisão brasileira.
  • 5
    . Trata-se do Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, uma conquista importante da sociedade brasileira, que substituiu o Código de Menores anterior e institui uma série de direitos de crianças e jovens.
  • 6
    . Refiro-me especialmente a Lopes (1996) e Souza (2000).
  • 7
    . Lopes faz uma densa revisão bibliográfica sobre o tema; sobre a foto como passado, cita Dubois (1994).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Mar 2003
    • Data do Fascículo
      Jul 2002
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