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A contribuição de Bernstein para a sociologia da educação

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A contribuição de Bernstein para a sociologia da educação

Lucíola Licínio de C. P. Santos

l.santos@sta03.ioe.ac.uk; luciola@fae.ufmg.br

Os três artigos reunidos nesta seção focalizam a obra de Basil Bernstein. Como objeto de crítica, admiração e inspiração para pesquisadores de diferentes áreas, seu trabalho representa, inegavelmente, uma grande contribuição para o campo educacional. Sem aderir aos ''modismos'' que garantem, muitas vezes, um prestígio geralmente efêmero, o legado de Bernstein coloca-se como uma obra clássica, que por muitos anos continuará fertilizando os estudos de diferentes aspectos da educação.

O primeiro dos artigos, de minha autoria, busca apresentar os principais conceitos e idéias desenvolvidos pelo autor e as razões que dificultaram a maior circulação de seu trabalho no campo educacional. A partir da leitura de clássicos, como Durkheim, Weber e Marx, de autores da Escola de Chicago, do estruturalismo e do pós-estruturalismo, ele formulou alguns conceitos e, por meio da pesquisa e da reflexão, estabeleceu novas relações, redefinindo e criando novos conceitos em um processo que evidencia o caráter artesanal do trabalho intelectual.

Neste momento, em que a ''epidemia'' da avaliação, em termos de produtividade, sobrepõe a quantidade à qualidade, o trabalho de Bernstein mostra que não apenas o brilho de uma mente privilegiada, mas sobretudo a persistência e o trabalho árduo tornam possível uma produção acadêmica de peso e valor.

O segundo artigo é de autoria de Brian Davies, ex-aluno e colega de Bernstein. Nele o autor busca primeiramente recuperar a atmosfera intelectual da época em que Bernstein inicia e desenvolve seus trabalhos, explicitando e esclarecendo vários equívocos a que deram margem. Para os que trabalham no campo do currículo, é interessante compreender, por exemplo, as convergências que levaram ao aparecimento da que se denominou ''nova sociologia da educação'', bem como as suas divergências internas. Brian, ao reproduzir o clima da época, evidencia as disputas que perpassam o campo acadêmico e as estratégias usadas por seus atores para superá-las, identificando as formas pelas quais Bernstein se fazia ouvir pela voz de seus estudantes.

Davies busca explorar as relações entre o trabalho de Bernstein e de Durkheim, mostrando como os conceitos do primeiro se inspiram na obra deste último. Não deixa porém de apontar as outras influências que sofreu. À medida que faz essa análise, esclarece o processo de construção de conceitos-chave utilizados pelo autor, o que facilita a sua compreensão. Esta parece ser a mais importante contribuição do artigo.

Finalmente, encontra-se o artigo de Bernstein. Trata-se de um texto denso, pois nele o autor sintetiza várias idéias trabalhadas mais extensa e intensamente em outros textos. Aqueles que leram o livro A estruturação do discurso pedagógico: classe, códigos e controle irão perceber que este artigo retoma idéias mais amplamente exploradas nessa obra, trazendo novos elementos, que reconfiguram os textos anteriores. Este artigo, intitulado originalmente ''Pedagogizing knowledge: studies in recontextualization'', aborda dois conceitos muito discutidos hoje na literatura educacional brasileira: competência e identidade.

O objetivo do autor é demonstrar como diferentes discursos das ciências sociais, que compartilham elementos comuns, permearam o campo educacional, criando diferentes modalidades de práticas pedagógicas. Partindo de seu trabalho sobre ''Pedagogias visíveis e invisíveis'', ele busca identificar, nas ciências sociais, os elementos comuns que propiciaram o desenvolvimento das pedagogias invisíveis, centradas no conceito de competência.

Bernstein mostra como as pedagogias baseadas na competência, apesar de compartilharem certos elementos comuns, diferenciam-se pela centralidade que dão ao indivíduo, ao grupo e/ou à mudança social. Da mesma forma, ele diferencia as pedagogias baseadas no desempenho. Em síntese, enquanto as pedagogias baseadas na competência enfatizam o potencial de cada criança ou grupo social e suas possibilidades de compartilhar determinadas formas de conduta, as pedagogias baseadas no desempenho valorizam o produto da aprendizagem e as habilidades específicas a serem desenvolvidas pela escola. Desse modo, estas últimas valorizam a diferença, estratificando os alunos pelos resultados da aprendizagem. Enquanto o conceito de competência está voltado para o fortalecimento do poder (empowerment) do aluno ou do grupo social, o conceito de desempenho baseia-se na idéia de déficit.

O autor distingue três modalidades de desempenho, tomando como fundamento sua base conceitual. As primeiras, denominadas singulares, abrangem os campos específicos de conhecimento, de natureza mais vertical, e diferentes áreas, como a física, a química etc. Às segundas, o autor dá o nome de regiões; elas correspondem a áreas que apresentam interfaces dos diferentes singulares e estão relacionadas ao desenvolvimento de conhecimentos e de práticas, visando à produção de tecnologias. As regiões abrangem campos mais tradicionais como a Medicina, Engenharia e Arquitetura e asseguram, cada vez mais, a constituição de novos campos acadêmicos como o jornalismo, o esporte, a dança e o turismo, por exemplo. Os terceiros modos de desempenho, chamados genéricos, têm sua origem fora do campo escolar e penetram fortemente a área da educação vocacional ou técnica. Segundo o autor, os genéricos buscam realizar um potencial transferível e flexível, em vez de um desempenho específico, cujo conceito está profundamente enraizado na idéia de treinabilidade.

Apesar de localizar-se no campo das pedagogias voltadas para o desempenho, tais habilidades são chamadas competências, por um mau entendimento, pelo fato de procurarem garantir o que é necessário ao desempenho de uma tarefa. Esta é uma questão importante para clarificar o uso de competência na literatura educacional brasileira, em que o termo tem sido associado a treinabilidade. Para Bernstein, trata-se de um equívoco causado pela proliferação de uma visão mercantil da educação em que as habilidades para o mercado de trabalho são ''errada'' ou ''enganosamente'' denominadas competências.

Ao trabalhar com as diferentes modalidades de prática pedagógica, Bernstein discute as condições que favorecem a predominância de uma ou de outra, a partir do peso que tem o campo de recontextualização pedagógica (incluindo nele os pesquisadores e os profissionais da educação) e o campo de recontextualização oficial (o Estado e suas agências) e da convergência ou divergência que esses campos apresentam ao longo da história.

Uma outra importante questão focalizada por Bernstein diz respeito ao conflito que se configura à medida que a administração escolar se orienta por valores empresariais e instrumentais, enquanto a cultura do discurso pedagógico apresenta valores mais humanísticos. No entanto, para o autor, esse conflito está sendo superado pela ênfase no desempenho do estudante, que tende, inequivocamente, a deteriorar o valor intrínseco do conhecimento.

Por último, o autor busca identificar, no atual estágio do capitalismo, os processos de construção das identidades. Ele identifica três tipos de identidades: as descentradas, as retrospectivas e as prospectivas. Esses tipos se diferenciam, tanto pelos recursos que utilizam– que vão desde as grandes narrativas religiosas, até a questão da empregabilidade – quanto pelas múltiplas formas como conjugam tais recursos. É nesse contexto que, segundo Bernstein, o processo de construção de identidades constitui-se por meio de aceitações, oposições e resistências. O autor finaliza, apontando a construção de identidades privilegiadas pela escola, seus conflitos com as outras modalidades construídas fora do espaço escolar e os desafios que isso coloca para a educação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Maio 2004
  • Data do Fascículo
    Nov 2003
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