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Suicídio e feminilidades

Suicide and Feminities

Resumo

Este ensaio discute o suicídio feminino a partir das relações de gênero que circunscrevem esse evento. Num viés histórico, confrontamos os suicídios femininos da Antiguidade Clássica e os atuais. Uma proposta interdisciplinar, unindo duas pesquisas de áreas aparentemente distintas - uma ligada às questões de gênero e a permanência de traços culturais da Antiguidade na sociedade atual, e outra sobre a essência transgressora do suicídio na atualidade. Dentro dessas duas linhas, o recorte estabelecido é a semelhança existente entre as mulheres da Antiguidade Clássica, retratadas nas tragédias, e as mulheres contemporâneas na concepção de suas mortes voluntárias.

Palavras-chave:
Suicídio; Gênero; Sexualidade

Abstract

This essay discusses the female suicide from gender relations that circumscribe this event. In a historical bias confront female suicides of classical antiquity and the present. The purpose of this essay is multidisciplinary and proposes join two apparently distinct areas of research: one linked to gender issues and the permanence of cultural traits of antiquity in modern society and another on the transgressive essence of suicide today. This essay points to the similarity between the women of classical antiquity, portrayed in the tragedies, and contemporary women in the design of the voluntary deaths.

Key Words:
Suicide; Gender; Sexuality

Nas culturas ocidental e oriental encontramos relações entre problemas de saúde e feminilidade estabelecidas por conexões com pés atados, espartilhos, salto alto, desordens alimentares, argolas no pescoço, entre outras. Ousamos outra articulação entre a feminilidade e o sofrimento: o suicídio. A proposta deste ensaio é fazer algumas reflexões a respeito do suicídio e de como as mulheres engendram suas mortes voluntárias, pois acreditamos que a feminilidade enseja nuances na elaboração do ato suicida.

Em pesquisa anterior analisamos como o suicídio pode ser uma forma de comunicação e através das cenas, cenários e espectadores, esse evento conforma um espetáculo que redimensiona os lugares e os espectadores que o cercam. (Marquetti, 2012Marquetti, Fernanda. O suicídio como espetáculo na metrópole. São Paulo, Editora Fap-Unifesp, 2012.). Tal perspectiva inclui os suicídios femininos que se mostraram revestidos de significações particulares no tocante à questão de gênero. Por outra via, sabe-se que o suicídio feminino na Antiguidade estava revestido de categorias simbólicas e culturais da condição feminina. Para alcançar a meta deste ensaio, o dividimos em dois tempos: um primeiro que aborda o suicídio na Antiguidade Clássica, mais específicamente na Grécia, sendo as informações sobre o suicídio oriundas das tragédias e de alguns mitos. Em um segundo tempo, se estabelecerá um paradigma entre o suicídio na Antiguidade e as mulheres suicidas da atualidade, e uma reflexão sobre esse evento a partir da distinção de gêneros.

Os suicídios na Grécia Antiga

O tema do suicídio é pouco explorado entre os pesquisadores da Antiguidade, uma rara exceção encontra-se em Maneiras trágicas de matar uma mulher (Loraux, 1985Loraux, Nicole. Maneiras trágicas de matar uma mulher. Imaginário da Grécia Antiga. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 1985. [Tradução Mario da Gama Kury]). Neste levantamento, o tema central não é exatamente o suicídio, mas a morte de mulheres e, eventualmente, alguns homens nas tragédias clássicas. Para compor as reflexões sobre o suicídio na Antiguidade tomaremos, portanto, essa autora como base, além dos mitos gregos sobre os heróis e as heroínas, quer tenham sido eles retratados nas tragédias do século V a.C. ou não.

A primeira distinção que se deve fazer quando falamos de suicídios é pensar esse evento entre dois mundos muito diferentes, o masculino e o feminino. O universo masculino, do aristocrata e do cidadão grego, contempla normas de conduta muito diferentes das prescritas para o feminino e isso se manifesta em suas mortes, suicidas ou não. O homem grego1 1 Abordaremos aqui o homem grego em sua acepção mais ampla, sem restringir, a princípio, a cultura de sua região. Lembrando que Cidades Estado como Atenas e Esparta, só para citarmos as mais conhecidas, possuem culturas muito distintas; o mesmo ocorre quando tratamos de épocas, períodos bastante diferentes, por exemplo, o período Arcaico grego e o Clássico. Á medida que se fizer necessária a distinção entre esses períodos e regiões, indicaremos no texto. vive a maior parte do tempo fora de sua casa, seu espaço é a ágora, centro político, religioso e social da cidade, o ginásio, onde se exercita, ou o campo de batalha. O homem grego é um ser externo, vive ao ar livre e, consequentemente, morrerá ou se suicidará em espaço aberto (Jeanmaire, 1970Jeanmaire, Henri. Couroi et Courètes. Essai sur l’éducation spartiate et sur les rites d'adolescence dans l'antiquité hellénique. Lille, L’ Observateur, 1970.).

A mulher grega2 2 Consideraremos como mulher grega, as filhas e esposas legítimas, mães dos cidadãos e/ou aristocratas/guerreiros. Estão excluídas desse grupo, as escravas, as prostitutas, as estrangeiras de uma forma geral, pois as mortes que serão retratadas em mitos, tragédias e estudos, são as daquelas, com exceção de algumas rainhas de tragédias e personagens míticas, como Medéia e Fedra, estrangeiras. , em oposição ao homem, vive confinada, seu espaço é o interior da casa, raras vezes lhe é permitido sair à rua, todo trabalho externo é feito pelos escravos. À mulher grega é vetado inclusive o contato com hóspedes e visitas da casa. Os banquetes, oferecidos pelos maridos aos convivas, são servidos por escravas e podem contar com dançarinas e prostitutas, mas jamais a esposa e as filhas legítimas estarão presentes, mesmo as rainhas e princesas. Raras são as ocasiões em que as mulheres deixam o interior de suas casas: no casamento, quando ela é levada, em cortejo nupcial, do interior da casa paterna para a casa do marido; em determinadas festas religiosas como as Tesmofórias, celebradas em honra da deusa Deméter e voltada apenas às mulheres legítimas; as Dionisíacas, festival de teatro em honra de Dioniso, celebradas no teatro; e em alguns cortejos fúnebres. As mulheres espartanas, diferentemente das atenienses, gozavam de maior liberdade, exercitavam-se ao ar livre; as esposas legítimas possuíam direito à voz e eram as responsáveis pela casa na ausência dos maridos, mas pouco se sabe delas quando se trata de suicídio (Jeanmaire, 1970Jeanmaire, Henri. Couroi et Courètes. Essai sur l’éducation spartiate et sur les rites d'adolescence dans l'antiquité hellénique. Lille, L’ Observateur, 1970.).

O espaço de morte da mulher, sobretudo a esposa, é geralmente o interior da casa, mais específicamente o tálamo, o quarto conjugal. E se o espaço é diferente, os motivos, a forma como homens e mulheres se suicidam na Antiguidade também o são.

Em razão do menor número de suicídios entre os homens gregos, iniciaremos por eles. Aqui já se apresenta um dado significativo: raros são os suicídios retratados em mitos e tragédias envolvendo homens.

O suicídio não é uma morte gloriosa, seja praticado por guerreiros ou mulheres. O suicídio é considerado o cúmulo da ignomínia, tal qual o assassinato dos pais, por esse motivo, a cidade inflige ao suicida, por sua “falta absoluta de virilidade”, a sanção institucional de uma sepultura tão solitária quanto esquecida, à margem da cidade e no anonimato (Lourax, 1985Loraux, Nicole. Maneiras trágicas de matar uma mulher. Imaginário da Grécia Antiga. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 1985. [Tradução Mario da Gama Kury]:30).

O homem grego, geralmente guerreiro, tem como ideal de morte o campo de batalha e em idade jovem, pois só assim, indo de encontro à sua morte, corajosamente, ele a ultrapassará e poderá ser lembrado por seus feitos guerreiros e por sua beleza; o que leva a sociedade grega da Antiguidade a ver o suicídio como uma forma de morte feminina. Os poucos guerreiros que se suicidaram nos mitos gregos, fizeram-no em condições muito singulares, geralmente marcados pela desonra. A forma da morte, a escolha de como levar seu intento até o final também é característico do universo guerreiro. Geralmente os homens morrem pela espada.

Entre os guerreiros que cometeram suicídio estão Ájax, filho de Télamon, rei de Salamina; Hêmon e Meneceu, filhos de Creonte, rei de Tebas; Egeu, rei de Atenas e pai de Teseu; Héracles, filho de Zeus com uma mortal, Alcmena, portanto, um semideus.3 3 Todos esses suicídios masculinos são do período Arcaico grego, anterior ao período das Cidades Estado, mas mesmo no período clássico o ideal masculino se pauta nos valores difundidos pelas epopeias de Homero e cujas narrativas serviram de base para as tragédias. Os motivos, de certa forma, justificam as maneiras escolhidas por esses heróis para suicidarem-se (Grimal, 2000Grimal, Pierre. Dicionário da Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2000. [Tradução: Victor Jabouille]).

Ájax, o mais emblemático herói aqui listado, põe fim à sua vida após um acesso de loucura e cólera inspirado pelos deuses. Herói renomado na guerra de Tróia, ele é o segundo, após Aquiles, em força e coragem; descrito como de alta estatura, belo, calmo e senhor de si, pouco falador, benevolente, temente aos deuses, é tido como mais sério que Aquiles, pois não é voltado às artes. Ájax pode ser considerado um guerreiro um pouco rude para as normas da Ilíada (Homere, 1967bHomere. L'Odyssée. Paris, Les Belles Lettres, 1967b. [Tradução P. Mazon]).

O suicídio de Ájax ocorre após o fim da guerra de Tróia, quando ele se desentende com os chefes Aqueus da expedição, Menelau e Agamenon, e com Ulisses, rei de Ítaca. O motivo da loucura e do suicídio de Ájax estaria na negação dos guerreiros gregos em lhe render a justa homenagem pelos feitos na guerra, a sua porção de glória (Kléos).

Há duas versões, uma na qual o motivo era terem-lhe recusado o Paládio (estátua de madeira da deusa Atena, guardada em Tróia) como parte do despojo de guerra; outra, mais ligada aos trágicos, foi terem-lhe recusado as armas de Aquiles. A deusa Tétis, mãe de Aquiles, teria destinado as armas do filho morto ao mais valente dos gregos, ou ao que tivesse inspirado maior terror aos troianos. Os chefes Aqueus interrogam os prisioneiros troianos para saberem a quem devem dar as armas, e os prisioneiros, por despeito, designam Ulisses e não Ájax, que as merecia. Durante a noite, a deusa Atena, que lhe era hostil, leva-o a um acesso de loucura. Enfurecido, Ájax massacra o rebanho destinado à alimentação dos gregos, julgando serem os próprios guerreiros Aqueus; pela manhã, quando volta à lucidez e se dá conta da alucinação em que caíra, suicida-se com sua espada, ferindo-se no flanco. O herói joga-se sobre a espada, que antes de lhe pertencer, foi de Heitor, seu inimigo e maior guerreiro troiano (Sófocles, 1958Sófocles. Ajax, O edipe Roi, Electre. Paris, Les Belles Lettres, 1958.).

De certa forma, seu suicídio aproxima-se da morte em guerra, ele tomba como guerreiro às mãos do inimigo. Por outra via observa-se que seu suicídio foi desencadeado por uma mulher e associado à loucura. A loucura entre os gregos não é uma patologia, ela está ligada a alguma intervenção ou manifestação divina, uma possessão do deus sobre o mortal, como no caso de Dioniso e Pã, ou é fruto do influxo/sopro divino, como no caso de Atena e Ájax.

O cenário da morte de Ájax é o acampamento de guerra, seu instrumento a espada, seu motivo a desonra. Estabelecendo um paradigma viril para o suicídio e que confere ao homem o direito de morrer em público, Ájax suicida-se diante de espectadores, todos os guerreiros gregos. Ájax é o único guerreiro, dessa estatura, a cometer suicídio, os demais não possuem o seu renome ou as circunstâncias de sua morte podem ser dúbias. Portanto, vamos tomar o suicídio de Ájax como paradigma do suicídio masculino na Antiguidade Clássica.

O suicídio entre as mulheres na Antiguidade

Se a morte de homens por suicídio é rara, entre as mulheres parece ser a única saída possível. Há várias heroínas míticas e/ou trágicas que se lançam no vazio para escapar ao sofrimento. “De maneira geral, a morte pela espada, é uma morte ‘pura’ (viril) em contraste com o enforcamento” (Loraux, 1985Loraux, Nicole. Maneiras trágicas de matar uma mulher. Imaginário da Grécia Antiga. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 1985. [Tradução Mario da Gama Kury]:37). Muitas mulheres se suicidam nas tragédias e nos mitos gregos enforcando-se, mas há algumas que preferem a morte viril, pela espada, mas mesmo nessas o ferimento, ao contrário do visto para o masculino, é no pescoço, elas degolam-se ou, mais exatamente, se oferecem para a degola.

Outro ponto importante nos suicídios femininos é a escolha do local, da cena. As mulheres, em sua maioria, morrem no quarto conjugal, o tálamo, a parte mais recôndita da casa, o local da procriação. Atadas a nós e laços feitos de seus ricos mantos, elas se prendem à viga da cumeeira, que designa metonimicamente o palácio em sua dimensão vertical e que equivale, simbolicamente, ao marido. A cumeeira da casa grega localiza-se no quarto conjugal e, mais exatamente, o leito conjugal posiciona-se junto a ela; na Odisseia, o leito de Ulisses e Penélope é entalhado no tronco do gigantesco carvalho que serve de suporte para o teto do palácio (Homere, 1967aHomere. Iliade. Paris, Les Belles Lettres, 1967a. [Tradução P. Mazon]).

As mulheres gregas, sobretudo as atenienses, não possuem liberdade, estão confinadas aos seus lares, sejam palácios ou casas comuns. Elas vivem no silêncio e no isolamento do gineceu, área reservada a elas. Suas atribuições no lar são o gerar e o cuidar dos filhos, a fiação dos tecidos e a supervisão dos escravos, sendo, de certa forma, elas também escravas, pois pertencem aos seus pais e maridos, mesmo quando são denominadas de rainhas.

Sempre suficientemente livres para matar-se, elas [as heroínas trágicas] não o são para escapar a seu enraizamento espacial: o retiro recôndito onde elas se matam é também símbolo de sua vida, vida que tira seu sentido fora de si, que só se realiza nas instituições - casamento, maternidade - que ligam as mulheres ao mundo e à vida dos homens (Lourax, 1985Loraux, Nicole. Maneiras trágicas de matar uma mulher. Imaginário da Grécia Antiga. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 1985. [Tradução Mario da Gama Kury]:51).

Morrem pelo laço (enforcamento) Jocasta, esposa e mãe de Edipo; Fedra, esposa de Teseu; Euridice, esposa de Creonte e mãe de Hémon e Meneceu; Dejanira, esposa de Héracles; Leda, mãe de Helena e Cliteminestra; e muitas outras. Todas elas se trancam, a sós, sem que ninguém as veja, sem espectadores, no tálamo, para enforcarem-se. Os maridos geralmente têm que derrubar as portas, “fortemente trancadas”, para encontrá-las mortas, suspensas em seus véus à viga mestra do palácio. O suicídio/enforcamento é considerado uma morte desprovida de coragem, reprovada pela moral e tida como uma solução de mulher para os problemas sem saída, entre os gregos do período clássico. O enforcamento é visto, entre os gregos, como uma morte hedionda, informe, mácula máxima que uma pessoa se inflige sob o golpe da vergonha. Nicole Loraux vê nele a expressão da feminilidade:

[…] pois as mulheres sabem que a corda pode ser substituída pelo véu, pelos adornos com que se cobrem e que são emblemas de seu sexo. Véus, cintos, faixas: esses instrumentos de sedução constituem virtualmente armadilhas de morte para as que os usam (Lourax,1985Loraux, Nicole. Maneiras trágicas de matar uma mulher. Imaginário da Grécia Antiga. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 1985. [Tradução Mario da Gama Kury]:31).

O véu, assim como a rede, está associado à astúcia feminina, e equiparado à sua fala - envolve, enreda. Ás mulheres cabe tecer ardis e apertar nós; enquanto aos homens é reservado, desde tempos imemoriais, tudo o que corta e dilacera, o que derrama sangue.

É necessário estabelecer aqui um paralelo entre as esposas/mães e as virgens. Nas tragédias e mitos, a morte por enforcamento cabe, geralmente, às esposas e mães, já a morte pela degola, com derramamento de sangue, é reservada às virgens. Não vamos nos ater às virgens de forma mais alongada, pois ao contrário das esposas, elas não se suicidam propriamente, elas se deixam matar, se oferecem em sacrifício e suas mortes não são suicídios, como nós o entendemos hoje, são sacrifícios.

De qualquer forma, a morte feminina vem pelo pescoço, quer seja pelo laço quer pela degola. O pescoço (dere) visto pela parte da frente, da garganta, é o ponto forte da beleza das mulheres, além de ser o ponto de sua maior fragilidade; o sopro da vida se localiza nele. Após ser cortada, a garganta (dere) dá lugar a outro vocábulo, laimos, goela, “pois uma vez cortada a bela superfície do pescoço, a morte se introduz no interior do corpo” (Lourax,1985Loraux, Nicole. Maneiras trágicas de matar uma mulher. Imaginário da Grécia Antiga. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 1985. [Tradução Mario da Gama Kury]:93-95).

Assassínio, suicídio ou sacrifício, as mulheres, aparentemente, devem morrer pela garganta e somente por ela. Identicamente, a única maneira de encenar o suicídio feminino é por meio de uma representação minuciosa, solitária, escondida do olhar, no interior do tálamo.

Nossa cultura herdou muitos traços da Antiguidade e uma parte expressiva desses traços é considerada hoje como natural, ou seja, acredita-se que eles não foram construídos pela cultura/sociedade, mas que são inerentes à vida de homens e mulheres desde a origem; um desses traços representado como natural é a associação do feminino com a sedução, a beleza, a delicadeza e o lar/família. É ainda inconcebível, para grande parte da nossa sociedade, pensar a identidade feminina desvinculada de sua ligação com o masculino, ou seja, sem estar atrelada às funções de mãe, esposa, amante. Tal qual na Antiguidade Clássica, o feminino ainda é visto e representado pela nossa sociedade como um objeto belo que deve ser possuído e cuidado pelo masculino, sem direito a voz, ou desejo diverso do estipulado para todo o seu gênero: gerar e cuidar dos filhos e da casa. O assombro causado pelas mulheres da Antiguidade que se rebelaram matando seus maridos, fugindo, suicidando-se ou deixando-se matar para escapar à sua sina, ainda é sentido nos dias atuais, pois qual mulher não seria feliz tendo um marido, uma casa e filhos? O que mais ela poderia almejar? É ainda inconcebível para grande parte da população que mulheres vivam sua sexualidade livremente. O direito de viver, morrer ou sofrer em público, de expor sua sexualidade, sua dor, sua satisfação ou insatisfação foi e é negado às mulheres. Herança perversa que se luta para mudar, mas que ainda resiste.4 4 Embora o foco aqui seja o feminino, é relevante observar que o masculino também sofre com as coerções herdadas.

O suicídio feminino na atualidade: Jocasta do quarto para a sala!

Na atualidade, o suicídio se tomou uma questão de desrazão, loucura e, portanto, um tema médico. O referencial técnico-científico mais reconhecido sobre o suicídio na atualidade é da ordem da biomedicina e nessa perspectiva coube ao suicídio feminino uma designação de morte voluntária que não deseja se realizar. Ou seja, a biomedicina baseada em dados da epidemiologia informa que o coeficiente de óbito por suicídio em homens é muito superior se comparado às mulheres.

Segundo dados da OMS, as taxas específicas de mortalidade por suicídio no Brasil, em 2008, eram de 7,7 óbitos/100 mil homens para o sexo masculino e 2,0 óbitos/100 mil mulheres para o sexo feminino […] (Brasil, 2010Brasil, Secretaria de Vigilância em Saúde/Ministério da Saúde. Mortalidade do adulto no Brasil: taxas de mortalidade segundo o sexo, as causas e as regiões, 2010. Saúde Brasil 2011 : uma análise da situação de saúde e a vigilância da saúde da mulher. [http://portalsaude.saude.gov.br/portalsaude - acessado em: 22 nov.14].
http://portalsaude.saude.gov.br/portalsa...
:204).

Ao mesmo tempo que as tentativas de suicídio nas mulheres é expressivamente maior se comparada aos homens.

Entre os fatores sociodemográficos e clínicos associados à ideação e as tentativas de suicídio, estudos internacionais destacam, de modo geral: o gênero feminino […] (Botega, 2009Botega, Neury et al. Prevalências de ideação, plano e tentativa de suicídio: um inquérito de base populacional em Campinas, São Paulo. Cadernos de Saúde Pública, vol. 25, n° 12, Rio de Janeiro, 2009, pp.2632-2638.:236).

Dessa forma, uma das conclusões desse referencial teórico é que as mulheres não desejam se matar com a mesma frequência e intensidade, se comparadas aos homens, mas em contrapartida tentam o suicídio mais vezes. Algumas explicações são formuladas pela psicologia e pela psiquiatria: desejo de chamar a atenção para si, traços histéricos, variações hormonais, volatilidade de conduta, impulsividade, emotividade excessiva, falta de racionalidade e pragmatismo, enfim, feminilidades. Entretanto, podemos lançar outras explicações para esses dados epidemiológicos, atravessando questões culturais e de gênero.

Quando comparamos a questão do suicídio na atualidade, com as referências a ele na Antiguidade Clássica, alguns pontos devem ser destacados. Em primeiro lugar, há uma inversão de valores do suicídio na Antiguidade Clássica e na atualidade. Na Antiguidade, o suicídio era motivo de desonra e ocorria em menor número entre os homens, sendo caracterizado como um tipo de morte feminina. Atualmente, o suicídio é qualificado como morte de perfil masculino e, apesar de todo tabu que envolve esse tipo de morte, não é mais uma desonra como na Antiguidade. Muitas vezes, é revestido, culturalmente, como ato de coragem. A transformação de valor do ato suicida conforme seus arrolamentos com o gênero merece análise histórica complexa, mas torna-se evidente que há um mote cultural que atravessa a temática do suicidio conforme o evento acompanha o género masculino ou feminino.

A reserva feita às mulheres suicidas na atualidade é que elas não conseguem atingir o desfecho desse ato e permanecem, prioritariamente, apenas com as tentativas e ideações de suicidio. As explicações biomédicas não poderiam esclarecer essa transformação conceituai sobre o evento suicida.

Entretanto, em relação às cenas/cenários e instrumentos, os suicídios masculinos e femininos observam o mesmo padrão, seja na Antiguidade ou na atualidade. Tal como Ájax, os homens na atualidade se suicidam de forma mais violenta e viril, predominantemente com métodos agressivos.

Segundo Barrero:

[…] habitualmente [os homens] usam os chamados métodos duros para se suicidarem e, além disso, são os que mais cometem suicídio (Barrero, 2013:1).

Quanto às cenas/cenários dos suicídios masculinos, são de visibilidade maior, seja em locais públicos ou privados. Devido a maior visibilidade das cenas suicidas masculinas, algumas vezes, os espectadores desses eventos são sujeitos de fora do núcleo familiar.

Quanto às mulheres suicidas, na Antiguidade se matavam no quarto ou em área privada da casa, trancadas, escondidas, e o método mais utilizado era o enforcamento. As mulheres suicidas da atualidade mantêm essa característica. Os métodos femininos de suicídio são menos violentos, não destroem o corpo, e o cenário é mais recluso, com espectadores geralmente da família. Talvez aqui esteja um dos motivos que levam as mulheres ao “fracasso” na tentativa de suicídio, a preservação do corpo na morte.

O discurso biomédico oferece outras explicações associadas ao gênero para as tentativas de suicídios femininos não consumados, como vimos anteriormente. No entanto, quando o suicídio feminino se concretiza, o argumento utilizado é:

O suicídio acidental, ao invés, é mais frequente nas mulheres, que podem utilizar métodos cuja letalidade desconhecem ou não calculam as complicações que poderão surgir (Barrero, 2013:2).

Em experiências de pesquisas e atividades terapêuticas contemporâneas, vimos algumas dessas cenas suicidas femininas que, se comparadas às tragédias gregas, mostram os mesmos vigores e tenacidade na comunicação do feminino e seu silêncio e invisibilidade. As cenas suicidas femininas se colocam em distinção devido à ornamentação, a sutilezas, detalhes e mensagens, concomitantemente, delicadas e violentas (Marquetti, 2012Marquetti, Fernanda. O suicídio como espetáculo na metrópole. São Paulo, Editora Fap-Unifesp, 2012.).

Discutiremos três cenas suicidas de mulheres, dentre muitas outras, sua forma de comunicar a feminilidade e suas egressões da vida e, principalmente, os estereótipos do feminino. Elegemos essas cenas, pois as consideramos emblemáticas do universo feminino. Ou seja, essas cenas foram eleitas para caracterizar a representação do suicídio feminino e as incoerências desse perfil com o discurso epidemiológico e biomédico hegemónico. Elas aconteceram em diferentes períodos, localidades, classes sociais e profissões. Nossa finalidade é ressaltar a condição feminina contemporânea e sua expressão nas cenas suicidas. Contextualizaremos, brevemente, cada cena antes de sua apresentação e o universo mais amplo da qual ela foi selecionada.5 5 Os nomes citados são fictícios para preservar a privacidade das mulheres e os critérios éticos foram respeitados nas atividades de pesquisa ou terapêuticas. As pesquisas foram conduzidas dentro dos padrões exigidos pelo Conselho Nacional de Ética em Pesquisa.

Cena 1: Iracema, residente em uma de casa de classe média, no bairro do Butantã, na cidade de São Paulo/SP/BR, no ano de 1992, à época com 25 anos. Eia era dona de casa, morava com o marido e suas filhas, gostava de morar onde estava e o marido era bom para eia. A entrevista foi dada por sua sogra. Eia suicidou-se em casa, enforcando-se com o cordão do roupão no lustre da sala, em um domingo pela manhã, enquanto as filhas dormiam e o marido fazia feira. Ela foi encontrada pela filha de oito anos. Ninguém soube explicar os motivos de seu suicídio, mas havia referências de que ela era nervosa e fazia tratamento (Marquetti, 1992Marquetti, Fernanda. Diário de campo: pesquisa suicídio no Distrito Butantã. São Paulo, Faculdade de Saúde Pública Universidade de São Paulo, 1992. Inédito, material de acesso restrito., s/p.).6 6 O acesso a essa cena suicida deu-se através de pesquisa exploratória no distrito de saúde do Butantã, em 1992, para preparação do campo de pesquisa de mestrado, cujo objetivo principal foi entrevistar familiares de suicidas.

Na cena de suicídio de Iracema, dia, hora e local foram verdadeiros adjetivos da mensagem. A sua sogra relatou o episódio com espanto e não conseguia elaborar explicações para sua forma de morte. Ela, inclusive, reforçava em sua fala a satisfação de Iracema com a vida em família. Entretanto, a cena suicida apontou outra perspectiva. O evento suicida combina elementos que direcionam a cena para a família, ou seja, o lustre da sala em sua casa e o domingo pela manhã, mostrando o desejo de que seus espectadores póstumos fossem o marido e as filhas. Essa cena revela dúvidas sobre sua satisfação com a vida familiar e de esposa. O caráter de transgressão de seu suicídio torna-se evidente, pois ela rompe com o imaginário de lar, território fundamental da vida em família. O uso do lustre, na sala de visitas, espaço social por excelência, marca a intenção de ruptura da máscara social e familiar a ela atribuída - mãe de família feliz; a escolha do domingo de manhã, dia reservado ao descanso/vida em família, corrobora sua insatisfação com a vida familiar e íntima; fato reforçado pelo uso do cordão do roupão, vestuário destinado ao uso íntimo e não social, além de estar ligado a uma ação de embelezamento, o banho.

Iracema, como Jocasta, morre no interior do lar, ainda atada ao eixo masculino que norteou sua vida/morte, mas diversamente desta última, Iracema busca em seu suicidio urna exteriorização maior. De alguma forma, ela tenta alcançar o público externo, os estranhos, não só o familiar. A escolha da sala de visitas para realizar seu ato é altamente contrastante com a escolha das antigas mulheres gregas. Ela traz “para a rua” sua insatisfação, que até ali havia sido encoberta pelo véu da família feliz. Apesar da similaridade com as cenas suicidas femininas da Antiguidade, nesse caso, a direção da agressividade da sua cena, bem como seus alvos, revela um corte radical no padrão de morte ocidental e no padrão feminino de mulher e esposa feliz. Verdadeira ruptura com o desejo contemporâneo de mortes sutis, discretas, delicadas, distanciadas e sem elementos de dramaticidade. O fato de Iracema desnudar-se em seu suicídio revela a necessidade de expor, a partir do próprio corpo, as angústias vividas por ela. O feminino, ao contrário do masculino, é definido a partir de seu corpo nu (Marquetti, 2013Marquetti, Flávia R. Da sedução e outros perigos. O mito da Deusa Mãe. São Paulo, Editora Unesp, 2013.). Em decorrência dessa prerrogativa sociocultural, a cena montada por Iracema é um grito de rebeldia e recusa dos papéis sociais imputados a ela.

Cena 2: Ana, residente em um apartamento de classe média no centro velho da cidade de São Paulo, no ano de 1995, à época com 32 anos. Segundo seu marido, que foi o informante, no dia do suicídio Ana estava muito nervosa com um vazamento de água no apartamento e, inclusive, ela tentou agredir fisicamente uma vizinha que julgava responsável pelo vazamento. O marido impediu a briga entre as duas, fato que a deixou ainda mais nervosa, então, ela começou a quebrar tudo na casa. Quebrou a TV, a geladeira, o liquidificador, os móveis; o marido tentou segurá-la e proteger os objetos. Em meio a esta situação, ele se virou por um momento, para colocar o liquidificador no lugar, e quando se voltou viu apenas os pés de Ana saindo pela janela do apartamento. […] Ela se atirou durante o dia e houve muita movimentação no local, pois a polícia interditou parte da movimentada rua. Todos os moradores do prédio souberam do evento e alguns observaram a cena. Os espectadores desta cena suicida foram muitos: moradores, familiares, pessoas que circulavam de carro, trabalhadores do comércio local, transeuntes, o zelador do prédio etc. (Marquetti, 2012Marquetti, Fernanda. O suicídio como espetáculo na metrópole. São Paulo, Editora Fap-Unifesp, 2012.:125).7 7 O acesso a essa cena suicida se deu através da pesquisa de mestrado “O suicídio como espetáculo na metrópole” (Fernanda Marquetti, 1995) realizada na cidade de São Paulo/SP.

Essa cena suicida teve como peculiaridade o discurso pronunciado por Ana para seu marido enquanto se desenrolava a cena. Ele relatou que enquanto Ana atirava os objetos e eletrodomésticos pela janela, dizia: “Estou jogando fora tudo que não presta nesta casa”. Segundo seu marido, em poucos segundos, ela atirou pela janela vários objetos e, finalmente, atirou seu próprio corpo. O marido, por sua vez, relatou seu desespero para impedir as tentativas de Ana de jogar os eletrodomésticos e destruir a casa. Porém, em momento algum, ele referiu preocupação com a própria esposa no momento do ato. A dramaticidade dessa cena suicida se revela por meio de dois aspectos principais. Em primeiro lugar, a relação do masculino com a figura da mulher, e seu imaginário sobre o feminino: desejo de chamar a atenção para si, traços histéricos, impulsividade, emotividade excessiva. Nesse caso, o marido de Ana desde o início da cena desvaloriza os motivos de sua irritação e insatisfação: o estrago de seu lar pelo vazamento. E, publicamente, desautoriza sua mulher na desavença com a vizinha. Quando a cena continua no apartamento, ele privilegia o cuidado para com os objetos em detrimento de sua mulher. Outro elemento pungente nesse caso está no discurso de Ana durante a cena, pois ela joga fora seu corpo, um dos objetos sem utilidade na casa. Observamos nessa situação a retomada de um ponto bastante comum, a equiparação do corpo feminino com os objetos domésticos deteriorados, bem como com o lar arruinado. A destruição do corpo/objeto apresenta-se como signo do sentimento de fracasso enquanto mulher, incapaz de manter o lar à vista da sociedade, o vazamento assume contornos simbólicos para Ana - a exteriorização da ruína do lar e de sua infelicidade feminina/conjugal, de sua inepcia em assumir o único papel social que lhe caberia, o de esposa.

Contrariando, as expectativas epidemiológicas e o discurso biomédico sobre as mulheres suicidas da atualidade, Ana apresenta um estilo agressivo e destrói seu corpo em sua cena de morte nada reclusa.

Cena 3: Luci, 32 anos, mora com o marido e o filho de sete anos em São Paulo/SP, ano de 2014, têm uma filha de 12 anos que mora com os avós. Luci estava no pronto socorro onde foi internada por tentativa de suicídio. Ela relatou que já tentou suicídio cinco vezes, a primeira vez foi a cinco anos, enforcando-se com um cinto, outra vez ingeriu uma carteia e meia de remédios (permaneceu oito dias internada num hospital), nesta última tentativa, ela tentou se jogar de um viaduto, mas foi impedida pelos bombeiros. Ela nos contou ser homossexual, porém ela não aceita esta situação. Em sua família, que é evangélica, apenas suas irmãs sabem de sua relação com mulheres, mas nem mesmo estas admitem sua homossexualidade. Atualmente ela trabalha como confeiteira e afirma estar casada com o marido (pedreiro) somente em decorrência da impossibilidade económica de viver sozinha. Ela afirmou sentir apenas desprezo por ele. Luci chorava, estava cabisbaixa, angustiada, falava em tom muito baixo e tinha movimentos de autoagressão no sentido do rosto e das mãos. Ela afirmou que o motivo de suas tentativas de suicídio é sua homossexualidade, pois não consegue assumir esta posição na vida e não suporta mais conviver com o marido. O desencadeante desta última tentativa de suicídio foi o rompimento amoroso com uma mulher (sua vizinha) com a qual mantinha um relacionamento extraconjugal. Ressaltamos que ela nunca havia se submetido a tratamento psiquiátrico ou psicológico, portanto, sem diagnóstico médico-psiquiátrico (Marquetti, 2014Marquetti, Fernanda. Relatório de atendimento terapêutico. São Paulo, Unifesp, 2014. Inédito, material de acesso restrito., s/p.).8 8 O acesso ao relato dessa tentativa de suicídio se deu através do projeto de extensão realizado junto a sujeitos com tentativa de suicídio no HSP/Unifesp/SP.

Nesse caso, com reiteradas tentativas de suicídio, observamos que o motivo declarado para as tentativas eram questões pertinentes à sexualidade feminina e suas restrições culturais, familiares e religiosas. Entretanto, apesar da evidente motivação do ato, no dia seguinte a esse episódio soubemos no pronto socorro que Luci havia sido internada num hospital psiquiátrico. Dessa forma, uma questão de gênero, subitamente foi confiscada pelo discurso biomédico e se transformou num transtorno psiquiátrico. Apesar da ausência de sintomas que justificassem sua internação (a justificativa de sua internação foi falta de vagas no PS), Luci, necessariamente, recebeu um diagnóstico psiquiátrico para ingressar no hospital. Nesse processo surpreendentemente veloz, testemunhamos uma mulher homossexual com tentativas de suicídio entrar num caminho sem volta na “carreira de doente mental” (Goffman, 2005Goffman, Erving. Manicômios, prisões e conventos. Rio de Janeiro, Ed. Perspectiva, 2005.). A partir desse ponto de ruptura na vida de Luci, ela será designada oficialmente, pela ciência médica, como uma mulher louca. Nesse lamentável episódio observamos dois influentes tabus da sociedade ocidental alterar o destino dessa mulher: o tabu da morte, insultado pela tentativa de suicídio, e o tabu da sexualidade, afrontado por uma sexualidade diversa da permitida; tornando-a transgressora e louca, a um só tempo.

O suicídio feminino e sua essência transgressora

No padrão de morte ocidental (Ariès, 1989Ariès, Philippe. História da morte no Ocidente. Lisboa, Editora Teorema, 1989.), temos o evento da morte como algo discreto, privado, íntimo, hospitalar, higienizado e controlado tecnicamente. O suicídio em si é uma forma de transgressão ao tabu da morte, pois desorganiza e rompe todo aparato que envolve a morte em nossa sociedade. O suicídio feminino marca uma dupla transgressão: à morte domesticada da modernidade (Àries, 1989Ariès, Philippe. História da morte no Ocidente. Lisboa, Editora Teorema, 1989.) e ao padrão de feminilidade.

Retomemos os adjetivos dados às mulheres suicidas pela biomedicina: desejo de chamar a atenção para si, traços histéricos, variações hormonais, volatilidade de conduta, impulsividade, emotividade excessiva, falta de racionalidade e pragmatismo. Contestamos essa perspectiva, considerando que o suicídio é a única forma de morte contemporânea que expõe sua subjetividade ao mundo e, no caso feminino, talvez, seja uma das poucas possibilidades de fuga, como ocorria na Antiguidade.

Entre as conjecturas possíveis temos: a de que as mulheres escolhem morrer revelando os elos que as prendem na sociedade, antes véus e agora cordas; a de a ineficácia do ato suicida feminino, apontada pela biomedicina, pode ser pela menor liberdade dada às mulheres para estabelecerem os meios e locais, pois mesmo atualmente, as armas e outros instrumentos ainda são de acesso mais facilitado ao gênero masculino; e ainda, a de que a preservação do corpo na morte, pelo uso de métodos menos destrutivos, pode ser apontada como um dos motivos do suposto fracasso ao morrer das mulheres suicidas.

Ainda há muito a ser dito sobre o suicídio feminino na perspectiva cultural. Neste ensaio apenas iniciamos outro viés de argumentação. Contrariando a perspectiva de suicídio acidental (ou seja, as mulheres não desejam de fato se matar e morrem apenas quando não calculam os efeitos de seu ato), acreditamos no desejo suicida feminino. E, talvez, sejam as condições culturais e as restrições em suas relações sociais que circunscrevam os limites dos suicídios femininos.

  • 1
    Abordaremos aqui o homem grego em sua acepção mais ampla, sem restringir, a princípio, a cultura de sua região. Lembrando que Cidades Estado como Atenas e Esparta, só para citarmos as mais conhecidas, possuem culturas muito distintas; o mesmo ocorre quando tratamos de épocas, períodos bastante diferentes, por exemplo, o período Arcaico grego e o Clássico. Á medida que se fizer necessária a distinção entre esses períodos e regiões, indicaremos no texto.
  • 2
    Consideraremos como mulher grega, as filhas e esposas legítimas, mães dos cidadãos e/ou aristocratas/guerreiros. Estão excluídas desse grupo, as escravas, as prostitutas, as estrangeiras de uma forma geral, pois as mortes que serão retratadas em mitos, tragédias e estudos, são as daquelas, com exceção de algumas rainhas de tragédias e personagens míticas, como Medéia e Fedra, estrangeiras.
  • 3
    Todos esses suicídios masculinos são do período Arcaico grego, anterior ao período das Cidades Estado, mas mesmo no período clássico o ideal masculino se pauta nos valores difundidos pelas epopeias de Homero e cujas narrativas serviram de base para as tragédias.
  • 4
    Embora o foco aqui seja o feminino, é relevante observar que o masculino também sofre com as coerções herdadas.
  • 5
    Os nomes citados são fictícios para preservar a privacidade das mulheres e os critérios éticos foram respeitados nas atividades de pesquisa ou terapêuticas. As pesquisas foram conduzidas dentro dos padrões exigidos pelo Conselho Nacional de Ética em Pesquisa.
  • 6
    O acesso a essa cena suicida deu-se através de pesquisa exploratória no distrito de saúde do Butantã, em 1992, para preparação do campo de pesquisa de mestrado, cujo objetivo principal foi entrevistar familiares de suicidas.
  • 7
    O acesso a essa cena suicida se deu através da pesquisa de mestrado “O suicídio como espetáculo na metrópole” (Fernanda Marquetti, 1995) realizada na cidade de São Paulo/SP.
  • 8
    O acesso ao relato dessa tentativa de suicídio se deu através do projeto de extensão realizado junto a sujeitos com tentativa de suicídio no HSP/Unifesp/SP.

Referências bibliográficas

  • Ariès, Philippe. História da morte no Ocidente Lisboa, Editora Teorema, 1989.
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  • Botega, Neury et al Prevalências de ideação, plano e tentativa de suicídio: um inquérito de base populacional em Campinas, São Paulo. Cadernos de Saúde Pública, vol. 25, n° 12, Rio de Janeiro, 2009, pp.2632-2638.
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  • Homere. Iliade Paris, Les Belles Lettres, 1967a. [Tradução P. Mazon]
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  • Jeanmaire, Henri. Couroi et Courètes. Essai sur l’éducation spartiate et sur les rites d'adolescence dans l'antiquité hellénique Lille, L’ Observateur, 1970.
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  • Marquetti, Fernanda. Diário de campo: pesquisa suicídio no Distrito Butantã São Paulo, Faculdade de Saúde Pública Universidade de São Paulo, 1992. Inédito, material de acesso restrito.
  • Marquetti, Fernanda. O suicídio como espetáculo na metrópole São Paulo, Editora Fap-Unifesp, 2012.
  • Marquetti, Fernanda. Relatório de atendimento terapêutico São Paulo, Unifesp, 2014. Inédito, material de acesso restrito.
  • Marquetti, Flávia R. Da sedução e outros perigos. O mito da Deusa Mãe São Paulo, Editora Unesp, 2013.
  • Sófocles. Ajax, O edipe Roi, Electre Paris, Les Belles Lettres, 1958.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    23 Nov 2013
  • Aceito
    23 Out 2015
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