Open-access Ainda somos poucas: exclusão e invisibilidade na ciência

RESENHAS

Ainda somos poucas. Exclusão e invisibilidade na ciência*

Maria Conceição da Costa

Professora do Instituto de Geociências e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero - Pagu, ambos na Unicamp, Campinas-São Paulo. dacosta@ige.unicamp.br

Embora a imprensa recentemente venha "enxergando com otimismo" (Revista Fapesp, 07/08/06) a participação das mulheres nas pesquisas, na geração do conhecimento, cada vez mais reconhecidas e apontadas como responsáveis pelo aumento de produtividade em várias áreas, os indicadores e pesquisas apontam a existência de preconceitos e dificuldades.1 As afirmações do reitor da Universidade de Harvard, Lawrence Summers (2005), sobre a incapacidade das mulheres serem boas pesquisadoras e que as diferenças biológicas explicariam o reduzido sucesso de mulheres nas ciências corrobora a existência de preconceitos que acarretam dificuldades nesta carreira.

O que faz com que o número de mulheres ainda hoje seja consideravelmente menor do que o de homens na ciência, em várias áreas do conhecimento? O que ainda impediria as mulheres de participarem dos centros e núcleos de decisão, dos escalões superiores na ciência e na tecnologia? Perguntas ainda presentes, poucas respostas de fato é o que propõe a desvendar o livro organizado por Lucy Woellner dos Santos, Elisa Yoshie Ichikawa e Doralice de Fátima Cargano – Ciência, Tecnologia e Gênero.

Desvendar o feminino na construção do conhecimento vem de encontro às preocupações de uma área ainda em construção no Brasil, Gênero e Ciência, mas fértil em abordagens e análises sobre a participação de mulheres na ciência, na geração do conhecimento.

Desde a publicação do paper seminal de Alice Rossi (1965), outras autoras têm se dedicado a entender a suposta "invisibilidade" das mulheres na ciência, a ausência, nos vários momentos da história. Químicas, Médicas, Biólogas, entre outras, as mulheres têm sido relegadas a segundo plano na História da Ciência, embora esforços recentes possam apontar e resgatar sua presença na geração do conhecimento desde a Grécia, Idade Média, através do resgate de memórias, biografias. Papéis, muitas vezes, de coadjuvantes, ajudantes, quase invisíveis, agindo nas "sombras da história" e do conhecimento, historiadoras, entre outras profissionais, as mulheres começam a aparecer e, nesse resgate, descobrimos que não foram poucas.

Na verdade, a ausência da presença das mulheres na ciência diz respeito à predominância de uma ideologia que continua sustentando a objetividade, a neutralidade e a racionalidade da ciência e a existência de poucas mulheres para escrever sobre a relação gênero e ciência. (Lopes, 2005)

Ciência, Tecnologia e Gênero contribui extraordinariamente para o resgate da participação das mulheres na ciência e na tecnologia. Mais do que apresentar as mulheres e suas histórias de vida na ciência, revela universos e saberes presentes no cotidiano e na contribuição das mulheres na história da ciência. As distintas abordagens representam, em grande medida, o estado da arte das pesquisas sobre gênero, ciência e tecnologia e permite repensar o que de fato ainda nos impede de sermos muitas.

Os artigos apontam um balanço do debate sobre Ciência e Gênero, refletindo sobre biografias de mulheres partícipes na história da ciência, a exemplo de Bertha Lutz, o que a mídia vem divulgando sobre genética na atribuição dos papéis sexuais, relações de gênero e simbolismo na literatura e conhecimentos cotidianos, dicotomias entre o fazer intuitivo e o fazer racional.

De leitura agradável e bastante acessível, esse livro não se pretende restrito as feministas – protagonistas da questão da invisibilidade –, tampouco aos estudiosos de Gênero e Ciência, mas também aos estudiosos da área de Ciência e Tecnologia. Análises sobre indicadores, a participação das mulheres da C&T nacional fazem parte das preocupações de algumas das autoras do livro. É dessa forma que um dos representantes da C&T nacional, Ennio Candotti, é chamado a fazer a apresentação do livro. Usando como metáfora um quadro de Velásquez – As Meninas –, o autor convida os leitores a um outro olhar, a ver aquilo que normalmente está explícito, mas que as relações sociais tornaram implícito, ou seja, as relações de poder e dominação nas instituições. Assim é o papel das mulheres na história, a relação entre homens e mulheres nos fazeres da ciência. Relações e instituições, esses os entraves a uma maior participação das mulheres.

Em grande medida, poderíamos afirmar que o processo de distanciamento das mulheres para com a ciência, enquanto atividade sistematizada, começa no processo de socialização. Direcionadas para atividades ditas "femininas", mesmo a entrada na carreira científica acaba esbarrando em outros constrangimentos como a difícil escolha entre família, maternidade e carreira. Assim, não se trata apenas de superar os constrangimentos criados, mas de reinventar a atividade. A questão da objetividade da atividade se confunde com a postura em direção à superação dos obstáculos.

Ao invés, portanto, de questionarmos a postura e a submissão à superação dos constrangimentos, será que a reinvenção da atividade, uma nova abordagem, um novo modelo de relação não poderia ser aprofundado? Essas questões são também objeto do livro ora em análise, repensar a atuação das mulheres no fazer ciência e tecnologia, repensar o "modelo masculino" de se fazer ciência. Segundo as autoras, o "modelo masculino de sucesso acadêmico envolve compromisso de tempo integral ao trabalho científico e relações academicamente competitivas com seus pares". (xv) Entretanto, algumas mulheres tentam equilibrar as esferas do trabalho e da vida privada. A postura crítica em relação à devoção ao mundo do trabalho, ao mundo acadêmico, que exigiria dedicação integral mesmo fora do local de trabalho, revela o esboço de um outro modelo possível. A esse novo modelo tem-se denominado "feminino", já que se trata de cultivar também a vida privada, esta, de responsabilidade das mulheres (filhos, família).

A decisão tem sido difícil e os indicadores apontam que a ciência ainda é masculina, embora nas últimas duas décadas tenha havido um aumento da participação das mulheres na academia. É preciso salientar que só foi possível descobrir aquilo que já se sabia, quantas afinal somos?, a partir da conferência de Beijing em 1995, reiterado pela Conferência sobre Ciência em Budapeste em 1999. Embora esse compromisso de "abrir a caixa preta dos indicadores" já tenha uma década, nem todos os órgãos responsáveis pela elaboração de indicadores considera este recorte importante. Por que saber e assinalar que existem poucas mulheres na ciência? Para os policy-makers esta não é uma questão relevante, menos ainda repensar a carreira, suas prioridades.

Na construção dos indicadores, dados recentes apontam que, no Brasil, as mulheres são maioria até o pós-doutorado; no corpo docente a participação da mulher é equilibrada entre os doutores e os livre-docentes e são minoria entre os professores titulares. Na coordenação de importantes pesquisas coletivas, as mulheres coordenaram cerca de 40% de grandes projetos. Embora esse número seja relevante, entrevistas afirmam que não existe, de fato, um preconceito explícito, i.e., os homens continuam agindo de forma a garantir a hegemonia masculina nos postos mais elevados das ciências.

Se por um lado, no séc XX a presença das mulheres pode ser medida pelas conquistas das mulheres, tanto na ciência como pelos seus direitos civis, ainda existem impedimentos, fazendo com que as invisibilidades permaneçam.

É preciso continuar a apontar a invisibilidade, o teto de vidro e o piso pegajoso que cerceia, de diferentes maneiras, explícita e implicitamente, a carreira de mulheres cientistas. Este é o mérito do livro, que aponta o debate e as discussões.

Referências bibliográficas

LOPES, Maria Margaret e COSTA, M. C. . Problematizando ausências: mulheres, gênero e indicadores na História das Ciências. In: QUARTIM DE MORAES, Maria LYGIA. (ORG.) Gênero nas fronteiras do Sul. Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero - Pagu/Unicamp, Coleção Encontros, 2005.

Revista Fapesp, 07/08/06 - Science. http://www.fapesp.br.

ROSSI, Alice. Women in Science: Why So Few? Science, vol. 148, nº 3674, United States, May 1965, pp.1196-1202

SANTOS, Lucy Woellner dos; ICHIKAWA, Elisa Yoshie e CARGANO, Doralice de Fátima. (orgs.) Ciência, Tecnologia e Gênero. Curitiba-PR, Iapar, 2006.

SUMMERS, Lawrence. Remarks at NBER Conference in Diversifying the Science & Engineering Workforce. The Office of the President, Cambridge, Mass. January 14, 2005.

  • *
    Resenha do livro
    Ciência, Tecnologia e Gênero, organizado por Lucy Woellner dos Santos, Elisa Yoshie Ichikawa e Doralice de Fátima Cargano. Recebida para publicação em setembro de 2006.
  • 1
    A mesma reportagem citada acima que em grande medida a baixa presença de mulheres requerendo patentes na área de ciências da vida, nos Estados Unidos, se deve "as limitadas redes comerciais das mulheres pesquisadoras e da visão tradicional que elas têm sobre a carreira científica". (Id.)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Nov 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2006
    location_on
    Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Núcleo de Estudos de Gênero - PAGU Rua: Cora Coralina, 100., Cidade Universitária Zeferino Vaz, CEP: 13083-869, Telefone: (55 19) 3521-7873 - Campinas - SP - Brazil
    E-mail: cadpagu@unicamp.br
    rss_feed Stay informed of issues for this journal through your RSS reader
    Acessibilidade / Reportar erro