Acessibilidade / Reportar erro

Pesquisa, educação e pós-modernidade: confrontos e dilemas

Research, education and post-modernity: conflicts and dilemmas

Resumos

Este artigo discute as contraposições de autores no que se refere à produção do conhecimento e sua disseminação em contextos caracterizados como modernos ou pós-modernos, trazendo uma reflexão sobre questões ligadas aos saberes e à pesquisa em educação. Mostra que o emprego dos termos pós-modernidade e pós-moderno não encontra consenso entre os que se preocupam com a compreensão do momento histórico contemporâneo em suas diferentes manifestações. A posição assumida nessa discussão é a de que se está em transição: não se saiu totalmente das asas da modernidade e nem se está integralmente em outra era. Discute-se, então, a presença, na reflexão e na pesquisa em educação, de algumas perplexidades diante de movimentos sociais complexos que têm sido historicamente construídos, debatendo-se sobre o que conservar na educação, que modismos evitar, quais valores, práticas e identidades são, em princípio, dignos de respeito e por que, entre tantas questões. Mostra-se que a forma de tratar os problemas e analisá-los tem mudado. Num período de transição, em que estruturações e desestruturações, normatizações e transgressões imbricam-se dialeticamente, colocam-se desafios consideráveis à pesquisa em educação, para que se compreeenda a tessitura das relações no ensinar e no aprender, bem como a heterogeneidade contextual em que tais relações ocorrem.

PESQUISA EDUCACIONAL; PÓS-MODERNIDADE; VALORES; CURRÍCULO


This article discusses the positions of authors in relationship to the production of knowledge and its dissemination in contexts characterized as moderns or post-moderns, leading to think about knowledge and educational research. In order to do so, it will demonstrate that the use of terms such as post-modernity or post-modern do not find any consensus among those who are concerned with the understanding the various manifestations of contemporary historical moment. The position here adopted asserts that this is a transitional period, not yet freed from modernity, not yet fully integrated into another era. It is discussed, then, the perplexities both in the thinking and in the educational research in face of historically constructed complex social movements, debating what to preserve in education, what to avoid, which values, practices and identities are, in principle, good enough to be preserved and the reasons for doing so, among other similar questions. Also, it is shown that the form through which problems are placed and analysed is changing. In a transitional period, where things are constructed and deconstructed, normalized and transgressed, but always dialectically interweaved, considerable challenges face educational research so to understand the structure of the relations in teaching and learning, as well as the contextual heterogeneity where these relations are woven.

EDUCATIONAL RESEARCH; POST-MODERNITY; VALUES; CURRICULUM


OUTROS TEMAS

Pesquisa, educação e pós-modernidade: confrontos e dilemas

Research, education and post-modernity: conflicts and dilemmas

Bernardete A. Gatti

Departamento de Pesquisas Educacionais, Fundação Carlos Chagas e Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Educação, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, gatti@fcc.org.br

RESUMO

Este artigo discute as contraposições de autores no que se refere à produção do conhecimento e sua disseminação em contextos caracterizados como modernos ou pós-modernos, trazendo uma reflexão sobre questões ligadas aos saberes e à pesquisa em educação. Mostra que o emprego dos termos pós-modernidade e pós-moderno não encontra consenso entre os que se preocupam com a compreensão do momento histórico contemporâneo em suas diferentes manifestações. A posição assumida nessa discussão é a de que se está em transição: não se saiu totalmente das asas da modernidade e nem se está integralmente em outra era. Discute-se, então, a presença, na reflexão e na pesquisa em educação, de algumas perplexidades diante de movimentos sociais complexos que têm sido historicamente construídos, debatendo-se sobre o que conservar na educação, que modismos evitar, quais valores, práticas e identidades são, em princípio, dignos de respeito e por que, entre tantas questões. Mostra-se que a forma de tratar os problemas e analisá-los tem mudado. Num período de transição, em que estruturações e desestruturações, normatizações e transgressões imbricam-se dialeticamente, colocam-se desafios consideráveis à pesquisa em educação, para que se compreeenda a tessitura das relações no ensinar e no aprender, bem como a heterogeneidade contextual em que tais relações ocorrem.

PESQUISA EDUCACIONAL – PÓS-MODERNIDADE – VALORES – CURRÍCULO

ABSTRACT

This article discusses the positions of authors in relationship to the production of knowledge and its dissemination in contexts characterized as moderns or post-moderns, leading to think about knowledge and educational research. In order to do so, it will demonstrate that the use of terms such as post-modernity or post-modern do not find any consensus among those who are concerned with the understanding the various manifestations of contemporary historical moment. The position here adopted asserts that this is a transitional period, not yet freed from modernity, not yet fully integrated into another era. It is discussed, then, the perplexities both in the thinking and in the educational research in face of historically constructed complex social movements, debating what to preserve in education, what to avoid, which values, practices and identities are, in principle, good enough to be preserved and the reasons for doing so, among other similar questions. Also, it is shown that the form through which problems are placed and analysed is changing. In a transitional period, where things are constructed and deconstructed, normalized and transgressed, but always dialectically interweaved, considerable challenges face educational research so to understand the structure of the relations in teaching and learning, as well as the contextual heterogeneity where these relations are woven.

EDUCATIONAL RESEARCH – POST-MODERNITY – VALUES – CURRICULUM

A compreensão dos processos educacionais, seja em sistemas seja nas escolas ou nas salas de aula, representa um desafio aos estudiosos da educação, e isso tem demandado que se saia das dispersas e padronizadas representações cotidianas sobre esses processos e se adentre em um movimento investigativo questionador desse objeto em seu contexto. Para essa compreensão, não há como se furtar ao confronto com as críticas emanadas do movimento histórico-cultural que se interroga sobre a modernidade e sua possível superação: a constituição do espaço que viria a ser o da pós-modernidade. Aqui, muitos dilemas se colocam à reflexão do educador e do pesquisador.

O emprego dos termos pós-modernidade, pós-moderno não encontra consenso entre os que se preocupam com a compreensão do momento histórico contemporâneo, em suas diferentes manifestações. A discussão sobre essa questão intensificou-se a partir da segunda metade do século passado. O século XX construiu caminhos históricos da sociedade e de seus conhecimentos que acabaram por problematizar as grandes utopias e modelos de análise produzidos nos séculos anteriores, na chamada era da modernidade. Os caminhos das ciências também foram revolucionados nesse século por novas formas de lidar com as teorizações e as linguagens. A evidência dos novos fatos socioculturais levou alguns estudiosos a caracterizá-los como pós-modernos, instalando-se uma polêmica sobre o fim da modernidade. De outra parte, argumenta-se que esses eventos tratados como novos não o são em essência, eles estão ainda sob a regência da modernidade, e esta é tida como um período histórico-cultural e científico que ainda não acabou.

De qualquer modo, não se pode falar em pós-modernidade sem fazer um contraponto com a modernidade. A modernidade veio no bojo de uma cultura na qual se quebram os vínculos metafísicos que explicavam o homem e o mundo, tornando-se a razão a fonte da produção dos saberes, da ciência, ancorada em critérios de objetividade, distanciando-se dos objetos ou dos poderes transcendentais, religiosos ou metafísicos. Também, o sujeito, o eu, passa a ser considerado como um sujeito empírico, objeto entre outros objetos do mundo real, mas que se constitui simultaneamente como condição fundamental de qualquer experiência possível e da sua análise (Goergen, 1996, p.16). O realce da subjetividade traz a liberação para que o homem se sirva de seu próprio entendimento – a sua razão – para conscientemente criar normas de pensar e agir, livres de fundamentos em argumentos transcendentes. Com isto, a modernidade abre-se para o futuro e gera a condição de se pensar e produzir "progresso". Essas características da modernidade não se põem apenas nos ambientes científicos ou filosóficos, elas pervasam toda a sociedade. A modernidade caracteriza-se como a era da racionalidade, a qual fundamenta não só o conhecimento científico, como as relações sociais, as relações de trabalho, a vida social, a própria arte, a ética, a moral. Cria, por sua vez, condições de verdade que enclausuram a própria razão e que geram formas de poder e homogeneízam contextos e pessoas, impondo-se como instrumento de controle (Habermas, 1990). Críticas abrem-se contra esta razão que se põe como absoluta e objetivada, razão que, nas palavras de Goergen,

...se anunciara como caminho seguro para a autonomia e liberdade do homem, revelar-se-ia, ao final, o mais radical e insensível inimigo do homem por transformá-lo em objeto a serviço dos ditames da performatividade científico-tecnológica. A eficiência alçada ao nível de norma suprema da razão impôs o abandono dos ideais e fins humanos. (1996, p.22)

As técnicas e a tecnologia assumem papel de destaque. Busca-se o que funciona bem, sendo a ciência positivada a sua base. A homogeneidade é o ideal de referência, e com isso se aplainam as diferenças, em favor de um geral e um universal abstratos. Porém, instala-se na modernidade uma crise, uma contradição histórica que se traduz nas rupturas trazidas quer pelas formas cotidianas do existir, fazendo emergir a necessidade de consideração das heterogeneidades, das diferenças, das desigualdades gritantes, quer pelas fissuras lógicas nas ciências. Sem dúvida, há uma inquietação instalada que para os analistas toma sentidos diferentes e para a qual se propõem respostas distintas.

Habermas, partindo do pressuposto de que a modernidade não foi superada, argumenta que dentro das próprias condições instauradas pela modernidade é possível avançar, sair da camisa-de-força de uma racionalidade fechada, por meio do uso do que chama de "razão comunicacional", uma razão dialógica, no lugar da razão auto-referente, trazendo a idéia de uma teoria da ação comunicativa. Segundo ele, se entendermos o saber

...como transmitido de forma comunicacional, a racionalidade limita-se à capacidade de participantes responsáveis em interações de se orientarem em relação a exigências de validade que assentam sobre o reconhecimento intersubjetivo. (1990, p.289)

Muda o centro de referência, instaurando-se uma racionalidade que implica consciência reflexiva das expressões humanas, uma racionalidade, que cria no diálogo os pontos de apoio de sua validade. Isso pressuporia a diferenciação clara do mundo dos fatos objetivos, do mundo das normas sociais e do mundo da experiência interior. A noção habermasiana de racionalidade comunicativa, segundo Wellmer (1991, p.92), refletiria a condição cognitiva e moral dos humanos num mundo "desencantado". É por isso, ainda segundo esse autor, que Habermas pode pensar a ação comunicativa como portadora potencial de uma racionalidade diferenciada, que só se pode manifestar depois que se tenha destruído o dogmatismo implícito das concepções de mundo tradicionais, e onde os requisitos de validade possam ser construídos pela argumentação, pelo confronto de diferentes posições, na procura de consensos aceitáveis. A argumentação, como meio de se obter consenso intersubjetivo, assume um papel fundamental, quando ela e as formas de ação comunicativa substituem outros meios de coordenação de ações, de integração social e de reprodução simbólica, constituindo o que Habermas denomina "racionalização comunicativa".

Como encaminhar, nesse caso, então, a discussão do pós-moderno? Assim como os que postulam a continuidade da modernidade nos tempos atuais, a posição dos que postulam o contrário – seu fim – emerge da crise nos estatutos da própria modernidade. O termo pós-modernidade tem-se mostrado polissêmico, sendo utilizado no mais das vezes de modo genérico. De qualquer forma denota o que vem depois da modernidade, sendo problemático seu sentido, justamente por tentar traduzir um movimento da cultura em sociedades em rápida mutação, movimento que se ainda está produzindo, sem que se distingam consolidações que ajudem a qualificá-lo melhor. Pós-moderno designaria uma ruptura com as características do período moderno, o que, como já dissemos, para muitos analistas ainda não aconteceu de modo claro. Pode-se adotar a posição de que estamos vivendo a transição para a pós-modernidade e que os sinais, as tendências verificáveis traduzem caminhos mais do que posições consolidadas. Na expressão de Rouanet (1987, p.230), a polissemia desse conceito é devida ao fato de que ele reflete "um estado de espírito, mais do que uma realidade já cristalizada."

No entanto, o termo tem sido usado cada vez com maior freqüência e vem sendo empregado para traduzir a posição do saber nas sociedades mais desenvolvidas, posição que se delineia nos cenários atuais, cibernético-informáticos, informacionais e comunicacionais. Conforme Lyotard (1993, p.15), designa-se com essa expressão "o estado da cultura após as transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes". Ou seja, a expressão tenta traduzir as mudanças de estatuto dos saberes, que se processam ao mesmo tempo que as sociedades entram na idade dita pós-industrial. Aqui já se coloca uma perspectiva que está deixando a era da modernidade no passado. Para Lyotard (1993, p.3) essas mudanças fizeram-se mais presentes e intensas a partir do final dos anos 1950, quando a Europa completou sua reconstrução, tendo sido mais ou menos rápidas conforme o país, e, mesmo dentro dos países, tendo variado conforme o setor de atividade. Isso se traduz por uma falta de sincronia geral que torna complexo o quadro desse conjunto.

Alguns pontos característicos da pós-modernidade foram sintetizados por Azevedo (1993). O primeiro ponto é que a pós-modernidade surge, como já afirmamos, pela invalidação histórica e cultural das grandes análises e seus decorrentes relatos de emancipação. As amplas visões filosóficas, políticas ou religiosas típicas da modernidade, que pretendiam tornar aceitáveis normas unicistas, pelas quais deveriam se reger as coletividades, a ciência, o progresso, dando uma visão integrada, explicativa de eventos e fatos, passam a ser consideradas apenas narrações estilizadas e não visões objetivas da realidade. A uniformização que impõem, a sua pretensão a uma objetividade universal e suas decorrentes promessas de salvação para indivíduos e grupos foram desqualificadas pelos eventos históricos, pelos totalitarismos, pela dizimação de populações, pelas coletivizações agressivas, restritivas e pauperizantes. Os sonhos de alcance universal foram abalados e as posturas pós-modernas desqualificam essas narrativas, essas visões amplas, percebendo os contextos locais, com suas singularidades e particularidades, "como fontes de resistência a toda pretensão moderna e hegemônica de uma cultura universal" (Azevedo, 1993, p.29). Instala-se grande suspeita quanto aos ideais da modernidade, pela falência das utopias criadas – seja como explicações científicas do real, seja como proposições salvadoras – e não realizadas no cotidiano da cultura e da sociedade modernas. O desejo de escapar a um mundo duro e a respeito de cuja transformação não se tem esperança, exacerba a individuação, a fuga da realidade, a falta de ideais partilháveis, a afirmação da falta de sentido da vida. Há um "esvaziamento cético de palavras emblemáticas como liberdade, justiça, solidariedade" (Azevedo, 1993, p.30). Na pós-modernidade só permanecem no horizonte como passíveis de melhoria as relações interpessoais próximas.

Outro aspecto é que, na pós-modernidade, ocorre a ruptura dos grandes modelos epistemológicos, com suas pretensões de verdade, objetividade e universalidade, ruptura esta que se faz pela via da idéia "da indeterminação, da descontinuidade, do pluralismo teórico e ético, da proliferação de modelos e projetos" (Azevedo, 1993, p.31). Os caminhos buscados pelas ciências afirmam este posicionamento. O determinismo das leis da natureza, como discute Prigogine, foi posto em questão. Esse modelo, em suas palavras,

...teve um imenso sucesso. A explicação de qualquer fenômeno natural, em termos de leis deterministas, parecia estar à disposição e, uma vez que contássemos com essas leis básicas, daí derivaria todo o resto (a vida, nossa consciência humana) por simples dedução. Com isso, as leis é que existem, não os eventos. (1996, p.26-27)

A descoberta das instabilidades em vários sistemas, o uso do conceito de caos, de probabilidade, a consideração da irreversibilidade do tempo, entre tantas mutações em conceitos antes formulados como certezas, trazem uma nova perspectiva da natureza. As diferenciações sociohumanas também emergem como fatos e, assim, a variabilidade humana, as heterogeneidades, e não as unicidades são enfatizadas. Morin (1996, p.46-47), considerando as proposições da modernidade, da cientificidade clássica que penetraram nas ciências sociais e humanas, lembra, por exemplo, que na psicologia o sujeito foi substituído por estímulos, respostas, comportamentos; na história também retirou-se o sujeito, "eliminaram-se as decisões, as personalidades, para só ver determinismos sociais. Expulsou-se o sujeito da antropologia, para só ver estruturas, e ele também foi expulso da sociologia". A consideração da existência do sujeito, sua reposição nas ciências humano-sociais que se tem processado sob variadas formas, trouxe a implicação necessária de se considerar o princípio da incerteza nas vidas e na história humanas.

Uma última característica seria que a era pós-moderna "minimiza o sentido emancipador da história que o moderno dá ao homem, através dos mitos do progresso, da salvação e da construção da própria história. Não é negado este sentido, mas sua unicidade" (Azevedo, 1993, p.91). Com a intensificação da fragmentação da realidade social e cultural, desencadeada pelas tecnologias, pela comunicação de massa, pela informação intensa, instantânea e rasa, sem reflexão, resvala-se para uma multiplicidade de sentidos sem sentido e para a perda de referências mais sólidas, estas substituindo-se em avalanches marqueteiras ou midiáticas. Conforme Moraes (2000, p.212), estamos passando "por uma nova era quando a produção da cultura tornou-se integrada à produção de mercadorias em geral: a frenética urgência de produzir bens com aparência cada vez mais nova". O impacto instantâneo prevalece sobre os significados e a falta de profundidade de grande parte da produção cultural atual é posta em evidência (Jameson, 1996).

Azevedo (1993, p.32) conclui sobre a pós-modernidade, afirmando que, num sentido negativo ela traz "um estilo de pensamento desencantado da razão moderna e dos conceitos a ela vinculados", vendo na modernidade os "riscos de coerção, totalitarismo, desenvolvimento competitivo e funcionalista"; em contrapartida, num sentido positivo, a pós-modernidade traz uma nova forma de racionalidade, "pluralista e fruitiva" longe de pretensões universalistas. Santos (1991), com um olhar em fatos sociais, arrola pontos de oposição na vida social entre o modernismo e o pós-modernismo, sinalizando alterações significativas e alguns indícios. No modernismo aponta: o motor a explosão, a fábrica, objetos, sociedade de consumo, notícia, luta política, subjetivismo, unidade. No pós-modernismo: o chip, signos, shopping; espetáculo, simulacros do real, atuação na micrologia cotidiana, ecletismo, pluralidade, egocentrismo narcisista.

Pontuadas essas questões em torno da modernidade/pós-modernidade, a posição que assumimos na discussão do tema proposto para este texto é a da transição: não saímos totalmente das asas da modernidade e nem estamos integralmente em outra era. Ou, como pondera Goergen (1997, p.63), "modernidade e pós-modernidade não se encontram numa relação de superação de uma pela outra, mas numa relação dialética". Mas, como aponta Terrén (1999, p.12), isso não elimina a ocorrência de deslegitimação das instituições da modernidade, sendo que a transição instalada traz questões sobre a legitimidade dos símbolos, das identidades e das interpretações construídas ao longo da modernidade e, conseqüentemente, de seu discurso educacional. Esse evento cria, nas relações de trabalho, vazios culturais, éticos, representacionais, que podem ser ocupados por doutrinas econômico-sociais ou religiosas, cujos impactos são incertos e causam tensões. As incertezas e ambivalências socioeconômico-culturais e institucionais deixam margem ao non sense. Assinalamos também que, para o conhecimento nas ciências, resta como fato a existência de uma crise no conceito de razão e nas formas de abordagem da natureza, do homem e da cultura.

Na reflexão educacional algumas perplexidades se apresentam diante de uma história social que se tem construído nas condições discutidas. Moraes, considerando esse peculiar mundo socioeconômico e cultural, indaga:

...que espécie de currículo deveremos ter na escola para enfrentar esse desafio? De quais características da modernidade e do currículo moderno, deveremos livrar-nos a fim de fazer com que a escola consiga se alinhar aos novos tempos? O que conservar? Quais modismos evitar? [...] Quais valores, práticas e identidades são, em princípio, dignos de respeito e porquê? (2000, p.215).

A multiplicação e a fragmentação dos conhecimentos rebate na educação, mas os currículos encontram ainda boa sustentação no discurso científico da modernidade, com seus conhecimentos tomados como um saber objetivo e indiscutível. Em contrapartida, o volume e a constante mudança em conhecimentos e áreas de saber traz para os currículos escolares uma obsolescência que os expõe à crítica de vários setores sociais. Conforme sinaliza Subirats (2000, p.201), a resposta do sistema educacional tem sido a de multiplicar as matérias, o que é "uma aposta perdida de antemão, já que o crescimento exponencial dos saberes torna totalmente impossível sua aquisição em uma determinada etapa da vida". Essa situação cria, segundo a autora, uma distinção espontânea entre

...aquilo que é preciso saber para ser aprovado, que se aprende na escola e não se usa para mais nada, e aquilo que é preciso saber para viver, que, em geral, aprende-se pela televisão, cada dia menos controlável pela população e mais inclinada ao despropósito como meio de chamar a atenção. (2000, p.201)

É preciso considerar que se o discurso científico é uma referência fixa para as matérias curriculares,

...ao contrário, não existem referências fixas no que se refere aos valores e aos comportamentos morais, que hoje entendemos basicamente como fatos opináveis, contingentes e discutíveis, pouco aptos, portanto, para uma transmissão sistemática e apoiada em um saber profissional. (2000, p.203)

Essas dissincronias aguardam melhor problematização. O debate está em pauta, as dissonâncias entre escola e comunidades, instituições e sociedade, também. Como investigar essas questões? Uma nova gestalt é necessária para novos modos de questionar a realidade, os processos socioeducativos, e para a condução de pesquisas que nos aproximem de compreensões mais adequadas desses processos, das decalagens e disrupturas.

A corrida mundial em busca de novos currículos educacionais e de uma formação ao mesmo tempo polivalente e diversificada de professores, as propostas de transversalidade de conhecimento em temas polêmicos, mostram que a área educacional encontra-se no meio desse movimento em busca de alternativas formativas.

A passagem de uma sociedade industrial para uma sociedade da informação, de uma sociedade segura para uma sociedade plural e instável gerou crises. No capitalismo informacional instaurado, "as desigualdades não se configuram em simples estrutura de um centro e de uma periferia, mas como múltiplos centros e diversas periferias, tanto em nível mundial como local" (Subirats, 2000).

Nesta sociedade informático-cibernética a educação é chamada a priorizar o domínio de certas habilidades a ela relacionadas e, os que não possuem as habilidades para tratar a informação, ou não têm os conhecimentos que a rede valoriza, ficam totalmente excluídos. Fossos e diferenciações entre grupos humanos estão abertos. "A crise surge pela inexistência de uma única forma de vida e pensamento, porque as tradições têm que se explicar e porque a informação não é um terreno restrito aos especialistas" (Flecha, Tortajada, 2000, p.24-25). Crise designa um período de dificuldades, sinaliza uma ruptura de equilíbrio em um contexto, seja ele social, individual, cultural, econômico. Ela incorpora aspectos positivos e negativos que nos movimentos sociais-históricos se entrechocam. As ações educacionais estão entre propiciar a transformação ou exacerbar a exclusão.

Cabe observar, no entanto, que nos sistemas mais institucionalizados a razão da modernidade continua a marcar presença, dentre esses, os sistemas educacionais. Nos sistemas educacionais, de um ângulo, temos conhecimentos estruturados em verdades que são propostos como necessários às novas gerações, ao lado de normas e hábitos institucionalizados, formatados na modernidade, e, de outro, o cotidiano das escolas com seu burburinho interno, pessoas com pessoas buscando formas de entendimento mútuo e alternativas de comportamento, gestando linguagens, ajustando lógicas diferentes. A um observador não atento às diferenças ou às trincas, rupturas e buscas que se processam nesse cotidiano, o que aparece – e isso se observa na maioria dos relatos da pesquisa em educação – é uma espécie de unicidade técnica abstrata com uma rotina massacrante. Isso está posto também na realidade escolar. Porém sua apresentação como face única das salas de aula, pela descrição das atividades dos professores como apenas uma atividade instrumental, de ensino de soluções e dicas, de algoritmos e técnicas, não deixa entrever a multiplicidade de ocorrências próprias dos cotidianos de pessoas em relação no caso uma relação pedagógica, com determinadas intencionalidades, em ambientes culturais heterogêneos. A vôo de águia, pode parecer que essas descrições do caráter instrumental das ações dos docentes explicam plenamente a relação educativa hoje – esta é uma visão da modernidade – mas, a pesquisa educacional recente tem-se debruçado com outros olhares no espaço escolar, mergulhando aí com outras posturas, disposições e valores, trazendo maiores nuanças sobre a lida cotidiana de professores e alunos, questionando se este "instrumental" é tão instrumental assim, tão técnico ou tão cientificamente referenciado. Com isto emergem idiossincrasias, humores, linguagens e códigos, símbolos novos, trocas inusitadas. Rotina e rupturas, normas externas e consensos intragrupos, imposição e negociação, lição e interpretação, código culto geral e códigos locais, marcam presença nas relações escolares, construindo-se alternativas de convivência e aprendizagens não tão padronizadas. Está-se falando aqui de milhões de pessoas – crianças, jovens, adultos – em milhares de escolas e salas de aula, criando modos de ser e entender o seu mundo e o mundo em geral de modos diversificados. Entendimentos, compreensões construídas na imponderabilidade. Controles e cercas, balizas normativas e currículos, atuam até certo ponto nesses espaços. O que nele se gesta? É este tipo de questão que tem surgido nos estudos em educação mais recentemente. Rompendo com determinismos e grandes modelos explicativos buscam-se novas formas de compreensão do real, em que o diferente e o divergente se instala. Por mais que tentemos homogeneizar as escolas e a vida escolar, a ela são levados hábitos sociais diferenciados, múltiplas etnias, culturas específicas, representações parceladas, situações sociais díspares, pronúncias diferentes, linguajares grupais, valores heterogêneos etc. Será que a escola com seus ritos tão bem descritos pelas pesquisas, sob a égide da compreensão moderna, sufoca tudo isso homogeneizando crianças e jovens como produtos industriais, ou nela se passam outras mediações não tão acomodadoras e padronizadoras assim? Quais movimentos podemos distinguir nas escolas? Há metamorfoses a procurar para além dos ritos e das explicações já dadas em abstratos modelos interpretativos do processo educacional? De que maneira têm-se constituído, como cidadãos, os sujeitos que nesse processo estão envolvidos? As respostas têm mesmo sido dadas pelas grandes teorias vigentes? A visão determinista que se encontra em muitos estudos quer nos fazer crer em relações e resultados fixados por categorias bem definidas, segundo princípios lógicos predefinidos. Até onde estas análises mantêm sua validade?

Lingard e outros (1998, p.85), discutindo, por exemplo, a pesquisa em avaliação educacional, argumentam que os novos tempos demandam uma reconceitualização dos efeitos, produtos e funções da escolarização, lembrando que mesmo esses termos são artefatos de uma era industrial. Afirmam que, para compreender a significação sociopolítica da escola e mudar a redundância das pesquisas sobre a sua eficiência, a própria pesquisa educacional precisa ser reconectada à real função da escola na produção de igualdades/desigualdades em vários contextos, pondo-se em questão o "valor" dos indicadores tradicionais, problematizando-os em cortes sociodemográficos e culturais. Com isso, poderia distanciar-se do modo tautológico utilizado até aqui, o qual só reforça as hipóteses educacionais da era industrial: produtividade/eficiência/uniformidade. Esses autores colocam ainda, que, há muitas mudanças ocorrendo nos espaços escolares em sua conexão com as comunidades em que se situam, e com aspectos mais amplos de uma sociedade informático-comunicacional, as quais não podem ser avaliadas simplesmente pela focalização nesses elementos da modernidade, porque "as escolas respondem a outras pressões além daquelas propostas e esperadas pelo estado". Citam Ball (1994, p.11) dizendo que o autor focaliza a questão quando observa que: "política como prática é 'criada' em uma relação trialética entre dominância, resistência e caos/liberdade". As escolas estão involucradas em outros espaços para além da relação binária dominação/resistência, como é sugerido na literatura sobre políticas educacionais. Há muito mais vida nas escolas e nas salas de aula para além dessa relação binária, como outros interesses, preocupações, necessidades, demandas, pressões, objetivos e desejos. Por isso, a emergência da necessidade na pesquisa em avaliação de rever seus conceitos de efeitos e impactos.

As questões que a contemporaneidade traz para a pesquisa educacional são, portanto, muitas. A forma de proposição dessas questões tem mudado, especialmente pelo esgotamento das análises que não acrescentam conhecimento e patinam numa repetição de jargões e padrões já exauridos. Emerge uma ânsia de compreender processos e situações que, para o pesquisador atento e crítico estão à margem, ou para além, do usual modelo de explicações e grandes categorias já dadas, as quais não mais dão conta da realidade, dos desencaixes do teorizado e do que sucede, em que despontam as insuficiências de fórmulas aprendidas. Essa percepção, no entanto, demanda a libertação de modelos interpretativos erigidos em verdades inquestionáveis e de formas e lógicas tomadas como definitivas e últimas.

A educação está imersa na cultura e não apenas vinculada às ciências, que foram tomadas na modernidade como as únicas fontes válidas de formação e capazes de oferecer tecnologias de ensino eficientes. A educação coloca-se, no seu modo de existir no social, em ambientes escolares e similares, organizada em torno de processos de construção e utilização dos significados que conectam o homem com a cultura em que se insere e suas imagens, com significados gerais, locais e particulares, ou seja, com significados que se fazem públicos e compartilhados, mas cujo sentido se cria nas relações que medeiam seu modo de estar nos ambientes e com as pessoas que estão. Transverso a isto, temos as mídias, as normas, as crenças, os valores extrínsecos. Há surpresas nesses meandros da história vivida, e, como coloca Bruner (1991), essas surpresas são importantes pois provocam a reflexão sobre aquilo que damos por certo e evidente, ou seja, ela é uma reação impulsionada pela ruptura de uma certeza. O pesquisador precisa colocar-se a possibilidade de surpreender-se, senão, por que pesquisar? Num período transicional em que estruturações e desestruturações, normatizações e transgressões, imbricam-se dialeticamente, à pesquisa em educação surgem desafios consideráveis para a compreensão das tessituras das relações no ensinar e no aprender, na heterogeneidade contextual em que essas tessituras se fazem. Ainda, a própria compreensão da educação como propósito social e seu estatuto institucional requerem interrogações que transcendem sua modelagem por teorias ou filosofias que narram um real cada vez menos real.

Recebido em: fevereiro 2005

Aprovado para publicação em: julho 2005

  • AZEVEDO, M. de C. Não moderno, moderno e pós-moderno. Revista de Educação AEC, v. 22, n. 89, p.19-35, out./dez. 1993.
  • BALL, S. Education reform: a critical and post-structural approach. Buckingham: Open University Press, 1994.
  • BRUNER, J. Actos de significado: más allá de la revolución cognitiva. Madrid: Alianza Editorial, 1991.
  • FLECHA, R.; TORTAJADA, I. Desafios e saídas educativas na entrada do século. In: IMBERNON, F. A Educação no século XXI: os desafios do futuro imediato. Porto Alegre: Artmed, 2000. p. 21-36.
  • GUIDDENS, A. et al. Habermas y la modernidad Madrid: Cátedra, 1991. p.65-110.
  • GOERGEN, P. L. A Avaliação universitária na perspectiva da pós-modernidade. Avaliação, v.2, n.3, p.53-65, set. 1997.
  • _________. A Crítica da modernidade e educação. Pro-posições, v.7, n. 2, p.5-28, jul.1996.
  • HABERMAS, J. Discurso filosófico da modernidade Lisboa: Dom Quixote, 1990.
  • JAMESON, F. Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996.
  • LINGARD, B.et al. School effects in postmodern conditions. In: SLEE, R.; WEINER, G.; TOMLINSON, S. (eds.). School effectiveness for whom? Challenges to the school effectiveness and school improvement movements. London: Falmer Press, 1998. p.84-100.
  • LYOTARD, J.-F. O Pós-Moderno 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.
  • MORAES, S. E. Currículo, transversalidade e pós-modernidade. In: SANTOS FILHO, J. C. dos (org.). Escola e universidade na pós-modernidade São Paulo: Mercado das Letras, 2000. p.201-247.
  • MORIN, E. A Noção de sujeito. In: SCHNITMAN, D. F. (org.) Novos paradigmas, cultura e subjetividade Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. p.45-56.
  • PRIGOGINE, I. O Fim da ciência? In: SCHNITMAN, D. F. (org.) Novos paradigmas, cultura e subjetividade Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. p.25-40.
  • ROUANET, S. P. As Razões do iluminismo São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
  • SANTOS, J. F. dos. O Que é pós-modernismo 5Ş. reimpr. São Paulo: Brasiliense, 1991.
  • SUBIRATS, M. A Educação do século XXI: a urgência de uma educação moral. In: IMBERNON, F. A Educação no século XXI: os desafios do futuro imediato. Porto Alegre: Artmed, 2000. p.195-205.
  • TERRÉN, E. Postmodernidad, legitimidad y educación. Educação e Sociedade, v.20, n. 67, p.11-47, ago. 1999.
  • WELLMER, A. Razón, utopia, y la dialéctica de la ilustración. In: GUIDDENS, A. et al. Habermas y la modernidad Madrid : Cátedra, 1991. p.65-110.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2006
  • Data do Fascículo
    Dez 2005

Histórico

  • Aceito
    Jul 2005
  • Recebido
    Fev 2005
Fundação Carlos Chagas Av. Prof. Francisco Morato, 1565, 05513-900 São Paulo SP Brasil, Tel.: +55 11 3723-3000 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cadpesq@fcc.org.br