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A criminalização da “ideologia de gênero”: uma análise do debate sobre diversidade sexual na Câmara dos Deputados em 2015

Resumo

Este artigo aborda o debate sobre diversidade sexual na Câmara dos Deputados em 2015 a partir de levantamento de proposições legislativas e de discursos usando o mecanismo de busca do portal da Câmara. Os resultados principais foram os discursos de denúncia contra a Parada LGBT em São Paulo, em 2015; proposições contrárias a duas resoluções emitidas pela Secretaria de Direitos Humanos acerca do reconhecimento institucional da identidade de gênero; proposições contra a inclusão da dita “ideologia de gênero” no Plano Nacional de Educação. O artigo discute o teor dos debates e a argumentação empregada, além de situar os autores de discursos e proposições, constatando a atuação destacada de parlamentares religiosos.

Ideologia de Gênero; Diversidade Sexual; Câmara dos Deputados; Conservadorismo; Parlamentares Religiosos

Abstract

The present article analyses the debate regarding sexual diversity which took place in the Brazilian Chamber of Deputies in 2015, looking at speeches and bills retrieved through the Chamber of Deputies' web portal. The main results we recovered were: speeches against the LGBT Pride Parade in São Paulo; propositions against two resolutions issued by the Human Rights Secretariat regarding institutional acknowledgement of gender identity; and bills against the inclusion of “gender ideology” in the National Plan of Education. We discuss the content of the debates and the arguments employed in these. We also socially situate the authors of these speeches and bills. Finally, we discuss the fact that the leaders of these debates were congressional representatives with strong religious identities.

Gender Ideology; Sexual Diversity; Chamber of Deputies; Conservatism; Religious Congressional Representatives

Este artigo parte de um levantamento feito no portal da Câmara dos Deputados e pretende analisar os termos do debate sobre diversidade sexual a partir do conteúdo de discursos proferidos em 2015 e das proposições legislativas submetidas nesse ano.1 1 Este trabalho é resultado de projeto de pesquisa sobre aborto e diversidade sexual no contexto do debate sobre direitos humanos no Brasil iniciado em 2015, razão de escolha desse ano para o levantamento.. Trata-se do desdobramento de um projeto sobre o estatuto de fetos e embriões e o debate sobre direitos humanos no Brasil. O estudo integra o projeto de pesquisa “Aborto e diversidade sexual: estatuto do nascituro, homofobia, individualismo e conservadorismo o no debate público sobre direitos humanos no Brasil”, contemplado com auxílio APQ-1 da FAPERJ e com bolsa de produtividade nível 2 do CNPq. Agradeço ao assistente de pesquisa Everton Batista Teixeira, bolsista de iniciação científica FAPERJ pelo levantamento dos dados na Câmara dos Deputados Trata-se de um estudo exploratório sobre o tema que visa elucidar o debate público sobre os direitos humanos no tocante a reivindicações relacionadas à diversidade sexual, identificando seus principais atores e os argumentos usados. Vai se verificar que tipo de argumentação é acionada no debate público: argumentos referentes à ordem da natureza, entranhados em discurso científico ou naturalizante, argumentos da esfera legal e do direito, e argumentação religiosa. O artigo vai examinar que atores têm se posicionado na esfera pública2 2 Segundo Montero (2016:136) “o conceito de esfera pública remete a uma ação que se desenvolve em um espaço social pensado como intermediário entre a intimidade e a esfera estatal”. A discussão sobre religião e esfera pública será mais desenvolvida adiante. , a partir da controvérsia analisada na Câmara dos Deputados. No cenário político brasileiro, aqui representado pela Câmara dos Deputados, “o espaço público constitui-se como lócus no qual ocorrem enfrentamentos entre distintos atores sociais, movidos por interesses e valores conflitantes que expressam disputas e relações de poder” (Gomes; Natividade; Menezes, 2009Gomes, Edlaine; Natividade, Marcelo; Menezes, Rachel Aisengart. Proposições de leis e valores religiosos: controvérsias no espaço público. In: Duarte, Luiz Fernando Dias et alii (org.). Valores religiosos e legislação no Brasil: a tramitação de projetos de lei sobre temas morais controversos. Rio de Janeiro, Garamond, 2009, pp.15- 44.:20), conforme será visto na análise de discursos e de proposições legislativas adiante.

A fim de verificar como a diversidade sexual se tornou objeto de debate na Câmara dos Deputados, o meio foi localizar discursos e proposições sobre o tema. Após acompanhar o debate sobre estatuto do feto e do embrião no contexto do aborto, de reprodução assistida e pesquisas com células-tronco, nesse levantamento do tema da diversidade sexual, a constatação inicial surpreendente foi que o tema envolveu um número maior de discursos e proposições e mobilizou um contingente bem maior de deputados que o problema do aborto.

O levantamento foi realizado no portal da Câmara de Deputados, utilizando palavras-chave na busca de proposições legislativas e na transcrição de discursos dos parlamentares.3 3 Portal da Câmara dos Deputados: http://www2.camara.leg.br/. Projeto de Lei: Espécie de proposição destinada a regular matéria inserida na competência normativa da União e pertinente às atribuições do Congresso Nacional, sujeitando-se, após aprovada, à sanção ou ao veto presidencial. Projeto de Decreto Legislativo: Destina-se a regular as matérias de exclusiva competência do Poder Legislativo, sem a sanção do Presidente da República. Podem tratar de aprovação de atos internacionais; aprovação ou rejeição de concessões ou renovações de concessões para exploração de serviços de radiodifusão; autorização para que o Presidente da República se ausente do País; relações jurídicas decorrentes de perda de eficácia de medida provisória; atos praticados na vigência de medida provisória; indicação de autoridade ao TCU; plebiscito ou referendo; programa monetário e sustação de atos normativos do Poder Executivo. Requerimento: Espécie de proposição por meio da qual o parlamentar requer a adoção de alguma providência. Indicação: Proposição pela qual o parlamentar sugere a manifestação de uma ou mais comissões, ou do Poder Executivo, acerca de determinado assunto, visando a elaboração de projeto sobre a matéria ou a adoção de providência, realização de ato administrativo ou de gestão [http://www2.camara.leg.br/glossario. Glossário da Câmara dos Deputados – acesso em: 17 jun. 2017]. Foram encontrados 18 discursos sobre aborto no ano de 2015, enquanto no mesmo ano houve 56 discursos sobre diversidade sexual. Proposições legislativas foram encontradas 14 sobre aborto e 60 sobre diversidade sexual. Comparando temas referentes aos direitos sexuais e reprodutivos no mesmo levantamento, não foram encontrados discursos com as palavras “fertilização in vitro” e “reprodução assistida”, mas foram localizadas quatro proposições legislativas com a palavra “reprodução assistida” em 2015. Ou seja, considerando apenas o ano em foco, o número de discursos e proposições legislativas na temática da diversidade sexual é muito significativo.4 4 A título de comparação, no levantamento anterior, considerando os anos entre 2011 e 2014, a média de discursos apenas com a palavra-chave “aborto”, por ano, foi de 27, e de proposições legislativas foi de 6,75. Isso mostra que a temática da diversidade sexual foi intensamente abordada no ano de 2015.

Neste artigo, o tema da “diversidade sexual” contempla a “diversidade de orientação sexual e de identidade de gênero”.5 5 Essa expressão mais longa foi retirada da apresentação do livro Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas, organizado por Rogério Diniz Junqueira, por demanda da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação. O objetivo inicial do levantamento era investigar os debates sobre aborto e sobre diversidade sexual em articulação com a temática dos direitos humanos. Contudo, os resultados obtidos a partir da busca das palavras-chave mudaram o enfoque deste texto para a denúncia da “ideologia de gênero” por parte dos parlamentares na Câmara dos Deputados.

Os discursos e proposições legislativas foram agrupados a partir das palavras-chave.6 6 http://www2.camara.leg.br/. As palavras-chave foram divididas em dois blocos, de temas ligados à diversidade sexual e as ligadas ao aborto. As palavras-chave utilizadas para diversidade sexual foram: “LGBT”, “orientação sexual”, “gay”, “gays”, “homofobia”, “transfobia”, “homossexual”, “homossexualidade”, “homossexuais”, “lésbicas”, “homossexualismo” e “opção sexual”. Foi analisada a argumentação contida nos discursos e nas proposições legislativas. Com respeito à diversidade sexual, as posições foram classificadas em pró-diversidade e antidiversidade. Verificou-se que a maioria dos discursos e proposições legislativas apresentava mais de uma palavra-chave.7 7 Com respeito aos discursos relacionados à diversidade sexual houve um total de 104 (cento e quatro) resultados, obtidos. Eliminando as repetições das palavras-chave, pois a grande maioria dos discursos menciona mais de uma, o total é de 56 discursos. Quanto às proposições legislativas, foram localizadas 162 (cento e sessenta e duas), mas eliminando as repetições, quando a proposição tem mais de uma palavra-chave, o total é de 60 proposições legislativas. O resultado de busca com maior frequência nas proposições legislativas foi LGBT (a categoria guarda-chuva com 37), seguida por orientação sexual (34), gays (16), homofobia (15), lésbicas (14), gay (12), travesti (11), homossexuais (9), homossexualidade (6), homossexual (5), opção sexual (2), transfobia (1). Embora predomine o uso da categoria guarda-chuva LGBT, outras categorias identitárias são evocadas, além das que definem a condição do sujeito (orientação sexual) e a discriminação (homofobia).

Este artigo vai enfocar os eventos e iniciativas que foram objeto do debate e geraram tamanha reação dos parlamentares. Trata-se de: (1). Parada do Orgulho LGBT em São Paulo no ano de 2015; (2). As resoluções 11, de 18/12/2014, e 12, de 16/01/2015, do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais – CNCD/LGBT, ligado à Secretaria de Direitos Humanos, que tratam do reconhecimento institucional da identidade de gênero; (3). a Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014, que aprova o Plano Nacional de Educação, associada à Conferência Nacional de Educação em 2014.

A parada gerou o maior número de discursos, enquanto as duas resoluções do CNCD/LGBT e a lei que aprova o PNE redundaram em mais proposições legislativas. Embora não tenham gerado números significativos, gostaria de destacar por seu teor duas propostas de alteração no Estatuto da Criança e do Adolescente e a iniciativa de criminalizar a transmissão de moléstia incurável, bem como a proposta de audiência pública com pessoas que deixaram de ser gays.

À primeira vista, o grande número de discursos sobre o tema e o número de deputados que assinou proposições (algumas envolviam um grande coletivo) sugerem que em várias ocasiões houve articulações conjuntas de parlamentares mobilizados com respeito à diversidade sexual para barrar as iniciativas do movimento LGBT. Isso confirma os achados de diversos estudos como os de Vital da Cunha e Lopes (2013)Vital da Cunha, Christina; Lopes, Paulo Victor Leite. Religião e política: uma análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de LGBTs no Brasil. Rio de Janeiro, Fundação Heinrich Böll; ISER, 2013. e de Machado (2015Machado, Maria das Dores Campos. Religião e Política no Brasil Contemporâneo: uma análise dos pentecostais e carismáticos católicos. Religião e Sociedade, vol.35, no 2, dez 2015, pp.45-72.; 2017) que têm apontado nessa direção, bem como outros acerca da obstrução de demandas feministas, notadamente quanto ao aborto (Luna, 2014Luna, Naara. Aborto no Congresso Nacional: o enfrentamento de atores religiosos e feministas em um Estado laico. Rev. Bras. Ciênc. Polít., no 14, ago 2014, pp.83-109.; Miguel; Biroli; Mariano, 2016Miguel, Luís Felipe; Biroli, Flávia; Mariano, Rayani. O debate sobre aborto na Câmara dos Deputados. In: Flávia Biroli; Miguel, Luis Felipe (org.). Aborto e democracia. São Paulo, Alameda, 2016, vol. 1, pp.127-154.; Machado, 2016Machado, Lia Zanotta. Feminismos brasileiros nas relações com o Estado. Contextos e incertezas. cadernos pagu (47), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2016.).

Nesse sentido, busca-se captar no debate público disputas referentes a valores morais que vão definir acesso e restrição a direitos. A partir desse embate, são definidas legislações e políticas públicas. Conforme apontam Vital da Cunha e Lopes com respeito a críticas da presença de religiosos no espaço público, especialmente em seu avanço para a política, essa atuação “tem relação com a imposição de valores de um grupo, ferindo a proteção e a garantia de direitos humanos e de cidadania de outros” (Vital da Cunha; Lopes; 2013Vital da Cunha, Christina; Lopes, Paulo Victor Leite. Religião e política: uma análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de LGBTs no Brasil. Rio de Janeiro, Fundação Heinrich Böll; ISER, 2013.:8). Assim, modelos de cidadania são criados e desfeitos no embate político. Este estudo também é oportunidade de avaliar como os atores sociais obtêm ingerência sobre decisões relativas ao Estado, aqui especificamente na esfera legislativa, mas também nas políticas públicas, como se verá mais adiante.

Para além da articulação dos atores sociais, existe um aspecto no plano das ideias que é essencial analisar. As reivindicações relacionadas à diversidade sexual estão ancoradas na configuração individualista de valores característica do Ocidente moderno (Dumont, 1997Dumont, Louis. Homo hierarchicus: o sistema de castas e suas implicações. São Paulo, EDUSP, 1997.), na qual o ser humano indivisível, elementar – o indivíduo – é “sujeito normativo das instituições”, e encarna a humanidade inteira. Seus valores centrais são a liberdade e a igualdade.

Mauss (2003)Mauss, Marcel. Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a de ‘Eu’. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo, Cosac & Naify, 2003, pp.367-422. analisa a construção histórica da categoria de pessoa até chegar à categoria do “eu”, do ente psicológico no final do século XVIII. Um dos aspectos desse desenvolvimento histórico ocorre ainda na Roma Antiga, quando à noção de persona civil, o cidadão dotado de direitos, acrescenta-se um sentido moral do ser consciente, independente, autônomo, livre e responsável. Por isso, a categoria de pessoa é relacionada também ao problema dos direitos individuais, ponto que aparece nas reivindicações referentes à diversidade sexual: proteção contra a homofobia e garantia de direitos no que tange a casamento, constituição de família e herança (Natividade; Lopes, 2009Natividade, Marcelo; Lopes, Paulo Victor Leite. Os direitos das pessoas GLBT e as respostas religiosas: da parceria civil à criminalização da homofobia. In: Duarte, Luiz Fernando Dias et alii (org.). Valores religiosos e legislação no Brasil: a tramitação de projetos de lei sobre temas morais controversos. Rio de Janeiro, Garamond, 2009. pp.71-99.; Lorea, 2006Lorea, Roberto Arriada. Acesso ao casamento no Brasil: uma questão de cidadania sexual. Rev. Estud. Fem., vol.14, no 2, set 2006, pp.488-496.). Entre os exemplos dessas reivindicações, está o debate sobre a criminalização da homofobia no Congresso Nacional, a lei contra discriminação em razão da orientação sexual em estabelecimentos públicos do Estado do Rio de Janeiro e o reconhecimento de direitos previdenciários para casais de mesmo sexo também no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, estudados por Natividade e Lopes (2009)Natividade, Marcelo; Lopes, Paulo Victor Leite. Os direitos das pessoas GLBT e as respostas religiosas: da parceria civil à criminalização da homofobia. In: Duarte, Luiz Fernando Dias et alii (org.). Valores religiosos e legislação no Brasil: a tramitação de projetos de lei sobre temas morais controversos. Rio de Janeiro, Garamond, 2009. pp.71-99..8 8 Natividade e Lopes estudam a trajetória do PL 5003/2001 (PLC 122/2006) no tocante à homofobia; a Lei 3406/2000 que estabelece sanções contra estabelecimentos públicos no Estado do Rio de Janeiro que discriminem em razão da orientação sexual; com respeito aos direitos previdenciários no Estado do Rio de Janeiro, a aprovação da Lei 3786/2002. Lorea (2009) defende ser desnecessária uma lei que regule o casamento gay, bastando garantir o acesso a esse direito sob pena de discriminação, ao estabelecer tratamento distinto para homossexuais.

O debate sobre essas questões no espaço público tem sido associado à problemática dos direitos humanos tanto pelos segmentos conservadores contrários à diversidade sexual (Duarte et al. 2009Duarte, Luiz Fernando Dias et alii (org.). Valores religiosos e legislação no Brasil: a tramitação de projetos de lei sobre temas morais controversos. Rio de Janeiro, Garamond, FAPERJ, 2009.; Vital; Lopes, 2013Vital da Cunha, Christina; Lopes, Paulo Victor Leite. Religião e política: uma análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de LGBTs no Brasil. Rio de Janeiro, Fundação Heinrich Böll; ISER, 2013.) como pelos favoráveis aos direitos LGBT (Lorea, 2006Lorea, Roberto Arriada. Acesso ao casamento no Brasil: uma questão de cidadania sexual. Rev. Estud. Fem., vol.14, no 2, set 2006, pp.488-496.) e à legalização do aborto (Machado, 2010Machado, Lia Zanotta. Feminismo em movimento. São Paulo, Francis, 2010.). Esse debate se relaciona, segundo Carrara

à crescente especificação identitária de sujeitos políticos e de direitos, ou seja, ao modo como a linguagem dos direitos, em particular dos direitos humanos, vem sendo acionada para reconfigurar a já antiga movimentação de diferentes “minorias sexuais” contra o estigma e a discriminação (2015:325).

Para compreender essa dinâmica é importante enfocar esse debate no espaço público.

Religião no espaço público e ascensão do conservadorismo: a volta dos que não foram

A reação conservadora à reivindicação de direitos por parte de movimentos sociais que lutam por direitos sexuais e reprodutivos, como os movimentos feministas e LGBT,9 9 Especificamente no tema deste artigo com referência à diversidade sexual, Carrara (2010:135) define os direitos LGBT, ou relativos à diversidade sexual, da seguinte forma: “direitos sexuais se referem a prerrogativas legais relativas ou à sexualidade ou a grupos sociais cujas identidades foram forjadas sobre formas específicas de desejos e de práticas sexuais”. Carrara (2010:135) observa que alguns desses direitos não estão relacionados à sexualidade: “questões previdenciárias, adoção, liberdade de movimento em espaços públicos ou de mudança de nome e sexo em certidões de nascimento”, mas têm sido compreendidos dessa forma. Segundo Corrêa e Petchesky (1996:151), o termo “direitos reprodutivos” está relacionado a ideias de “integridade corporal e autodeterminação sexual”; quatro princípios éticos estão na base desses direitos: integridade corporal, autonomia pessoal, igualdade e diversidade. tem sido associada à expressão de atores religiosos no espaço público. Ironicamente essa “volta dos que não foram” se refere a posições conservadoras tradicionalmente hegemônicas na sociedade brasileira, mas que se explicitam quando desafiadas pelas pautas defendidas por outros grupos de atores sociais.

Embora este artigo busque enfocar o tema da diversidade sexual e o emprego da categoria “ideologia de gênero” no debate da Câmara de Deputados, uma comparação com as posições sobre aborto pode iluminar o quadro. Aqui é preciso salientar a importância da Igreja Católica como ator central nesse contexto. Embora se reconheça o papel da Igreja no enfrentamento da ditadura militar no Brasil, na constituição de uma cultura de direitos estimulada pela Teologia da Libertação e no movimento das Comunidades Eclesiais de Base, participando de diversas causas relacionadas à justiça social, como reforma agrária, defesa dos povos indígenas e direitos dos trabalhadores, em que estaria alinhada à esquerda, no tocante aos direitos sexuais e reprodutivos, sua atuação tem sido marcante em outra direção (Rosado-Nunes, 2008Rosado-Nunes, Maria José. Direitos, cidadania das mulheres e religião. Tempo social,, vol. 20, no 2, 2008, pp.67-81.).

Quando se analisa a posição da Igreja Católica com respeito a demandas relacionadas com as liberdades individuais e o debate sobre direitos humanos, salienta-se a importância do debate sobre o aborto e outros temas relacionados à dita “defesa da vida” como a eutanásia. O conflito entre a instituição religiosa de orientação conservadora e grupos em defesa de direitos humanos se explicita em diversas disputas no espaço público acerca de questões voltadas para a reprodução e sexualidade, caso do aborto, da contracepção e da diversidade sexual. A Igreja Católica tem se manifestado publicamente a respeito de todos esses temas e constitui um grupo de pressão para fazer valer seu posicionamento em diversos países, em particular latino-americanos, bem como suas matrizes católicas na Europa (Vaggione 2012Vaggione, Juan Marco. La “cultura de la vida”: desplazamientos estratégicos del activismo católico conservador frente a los derechos sexuales y reproductivos. Religião e Sociedade, vol. 32, no 2, 2012, pp.57-80.; Ruibal, 2014Ruibal, Alba M. Feminismo frente a fundamentalismos religiosos: mobilização e contramobilização em torno dos direitos reprodutivos na América Latina. Rev. Bras. Ciênc. Polít. [online], no 14, 2014, pp.111-138.; Zuringa, 2014). Minkenberg (2002)Minkenberg M. Religion and Public Policy. Institutional, Cultural, and Political Impact of Shaping Abortion Policies in Western Democracies. Comparative Political Studies 35(2), 2002, pp.221-247. analisa a relação entre religião e políticas públicas, fazendo um estudo comparativo em países de democracia liberal no Ocidente e encontra uma correlação positiva entre legislações restritivas ao aborto e herança confessional católica, especialmente nos países em que persistem níveis altos de religiosidade, sendo a Irlanda o expoente nesse sentido. Esse aspecto se confirma em países latino-americanos, onde a religião católica ainda é hegemônica, com fraca tradição de laicidade, onde há tendência geral a legislações restritivas ao aborto (Ruibal, 2014Ruibal, Alba M. Feminismo frente a fundamentalismos religiosos: mobilização e contramobilização em torno dos direitos reprodutivos na América Latina. Rev. Bras. Ciênc. Polít. [online], no 14, 2014, pp.111-138.; Zuringa, 2014), exceto pela Cidade do México e Uruguai, onde prevalece maior tradição de laicidade. No Uruguai, legalizou-se em 2012 o aborto voluntário no primeiro trimestre de gestação.

A pergunta é se a atuação da Igreja Católica e de outros grupos religiosos não estaria deslocada, quando se julgava que a modernidade confinaria a religião na esfera do privado, conforme as interpretações mais tradicionais da teoria da secularização (Berger, 1985Berger, Peter L. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo, Paulus, 1985.). Autores como Casanova (2010)Casanova, José. Política católica e muçulmana em perspectiva comparada. Revista de Estudos da Religião, dez. 2010, pp.46-72. e Berger (2001)Berger, Peter. A dessecularização do mundo: uma visão global. Religião e Sociedade, vol. 21, no 1, 2001, pp.9-23. têm questionado a teoria da secularização com respeito à retração da religião para a dimensão privada com a modernidade (Berger, 1985Berger, Peter L. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo, Paulus, 1985.). Berger identifica um processo de dessecularização (2001), enquanto Casanova vai questionar a privatização da religião como consequência do processo de secularização.

Considerando as pautas dos movimentos feminista e LGBT Brasil, Machado (2012Machado, Maria das Dores Campos. Religião, cultura e política. Religião e Sociedade, vol. 32, no 2, 2012, pp.29-56.:33) afirma que:

as propostas de revisão da legislação existente no campo do aborto e a criação de novos direitos para gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais amplificaram a tensão já existente entre os coletivos religiosos tradicionalistas e o governo.

Isso teria resultado em um ativismo conservador nas eleições de 2010, segundo a autora, mas que prosseguiu, como tenho constatado em minha pesquisa.

Esse ativismo conservador na esfera do Legislativo federal constituiu também reação às decisões do STF sobre a lei de biossegurança que permitiu o uso de embriões humanos para gerar células-tronco em 2008 (Luna, 2013Luna, Naara. O direito à vida no contexto do aborto e da pesquisa com células-tronco embrionárias: disputas de agentes e valores religiosos em um estado laico. Religião & Sociedade, vol. 33, no 1, 2013, pp.71-97.), sobre a antecipação de parto de anencéfalo em 2012, e do reconhecimento da união estável de homossexuais em 2012 (Coutinho Filho, 2014). O artigo de Machado (2012)Machado, Maria das Dores Campos. Religião, cultura e política. Religião e Sociedade, vol. 32, no 2, 2012, pp.29-56. revela a presença de políticos evangélicos e católicos associados em várias frentes contrárias aos direitos de LGBT e, na maioria, aliados a iniciativas anti-aborto, o que confirma pesquisa feita no Legislativo federal (Luna, 2014Luna, Naara. Aborto no Congresso Nacional: o enfrentamento de atores religiosos e feministas em um Estado laico. Rev. Bras. Ciênc. Polít., no 14, ago 2014, pp.83-109.). A enquete sobre a definição de família atrelada ao projeto de lei Estatuto da Família (PL 6583/13) de autoria de Anderson Ferreira (PR/PE, deputado evangélico ligado à Assembleia de Deus) também foi outra reação nesse sentido, ao definir a família como formada de homem e mulher, dizendo-se com base no texto (literal) da Constituição brasileira. 10 10 Cf. notícia veiculada em 8/10/2015 no informativo Câmara Notícias, do portal da Câmara dos Deputados. “Câmara aprova Estatuto da Família formada a partir da união de homem e mulher” [<http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITOS-HUMANOS/497879-CAMARA-APROVA-ESTATUTO-DA-FAMILIA-FORMADA-A-PARTIR-DA-UNIAO-DE-HOMEM-E-MULHER.html – acesso em 7 dez. 2016].

Ao analisar o conteúdo desses debates referentes a aborto, estatuto do embrião e liberdade de expressão sexual nos movimentos feministas e pela diversidade, é possível estabelecer a relação entre crenças fundamentalistas e argumentos científicos.11 11 Um exemplo são religiosos contrários ao aborto que defendem que o embrião é um sujeito de direitos desde a concepção, porque é dotado de uma constituição genética única. Vaggione (2012)Vaggione, Juan Marco. La “cultura de la vida”: desplazamientos estratégicos del activismo católico conservador frente a los derechos sexuales y reproductivos. Religião e Sociedade, vol. 32, no 2, 2012, pp.57-80. identifica um deslocamento do religioso para o secular, de modo que os atores e argumentos seculares têm cada vez um protagonismo maior sem que isso signifique o retraimento da hierarquia católica ou de argumentações baseadas no magistério (isto é, a função de ensinar que é própria da autoridade de Igreja).

Por otro lado, el activismo católico pone en escena una articulación distinta entre religión y política. La presencia de ONGs pro-vida o pro-familia junto al incremento en la circulación de justificaciones científicas, legales o bioéticas para rechazar los derechos sexuales y reproductivos (por parte tanto de estas ONGs como de la jerarquía católica) evidencian una forma diferente en las políticas de lo religioso (Vaggione, 2012Vaggione, Juan Marco. La “cultura de la vida”: desplazamientos estratégicos del activismo católico conservador frente a los derechos sexuales y reproductivos. Religião e Sociedade, vol. 32, no 2, 2012, pp.57-80.:75).

Vaggione, referindo-se ao ativismo conservador da Igreja Católica constata o deslocamento das argumentações religiosas para as seculares, das referências à Bíblia às referências à ciência (Vaggione, 2012Vaggione, Juan Marco. La “cultura de la vida”: desplazamientos estratégicos del activismo católico conservador frente a los derechos sexuales y reproductivos. Religião e Sociedade, vol. 32, no 2, 2012, pp.57-80.:69). Tais deslocamentos estão relacionados a maior legitimidade do discurso científico e jurídico no espaço público, associado à cosmovisão ocidental que considera a natureza como fundamento da realidade, e pelo papel do Direito como discurso adequado para a resolução de disputas públicas. A intermediação entre sociedade e o Estado é prerrogativa da esfera do Direito que deslocou o fator religioso do papel de princípio regulador da vida social e política (Machado, 2012Machado, Maria das Dores Campos. Religião, cultura e política. Religião e Sociedade, vol. 32, no 2, 2012, pp.29-56.:30).

Este artigo quer elucidar a presença da religião no espaço público e verificar se a reação encontrada na Câmara de Deputados é uma resposta ao êxito dos movimentos feministas e pela diversidade sexual em colocar a regulação da sexualidade na agenda pública. Vaggione (2012Vaggione, Juan Marco. La “cultura de la vida”: desplazamientos estratégicos del activismo católico conservador frente a los derechos sexuales y reproductivos. Religião e Sociedade, vol. 32, no 2, 2012, pp.57-80.:58) observa que setores de diversas tradições religiosas se politizam em defesa de um modelo de família e sexualidade que se considera ameaçado pelas novas políticas sexuais propostas pelos movimentos feministas e da diversidade sexual, e que tem impacto tanto no Estado como no campo religioso.

Vital da Cunha e Lopes (2013)Vital da Cunha, Christina; Lopes, Paulo Victor Leite. Religião e política: uma análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de LGBTs no Brasil. Rio de Janeiro, Fundação Heinrich Böll; ISER, 2013. observam que no debate público recente, o argumento de “ser religioso” ou “dos direitos dos religiosos” pretende impedir que outros grupos alcancem direitos. O primeiro aspecto é o entendimento de laicidade por parte de grupos evangélicos como a defesa da igualdade de tratamento das diferentes religiões pelo Estado. A consequência é a compreensão da “religião como mais um grupo de pressão político-social que, portanto, tem o ‘direito’ de desfrutar do mesmo espaço social que diversos grupos e movimentos seculares” (Vital da Cunha; Lopes, 2013Vital da Cunha, Christina; Lopes, Paulo Victor Leite. Religião e política: uma análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de LGBTs no Brasil. Rio de Janeiro, Fundação Heinrich Böll; ISER, 2013.:21). O tratamento que é demandado para todas as religiões se configura posteriormente na demanda por predominância de valores, da moral, das denominações e discursos de uma religião frente às demais. Por exemplo, na tramitação do projeto de lei que criminalizava a homofobia (PL 122/2006), o argumento dos religiosos era de defesa da liberdade de religião (Natividade; Lopes, 2009Natividade, Marcelo; Lopes, Paulo Victor Leite. Os direitos das pessoas GLBT e as respostas religiosas: da parceria civil à criminalização da homofobia. In: Duarte, Luiz Fernando Dias et alii (org.). Valores religiosos e legislação no Brasil: a tramitação de projetos de lei sobre temas morais controversos. Rio de Janeiro, Garamond, 2009. pp.71-99.). A defesa da liberdade religiosa e dos valores ditos religiosos é o mote para o ativismo desses grupos. Vaggione (2012Vaggione, Juan Marco. La “cultura de la vida”: desplazamientos estratégicos del activismo católico conservador frente a los derechos sexuales y reproductivos. Religião e Sociedade, vol. 32, no 2, 2012, pp.57-80.:70) afirma que o direito secular está permeado pelo catolicismo – ou por valores católicos, sendo mais específico – em questões referentes a família e sexualidade apesar do processo de secularização. A maioria das demandas dos movimentos feministas e pela diversidade sexual assenta na necessidade de distinguir entre a regulação religiosa (válida para um setor da população) e o direito secular como um sistema de regras para crentes de diversas tradições e para não crentes. Por conta disso, as leis são vistas como ameaças ao promover “mentalidades” e “costumes”. Essa expressão é uma paráfrase da Encíclica Evangelium Vitae analisada por Vaggione, cuja mensagem opõe a “cultura da vida” promovida pela Igreja Católica, à “cultura da morte” que estaria presente nas sociedades pluralistas e seria contrária aos valores da Igreja. “A ideia de uma família natural, amparada por um direito natural são pilares fundamentais do ativismo católico conservador que confronta o crescente pluralismo das sociedades contemporâneas” (Vaggione, 2012Vaggione, Juan Marco. La “cultura de la vida”: desplazamientos estratégicos del activismo católico conservador frente a los derechos sexuales y reproductivos. Religião e Sociedade, vol. 32, no 2, 2012, pp.57-80.:70-71, tradução minha).

Ainda segundo Vaggione, o ativismo católico conservador tem fomentado diversas estratégias para impedir avanços das reivindicações feministas e da diversidade sexual nas democracias contemporâneas entre as quais se destacam: instruir os legisladores a defenderem valores e crenças católicos no exercício de suas funções profissionais, estimular a objeção de consciência e judicializar a contracepção de emergência acusada de ser abortiva. As duas primeiras estratégias se aplicam para direitos sexuais e reprodutivos em geral, por exemplo, funcionários que se recusem a celebrar casamentos de pessoas do mesmo sexo, ou a colaborar em práticas ou legislações que avancem em prol dos direitos LGBT, ou do aborto ou eutanásia. Na Campanha da Fraternidade de 2008, com o lema “Fraternidade em defesa da vida”, o texto base apresentava propostas para a “promoção humana”, tais como criar cursos de pós-graduação em Bioética Personalista, e estimular o estudo de bioética para pessoas em vários níveis na Igreja Católica, além de ações nas políticas públicas como garantir o cumprimento do artigo 5º da Constituição que garante a inviolabilidade do direito à vida. Outras estratégias incluem pressionar parlamentares para impedir a aprovação de projetos de lei que descriminem o aborto, propor legislação que combata o congelamento de embriões e assegurar o respeito à objeção de consciência (Luna, 2010Luna, Naara. Aborto e células-tronco embrionárias na Campanha da Fraternidade: ciência e ética no ensino da Igreja. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 25, no 74, 2010, pp.91-105.:96). Para além das diretrizes da Igreja, os próprios juristas têm se organizado em associações de juristas e magistrados católicos (cf. Luna, 2013Luna, Naara. O direito à vida no contexto do aborto e da pesquisa com células-tronco embrionárias: disputas de agentes e valores religiosos em um estado laico. Religião & Sociedade, vol. 33, no 1, 2013, pp.71-97.) a fim de defender esses objetivos.

Levantamentos com enfoque nos políticos evangélicos também mostram uma articulação conservadora em ascensão no Brasil (Machado, 2006Machado, Maria das Dores Campos. Política e religião: a participação dos evangélicos nas eleições. Rio de Janeiro, FGV, 2006.; Vital; Lopes, 2013Vital da Cunha, Christina; Lopes, Paulo Victor Leite. Religião e política: uma análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de LGBTs no Brasil. Rio de Janeiro, Fundação Heinrich Böll; ISER, 2013.), com concorrência evangélica ao protagonismo católico, alternando alianças e disputas a depender do objeto em questão. Diversas pesquisas enfatizam a importância de atores religiosos, principalmente cristãos, nessas polêmicas seja no Brasil (Duarte et al., 2009Duarte, Luiz Fernando Dias et alii (org.). Valores religiosos e legislação no Brasil: a tramitação de projetos de lei sobre temas morais controversos. Rio de Janeiro, Garamond, FAPERJ, 2009.; Luna, 2013Luna, Naara. O direito à vida no contexto do aborto e da pesquisa com células-tronco embrionárias: disputas de agentes e valores religiosos em um estado laico. Religião & Sociedade, vol. 33, no 1, 2013, pp.71-97.), seja em outros países sul americanos como o Uruguai e a Argentina (Rostagnol, 2008Rostagnol, Susana. El conflicto mujer-embrión en debate parlamentario sobre el aborto. Revista Estudos Feministas, vol. 16, no 2, 2008, pp.667-674.; Irrazabal, 2010Irrazábal, Gabriela. El derecho al aborto en discusión: la intervención de grupos católicos en la comisión de salud de la Legislatura de la Ciudad de Buenos Aires. Sociologias, Porto Alegre, ano 12, no 24, mai./ago. 2010, pp.308-336.; Rocha; Rostagnol; Gutierrez, 2009Rocha, Maria Isabel Baltar da Rocha; Rostagnol, Susana; Gutiérrez, Maria Alicia. Aborto y Parlamento: un estúdio sobre Brasil, Uruguay y Argentina. Revista Brasileira de Estudos Populacionais, vol. 26, no 2, 2009, pp.219-236.). Esses estudos têm mostrado também que setores feministas e ligados aos movimentos LGBT têm procurado se articular de formas distintas na esfera pública por vezes com estratégias orientadas ao Poder Judiciário e ao Poder Legislativo (Ruibal, 2014Ruibal, Alba M. Feminismo frente a fundamentalismos religiosos: mobilização e contramobilização em torno dos direitos reprodutivos na América Latina. Rev. Bras. Ciênc. Polít. [online], no 14, 2014, pp.111-138.), bem como de reconstrução de imagem pública, no caso da criação de uma imagem de “família” por parte das organizações LGBT, observada na Argentina, que levou à aprovação da lei do matrimônio igualitário (Vespucci, 2014Vespucci, Guido. Una fórmula deseable: el discurso “somos familias” como símbolo hegemônico de las reivindicaciones gay-lésbicas. Sexualidad, Salud y Sociedad, no 17, ago 2014, pp.30-65.). Esta última se assemelha à experiência brasileira recente com a interpretação do STF sobre casais homoafetivos que levou ao resultado de equiparação com união estável no julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental ADPF 132 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI 4277 (Coitinho Filho, 2014Coitinho Filho, Ricardo Andrade. Que ousadia é essa? A adoção 'homoafetiva' e seus múltiplos sentidos. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Instituto Multidisciplinar, Instituto de Três Rios, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, 2014.). A reação conservadora no Legislativo também responde a derrotas em decisões do Judiciário como no reconhecimento da união estável entre pessoas de mesmo sexo.

O levantamento feito nesta pesquisa encontrou três pontos principais de mobilização dos parlamentares em 2015, considerando o número de discursos e de proposições legislativas: no tocante aos discursos, o assunto mais discutido foi a Parada LGBT em São Paulo em 2015. Com respeito às proposições legislativas, dois eventos concentraram o debate: 1. duas resoluções do Conselho Nacional de Combate à Discriminação, órgão ligado à Secretaria de Direitos Humanos, que versavam sobre identidade de gênero. 2. uma reação à lei que aprova o Plano Nacional de Educação por contemplar conteúdos designados pelos parlamentares de “ideologia de gênero”, contrariando decisões anteriores das duas casas parlamentares. Menos numerosos, contudo bastante significativos para a questão da criminalização da ideologia de gênero, serão comentados duas alterações no Estatuto da Criança e do Adolescente e um projeto de lei sobre contágio de moléstia incurável e um requerimento de audiência pública com pessoas que deixaram de ser gays. Contemplar todos os discursos e proposições legislativas encontrados extrapolaria o espaço deste artigo, portanto, o foco será nos mais significativos.

Parada do Orgulho LGBT em São Paulo 2015

A Parada do Orgulho LGBT realizada em sua 19ª edição em São Paulo no dia 7 de junho foi o evento mais citado em discursos localizados pelas palavras-chave no ano de 2015. Dos 56 discursos identificados no levantamento, 26 tematizavam esse evento em São Paulo, dos quais apenas três defendiam a marcha, enquanto os demais a questionavam. Os questionamentos se voltaram para uma manifestação específica na parada: a performance de uma mulher transexual crucificada. No topo da cruz, havia uma placa com os dizeres: “basta”, “homofobia” e “LGBT”.12 12 “Representei a dor que sentimos”, diz transexual “crucificada” na Parada Gay [http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/06/representei-dor-que-sentimos-diz-transexual-crucificada-na-parada-gay.html .– acesso em 26 jul. 2016]. A atriz transexual declarou ter se prendido à cruz para reportar a dor e a discriminação sofrida pela comunidade LGBT, em protesto contra a homofobia, mas não para ofender a Igreja. Em busca sobre a cobertura do evento na imprensa, nenhuma das fontes on line localizadas com a cobertura do evento citava a performance da crucificação. Apenas pela busca direcionada às palavras “transexual” e “crucificada” foi possível localizar o relato dessa performance no evento. Algumas matérias traziam o tema da parada “Eu nasci assim, eu cresci assim, vou ser sempre assim: respeitem-me”,13 13 Parada Gay reúne milhares em SP [http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/06/parada-gay-reune-milhares-em-sp.html – acesso em 26 jul. 2016]. e mostravam pessoas portando cartazes com as palavras de ordem “amor ao próximo”,14 14 Imagem disponível em: <https://www.google.com.br/search?q=19+parada+do+orgulho+LGBT++S%C3%A3o+Paulo+2015&biw=1024&bih=499&tbm=isch&imgil=KLijoMNA3aGU-M%253A%253BkfgBZt3bOvd2sM%253Bhttps%25253A%25252F%25252Fcatracalivre.com.br%25252Fsp%25252Fmuito-mais-sao-paulo%25252Fgratis%25252F19a-parada-do-orgulho-lgbt-de-sao-paulo-ja-tem-data-marcada%25252F&source=iu&pf=m&fir=KLijoMNA3aGU-M%253A%252CkfgBZt3bOvd2sM%252C_&usg=__vQU1waJFBHZyJp9_Mbrh7GY-skI%3D&dpr=1&ved=0ahUKEwiz7IyzuZHOAhUDjpAKHaxIBGUQyjcINA&ei=MoKXV7OLD4OcwgSskZGoBg#imgrc=KLijoMNA3aGU-M%3A> – acesso em 26 jul. 2016. sem ter dado destaque inicial à performance.

Nos dias seguintes ao evento – 9, 10 e 11 de junho, houve grande concentração de discursos de parlamentares na Câmara sobre o tema. Um dos motes mais repetidos pelos deputados foi sobre o respeito. O deputado Eduardo Bolsonaro (PSC-SP, católico)15 15 O deputado Eduardo Bolsonaro, no ano de 2015, identificava-se como católico, segundo o levantamento feito nas redes sociais nesta pesquisa. Em 2017, a Wikipedia já o identifica como evangélico. Cf. https://pt.wikipedia.org/wiki/Eduardo_Bolsonaro. Acesso em 21/10/2017, em discurso no dia 9, avalia as atitudes observadas na Parada Gay “como um pessoal que pede respeito, que pede para ser respeitado, e na Parada Gay do último domingo, em São Paulo, deu mostra do contrário”. O deputado Flavio Augusto da Silva (PSB/SP, católico)16 16 Deputado Flavinho (Flavio Augusto da Silva, PSB-SP), atuante na Rádio Canção Nova, veículo da Renovação Carismática Católica. afirma no dia 10 que “Para sermos respeitados, nós temos que dar o respeito, e esses movimentos LGBT passaram dos limites razoáveis, passaram de todos os limites éticos, morais e agora também religiosos”

Outra acusação levantada contra a performance na parada foi a de intolerância religiosa. O deputado Alexandre Serfiotis (PSD-RJ, evangélico), no dia 11, discursa sobre sua “preocupação com a intolerância” a partir dos atos ocorridos na Parada LGBT, e manifestou seu “repúdio ao flagrante desrespeito praticado contra a crença religiosa de milhões de brasileiros, que é o cristianismo em suas diversas formas”. O deputado argumenta que “os atos lamentáveis” ocorridos na parada representam “grave retrocesso para a luta do movimento LGBT, pois demonstram que parte expressiva desse movimento não pratica o que fala sobre o respeito às diferenças e desacata, de forma vergonhosa, milhões de brasileiros que não pensam como eles”. O deputado Evandro Gussi (PV-SP, católico, Renovação Carismática), em discurso no dia 11, repudiou a “usurpação dos símbolos religiosos da fé cristã”. Aureo Ribeiro (SD-RJ, evangélico, Igreja Metodista) em discurso no dia 16 de junho sobre os episódios ocorridos na Parada Gay em São Paulo repudia a “falta de respeito” e diz que se viu “uma aula de intolerância religiosa, de escárnio à fé, de preconceito e ira”.

Outra acusação repetida foi que a marcha e a performance representariam um ataque à família. Cabo Sabino (Flavio Alves Sabino, PR-CE, evangélico da Assembleia de Deus), no dia 9, definiu os atos ocorridos como “uma afronta a cada família deste país, a cada pessoa de bem, séria e honesta”. O deputado Capitão Augusto (Jose Augusto Rosa, PR-SP), no dia 10, discursa sobre a “crucificação da homofobia”, afirmando que os “Os gays que lá representaram a crucificação ofenderam, agrediram, menosprezaram e cuspiram na cara da família brasileira”. O deputado questiona por que a “imunidade” para quem age dessa forma.

Importa destacar aqueles que se manifestaram na posição de líderes de frentes parlamentares. Geovania de Sá (PSDB-SC, evangélica, Assembleia de Deus), no dia 9 de junho, discursa como vice-presidente da Frente Parlamentar Evangélica e membro da nova Frente Parlamentar Mista em Defesa da Família e Apoio à Vida, dizendo-se “envergonhada com as cenas lamentáveis” e “na obrigação de repudiar com veemência todos os atos que ferem os princípios e valores que norteiam a vida cristã”. O deputado Givaldo Carimbão (PROS-AL, católico) em discurso no dia 10 de junho afirma que “Não foi justo o que foi feito com o sacramento e com a nossa fé”. Registra sua posição “em nome” dos que “entendem que o maior patrimônio de uma sociedade é uma família viva”. Como presidente da Frente Parlamentar Católica, ele iria conversar com a Frente Parlamentar Evangélica e com a Frente Parlamentar pela Vida para “juntos, tomarmos decisões daqui para frente”. Em seguida, afirmou que na Câmara se disse "não à política de gêneros dentro da educação brasileira”. É importante salientar para análise que, o deputado associa o que acusa de ser desrespeito religioso à “política de gênero”.

A articulação de deputados principalmente religiosos se oficializa quando João Campos (PSDB-GO, evangélico, pastor da Assembleia de Deus) em discurso no dia 10 de junho lê uma nota de repúdio escrita pelas frentes parlamentares evangélica, católica e em defesa da vida e da família, contra os atos da parada que “escarneceram, zombavam, desdenharam, vilipendiaram” a “fé” e “a religiosidade do povo brasileiro, que na sua grande maioria confessa a fé cristã”. A nota afirma que “Os ativistas do movimento LGBT cometeram o crime de profanação contra símbolo religioso, ofendendo o sentimento coletivo de religiosidade e crença ao utilizarem símbolos do cristianismo de forma desrespeitosa, zombando e ridicularizando o sacrifício de Jesus na cruz”. Alguns deputados se declararam no dever de protestar como católicos ou evangélicos. A partir desse conjunto de depoimentos sobre a parada LGBT, constata-se a articulação de deputados católicos (principalmente da Renovação Carismática) e evangélicos na denúncia de vilipêndio a símbolo religioso e intolerância, mas que se estende à acusação de que esse movimento destruiria a família. Givaldo Carimbão amarra esses aspectos na denúncia à “política de gênero”.

Como reação, foram apresentados dez requerimentos de informação sobre o financiamento na Parada do Orgulho LGBT,17 17 RIC 627/2015. e RIC 628/2015 de autoria do Deputado Silas Câmara (pastor da Assembleia de Deus PSD-AM); RIC 635/2015, de autoria do Deputado Vinicius Carvalho (evangélico, PRB-SP); RIC 636/2015, RIC 637/2015 e RIC 638/2015 de autoria do Deputado Sóstenes Cavalcante (pastor da Assembleia de Deus, PSD-RJ); RIC 668/2015 e RIC 669/2015, de autoria do Deputado Alan Rick (pastor da Assembleia de Deus, PRB-AC); RIC 699/2015 e RIC 700/2015, de autoria do Deputado Ronaldo Nogueira (PTB-RS), pastor da Assembleia de Deus. um solicitando audiência pública sobre ofensa a símbolos religiosos18 18 REQ 76/2015 CDHM, de autoria do Deputado Major Olímpio (Sergio Olimpio Gomes, PDT-SP). e um com a convocação do ministro Pepe Vargas, da Secretaria de Direitos Humanos, para prestar esclarecimentos19 19 REQ 80/2015 CDHM, de autoria do Deputado Ezequiel Teixeira (SD-RJ, evangélico, projeto Vida Nova) , questionando o financiamento público da parada.

Posicionaram-se favoravelmente à parada, os deputados Chico Alencar (PSOL-RJ, católico), em 11 de junho, e Luiz Couto (PT-PB, padre católico) em no dia 15. Chico Alencar, assumindo sua “dimensão religiosa”, se diz também defensor “do direito de crença e de não crença”. Sobre a performance da crucificação, afirma: “Todo mundo que sofre discriminação, preconceito, qualquer forma de combate, como o próprio Cristo sofreu, inclusive pelas religiões dominantes do seu tempo, está também sendo crucificado até hoje”. Ambos compartilham a reflexão de pastor batista Henrique Vieira, que é vereador pelo PSOL em Niterói. Citando artigo desse pastor, Luiz Couto diz lamentar: “que não exista a possibilidade do diálogo com os fundamentalistas religiosos”. A deputada Erika Kokay (PT-DF), em pronunciamento no dia 11 de junho, denunciou que panfletos distribuídos na Câmara no dia anterior como registro da parada teriam induzido ao erro, pois apenas uma das fotos reproduzidas, a que retratava a “performance de uma mulher transexual, uma performance onde ela iguala o seu sofrimento a partir da discriminação de uma sociedade pautada na heteronormatividade, ao sofrimento que vivenciou Cristo” correspondia ao evento. O resto das fotos do mesmo panfleto eram de uma marcha ocorrida no Rio de Janeiro em 2013.

As resoluções 11, de 18/12/2014, e 12, de 16/01/2015, do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais – CNCD/LGBT

Ambas as resoluções tratam do reconhecimento institucional da identidade de gênero. A resolução 11, de 18/12/2014, estabelece parâmetros para a inclusão dos itens orientação sexual, identidade de gênero e nome social em boletins de ocorrência,20 20 Disponível em <http://www.sdh.gov.br/sobre/participacao-social/cncd-lgbt/resolucoes/resolucao-011> – acesso em 26 jul. 2016. Orientação sexual “como uma referência à capacidade de cada pessoa de ter uma profunda atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim como ter relações íntimas e sexuais com essas pessoas”. Identidade de gênero “a profundamente sentida, experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos”. Nome social é aquele pelo qual travestis e transexuais se identificam e são identificadas pela sociedade. que são definidos “considerando os Princípios de Yogyakarta”. Também estabelece uma definição operacional para o nome social: “aquele pelo qual travestis e transexuais se identificam e são identificados pela sociedade”. Por sua parte, a resolução 12, de 16 de janeiro de 201521 21 Disponível em <http://www.sdh.gov.br/sobre/participacao-social/cncd-lgbt/resolucoes/resolucao-012> – acesso em 26 jul. 2016. ,

Estabelece parâmetros para a garantia das condições de acesso e permanência de pessoas travestis e transexuais – e todas aquelas que tenham sua identidade de gênero não reconhecida em diferentes espaços sociais – nos sistemas e instituições de ensino, formulando orientações quanto ao reconhecimento institucional da identidade de gênero e sua operacionalização.

Algumas proposições legislativas se referem a uma das resoluções e outras a ambas. Vou enfocar aqui apenas os projetos de decretos legislativos (PDC) cujo objetivo é alterar essas resoluções.22 22 Visam sustar a resolução 11, o PDC 18/2015 e o PDC 17/2015. Seis projetos de decretos legislativos visam sustar a resolução 12: PDC 16/2015, PDC 26/2015, PDC 30/2015, PDC 48/2015, PDC 91/2015 e PDC 115/2015. Dois projetos visam sustar as resoluções 11 e 12: PDC 61/2015 e PDC 90/2015. Houve mais reações contra a resolução 12, que trata do reconhecimento institucional da identidade de gênero em estabelecimentos de ensino, do que contra a resolução 11, que lida com boletins de ocorrência. Entre os tipos de argumentos arrolados para sustar essas resoluções predominam os de caráter jurídico: (1) a incapacidade de adolescentes responderem por seus atos antes dos 16 anos, portanto, não poderiam escolher pela mudança de nome; (2) a inconstitucionalidade das propostas; (3) a acusar às decisões da Secretaria de Direitos Humanos de ferirem a repartição dos três poderes da República, ao objetivar a mudança na legislação penal por ato administrativo.

Além desses argumentos de caráter jurídico no questionamento às propostas, três temas são evocados como problemas: a família, a escola e a “ideologia de gênero”.

Com respeito à família, os questionamentos acusam a Resolução 12 de não considerar a necessidade do consentimento dos pais no tocante ao reconhecimento institucional da identidade de gênero. Os questionamentos são os seguintes: suprimir a participação dos pais nas escolhas dos menores de dezesseis anos;23 23 PDC 30/2015 de Eros Biondini (PTB-MG, católico, cantor da Renovação Carismática), e mais 50 autores. o Estado deve propiciar as maneiras de assegurar o poder familiar, e não decidir em seu lugar;24 24 PDC 26/2015 de Ezequiel Teixeira (SD-RJ, evangélico, pastor, projeto Vida Nova. estabelecer garantias de reconhecimento de gênero para adolescentes, sem consentimento de seus responsáveis legais, contrariando o Estatuto da Criança e do Adolescente;25 25 PDC 91/2015 de autoria do Deputado Fábio Sousa (PSDB-GO, evangélico, pastor da Igreja Fonte da Vida) a resolução fere o Estatuto da Criança e do Adolescente ao possibilitar a estudantes adolescentes reconhecer seu gênero sem a obrigatória autorização do responsável.26 26 PDC 16/2015 de autoria do Deputado Pr. Marco Feliciano, PSC-SP, pastor evangélico da Assembleia de Deus. O primeiro autor de cada um desses projetos de decreto legislativo (PDC) é religioso, sendo um católico (Renovação Carismática) e os demais pastores de diferentes igrejas evangélicas.

A defesa da escola é outro argumento acionado contra a resolução 12 em outro PDC de autor evangélico. Acusa-se a proposta de trazer o “caos social” “para a convivência de alunos das redes pública e privada” “ao permitir a livre escolha da opção sexual” na utilização de banheiros e vestiários. A proposta alerta que as unidades da rede de ensino não estariam “preparadas” “para implementar mecanismos de fiscalização e controle na utilização desses espaços”.27 27 PDC 26/2015 de Ezequiel Teixeira, SD-RJ, evangélico, pastor do projeto Vida Nova.

O terceiro problema alegado em projetos de decreto legislativo que visam sustar essas resoluções é a acusação de estimular a dita “ideologia de gênero”. Assim a Resolução 12 tentaria “impor a ideologia do gênero em flagrante desrespeito ao Congresso Nacional num malabarismo antidemocrático”.28 28 PDC 115/2015, de Alfredo Kaefer (PSDB-PR), católico. Acusação relacionada é a de constranger “a norma dos bons costumes” ao “permitir que, pessoas que digam que sua identidade de gênero é diferente de seus cromossomos, possam usar os mesmos banheiros que as demais pessoas”. Essa observação de autoria do deputado Pastor Marcos Feliciano Feliciano (PSC-SP) foi uma rara expressão de determinismo biológico dentre os argumentos apresentados.29 29 PDC 16/2015, de autoria do Deputado Pastor Marco Feliciano (PSC-SP), Assembleia de Deus.

Vários requerimentos também foram apresentados em reação às resoluções: convocando a ministra da Secretaria de Direitos Humanos para prestar esclarecimentos; solicitando audiência pública para discutir as resoluções; e demandando urgência na votação dos projetos de decreto legislativo que sustam as resoluções 11 e 12.30 30 São respectivamente: REQ 18/2015 CDHM, de Jair Bolsonaro (PP-RJ), dirigido à Comissão de Direitos Humanos e Minorias, REQ 17/2015 CDHM ,de autoria do Pastor Marco Feliciano (PSC-SP); REQ 2020/2015, de Alan Rick (PRB-AC pastor da Assembleia de Deus) e outros.

Destaco aqui o Requerimento 20/2015, dirigido à Comissão de Direitos Humanos e Minorias (REQ 20/2015 CDHM) de autoria do Deputado Ezequiel Teixeira (SD-RJ, evangélico), que convoca a ministra da Secretaria de Direitos Humanos para prestar esclarecimentos sobre a Resolução 12 em função de sua justificativa que tanto ressalta o valor da família como base da sociedade, a autoridade dos pais que devem dar o consentimento e a previsão de caos nas escolas. Entre as justificativas apresentadas pelo deputado, e que são contrárias à proposta, estão os seguintes pontos: “obrigatoriedade do tratamento pelo ‘nome social’, mediante simples requerimento do menor interessado, bem como, permite a utilização de banheiros, vestiários e demais espaços segregados por gêneros”. A proposição argumenta contra isso que “o exercício do poder familiar é decisão do casal, ficando, portanto, o Estado impedido de atuar nesse sentido”. Cita o artigo 226 da Constituição Federal: “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. Alerta ainda que a resolução traria o “caos social” “para a convivência de alunos da rede pública e privada de ensino, ao permitir a livre escolha da opção sexual, com o consequente tratamento e utilização de banheiros, vestiários e demais espaços”. Nesse sentido, afirma que “As unidades da rede de ensino não estão preparadas para implementar mecanismos de fiscalização e controle na utilização desses espaços” na forma exigida pela resolução.

Plano Nacional de Educação – PNAE

Outro foco de mobilização dos deputados foi o Plano Nacional de Educação (2014-2024). Em anos anteriores, as duas casas legislativas haviam votado pela retirada de conteúdos referentes a gênero e sexualidade do Plano Nacional de Educação (o Senado em 2013 e a Câmara em 2014).

Reis e Eggert (2017)Reis, Toni; Eggert, Edla. Ideologia de gênero: uma falácia construída sobre os planos de educação brasileiros. Educação & Sociedade, vol. 38, no 138, 2017, pp.9-26. fazem uma retrospectiva da tramitação do Plano Nacional de Educação: em 20 de dezembro de 2010, a proposta do novo Plano Nacional de Educação foi apresentada à Câmara dos Deputados. Após quase dois anos de tramitação, a proposta aprovada na Câmara e enviada ao Senado manteve as deliberações das conferências nacionais de educação sobre equidade de gênero e respeito à diversidade sexual. O plenário do Senado, em 17 de dezembro de 2013, aprovou o substitutivo ao projeto de lei, retirando da redação do inciso III do artigo 2º o trecho “promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual” (apudReis; Eggert, 2017Reis, Toni; Eggert, Edla. Ideologia de gênero: uma falácia construída sobre os planos de educação brasileiros. Educação & Sociedade, vol. 38, no 138, 2017, pp.9-26.:15) referido a diretrizes do Plano Nacional de Educação. Segundo os autores, o debate contrário à dita “ideologia de gênero” foi intensificado na volta do projeto à Câmara, até que ele fosse aprovado, e depois levado para sanção presidencial sem especificação das citadas formas de discriminação.

A justificativa do Requerimento de Informação RIC 565/2015 de autoria do deputado Izalci Lucas Ferreira (PSDB-DF) e outros faz uma retrospectiva do debate parlamentar. O Senado, por meio da votação do Projeto de Lei 8035/2010 de autoria do Poder Executivo, "aprova o Plano Nacional de Educação [PNE] para o decênio 2011-2020 e dá outras providências". No PL, foram identificadas duas passagens acusadas de “empregar terminologia própria da ideologia de gênero”: o inciso III do artigo 2º que estabelece, entre as diretrizes do PNE, a “superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual”, e a Estratégia 3.12 da Meta 3 3.12) que propõe “implementar políticas de prevenção à evasão motivada por preconceito e discriminação racial, por orientação sexual ou identidade de gênero, criando rede de proteção contra formas associadas de exclusão”. Em 2013, o Senado aprovou o substitutivo PLC 103/2012 que eliminou essa “linguagem ideológica”, conforme afirma a retrospectiva do deputado Izalci Lucas Ferreira (PSDB-DF) no próprio requerimento. A redação final do inciso III do artigo 2º, sobre as diretrizes do PNE foi: “superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação”. A Estratégia 3.12 da Meta 3 foi renumerada para 3.13 e a redação final reza: “implementar políticas de prevenção à evasão motivada por preconceito ou quaisquer formas de discriminação, criando rede de proteção contra formas associadas de exclusão”. Segundo essa retrospectiva feita no RIC 565/2015, a Câmara dos Deputados teria confirmado essas alterações ao votar em 22 de abril de 2014, o que se tornou a Lei 13.005/2014, que institui o Plano Nacional de Educação (PNE), sancionada pela Presidência da República em 25 de junho de 2014.

Contudo o documento final da Conferência Nacional de Educação (CONAE – 2014) manteve os trechos referentes à superação das desigualdades de gênero e relativas à orientação sexual e de “promoção da diversidade étnico-racial e de gênero, orientação sexual” (Brasil, 2014). Outra reação à lei que institui o Plano Nacional de Educação veio do próprio Ministério da Educação e do Conselho Nacional de Educação que, em 2015, publicaram notas criticando a omissão nos Planos de Educação de ações que contemplassem a igualdade de gênero e o respeito à diversidade sexual (Reis; Eggert, 2017Reis, Toni; Eggert, Edla. Ideologia de gênero: uma falácia construída sobre os planos de educação brasileiros. Educação & Sociedade, vol. 38, no 138, 2017, pp.9-26.). Entretanto, Ainda segundo esses autores, uma aliança de católicos e evangélicos conservadores, além de outras organizações da sociedade civil, se mobilizou acusando os planos estaduais e municipais de educação de incluírem a “ideologia de gênero e de diversidade sexual”.

Na Câmara dos Deputados, os mesmos setores reagiram a diferentes iniciativas de recuperar esses conteúdos, propondo alterações na LDB, no Plano Nacional de Educação e sustando trechos do documento final da Conferência Nacional de Educação.

O Projeto de Lei 1859/2015, de autoria do Deputado Izalci Lucas Ferreira (PSDB-DF, católico) e mais quinze autores, acrescenta um parágrafo único ao artigo 3º da Lei 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação). O PL 1859/2015 tem como intuito proibir aplicar a ideologia de gênero ou orientação sexual na educação. O seguinte parágrafo seria incluso ao artigo 3º:

Parágrafo único: “A educação não desenvolverá políticas de ensino, nem adotará currículo escolar, disciplinas obrigatórias, ou mesmo de forma complementar ou facultativa, que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual” (NR).

Essa proposição afirma basear-se no “princípio constitucional da especial proteção do Estado à família” (Artigo 226 da Constituição). Afirma ainda que é obrigação da lei “estabelecer os meios jurídicos que garantam à família a possibilidade de se defender contra os que desrespeitam seus valores éticos e sociais”. Com base no “princípio constitucional do papel privilegiado da família na educação”, denuncia ser uma “contradição constitucional um sistema educacional concebido com o objetivo específico de destruir a própria família como instituição”. A acusação dos autores contra a “ideologia de gênero” na educação é de destruir a família.

Outra iniciativa contrária a esses conteúdos na educação é o Projeto de Lei 3236/2015 (PL 3236/2015) de autoria do Deputado Pastor Marco Feliciano (PSC-SP), que acrescenta um parágrafo único ao artigo 2º da Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014, que “Aprova o Plano Nacional de Educação – PNE”. “A consecução da diretriz constante do inciso III do caput deste artigo exclui a promoção da ideologia de gênero por qualquer meio ou forma. (NR)”. Esse PL veda que se estimule “a propagação da maléfica doutrina de gênero” (sic), por qualquer meio ou forma, por conta do conflito dessa doutrina com “as convicções morais e religiosas dos educandos ou de seus pais ou responsáveis”.

A terceira iniciativa de barrar os conteúdos de gênero e sexualidade na educação é o Projeto de Decreto Legislativo 122/2015 (PDC 122/2015), de autoria do Deputado Flavinho (Flavio Augusto da Silva, PSB-SP) e outros,31 31 O deputado é católico, da Renovação Carismática. O PDC é de autoria coletiva de Flavinho (Flavio Augusto da Silva, PSB-SP) e outros 66 autores. que requer “sustar os efeitos da inclusão da ideologia de gênero no Documento Final do CONAE- 2014, assinado e apresentado pelo Fórum Nacional de Educação”. Segundo o PDC 122/2015, o Documento Final do CONAE (Conferência Nacional de Educação) pretende “implementar a política de orientação sexual” que foi rejeitada pelo parlamento na ocasião da aprovação do Plano Nacional de Educação. O PDC 122/2015 pondera que, se o parlamento rejeita uma determinada matéria, não pode o Poder Executivo “exorbitar a sua atividade regulamentar e implementá-la de forma efetiva”.

Entre vários requerimentos relacionados a essa reivindicação estão implicados, destaco apenas um: o Requerimento de Informação 565/2015 (RIC 565/2015), de autoria dos deputados Izalci Lucas Ferreira (PSDB-DF, católico) e mais 13 co-autores, que “Requer ao Ministro de Estado da Educação” “informações sobre o Documento Final do Conae-2014” (Conferência Nacional de Educação). Na apresentação do requerimento, consta que, na votação do Plano Nacional para Educação, a Câmara dos Deputados “suprimiu a redação da terceira diretriz proposta para a Educação Brasileira” que “continha os leitmotivs clássicos da ideologia de gênero: ‘identidade de gênero’ e ‘orientação sexual’” e suprimiu todas as alusões a esses termos no restante daquele projeto. O RIC 565/2015 denuncia que, a despeito de “Câmara e o Senado terem rejeitado deste modo a ideologia de gênero como diretriz da educação nacional” na versão publicada do documento final da CONAE-2014, a diretriz suprimida estaria publicada, e seriam citadas “trinta e cinco vezes” “estratégias relacionadas aos termos ‘identidade de gênero’ e ‘orientação sexual’, a serem executadas sob responsabilidade da União, do Distrito Federal, dos estados e dos municípios”. Na justificativa desse RIC 565/2015, alguns pontos do texto do Plano Nacional de Educação são destacados: “promover a diversidade de gênero” (p. 25); “disseminar materiais pedagógicos que promovam a igualdade de gênero, orientação sexual e identidade de gênero” (p. 36); “desenvolver, garantir e executar anualmente nos sistemas de ensino Fóruns de Gênero” (p. 41); “inserir na avaliação de livros critérios eliminatórios para obras que veiculem preconceitos ao gênero, orientação sexual e identidade de gênero” (p. 42); “garantir condições institucionais para a promoção da diversidade de gênero e diversidade sexual” (p. 43); “elaborar diretrizes nacionais sobre gênero e diversidade sexual na educação básica e superior” (p. 45), e “ampliar os programas de formação continuada dos profissionais de educação sobre gênero, diversidade e orientação sexual” (p. 92). Os autores do requerimento argumentam que essas questões foram explicitamente rejeitadas pelo Congresso, por isso exigem as explicações e providências por parte do Ministro da Educação. Em sua longa argumentação teórica, o requerimento afirma que “o conceito de ‘gênero’ está sendo utilizado para promover uma revolução cultural sexual de orientação neo-marxista com o objetivo de extinguir da textura social a instituição familiar”. Essa denúncia apresentada no requerimento revela o objetivo de defesa da “família” no discurso dos autores.

Embora com alvos distintos (alteração da LDB, alterar o Plano Nacional de Educação, alterar o documento final da Conferência Nacional de Educação, pedir ao Ministro da Educação informações sobre essa conferência), essas proposições consistem em uma reação da Câmara dos Deputados ao que seria uma insubordinação às diretrizes estabelecidas pelas duas casas legislativas ao coibirem o debate sobre gênero e sexualidade nos programas escolares, no entanto, enfrentaram resistência dos educadores. Habermas (2012Habermas, Jürgen. Teoria do agir comunicativo 2: sobre a crítica da razão funcionalista. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2012.:266s) afirma que no século XVIII, começa uma “pedagogização dos processos de educação” que possibilita “um sistema de educação livre dos imperativos e mandatos da Igreja e da família”. Na reação que demanda excluir os temas transversais referentes a gênero e sexualidade no sistema de educação, os parlamentares que se pretendem defensores da família, na maioria dotados de identidade religiosa, pretenderiam recuperar o espaço perdido historicamente.

Projetos de alteração do ECA e outros

Dois projetos de alteração do Estatuto da Criança e do Adolescente são especialmente significativos com relação à “ideologia de gênero”: os Projeto de Lei no 620/2015 e no3235/2015. Neles, o combate à chamada “ideologia de gênero” explora o âmbito da criminalização.

O PL 620/2015, de autoria da Deputada Júlia Marinho (PSC-PA, evangélica, missionária da Assembleia de Deus), propõe alterar “a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente, para vedar a adoção conjunta por casal homoafetivo”. Comentando a decisão do Supremo Tribunal Federal que “concedeu à união homoafetiva o mesmo tratamento jurídico conferido às uniões estáveis”, na justificativa a deputada aponta que: “o reconhecimento jurídico de união homoafetiva não implica automaticamente a possibilidade de adoção por estes casais”. Prossegue com a afirmativa que a adoção é um” instituto especial que visa ao atendimento dos interesses do adotando, não se podendo alegar que sua vedação a casais homossexuais seja discriminação no acesso a um direito”. Segundo o projeto, a “adoção implica a inserção da criança ou adolescente no seio de uma família, sistema de vital importância para o seu adequado e saudável desenvolvimento físico, psíquico e social”. A proposição pretende “evitar que crianças e adolescentes adotados sejam inseridos em situação delicada e de provável desgaste social. A colocação [em] ambiente familiar que não logra ampla aceitação social pode gerar desgaste psicológico e emocional em fase crítica de desenvolvimento humano”. A proposição fundamenta essa crítica ao ambiente familiar em pesquisa do IBOPE, segundo a qual “53% da população é contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo”. O projeto demanda vedar a adoção homoparental “até que estudos científicos melhor avaliem os possíveis impactos sobre o desenvolvimento de crianças em tal ambiente”, bem como que a questão seja debatida no parlamento, considerado o “âmbito constitucionalmente previsto para tanto”. Essa proposição legislativa pretende ter justificativas científicas para o melhor interesse da criança e assim legitimar a exclusão de outras configurações familiares.

O segundo projeto de lei que visa alterar o ECA é especialmente significativo para o argumento deste artigo sobre a criminalização da “ideologia de gênero”. O PL 3235/2015, de autoria do Deputado Pastor Marco Feliciano (PSC-SP), acrescenta o art. 234-A à Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (o Estatuto da Criança e do Adolescente). O artigo 234 do ECA consta no capítulo I que trata dos “crimes praticados contra a criança e o adolescente por ação ou omissão”, na seção II que define “os crimes em espécie”. O artigo 234 tem a seguinte redação: “Deixar a autoridade competente, sem justa causa, de ordenar a imediata liberação de criança ou adolescente, tão logo tenha conhecimento da ilegalidade da apreensão”. A lei passaria a vigorar acrescida do seguinte artigo mantendo a pena do artigo 234:

Art. 234-A Veicular a autoridade competente, em atos normativos oficiais, em diretrizes, planos e programas governamentais, termos e expressões como “orientação sexual”, “identidade de gênero”, “discriminação de gênero”, “questões de gênero” e assemelhados, bem como autorizar a publicação dessas expressões em documentos e materiais didático-pedagógicos, com o intuito de disseminar, fomentar, induzir ou incutir a ideologia de gênero.

Pena – detenção, de seis meses a dois anos, e multa.

Segundo a justificativa do projeto, o objetivo é “coibir a proliferação da ideologia de gênero”, como reação ao documento final da Conferência Nacional de Educação de 2014 que “reintroduz a ideologia de gênero como diretriz da educação brasileira exatamente nos termos em que foi rejeitado pelo Congresso Nacional”. Assim seu objetivo é “insertar no Estatuto da Criança e do Adolescente um dispositivo que criminalize todo intento de disseminar, fomentar, induzir ou incutir a deletéria ideologia de gênero” pela inclusão de termos como “orientação sexual”, “identidade de gênero”, “questão de gênero” e seus sinônimos “em documentos e materiais didático-pedagógicos, bem como em atos normativos oficiais, em diretrizes, planos e programas governamentais”. O PL3235/2015 está em consonância de objetivos com o PL 3236/2015 também de autoria de Feliciano que altera o Plano Nacional de Educação.

Destacam-se ainda duas proposições legislativas, com temas pouco mencionados em termos de regularidade, mas que reforçam a tendência antidiversidade associada à criminalização da ideologia de gênero: o Projeto de Lei 1048/2015 e o Requerimento 41/2015.

O Projeto de Lei 1048/2015 (PL 1048/2015), de autoria do Deputado Sóstenes Cavalcante (PSD-RJ, evangélico, pastor Assembleia de Deus), “tipifica o crime de perigo de contágio de moléstia incurável”. O projeto tem como objetivo “conferir maior efetividade no combate a comportamento que vem trazendo grande insegurança à sociedade”. O projeto reproduz textualmente uma matéria publicada no jornal O Globo, sobre um grupo chamado “Clube do Carimbo”, composto de “homossexuais soropositivos” que se reuniria “em sites” a fim de passar dicas de como contaminar pessoas com o vírus da AIDS. A reportagem cita o “Boletim Epidemiológico, divulgado pelo Ministério da Saúde” informando que a AIDS avança entre homossexuais e heterossexuais, mas o aumento da infecção em “gays” (sic) é superior. O autor da proposição afirma que, com o referido projeto, “coíbe-se não apenas a disseminação da AIDS, mas de todas as moléstias incuráveis”. É possível concluir que o projeto ressuscita a figura do homossexual como perigo para a saúde pública por conta de seu comportamento, além de aludir a uma série de moléstias incuráveis implicando que todas seriam contagiosas.

Por fim, a última proposição legislativa a se destacar neste artigo é o Requerimento 41/2015 (REQ 41/2015 CDHM), de autoria do Deputado Pastor Marco Feliciano (PSC-SP), dirigido à Comissão de Direitos Humanos e Minorias, que “requer a realização de Audiência Pública para ouvir o depoimento de pessoas que deixaram de ser gay e discutir seu posicionamento e os problemas enfrentados, a partir de então, na sociedade”. Como justificativa para a audiência pública, o Deputado Pastor Marco Feliciano afirma que: “as pessoas que deixaram a homossexualidade sofriam preconceito e discriminação enquanto homossexuais, após a mudança de orientação e/ou condição sexual, passam a sofrer duplo preconceito”. O requerimento afirma haver “desconfiança e discriminação generalizadas contra os ex-LGBTTs”. Afirma ainda que na “legislação de combate ao preconceito” não se inclui a “comunidade ex-LGBTTs na proteção Estatal.” Continua, afirmando que “nenhum programa governamental promove a visibilidade e o respeito aos ex-LGBTTs”. No tocante à saúde mental desse grupo, o autor afirma que a “situação de “Não Ser” contribui para comportamentos antissociais, até mesmo, comportamentos suicidas”. Do ponto de vista desta análise, a iniciativa do deputado Marcos Feliciano inverte as acusações de preconceito e discriminação que dessa vez seriam dirigidas aos que deixaram sua orientação homossexual. Esse jogo de inversão de acusações apareceu acima articulado às acusações de intolerância e desrespeito contra diversas performances na Marcha do Orgulho LGBT.

Considerações finais

O levantamento para esta pesquisa revela por parte de parlamentares uma intensa mobilização contrária às reivindicações de direitos pelo movimento LGBT.

No tocante à parada do orgulho LGBT em São Paulo, nota-se que há uma inversão de acusações: dessa vez são os religiosos que acusam o movimento de intolerância religiosa por ter mobilizado símbolos cristãos em favor da denúncia da homofobia. Também acusam o movimento de desrespeito à diferença.

Outro aspecto que revela a articulação desses atores mobilizados: em análise qualitativa do discurso das justificativas para as proposições legislativas, contata-se a repetição literal de argumentos, não apenas uma reiteração de ideias, mas a cópia literal. Mais significativo ainda é o fato de o número de autores de determinadas proposições legislativas: 67 para o PDC 122/2015 e 51 para o PDC 30/2015.

Essa articulação envolve movimentos externos ao Congresso Nacional. O movimento Escola Sem Partido, demandado a ser participante nas audiências públicas referentes ao Plano Nacional de Educação e à Conferência Nacional de Educação, tem instruído proposições legislativas que denunciam a “ideologia de gênero”. A expressão também aparece em documentos da Igreja Católica como um ponto a ser rejeitado, conforme se constatou no manual Keys to Bioethics distribuído na Jornada Mundial da Juventude.

Até o momento, essa mobilização teve efeitos na área de educação ao impor a exclusão do tema de gênero e diversidade sexual das suas diretrizes. Também se opõe diretamente à regulamentação da identidade de gênero em diversas instâncias como a inclusão do nome social em boletins de ocorrência, nos registros escolares e no uso compartilhado de espaços públicos separados por gênero, como banheiros, com argumento de defesa da família.

Butler (2003)Butler, Judith. O parentesco é sempre tido como heterossexual. cadernos pagu (21), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2003, pp.219-260., em artigo que analisa o debate sobre pacto de solidariedade civil na França, identifica como variações do parentesco afastadas da família heterossexual são acusadas de perigosas para as crianças. Miskolci (2007)Miskolci, Richard. Pânicos morais e controle social: reflexões sobre o casamento gay. cadernos pagu (28), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2007, pp.101-128., analisando o debate contemporâneo sobre o casamento gay, usa o conceito de pânicos morais, um mecanismo de resistência e de controle da transformação societária: “pânicos morais emergem a partir do medo social com relação às mudanças, especialmente as percebidas como repentinas e, talvez por isso mesmo, ameaçadoras” (2007:103). Carla Machado (2004)Machado, Carla. Pânico moral: para uma revisão do conceito. Interacções, no 7, 2004, pp.60-80. também analisa o pânico moral como legitimador do controle social. A partir de Cohen, Machado divide o “ciclo vital” do pânico moral em fases: na primeira, o papel central seria da mídia que constitui um acontecimento como problema e oferece uma grade interpretativa. A segunda fase vai dar significado ao problema: além de identificar fatos com danos, vai estruturar atitudes contra os agentes identificados da desordem, um processo de “demonização” (sic). A terceira fase é de ação e remediação do problema: no nível de sensibilização vai focar a consciência do público em vigiar para impedir a retomada do problema, enquanto o segundo nível vai atuar no controle social. Na criação de pânicos morais, a pauta de reivindicações de inclusão social dos segmentos LGBT e das lutas feministas contra a desigualdade de gênero, reivindicações conhecidas nos documentos em defesa dos direitos humanos como direitos sexuais e reprodutivos, é resumida na categoria acusatória de “ideologia de gênero”. É importante retomar o que significa essa expressão em termos nativos e como em suas justificativas esses atores se apropriam dos conceitos e autores vindos da academia, como é o caso da filósofa Judith Butler.

Das proposições legislativas analisadas neste artigo, quatro citam Butler, totalizando cinco menções a essa autora nas proposições legislativas de 2015. As quatro aqui analisadas são: o Projeto de Lei 1859/2015, de Izalci Lucas Ferreira (PSDB-DF), que altera a redação da LDB para excluir conteúdos referentes à ideologia de gênero, identidade de gênero ou orientação sexual; o RIC 565/2015, requerimento de informação de autoria de Izalci Lucas Ferreira (PSDB-DF) e outros, solicitando informações sobre o PNE; o Projeto de Lei 3236/2015 (PL 3236/2015) de autoria do Deputado Pastor Marco Feliciano (PSC-SP), referente ao PNE também “exclui a promoção da ideologia de gênero”; e o projeto de lei que altera o Estatuto da Criança e da Adolescência PL 3235/2015, de autoria do Deputado Pastor Marco Feliciano (PSC-SP), que pretende “coibir a proliferação da ideologia de gênero” e criar dispositivo para “criminalizar” sua disseminação. A quinta, que susta portaria do Ministério da Educação que institui Comitê de Gênero de caráter consultivo no âmbito do Ministério da Educação, não foi aqui incluída. Cada uma dessas proposições legislativas tem um texto diferente para sua justificativa. Contudo há parágrafos inteiros repetidos, embora os primeiros autores das proposições sejam diferentes: Izalci Lucas Ferreira (PSDB-DF) e Pastor Marco Feliciano (PSC-SP), sendo o primeiro católico e o segundo pastor da Assembleia de Deus. Há uma narrativa de argumentação comum: atribuir a Butler, no seu livro Problemas de Gênero, a formulação recente do conceito e sua operacionalização a partir dos anos 90 e daí estabelecer duas relações: uma com o marxismo e sua proposta de destruição da família, propostas de que Butler e o movimento feminista seriam tributários, segundo o relato dos autores das proposições. A outra conexão é com as conferências da ONU e da UNESCO, que teriam feito repercutir essas propostas para além do pequeno círculo de feministas radicais. Assim, segundo a versão desses autores, a “ideologia de gênero” não apenas apresenta as diferenças entre homens e mulheres como construções históricas e sociais, mas como um projeto de destruição das “famílias” entendidas em sua versão tradicional.

A leitura atenta dos argumentos presentes nos discursos e nas proposições legislativas revela o propósito de defesa das famílias. Maria das Dores Campos Machado32 32 Comunicação “‘Ideologia de gênero’: discurso cristão para desqualificar o movimento feminista”, apresentada no 40º Encontro Anual da ANPOCS, 2016. identifica o início da reação cristã, principalmente das autoridades católicas, na Conferência Internacional sobre População (Cairo, 1994) e na Quarta Conferência Mundial sobre Mulheres (Pequim, 1995). Essas conferências inseriram o vocabulário de direitos sexuais no debate sobre direitos humanos,33 33 Segundo Rios (2006:75), “a Primeira Conferência Internacional de Direitos Humanos (Teerã, 1968) reconheceu a importância dos direitos humanos da mulher”. Essa expressão é usada ainda na Conferência Mundial de Direitos Humanos em Viena, no ano de 1993. Na conferência do Cairo (1994), o programa de ação afirma os direitos reprodutivos como categoria de direitos humanos (Rios, 2006:76). A Quarta Conferência Mundial da Mulher, realizada em Pequim em 1995, confirma as diretrizes da Conferência do Cairo de proteção aos direitos reprodutivos, “tais como direitos sexuais, direito à saúde, à integridade, à proteção contra violência, à igualdade e não-discriminação, matrimônio, educação e proteção contra exploração sexual” (Rios, 2016:77). além de fazer menção ao aborto inseguro já no Cairo, o que gerou resistências da Santa Sé e de muçulmanos.34 34 O capítulo 7 do documento final da Conferência do Cairo sobre População e Desenvolvimento intitulado “direitos reprodutivos e planejamento familiar”, relacionando os direitos reprodutivos à saúde sexual e reprodutiva. Alves (1995) ressalta a dificuldade de manter no texto, mesmo na parte não consensual do documento, a expressão “aborto inseguro” e “aborto legal”. A última expressão foi substituída por “circunstâncias em que o aborto não é contrário à lei”. Registra a resistência da Santa Sé e dos muçulmanos a esse debate, menor entre os últimos que admitem aborto para salvar a vida da mulher. A proposta era abordar o aborto como problema de saúde pública. Ainda segundo Machado, o primeiro documento do magistério católico utilizando a expressão “ideologia de gênero” data de 1998. Bracke e Paternotte (2016)Bracke, Sarah; Paternotte, David. Unpacking the Sin of Gender. Religion and Gender, vol. 6, no 2, 2016, pp.143-154. também identificam a reação vinda da Igreja Católica a partir das conferências do Cairo e de Pequim, em que foi acompanhada pela Direita Cristã dos Estados Unidos e de alguns Estados cristãos e muçulmanos. Essa reação se apoia no senso comum e em discursos das ciências duras como a medicina e a biologia para desmontar a noção de gênero. A Igreja passa a explicitar sua defesa de uma “teologia da complementaridade dos sexos”. Bracke e Paternotte vão considerar o papel do Vaticano e da Igreja Católica como protagonistas cruciais, embora não únicos, na construção de um movimento político que se opõe à dita “ideologia de gênero”. Esse rótulo consegue unir um número de preocupações da agenda de ativistas católicos conservadores, como a rejeição de vários direitos reprodutivos para mulheres (especialmente o aborto), a rejeição do casamento entre pessoas do mesmo sexo e da homoparentalidade, atribuição de papéis para homens e mulheres e rejeição da transgressão desses papéis, da educação sexual e o endosso das normas heteronormativas sobre sexualidade (Bracke; Paternotte, 2016Bracke, Sarah; Paternotte, David. Unpacking the Sin of Gender. Religion and Gender, vol. 6, no 2, 2016, pp.143-154.:148). A execução dessa agenda pode ser observada no debate na Câmara dos Deputados aqui analisado, o que não envolveu apenas parlamentares católicos, mas diversos políticos de tendência conservadora, dos quais a maioria tem identidade religiosa pública.

Considerando os discursos e as proposições legislativas analisados neste artigo com respeito ao tema, destaca-se a presença expressiva de deputados com identidade religiosa entre os autores, sendo exceção neste levantamento os que não têm pertencimento religioso identificado. Para vários deles essa identidade religiosa é constitutiva de sua construção como figura na política e não um atributo casual, tanto é que trazem o título de pastor no nome da candidatura. Entre os autores mais frequentes estão evangélicos como Ezequiel Teixeira (SD/RJ, projeto Vida Nova) e o Pastor Marco Feliciano (PSC/SP, Assembleia de Deus), além do católico Izalci Lucas Ferreira (PSDB-DF). Considerando tanto proposições como discursos, há católicos em particular da Renovação Carismática como Eros Biondini (PTB-MG), autor de apenas uma proposição que agrega 51 autores, Flavinho (Flavio Augusto da Silva), PSB-SP, e Givaldo Carimbão (PROS-AL presidente da Frente Parlamentar Católica). A participação dos evangélicos é fragmentada por diversas denominações, com predominância absoluta de igrejas pentecostais, em particular a Assembleia de Deus. Não foram observados entre os autores de discursos e os primeiros autores de proposições legislativas parlamentares ligados às igrejas neopentecostais como a Igreja Universal do Reino de Deus. Exceções entre os religiosos por apresentarem posição favorável à diversidade sexual são Chico Alencar (PSOL-RJ) e Luiz Couto (PT-PB), ambos católicos.

Segundo Montero (2016)Montero, Paula. “Religiões Públicas” ou religiões na Esfera Pública? Para uma crítica ao conceito de campo religioso de Pierre Bourdieu. Religião e Sociedade, vol.36, no 1, jun. 2016, pp.128-150., Bourdieu, em artigo que identifica a dissolução do religioso, afirma que o campo religioso incorporou muitos atores novos e nesse campo estaria em jogo o controle da vida privada e da orientação da visão de mundo (2016:140). Criticando o conceito de “campo religioso” de Bourdieu, Montero propõe uma

nova abordagem na qual “as religiões públicas” não sejam mais tomadas como a presença (indevida) das religiões na esfera pública, mas sim como diferentes formas de produção de públicos e publicidade pelos atores religiosos por meio de diversas tecnologias/artefatos de visibilidade (Montero, 2016Montero, Paula. “Religiões Públicas” ou religiões na Esfera Pública? Para uma crítica ao conceito de campo religioso de Pierre Bourdieu. Religião e Sociedade, vol.36, no 1, jun. 2016, pp.128-150.:129-130).

A autora se pergunta se o conceito de “campo religioso” dá conta das transformações contemporâneas das sociedades seculares, nas quais os agentes religiosos parecem estar em toda parte (Montero, 2016Montero, Paula. “Religiões Públicas” ou religiões na Esfera Pública? Para uma crítica ao conceito de campo religioso de Pierre Bourdieu. Religião e Sociedade, vol.36, no 1, jun. 2016, pp.128-150.:135). Considerando este material de pesquisa, isso parece muito angustiante para os defensores dos direitos das mulheres e da população LGBT, uma vez que sempre parece haver religiosos se metendo a confiscar seus direitos. Segundo Montero (2016)Montero, Paula. “Religiões Públicas” ou religiões na Esfera Pública? Para uma crítica ao conceito de campo religioso de Pierre Bourdieu. Religião e Sociedade, vol.36, no 1, jun. 2016, pp.128-150., os atores negociam continuamente as fronteiras desse campo quando se trata de definir as configurações de uma questão pública, de modo que, ao fazê-lo, alteram o próprio sentido do que é compreendido como religioso. Tendo em conta essas observações de Montero com respeito a controvérsias públicas acerca da livre expressão da sexualidade, o modo de engajamento dos agentes religiosos e as posições que ocupam no campo, sua opinião só ganha visibilidade à medida que tem força, ou seja, capacidade de mobilização, uma vez que são os grupos de pressão que forjam as opiniões. Retomando o tema deste artigo, a criação de uma locução como “ideologia de gênero” funciona como categoria de acusação que gera mobilização em diversas instâncias, em particular na regulação da vida no âmbito do Legislativo, mas com especial preocupação com a escola e as instituições relacionadas à transmissão de saberes, em particular quanto à educação de crianças. Por isso a intensa reação quanto à recuperação pela Conferência Nacional de Educação dos conteúdos de gênero e sexualidade refutados nas duas casas legislativas. Tal reação se relaciona também com iniciativas do governo de implementar políticas públicas de combate à homofobia e de respeito à diversidade sexual (cf. Junqueira, 2009Junqueira, Rogério Diniz (org.). Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, UNESCO, 2009.; Vital da Cunha; Lopes, 2013Vital da Cunha, Christina; Lopes, Paulo Victor Leite. Religião e política: uma análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de LGBTs no Brasil. Rio de Janeiro, Fundação Heinrich Böll; ISER, 2013.). As críticas mais contundentes às resoluções da Secretaria de Direitos Humanos com respeito à regulamentação da identidade de gênero são fundamentadas na violação dos direitos dos pais em controlar os filhos menores. É possível compreender esse aspecto a partir da análise de Vianna (2005)Vianna, Adriana de Resende B. Direitos, moralidades e desigualdades: considerações a partir de processos de guarda de crianças. In: Lima, Roberto Kant de (org.). Antropologia e Direitos Humanos 3 – Prêmio ABA/FORD. Niterói, EDUFF, 2005, pp.13-67. sobre a desigualdade jurídica fundamental que separa maiores e menores. Trata-se da

tensão entre a concepção da criança ou do adolescente como indivíduo, portador de direitos análogos aos conferidos aos que desfrutariam os indivíduos adultos, e sua condição peculiar de alguém considerado “em formação” (Vianna, 2005Vianna, Adriana de Resende B. Direitos, moralidades e desigualdades: considerações a partir de processos de guarda de crianças. In: Lima, Roberto Kant de (org.). Antropologia e Direitos Humanos 3 – Prêmio ABA/FORD. Niterói, EDUFF, 2005, pp.13-67.:17-18).

Vianna mostra como crianças e adolescentes são sujeitos especiais de direito, reconfigurando essa desigualdade jurídica na perspectiva da proteção, que não pode ser separada da escolha dos responsáveis, o que implica a produção de “expedientes de controle” tais como os apresentados nas proposições legislativas. Nessas proposições legislativas, a hierarquia familiar apareceu com mais constância do que argumentos que questionassem a falta de fundamento natural para tais identidades de gênero discordantes da norma.

Se considerarmos os parlamentares autores dos discursos e das proposições legislativas como atores coletivos, é possível afirmar com Montero (2016Montero, Paula. “Religiões Públicas” ou religiões na Esfera Pública? Para uma crítica ao conceito de campo religioso de Pierre Bourdieu. Religião e Sociedade, vol.36, no 1, jun. 2016, pp.128-150.:144) que

os atores coletivos não preexistem às narrativas e performances que tornam públicos determinados temas. Ao contrário, a própria atividade coletiva de colocar em cena certos confrontos constrói determinados atores como “religiosos” e a religião como pública.

Ao se arrogarem a posição de defensores da família, os atores com identidade religiosa publicamente reconhecida reconfiguram a noção do religioso, mostrando que, na oposição entre coisas sagradas e profanas (Durkheim, 1989Durkheim, Emile. As formas elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Paulinas, 1989.), a família é sagrada no debate sobre expressão sexual e de gênero, enquanto a vida do feto é sagrada quando se fala de aborto.

A análise de documentos apresentados pela Igreja Católica como guias de consciência moral e práticas, caso do manual Keys to bioethics distribuído na Jornada Mundial para a Juventude, mostra a preocupação doutrinária em fundamentar o caráter de dado natural do sexo, criticando a perspectiva de construção e de escolha da “ideologia de gênero” (categoria de acusação conforme afirmado acima). Por outro lado, surpreendentemente, se comparada ao enfoque sobre aborto neste projeto de pesquisa e no projeto precedente, houve pouca menção a dados científicos que refutassem tal ideologia. Por exemplo, nos projetos de decretos legislativos que questionavam as resoluções da Secretaria de Direitos Humanos que estabeleciam a adoção do nome social nos boletins de ocorrência e o uso dos banheiros conforme a identidade de gênero, apenas uma proposição do deputado Marco Feliciano criticava a incoerência entre o conteúdo dos cromossomos e o banheiro escolhido. Da mesma forma, o projeto de lei que vedava a adoção por casais formados de pessoas do mesmo sexo argumentava pelo dano à criança, visando a seu melhor interesse, e a prevenir que fossem discriminadas em função de suas famílias. Já nas justificativas das proposições legislativas criticando a “ideologia de gênero” defende-se a complementaridade dos “sexos” como algo dado e inerente, embora sem citar o discurso científico obter legitimidade.

O conceito de política sexual pode ser chave para compreender esse horizonte conflitivo:

O conceito de política sexual permite interpelar simultaneamente múltiplas dimensões da gestão social do erótico e do sexual e explorar a coexistência, às vezes conflitiva, de distintos e muitas vezes contraditórios estilos de regulação moral, compreendidos aqui como conjuntos singulares de técnicas de produção de sujeitos, ou seja, de pessoas dotadas de certa concepção de si e de certa corporalidade (Carrara, 2015Carrara, Sérgio. Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo. Mana, vol. 21, no 2, 2015, pp.323-345.:325).

Observa-se a partir do debate legislativo, apresentado neste artigo por meio dos discursos e proposições legislativas na Câmara dos Deputados, um confronto de moralidades, traduzido em disputas de modos de regulação moral, na reação contrária à performance da crucificação na Parada LGBT, na exclusão dos conteúdos transversais referentes a gênero e sexualidade no Plano Nacional de Educação, ao refutar a possibilidade de expressão da identidade de gênero diferente da norma nos espaços compartilhados das escolas. Há um combate ferrenho a escolhas que seriam características de sujeitos livres e autônomos, conforme a configuração individualista de valores (Dumont, 1997Dumont, Louis. Homo hierarchicus: o sistema de castas e suas implicações. São Paulo, EDUSP, 1997.) apontada no início do artigo, ou ainda segundo os princípios de autonomia pessoal que sustentam os direitos reprodutivos (Corrêa e Petchesky, 1995). A mobilização analisada na Câmara dos Deputados reafirma um processo de discriminação, como explicam Louro e Junqueira:

Os sujeitos que, por alguma razão ou circunstância, escapam da norma e promovem uma descontinuidade na sequência sexo/gênero/sexualidade serão tomados como minoria e serão colocados à margem das preocupações de um currículo ou de uma educação que se pretenda para a maioria. Paradoxalmente, esses sujeitos marginalizados continuam necessários, pois servem para circunscrever os contornos daqueles que são normais e que, de fato, se constituem nos sujeitos que importam (Louro, apudJunqueira, 2009Junqueira, Rogério Diniz (org.). Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, UNESCO, 2009.:14).

Alguns sujeitos importam e outros não. A negação da possibilidade de existência diversa reafirma o lugar privilegiado em termos morais que pretendem os agentes dessa mobilização conservadora a ponto de se propor não apenas excluir, mas até criminalizar a “ideologia de gênero” conforme o projeto do Pastor Marcos Feliciano acima citado. Este estudo aborda o tema da diversidade sexual nos discursos proferidos por parlamentares na Câmara de Deputados e nas proposições legislativas do ano de 2015, e não no contexto da educação, como no texto de Guacira Lopes Louro citado. A despeito disso, ao analisar a maioria dos discursos e de proposições levantados contrários à diversidade sexual, percebe-se essa perspectiva que marginaliza sujeitos que não se enquadram na norma e promovem a descontinuidade na sequência sexo/gênero/sexualidade: eles devem ser postos à margem da cidadania e suas reivindicações devem ser obliteradas em função da defesa de um modelo de família hegemônico que se pretende o único legítimo. Em nome da preservação da família, disseminam-se pânicos morais (Miskolci, 2007Miskolci, Richard. Pânicos morais e controle social: reflexões sobre o casamento gay. cadernos pagu (28), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2007, pp.101-128.). Essas são armas de mobilização da opinião pública contra a diversidade de expressão da liberdade sexual.

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  • 1
    Este trabalho é resultado de projeto de pesquisa sobre aborto e diversidade sexual no contexto do debate sobre direitos humanos no Brasil iniciado em 2015, razão de escolha desse ano para o levantamento.. Trata-se do desdobramento de um projeto sobre o estatuto de fetos e embriões e o debate sobre direitos humanos no Brasil. O estudo integra o projeto de pesquisa “Aborto e diversidade sexual: estatuto do nascituro, homofobia, individualismo e conservadorismo o no debate público sobre direitos humanos no Brasil”, contemplado com auxílio APQ-1 da FAPERJ e com bolsa de produtividade nível 2 do CNPq. Agradeço ao assistente de pesquisa Everton Batista Teixeira, bolsista de iniciação científica FAPERJ pelo levantamento dos dados na Câmara dos Deputados
  • 2
    Segundo Montero (2016Montero, Paula. “Religiões Públicas” ou religiões na Esfera Pública? Para uma crítica ao conceito de campo religioso de Pierre Bourdieu. Religião e Sociedade, vol.36, no 1, jun. 2016, pp.128-150.:136) “o conceito de esfera pública remete a uma ação que se desenvolve em um espaço social pensado como intermediário entre a intimidade e a esfera estatal”. A discussão sobre religião e esfera pública será mais desenvolvida adiante.
  • 3
    Portal da Câmara dos Deputados: http://www2.camara.leg.br/. Projeto de Lei: Espécie de proposição destinada a regular matéria inserida na competência normativa da União e pertinente às atribuições do Congresso Nacional, sujeitando-se, após aprovada, à sanção ou ao veto presidencial. Projeto de Decreto Legislativo: Destina-se a regular as matérias de exclusiva competência do Poder Legislativo, sem a sanção do Presidente da República. Podem tratar de aprovação de atos internacionais; aprovação ou rejeição de concessões ou renovações de concessões para exploração de serviços de radiodifusão; autorização para que o Presidente da República se ausente do País; relações jurídicas decorrentes de perda de eficácia de medida provisória; atos praticados na vigência de medida provisória; indicação de autoridade ao TCU; plebiscito ou referendo; programa monetário e sustação de atos normativos do Poder Executivo. Requerimento: Espécie de proposição por meio da qual o parlamentar requer a adoção de alguma providência. Indicação: Proposição pela qual o parlamentar sugere a manifestação de uma ou mais comissões, ou do Poder Executivo, acerca de determinado assunto, visando a elaboração de projeto sobre a matéria ou a adoção de providência, realização de ato administrativo ou de gestão [http://www2.camara.leg.br/glossario. Glossário da Câmara dos Deputados – acesso em: 17 jun. 2017].
  • 4
    A título de comparação, no levantamento anterior, considerando os anos entre 2011 e 2014, a média de discursos apenas com a palavra-chave “aborto”, por ano, foi de 27, e de proposições legislativas foi de 6,75. Isso mostra que a temática da diversidade sexual foi intensamente abordada no ano de 2015.
  • 5
    Essa expressão mais longa foi retirada da apresentação do livro Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas, organizado por Rogério Diniz Junqueira, por demanda da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação.
  • 6
    http://www2.camara.leg.br/. As palavras-chave foram divididas em dois blocos, de temas ligados à diversidade sexual e as ligadas ao aborto. As palavras-chave utilizadas para diversidade sexual foram: “LGBT”, “orientação sexual”, “gay”, “gays”, “homofobia”, “transfobia”, “homossexual”, “homossexualidade”, “homossexuais”, “lésbicas”, “homossexualismo” e “opção sexual”. Foi analisada a argumentação contida nos discursos e nas proposições legislativas. Com respeito à diversidade sexual, as posições foram classificadas em pró-diversidade e antidiversidade.
  • 7
    Com respeito aos discursos relacionados à diversidade sexual houve um total de 104 (cento e quatro) resultados, obtidos. Eliminando as repetições das palavras-chave, pois a grande maioria dos discursos menciona mais de uma, o total é de 56 discursos. Quanto às proposições legislativas, foram localizadas 162 (cento e sessenta e duas), mas eliminando as repetições, quando a proposição tem mais de uma palavra-chave, o total é de 60 proposições legislativas. O resultado de busca com maior frequência nas proposições legislativas foi LGBT (a categoria guarda-chuva com 37), seguida por orientação sexual (34), gays (16), homofobia (15), lésbicas (14), gay (12), travesti (11), homossexuais (9), homossexualidade (6), homossexual (5), opção sexual (2), transfobia (1).
  • 8
    Natividade e Lopes estudam a trajetória do PL 5003/2001 (PLC 122/2006) no tocante à homofobia; a Lei 3406/2000 que estabelece sanções contra estabelecimentos públicos no Estado do Rio de Janeiro que discriminem em razão da orientação sexual; com respeito aos direitos previdenciários no Estado do Rio de Janeiro, a aprovação da Lei 3786/2002.
  • 9
    Especificamente no tema deste artigo com referência à diversidade sexual, Carrara (2010Carrara, Sérgio. Políticas e direitos sexuais no Brasil contemporâneo. Bagoas: Revista de Estudos Gays, no 5, 2010, pp.131-147.:135) define os direitos LGBT, ou relativos à diversidade sexual, da seguinte forma: “direitos sexuais se referem a prerrogativas legais relativas ou à sexualidade ou a grupos sociais cujas identidades foram forjadas sobre formas específicas de desejos e de práticas sexuais”. Carrara (2010Carrara, Sérgio. Políticas e direitos sexuais no Brasil contemporâneo. Bagoas: Revista de Estudos Gays, no 5, 2010, pp.131-147.:135) observa que alguns desses direitos não estão relacionados à sexualidade: “questões previdenciárias, adoção, liberdade de movimento em espaços públicos ou de mudança de nome e sexo em certidões de nascimento”, mas têm sido compreendidos dessa forma. Segundo Corrêa e Petchesky (1996Corrêa, Sonia; Petchesky, Rosalind. Direitos sexuais e reprodutivos: uma perspectiva feminista. Physis: Revista de Saúde Coletiva, vol. 6, no 1-2, 1996, pp.147-177.:151), o termo “direitos reprodutivos” está relacionado a ideias de “integridade corporal e autodeterminação sexual”; quatro princípios éticos estão na base desses direitos: integridade corporal, autonomia pessoal, igualdade e diversidade.
  • 10
    Cf. notícia veiculada em 8/10/2015 no informativo Câmara Notícias, do portal da Câmara dos Deputados. “Câmara aprova Estatuto da Família formada a partir da união de homem e mulher” [<http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITOS-HUMANOS/497879-CAMARA-APROVA-ESTATUTO-DA-FAMILIA-FORMADA-A-PARTIR-DA-UNIAO-DE-HOMEM-E-MULHER.html – acesso em 7 dez. 2016].
  • 11
    Um exemplo são religiosos contrários ao aborto que defendem que o embrião é um sujeito de direitos desde a concepção, porque é dotado de uma constituição genética única.
  • 12
    “Representei a dor que sentimos”, diz transexual “crucificada” na Parada Gay [http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/06/representei-dor-que-sentimos-diz-transexual-crucificada-na-parada-gay.html .– acesso em 26 jul. 2016].
  • 13
    Parada Gay reúne milhares em SP [http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/06/parada-gay-reune-milhares-em-sp.html – acesso em 26 jul. 2016].
  • 14
  • 15
    O deputado Eduardo Bolsonaro, no ano de 2015, identificava-se como católico, segundo o levantamento feito nas redes sociais nesta pesquisa. Em 2017, a Wikipedia já o identifica como evangélico. Cf. https://pt.wikipedia.org/wiki/Eduardo_Bolsonaro. Acesso em 21/10/2017,
  • 16
    Deputado Flavinho (Flavio Augusto da Silva, PSB-SP), atuante na Rádio Canção Nova, veículo da Renovação Carismática Católica.
  • 17
    RIC 627/2015. e RIC 628/2015 de autoria do Deputado Silas Câmara (pastor da Assembleia de Deus PSD-AM); RIC 635/2015, de autoria do Deputado Vinicius Carvalho (evangélico, PRB-SP); RIC 636/2015, RIC 637/2015 e RIC 638/2015 de autoria do Deputado Sóstenes Cavalcante (pastor da Assembleia de Deus, PSD-RJ); RIC 668/2015 e RIC 669/2015, de autoria do Deputado Alan Rick (pastor da Assembleia de Deus, PRB-AC); RIC 699/2015 e RIC 700/2015, de autoria do Deputado Ronaldo Nogueira (PTB-RS), pastor da Assembleia de Deus.
  • 18
    REQ 76/2015 CDHM, de autoria do Deputado Major Olímpio (Sergio Olimpio Gomes, PDT-SP).
  • 19
    REQ 80/2015 CDHM, de autoria do Deputado Ezequiel Teixeira (SD-RJ, evangélico, projeto Vida Nova)
  • 20
    Disponível em <http://www.sdh.gov.br/sobre/participacao-social/cncd-lgbt/resolucoes/resolucao-011> – acesso em 26 jul. 2016. Orientação sexual “como uma referência à capacidade de cada pessoa de ter uma profunda atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim como ter relações íntimas e sexuais com essas pessoas”. Identidade de gênero “a profundamente sentida, experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos”. Nome social é aquele pelo qual travestis e transexuais se identificam e são identificadas pela sociedade.
  • 21
  • 22
    Visam sustar a resolução 11, o PDC 18/2015 e o PDC 17/2015. Seis projetos de decretos legislativos visam sustar a resolução 12: PDC 16/2015, PDC 26/2015, PDC 30/2015, PDC 48/2015, PDC 91/2015 e PDC 115/2015. Dois projetos visam sustar as resoluções 11 e 12: PDC 61/2015 e PDC 90/2015.
  • 23
    PDC 30/2015 de Eros Biondini (PTB-MG, católico, cantor da Renovação Carismática), e mais 50 autores.
  • 24
    PDC 26/2015 de Ezequiel Teixeira (SD-RJ, evangélico, pastor, projeto Vida Nova.
  • 25
    PDC 91/2015 de autoria do Deputado Fábio Sousa (PSDB-GO, evangélico, pastor da Igreja Fonte da Vida)
  • 26
    PDC 16/2015 de autoria do Deputado Pr. Marco Feliciano, PSC-SP, pastor evangélico da Assembleia de Deus.
  • 27
    PDC 26/2015 de Ezequiel Teixeira, SD-RJ, evangélico, pastor do projeto Vida Nova.
  • 28
    PDC 115/2015, de Alfredo Kaefer (PSDB-PR), católico.
  • 29
    PDC 16/2015, de autoria do Deputado Pastor Marco Feliciano (PSC-SP), Assembleia de Deus.
  • 30
    São respectivamente: REQ 18/2015 CDHM, de Jair Bolsonaro (PP-RJ), dirigido à Comissão de Direitos Humanos e Minorias, REQ 17/2015 CDHM ,de autoria do Pastor Marco Feliciano (PSC-SP); REQ 2020/2015, de Alan Rick (PRB-AC pastor da Assembleia de Deus) e outros.
  • 31
    O deputado é católico, da Renovação Carismática. O PDC é de autoria coletiva de Flavinho (Flavio Augusto da Silva, PSB-SP) e outros 66 autores.
  • 32
    Comunicação “‘Ideologia de gênero’: discurso cristão para desqualificar o movimento feminista”, apresentada no 40º Encontro Anual da ANPOCS, 2016.
  • 33
    Segundo Rios (2006:75), “a Primeira Conferência Internacional de Direitos Humanos (Teerã, 1968) reconheceu a importância dos direitos humanos da mulher”. Essa expressão é usada ainda na Conferência Mundial de Direitos Humanos em Viena, no ano de 1993. Na conferência do Cairo (1994), o programa de ação afirma os direitos reprodutivos como categoria de direitos humanos (Rios, 2006:76). A Quarta Conferência Mundial da Mulher, realizada em Pequim em 1995, confirma as diretrizes da Conferência do Cairo de proteção aos direitos reprodutivos, “tais como direitos sexuais, direito à saúde, à integridade, à proteção contra violência, à igualdade e não-discriminação, matrimônio, educação e proteção contra exploração sexual” (Rios, 2016Rios, Roger Raupp. Para um direito democrático da sexualidade. Horizontes Antropológicos, ano 12, vol. 26, 2016, pp.71-100.:77).
  • 34
    O capítulo 7 do documento final da Conferência do Cairo sobre População e Desenvolvimento intitulado “direitos reprodutivos e planejamento familiar”, relacionando os direitos reprodutivos à saúde sexual e reprodutiva. Alves (1995)Alves, J.A. Lindgren. A Conferência do Cairo sobre População e Desenvolvimento e o paradigma de Huntington. Revista Brasileira de Estudos de População, vol. 12, no 1-2, 1995, pp.3-20. ressalta a dificuldade de manter no texto, mesmo na parte não consensual do documento, a expressão “aborto inseguro” e “aborto legal”. A última expressão foi substituída por “circunstâncias em que o aborto não é contrário à lei”. Registra a resistência da Santa Sé e dos muçulmanos a esse debate, menor entre os últimos que admitem aborto para salvar a vida da mulher. A proposta era abordar o aborto como problema de saúde pública.

Fontes documentais

  • Brasil. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, e legislação correlata. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, Centro de Documentação e Informação. Edições Câmara, 2014.
    Brasil. Fórum Nacional de Educação. Comissão Organizadora Nacional da Conferência Nacional de Educação. Documento Final. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria Executiva, 2014.
    Keys to Bioethics – JMJ Rio 2013: Manual de Bioética “Chaves para a bioética”. Fondation Jerôme Lejeune; Comissão Nacional da Pastoral Familiar: Brasília, 2013.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    13 Dez 2016
  • Aceito
    15 Set 2017
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