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O ardil feminino do pseudônimo: a “Colombina” de Yde Schloenbach Blumenschein* * Subsidiada pelo CNPq, esta pesquisa está sendo preparada para publicação em livro dedicado às sobrinhas-netas de Yde – Amaryllis Schloenbach e Maria Thereza Cavalheiro (que me dispuseram o referido Acervo) – e à memória da minha querida conterrânea Ana Maria Nogueira Pinto Quintanilha.

The Female Ruse of the Pseudonym: The Columbine of Yde Schloenbach Blumenschein

Resumo

Pesquisa histórico-literária sobre a obra da poetisa paulista Yde Schloenbach Blumenschein (1882-1963), tendo em vista a recepção de suas produções (as niveladas pela moralidade de então) e o não acolhimento final (1961) concernente à edição dos versos que, desde o princípio, lhe foram interditos. Por meio da análise de seus 12 livros, observa-se o quanto é escarpada e dificultosa a construção da feminilidade literária, uma vez que a mulher é compelida a usar ardis de pseudônimos para apagamento de identidade.

Poesia feminina; Censura; Identidade

Abstract

This article presents historical-literary research on the work of São Paulo poet Yde Schloenbach Blumenschein (1882-1963). It examines the reception of her productions (considering the morality of the time) and the final rejection (1961) of the publication of her verses, which had always been forbidden. Analysis of her 12 books indicates the steep and difficult construction of literary femininity, since women were compelled to use pseudonyms as ruses to erase identity.

Female poetry; Censorship; Identity

Por que é que este país anormal teima em destruir e ignorar sua própria história?

(Álvaro Alves de Faria).1 1 Álvaro Alves de Faria em “Maria Thereza e a poesia erótica de Colombina”, crítica ao livro Colombina e a sua poesia romântica e erótica, de Maria Thereza Cavalheiro, na coluna Livros/Crítica, do Jornal da Tarde, SP, em 26 dez. 1987.

Apresentação

Em 1908, Yde Schloenbach (São Paulo, 26/05/1882-14/03/1963) assinava dessa maneira o seu primeiro livro de poemas, o Vislumbres, em que também constava o sinete que então a designava: “YS”. Solteira, a escritora contava 26 anos de idade, e o volume trazia a apresentação de Luiz Edmundo (1878/1961), teatrólogo, poeta, cronista, historiador e jornalista. Yde seguira muito cedo para a Europa, aos 11 anos de idade. Fora estudar na Alemanha e de lá retornaria poliglota. Ao longo de suas obras, veremos desfilar, como epígrafes, trechos significativos de escritores de várias ascendências, todos citados no original. Quando retorna ao Brasil, Yde estuda piano com o Maestro João Gomes Júnior (1868-1963), professor do Conservatório Dramático e Musical.

Por meio da carta manuscrita de Luiz Edmundo para Yde, ficamos a saber que, em 31 de janeiro de 1911, ela já se encontra casada com “esse tenente de Wittenberg” de quem adotara, então, o sobrenome “Blumenschein”. O marido chamava-se Hannery, e viviam, naquele tempo, no “Alto de Perdizes”. A menção à morada transmite a ideia do status social de Yde, oriunda de uma família burguesa emigrada para o Brasil, pai de origem alemã e mãe de origem francesa, ambos muito cultos.

Do casamento, nascem dois filhos: Elza Elizabeth Schloenbach Blumenschein, que assinava como Lys Dorison (1911-1951) e Ferdinando Otto Hannery Blumenschein (1914-1973). Lys (que usará, por vezes, o pseudônimo de Sudra Vana) assinará, também, como Lyse Schloenbach Blumenschein o seu único livro de poemas, em 1931, o Jornada sentimental, acrescentando, mais tarde, o sobrenome do marido Felice Cannone (cuja precoce morte a fará sucumbir, levando-a ao suicídio com apenas 39 anos de idade). O segundo e derradeiro filho de Yde, Ottinho ou Otto Fernando, como ela o chamava, se manterá sempre próximo e companheiro da mãe, apoiando-a financeiramente depois da separação dos pais, fato que a escritora por vezes refere na sua correspondência com a sobrinha-neta Amaryllis, notadamente na de 04/06/1962. Otto, que acolheu a mãe em casa em uma época difícil para ela – então sozinha após a separação do marido, de quem iria se desquitar –, viria a tornar-se um empresário bem sucedido.

As agruras que Yde atravessa quando do seu desquite dão chão a pelo menos um poema e uma crônica a esse respeito, ao mesmo tempo que estão dispersas por toda a sua obra enquanto espécie de rejeição e de desencontro. Num livro de crônicas, o Manto de Arlequim (1956b), no texto intitulado “O Divórcio. Apelo em Favor da Mulher”, Yde batalha por essa causa e para a anulação do casamento. Ela se posiciona contra o desquite, demonstrando, ponto por ponto, o quanto este é “imoralíssimo”, uma vez, que, além de tudo, cava para a mulher um lugar à margem da sociedade, onde ela só encontra “solidão”, “abandono” e “desajustamento” – porque o desquite não refaz a sua vida, mas sim “a atira à sarjeta”. Segundo experimenta na vida real, a desquitada se torna uma “presa” para o homem, visto que ele “tem carta branca para tudo”. Assim, Yde indaga: “Se as viúvas tornam a casar-se, por que as divorciadas não poderiam fazer o mesmo?” Na Alemanha, que ela considera o “país mais culto e adiantado do mundo, o divórcio já existe há séculos”, de maneira que conclui que se houver

a lei do divórcio, ninguém é obrigado a divorciar-se. Aqueles que o julgam um pecado, que se abstenham de fazer uso da lei, que prossigam amarrados a um juramento, feito sem a consciência da realidade (Blumeschein, 1956b:100).

Por outro lado, observa-se a propensão de Yde para as reuniões poéticas, para os “salões” da época, locais de encontro de certa intelectualidade paulista, em que conviviam pessoas interessadas em literatura e em arte. Suponho tal cenário, uma vez que Yde fundara, em 1906, uma revista de tal cunho intitulada O Sorriso – da qual não conhecemos nenhum exemplar. E também há de fundar, mais tarde, em 1932, na sua própria casa, uma agremiação poética, a mais antiga de todas, a Casa do Poeta. Ao mesmo tempo, ela tornar-se-á responsável pela edição do jornal dessa entidade, o Fanal, de que foi diretora até o número 103, deixando-o pronto para a edição na véspera da madrugada de 14 de março de 1963, quando falece durante o sono. Yde nunca mais voltara a casar-se.

Vislumbres (1908)

A estratégia do uso de pseudônimos para as mulheres que escreviam nos idos de 1900 é muito comum, no Brasil e em Portugal. Firmar o próprio nome numa obra que abordasse (por longe que fosse) algum tipo, o mais vago, de intimidade, era demasiado temerário para as moças que não queriam afrontar as reputações e muito menos a ira de seus respectivos familiares. Ela usara o pseudônimo de “Paula Brasil”, desde cedo, quando publica, com 11 anos de idade, um poema na Tribuna de Santos. Ela o edita secretamente, sem o consentimento do pai. O que não ocorre na sua estreia literária em 1908, quando assume, pois, o seu nome de solteira – Yde Schloenbach. Ela fundará, em 1906, em São Paulo, a referida revista O Sorriso e, a partir da década de trinta, passará a colaborar em diversas outras, como O Malho (1902-1953), Fon-Fon (1907-1958), Careta (1908-1966), Jornal das Moças (1914-1965) e também n´A Cigarra (1914-1975).

Já desde sua primeira obra, é possível conhecer um inquietante duelo (ainda intermitente) entre “o mundo”, que se arma de exigências próprias e de mandamentos a serem obedecidos, contra a emissora do poema que, embora ameaçada por “essa maldosa gente”, resiste e quer proclamar a sua independência. De modo que Yde, em vez de aceitar a ofensa alheia contra o amor que nutre e se posicionar como vítima, sentirá, pelos “outros”, uma “compaixão”, executando a sua própria vontade. É o que ocorre no poema “Semper”, um soneto alexandrino, que se arma como um desafio às leis da realidade:

Deixa o mundo falar, eu serei calma e forte

e te amarei na vida e mesmo além da morte

com esse amor que me faz ter compaixão do mundo! (Blumenschein,1908BLUMENSCHEIN, Yde Schloenbach. Vislumbres. São Paulo, ed. autor, 1908.:39).

Dentre os diferentes perfis entremostrados em Vislumbres, começa a surgir uma mulher cuja têmpera decidida e combativa não a permite franquear-se como sacrificada pelas leis que imperam. Nessa imagem, a Poetisa parece estar pronta para enfrentar quaisquer forças que se levantem contra o seu desejo, a impedir que adversários possam transformar o seu “amor profundo” e “solar” numa “noite sem luar, eternamente escura”. E tal sentimento vem eivado de poderosos matizes: ardência, loucura, embriaguez, luminosidade, oferecendo ao amado o estatuto de um “deus”. Além disso, julga ela que seu poder seja capaz de ultrapassar fronteiras, ou seja, a própria “morte”.

Não perceberíamos melhor a tessitura desse amor “estranho”, intervalado entre os outros poemas de Vislumbres, se não levássemos em conta o vínculo que ele estabelece com Thanatos e também com certa “perversidade” que pode desaguar no “maldito”. Em “Veneno”, por exemplo, soneto alexandrino que, presente nesse volume inaugural, Yde reproduz em sua obra seguinte, Versos em lá menor (1930), num aceno de persistência dessa figura feminina recém-nascida, tal sentimento é descrito com cores ardentes e transbordantes, indiferente à ruína que possa causar, mas que, ainda assim, maltrata-a e nela semeia, pelo texto, quase uma espécie de sadismo. A paixão, que o dito poema desbrava, “esbraveja em rubra labareda”. Os lábios amados, embora “macios como seda”, são ditos um “sanguíneo cristal” que contém “o veneno horrível das serpentes”. A paixão descontrolada “embebeda” e esconde, na sua doçura, “venenos inclementes” que ela quer continuar a sorver, mesmo depois de morta, através dos beijos dele! Assim, já em Vislumbres, nos versos que Yde escrevera entre 1905 e 1908, está nascendo uma entidade feminina, cuja existência pede fôlego e hausto e direito de se expandir. No entanto, quem é ela?! Como batizá-la?! Como nomeá-la?!

As pistas de tal aparição podem estar presentes na referida carta de Luiz Edmundo, na qual não passa desapercebida a informação sobre o título da obra que ele diz estar concluindo: O Segredo de Colombina. Parece mesmo uma grande coincidência que seja com tal pseudônimo – “Colombina” – que Yde passe a se identificar doravante e que seja com este que assine já o seu segundo livro - Versos em lá menor – publicado em 1930!2 2 Especulo também se não teria colaborado para a adoção de tal pseudônimo a figura (depois célebre) com que Di Cavalcanti (1897-1976) estreara como desenhista da revista Fon Fon em 1914 (em que Yde colaborava), na capa intitulada “Colombina”, em que, casualmente, pode-se identificar alguns traços constantes no modo de se vestir da nossa Poetisa, que era de fato elegante e se trajava com certo código e esmero pessoal.

É verdade que seu autêntico nome de casada – “Yde Schloenbach Blumenschein” – constará nessa edição, mas somente na página interna da capa, e, aliás, entre parênteses, abaixo do pseudônimo escolhido – “Colombina” –, nome com o qual, aliás, ela também haverá de assinar as dedicatórias manuscritas dos exemplares desse e dos seus próximos livros. A adoção do pseudônimo aparenta estar a serviço de domar, ao menos um tanto, os sons teutônicos e bárbaros do seu nome original, difícil de ser apreendido pelos ouvidos brasileiros e ainda menos de ser reproduzido por lábios tupiniquins. Yde estaria buscando um nome mais meigo e delicado, de rápida assimilação, e por isso deve ter pendido para “Colombina” – para a “pombinha”, em italiano –, a preferencial das trovas. O diminutivo e a graça da avezinha convinham a ela, privilegiando mais o seu feitio físico, mignon, airoso e à sua elegância, um tanto extravagante e romanticamente “carnavalizante”. Nomeio-a assim para apontar o lado positivo das críticas que muitas vezes ela sofria por parte dos seus e de outros, a propósito da indumentária. As atitudes libertárias e o comportamento singular de Yde lhe haviam angariado, ainda antes do casamento, a censura da parte de seus familiares e de gente próxima. Ocorre também que, nesse tempo da Belle Époque Brasileira, as personagens da Colombina, do Pierrot e do Arlequim, figurantes principais da Commedia dell´Arte Italiana, estavam muito em moda. Portanto, era ali criada, por meio da “Colombina”, uma figura que arcaria com a responsabilidade de um tipo de poesia que ela começava, então, a praticar, mas que, de alguma forma (tal como a dubiedade – ou errância – dos indicativos de pertença da obra na capa interna dos livros futuros), convivia com outro perfil poético, digamos, mais bem comportado: aquele que dá conta dos temas mais gerais (relativos à nacionalidade, à pertença, à guerra, à natureza, aos episódios contemporâneos, à sua terra, etc), dos concernentes a sua vida familiar (poemas dedicados à filha, ao filho, à mãe, ao pai, etc), dos amigos (são inúmeras as peças concernentes a escritores, conhecidos, poetas e escritoras, notadamente no volume Gratidão, 1954, e no Inverno em flor, 1959), etc.3 3 A propósito de tal instabilidade nominal de Yde, devo advertir, primeiro, que o nome Schloenbach, quando comparece em suas obras, vem grafado de diferentes modos: Schlöenbach ou Schlönbach ou Schloenbach. Tomo como a forma normatizada a que tenho usado, uma vez que, é de se supor, Yde não consegue dar conta das revisões a que ficam submetidos seus originais. Mas é o caso de se indagar se essa instabilidade na própria assinatura (ou a ausência de cuidado quanto a isso) não implicitaria, talvez, um sinal mais fundo dessa indecisão do nome dentro da sua produção feminina? Também ocorre que, por vezes, o nome real vem em primeiro plano dentro do volume, juntamente com o pseudônimo abaixo, entre parênteses, enquanto o pseudônimo é a indicação de autor que sempre comparece na capa. Pode ocorrer também que, internamente, o nome e o pseudônimo troquem de lugar, ora um acima ou abaixo do outro. No entanto, o procedimento muda quando da publicação de Uma cigarra cantou para você (1946), pois que, nesse volume, o nome verdadeiro é olvidado em todos os sentidos, sendo que apenas fica identificado o pseudônimo, fora e dentro do exemplar. O mesmo ocorre em Para você, meu amor (1955), Cantares de bem-querer (1956a) e Cantigas ao luar (1960), coincidentemente, todos de trovas. Aliás, nenhum desses volumes comparece neste estudo, pois que o formato muito breve da trova (contendo 4 versos, geralmente em redondilha maior) não permite a articulação da erótica. A sensualidade demanda tempo e espaço, o que faz parte dos seus próprios ardis, jogos de sedução, de atração e repulsa, de certa suspensão e desenlace, e pede um poema mais alongado para melhor se expressar.

No entanto, silenciosamente, vindo de uma penumbra ainda mal delineada, paralela e simultânea a tais motivos e às trovas que muito pratica “Colombina” – há uma outra vertente poética cujo erotismo vai se firmando de tal modo e, por vezes, com uma índole tão fantasmagórica (para o tolerado na contemporaneidade), que Yde irá recolhendo tais poemas e até mesmo subtraindo-os das obras que publica, porque teme pela existência deles e por sua divulgação. Ela não sabe ainda que destino dar a tais produções enigmáticas, cujo rastro, no entanto, pode ser palmilhado por meio dos onze livros de poemas que vai publicando ao longo da sua existência - Vislumbres, 1908; Versos em lá maior, 1930; Lampião de gás, 1937; Sândalo,1941; Uma Cigarra cantou para você, 1946; Distância, 1948; Gratidão, 1954; Para você, meu amor, 1955; Cantares de bem-querer, 1956a; Inverno em flor, 1959; Cantigas ao luar, 1960 – muito embora os poemas em questão se mantenham inéditos até dois anos antes da sua morte.

E é a esse dilaceramento, a essa tragédia privada da escrita que, a meu ver, tal pseudônimo feminino “Colombina” vem, de início, socorrer. Mas de que modo esse insight de um novo nome (“Colombina”) pode vir a defender, a amparar e a acolher essa “outra” mulher, essa invisível persona que vai emergindo dos escritos de Yde?

Versos em lá menor (1930)

A mulher que posa, então, para o retrato que abre este novo volume é já completamente outra daquela que conhecemos nas fotos do tempo de Vislumbres. Em lugar de uma senhorita da Belle Époque, fechada num espartilho, repleta de adereços, que antes a contêm que a enfeitam, temos então uma adorável jovem moderna numa simplicidade espantosa, cujo rosto, iluminado, nasce das sombras do cabelo negro e curto, compondo uma ondulação na testa, deixando-se roçar por um renard escuro, que, emoldurando-lhe o queixo e abraçando-lhe o pescoço, chega quase a lhe esconder os brincos. Se, na foto antiga, há um peso de uma ancestralidade, de uma tradição que de alguma forma a habita, já aqui temos alguém que parece nascer de uma nuvem, sem peias, sem raízes que a amarrem, solta no ar, desembaraçada, etérea – em grande alforria... Talvez seja este verdadeiramente o rosto da autora da futura Rapsódia rubra de 1961, pois que, como se verá, condiz mais com a disposição envolvente da emissora dos poemas que ali virão.

Nestes Versos, a tal nova criatura começa a se esboçar quase mais perceptivelmente. Colho um exemplo no soneto dodecassílabo “Exaltação”, talvez o primeiro poema mais exposto à intimidade dos amantes, publicado por Yde até então:

Olhas nos olhos meus. E eu vejo neste instante

Sorris... e, contemplando o teu lindo semblante,

Beijas a minha boca. E neste beijo grande

Tudo é um sonho, no entanto; o teu beijo... o meu crime.

Como se constata, a simples presença do amado já a transpõe para um espaço desconhecido que é, todavia, ascendente – um “céu”. A tópica do milagre da atração amorosa, que aloja os amantes a salvo do mundo e de tudo o que ele representa (sobretudo do “fel”, uma das metáforas mais praticadas por essa imagem feminina nascente) – transparece nesse poema graças ao domínio dele sobre ela. O princípio do prazer substitui de imediato o princípio de realidade, abrindo um interregno no universo. Nesse homem, receptor do seu poema (outra tópica está aqui sendo inaugurada: a da fala direta com o amado), ela reconhece o fito da sua vida, e cada ato dele (olhar, sorrir, falar, beijar) a faz desfalecer de gozo – “todo o meu ser palpita e freme e vibra e estua.” No entanto, ela logo acorda desta hipnose, que não passa de um devaneio, de uma “mentirosa ilusão”, que apenas traduz o desejo de ser possuída por ele – o que não é pouco de ser confessado nessas décadas iniciais do século XX. Uma palavra de peso habita este soneto: “o teu beijo... o meu crime”. Esse é o passaporte que nos introduz a uma zona proibida, território de contravenções, daquilo que pode fazer parte da palheta do “maldito” – modo de permitir, sub-repticiamente, a ascensão dessa feminilidade vislumbrada.

E a poesia de Yde começa a ganhar, desde aqui, um status importante, de divulgação e de admiração de pessoas de diferentes áreas, nomeadamente de significativos músicos da altura, que se interessam pela sua poesia, a ponto de comporem parcerias com ela. O compositor Francisco Mignone (1897/1986), um dos músicos mais representativos da música erudita brasileira nos meados do século XX, se vale dos versos de Colombina para os musicar. Um deles (Tuas Mãos) integrava, na altura, os programas para a admissão de cantores nos conservatórios brasileiros, partitura editada pela Casa Carlos Wehrs & Cia.

Lampião de gás (1937)

Em 1932, Yde fundara, pois, A Casa do Poeta. Todavia, a agremiação ainda não possui uma sede, e as reuniões são feitas na sua própria casa. Ocorre que, em 11 de novembro de 1948, quando a Casa se torna oficial, os seus pares, para homenagear o seu esforço e produções, atribuem à fundação o nome do livro que Yde publicara no ano de 1937. Assim a agremiação passa a ser conhecida como A Casa do Poeta “Lampião de Gás”.

O volume vem dividido em três partes, sendo que a primeira guarda o seu homônimo e é reservada a peças que atentam para a mudança por que passa a civilização em véspera do início da Segunda Grande Guerra. A segunda é dedicada aos “Ritmos”, que incluem o samba, rancheira, tango, canção brasileira, valsa, etc. E a terceira parte tem como título “Divina tortura”, e aí estão situados os poemas de cunho amoroso propriamente dito. O poema de abertura desta secção guarda o mesmo título, e, neste, a “divina tortura” se explica como sendo “a glória” de amar-te “dentro da noite escura/da tua indiferença” (Blumenschein, 1937BLUMENSCHEIN, Yde Schloenbach. Lampião de gás. São Paulo, Tipografia Cupolo, 1937.:78) – que é, aliás, um retorno à tópica já flexionada, a da rejeição, do desencontro, do amor não correspondido. Nesse novo volume, Yde inclui, sem um critério fixo, entre um grupo de poemas longos, uma quadra, que vem distinguida com letras em caixa alta e que se encontra de costume na página à esquerda. O Rapsódia rubra, no entanto, não ostenta nenhuma trova, aliás.

Dessa secção e desse volume, anoto um poema de seis quartetos, “O teu beijo”, que ostenta uma epígrafe de Martins Fontes:

Beijo de amor, há tanto prometido

Realização divina da esperança.

O “beijo” é, talvez, na poética de Yde, o vocábulo mais recorrente, que guarda um significado precioso. É “a flama acesa” que “crepita” na “distância que vai da minha à tua boca”, qualidade imantadora dos amantes, com todo o seu aparato de delícias, expectativas, ansiedades, preparação para o ato amoroso, incluindo predicados da ordem do toque, do sabor, do odor, do alimento físico e espiritual, da intimidade mais funda, lugar de sigilo ou de desvendamento deste – daquilo que acende os sentidos todos, incluindo (e observe-se o uso metalinguístico!) o que se diz: a palavra – o poema. Essa peça também remete à tópica do carpem diem, frequente em Yde. O ato lúbrico e febril se dá repentinamente, levando ao máximo a potência dos segundos, sem indagações sobre o depois, fazendo com que os amantes usufruam por inteiro o momento do encontro. E é, na sua especificidade inflamável, “um minuto de sonho e de esperança louca,/que não pergunta nunca o que virá depois”. Tal topos está quase sempre aliado àquele que protege o casal contra a sociedade e seus ditames, exaltação “que desafia o mundo e é sem dogma e sem lei!”. De maneira que o “O beijo”, todo ele um movimento de pedido dessa dádiva tão almejada e devaneada na volúpia da fantasia, assim se encerra:

Dá-me o teu beijo, amor! Estua nele o rito

sensual, que me fustiga o sangue num tropel...

O teu beijo que tem um sabor esquisito

de pétalas de rosa encharcadas de mel! (Blumenschein, 1932:114).

E é curioso observar que se Versos em lá menor possuía, já na dedicatória, um apelo para a leitura da sua obra, logo desmanchado no poema seguinte pelo desalento com que a Poetisa confessava a Pierrot (e observe-se que se trata do respectivo par para “Colombina”) que “ninguém lê versos hoje” – neste Lampião de gás, a questão não é só de leitura da obra, mas também de pertença dela, uma vez que se questiona a própria autoria do que está ali exposto. O livro teria perdido de vez o seu leitor, porque ele não a compreende e não pode interpretá-la. Sendo assim, o livro ficou, tal como ela, “sem dono” (p. 11)!

Sândalo (1941)

Sândalo, o quarto livro, publicado, portanto, durante a Segunda Grande Guerra, traz na capa a indicação de “Colombina” como autora. O volume vem dividido em três partes: “Flamas”, “Ritmos” (reproduzindo os mesmos poemas que, sob tal título, constavam de Lampião de gás) e “Poentes”. É nesse volume que se pode dar conta da presença de Gilka Machado (1894-1980) na sua escrita4 4 Não é o momento de discorrer sobre o desconforto de tais escritoras, sempre alvo de críticas de ordem moral, o que acaba por aproximá-las. No livro no prelo, trato também de Cassandra Rios, de Ercília Nogueira Cobra, bem como de Florbela Espanca. . De uma maneira geral, as peças deixam transparecer a descrição envolvente e empenhada da emissora, em que se situam o “eu” e o “tu”; a valorização do momento, a certeza do fluir da vida; a tônica da Natureza; o tratamento do poeta como um ser de exceção; a temática do outono, da miragem, da quimera, do noturno. Tudo perpassado por um viés feminino que traz as digitais da emissora. Também as constantes da sua terra, do seu país, da sua cidade; da guerra, da liberdade; o enfoque dos seus (filho e filha sobretudo) ficam aqui asilados. E esse vulto da mulher sensual que vem emergindo de tempos em tempos, comparece de diversas maneiras. Há mesmo um poema “Maldição” em que a emissora impreca contra o amado. Assim, já se sabe que ele é “maldito” por ter despertado, nela, a paixão que ela não consegue sufocar.

A tópica do carpem diem retorna em “Vertigem” que, desde o título, anuncia o forte impacto trazido pelo prazer, por essa “estranha exaltação”, emergida da fugacidade de “sete dias ardentes de novembro” (p. 59). Mas talvez seja em “Êxtase”, um longo poema de 6 quartetos, que essa Inominável se mostre melhor. Pela primeira vez, a iniciativa do beijo, e das carícias, parte dela, e o amante é apenas um ser passivo, que, na contramão do que ocorria, é possuído por ela. No entanto, no momento em que há o enlace (o ápice do poema!), eles se transformam em “um só, unidos nesse abraço/onde a vida palpita, embriagada de gozo.” E, muito embora nesse preciso momento ele seja dela – “Neste momento és meu. És todo meu” –, ela cai num “êxtase sem par de ser [contraditoriamente] escrava e amante.” Ou seja, a participação dos amantes muda a partir desse pico amoroso: ela, de senhora, se torna “escrava”, e o “êxtase”, que nomeia o poema, decorre exatamente dessa manobra prodigiosa. O amante já canta “a vitória suprema”, e é então que o jogo de “poder” entre homem e mulher, no ato amoroso, muda de mão, porque, ela conclui, diante da “vitória” dele, que

minha maior ventura é apenas ser humana

e o meu amor por ti é o meu melhor poema! (Blumeschein, 1941:74).

Observe-se que, nessa disputa amorosa, a questão do vencedor se torna absolutamente relativa. Se ele vence por um lado – tornando-a “escrava” em virtude do “êxtase” que obteve dela-, ela vence por outro: e apenas por ser “humana” e (atenção!) por ser... “poetisa”!

Distância (1948a)

O volume traz a capa de Lys Dorison, sua filha. Também ostenta, como os anteriores, na folha de rosto interna, o nome de “Colombina” em caixa alta, tendo na parte oposta, em caixa baixa e entre parênteses, o nome de “Yde Schloenbach Blumenschein”. Dividido em duas partes, a primeira é nomeada de “Luzes na Neblina”, e a segunda é dita “Últimas Rosas”, ambas abrindo-se com um poema homônimo. Como nos anteriores, também aqui epígrafes antecipam o início do livro. Mas é a partir daqui que se pode inferir que Yde conhecia perfeitamente, na acepção de T.S. Eliot, a relação entre a “A Tradição e o talento individual”, bem como o fato de a “tradição literária” se constituir na pedra de toque para a escrita do poema (Eliot, 1919). Ela bem sabia que é, enfim, do diálogo entre aquela referência da História da Literatura e a leitura que se faz dela que nasce e se estabelece a obra de agora. Já pressentia algo como uma “estética da recepção”, que abrange não só a relação entre a obra (dentro da História) e a leitura atual que se faz dela, e que, por sua vez, redunda em outra nova obra. Mas também o elo entre a obra e o público-leitor, tendo, portanto, o entendimento de que a obra se constitui como um “intertexto” (maneira de se conceituar essa relação entre diferentes obras), ou seja, que as obras estão expostas às leis da permutação, absorção e transformação (Jauss, 1974JAUSS, Hans Robert. História Literária como Desafio à Ciência Literária. A Literatura Medieval e Teoria dos Gêneros. Porto, Livros Zero, 1974. Tradução: Ferreira de Brito.). Ou seja, aquilo que Harold Bloom vislumbrará na história das relações “infrapoéticas”, resultantes de possíveis “leituras” e “misreadings” dos poetas diante das obras de seus antecessores, e que também será desenvolvido por Marjorie Perloff e Walter Moser, por exemplo (Perloff, 2013). Yde tinha, segundo se constata, uma mentalidade aberta ao fato de que a literatura, longe de ser um depósito ou arsenal estável de bens da cultura, é, antes, um processo, um sistema, um movimento contínuo de avanços que incluem recuos de reconhecimento e de recuperação – uma noção absolutamente moderna!

Yde se encontrava então com 66 anos de idade, gozando de popularidade, sobretudo proporcionada por seus colegas de agremiação d´A Casa do Poeta, que, no mesmo ano de publicação de Distância, em 7 de novembro de 1948, fica oficialmente fundada. Nesse livro, certos temas são revisitados por ela, como por exemplo o da busca da impassibilidade como forma de libertação das inquietações amorosas que a maltratam, que está em “A Estátua” (p. 27) e que traz também a marca digital da primeira pessoa como emissão. A questão do poeta enquanto ser de exceção também ocupa um poema intitulado “Ego” (p.63), em que ela se ufana de percorrer o caminho contrário ao da multidão, tendo a sua própria “lei”, de modo a ser somente “a mim mesma fiel”. O orgulho pessoal (também constante) transparece na “minha espinha [que] não curvo”, no mesmo soneto, que é uma espécie de declaração de princípios em que, como se nota, a emissão em primeira pessoa é fundamental. A tópica da “cigarra” como imagética da Poetisa fica marcada no soneto “Eterna Cigarra” (p. 67). A tópica das promessas ruídas palpita no alongado poema “As Minhas Mãos” (pp. 100-101), em que se discorre sobre as profecias e as predições feitas por vários referentes culturais às suas mãos que, na verdade, foram apenas feitas para o “adeus”. Há, em Distância, de propósito situados em contiguidade, dois sonetos na seção “Luzes na Neblina” - “A Carne” e “Espírito” – que implicitam uma espécie de litígio interno, como a dar contornos um tanto mais nítidos a essa criatura Inominável que, de tempos em tempos, se deixa notar.

Gratidão (1954b)

Em 1951, portanto antes do lançamento de Gratidão, Lys Dorison se suicida – e nos é impossível supor a dor que Yde terá de enfrentar com a perda da filha. É provável que alguns dos poemas que compõem Gratidão já teriam sido escritos antes dessa tragédia – talvez alguns do que compõem a segunda secção do volume. Mas aqueles em número maior, e sobretudo os da primeira parte, trazem uma tristeza grudada em cada palavra ou então o esboço de um gesto heroico no sentido combatê-la. De maneira que creio que Gratidão, sendo um livro de agradecimento por tudo aquilo que ela recebeu na vida, refere-se, sobretudo, à ternura, à assistência e ao desvelo dos amigos quando do tremendo infortúnio. E, ainda assim, muitos poemas são dedicados a mães, ao dia das mães, à memória da sua mãe, à memória da sua filha ou a outros temas que, no entanto, passam em carne viva sobre essa palavra, agora tão difícil. Mesmo quando não dedicados, sempre ficam atravessados por um indício que leva o leitor a mergulhar na dor da Poetisa. Há, no entanto, em meio a esses sentimentos heroicos e doloridos, muitas vezes patéticos, um alongado poema em que a libido parece reaparecer para salvá-la da morte em que essa “cigarra” (de novo o mesmo motivo!), “a última” (já então), se comprazia em se entregar. Trata-se de “Uma noite...”.

Inverno em flor (1959)

Antes da publicação de Inverno em flor, os amigos e A Casa do Poeta fazem uma grande homenagem à Yde pelo cinquentenário de poesia da amiga, em sessões no Cercle Suisse e no Clube dos Artistas e Amigos da Arte. E o livro celebra esse ambiente de euforia a partir da “Dedicatória” (Blumenschein,1959BLUMENSCHEIN, Yde Schloenbach. Inverno em flor. São Paulo, Ed. Cupolo Ltda, 1959.:5), que é dirigido “Aos meus amigos”, pelo manifesto de “gratidão” e de “indiscutível lealdade” que aqueles lhe oferecem sempre. Trata-se do mesmo molde de Gratidão: são poemas de agradecimento e reverência aos amigos e poetas, em memórias de outros, tematizando mulheres de outras pátrias, abordando temas gerais ou particulares, de maneira que são até muito raros os poemas que abordam o erótico.

Inverno em flor parece constituir, assim, o término do período lutuoso, e a sua segunda parte dita “Il Neige...” se encerra com um soneto que tem epígrafe de Sudra Vana, denominado “Extrema-unção”. A novidade dessa obra é a presença explícita de Florbela Espanca em três poemas que trazem epígrafes suas. Trata-se de “Último brinde” (p.38), de “Versos à Musa” (p.75), e de “Brinde Inoportuno” (p.121).

Outro traço a ressaltar é a presença mais maciça do uso da metalinguagem para nomear o próprio trabalho. Aqui, o ofício dos versos pode substituir, na mulher, certas qualidades antes inexistentes. Em “Fidalguia” (p.88), a Poetisa, deplorando não possuir, dentre seus inúmeros dons, o da formosura, o que a torna uma “mulher desprezada”, pode se vingar da Natureza porque se converte em (atenção!)... “poetisa”! Para Yde, os versos não são uma espécie de tormento ou de “calvário”, mas são “pássaros” de mensagens alvissareiras, que mitigam “a dor” – muito embora sejam tanto “dádiva” quanto “coisa sem valor”. A tópica da “culpa” retorna em “Amor” como “pecado”:

Amor é um sentimento que avassala

Como saber não hei de o que ele seja,

Embora estejamos no universo dos paradoxos, a tonalidade desse livro é mais abafada e interiorizada. Não há grandes expansões, não há mesmo nenhuma que roce o grau de febre que encontramos naquela imagem feminina que temos inquirido. O pessimismo se alastra um tanto e o poema “Escravidão” nos situa e à Humanidade como “uma caravana inconsciente,/levada pela vida”, caravana “inerme, acorrentada/ao jugo da maior escravidão – a vida!” No entanto, em “Visionária”, há uma ambiguidade que toma conta do texto, que refere um “alguém ou fantasia”, cujo “estranho poder” a acompanha sempre e que ela considera ser “um invisível poder, no qual tenho um esteio”.

Rapsódia rubra (1961)

Já então com 79 anos de idade, escritora consagrada e estimada, Yde se atreverá, finalmente, a publicar o livro tão almejado e proibido cujo rastro antecipatório vimos desbastando. Os 33 poemas inéditos que integram este derradeiro conjunto foram escritos ao longo da sua carreira, ocultados com cuidado, pois que desvelavam a vida paralela da poesia publicada por Yde, e que, a bem da verdade, consistiam no seu verdadeiro cerne! No entanto, continuavam inéditos! Havia, todavia, um traço mais nítido da existência dessa Yde que fica exposto num dos poemas de Distância, já em 1948, no soneto “Meus Livros”. Neste, Yde pratica um autoexame poético, um olhar sobre a sua escrita, feito por meio do parecer alheio. O poema aborda a sua obra, e se encerra com uma declaração espantosa:

Escuto e nada digo. O que adianta que eu fale

dos livros que escrevi? Se nenhum deles vale

aquele que senti e que escrever não pude? (Blumeschein, 1948:53).

É certo que, há muito, Yde se dedicava ao erotismo e sobre tal se via obrigada a calar-se. Os exemplos à sua volta abundavam: as poetisas que a isso se arriscavam eram ridicularizadas e desprezadas pelo mundo literário de então, como estamos fartos de saber. E agora, quando pensara em publicá-los, era inteiramente desaconselhada pelos amigos íntimos, a começar por Walter Waeny que, depois de os ver editados, ainda há de orientar Yde e seus herdeiros para expurgá-los.5 5 Não vou discutir a ótica que Waeny tem sobre Yde, que, aliás, lhe confere um espartilho de “parnasiana”, muito embora a considere o elo que aproxima aquele movimento ao dos “trovadores da nova geração” (Waeny, 1963:11). Também não ponho em crivo a posição de um dos mais importantes críticos e professores da época, o Professor Silveira Bueno. Estes e todos os críticos a favor e contra tal publicação serão tratados no livro a ser editado. Já o parecer da crítica feminina e, sobretudo, de Maria Thereza Cavalheiro, sua sobrinha, é de outro jaez, e nos informa que Yde

não foi tão-somente uma das precursoras do erotismo feminino nas letras, mas, pelo seu próprio modo de agir, uma defensora natural dos direitos da mulher. (...) Ela cantou em Rapsódia rubra os élans, os ímpetos, os arroubos apaixonados da carne, na consumação do ato genesíaco (Cavalheiro, 1990CAVALHEIRO, Maria Thereza. Colombina e sua erótica Rapsódia Rubra. Linguagem Viva. São Paulo, junho de 1990.:2).

Ainda naquela altura da publicação desse livro “proibido”, Jamil Almansur Haddad advertia que

a grande maldição podia residir simplesmente na condição da mulher. Na nossa tradição social, ser poetisa era, a certa hora, alguma cousa de parecido com ser artista de teatro ou mais explicitamente uma equiparação à atividade de prostituta (Haddad, 1982HADDAD, Jamil Almansur. O Maldito na Literatura Brasileira. Leitura (I), S.P., 4 set. 1982.).

Logo após o lançamento de Rapsódia rubra, o parecer de J.G. de Araújo Jorge, atenta para que ninguém se admire da enxurrada de injúrias lançadas à já idosa Poetisa,

pois outra grande voz também é eclipsada – Gilka Machado. (...) Coisas do Brasil (ou sei lá se de toda parte!) onde tantos valores são sabotados, e onde muitas mediocridades vivem com letreiros luminosos piscando nos suplementos dos amigos e nas secções da rodinha camarada (Jorge, 1962).

Todavia, a posição do Professor Silveira Bueno é de que o livro pertence a sua época, e que, por isso, é mau! Em carta manuscrita à Yde, datada de 4 de novembro de 1961, o catedrático da Universidade de São Paulo se mostra muito dúbio, irônico e até mesmo mordaz. Vê-se que o volume o desconcertou sobremaneira. E, para não ser indelicado para com a amiga, ele tenta justificar a existência dos versos eróticos, apelando para o contexto social que, todavia, ele execra. Considera, pois, que Rapsódia rubra

é produção audaciosa, condizente, porém, com o momento, com a época em que vivemos, dias em que somente o sexo predomina. A Rapsódia Rubra aí está nessas calças apertadíssimas dos rapazes, numa exibição constante de suas prendas masculinas. Aí está nessas vestes colantes das mulheres, que nada escondem e tudo revelam, desde as pernas até os seios, flamejando nos olhares cúpidos. (...) Até nos garganteios pouco artísticos dos cantores de rádio, por exemplo, nessa ‘debochadíssima’ (até a voz dela é canalha) Maísa Matarazzo e nesse completamente emasculado negro Agostinho [dos Santos], o que há? Sexo, direito ou invertido, pouco importa, mas sempre sexo! (...) E o cinema? E o teatro brasileiro? E o que se passa entre os espectadores? (Bueno, 1961).

Mais tarde, depois da sua morte, seus apreciadores mais esclarecidos hão de considerar toda a obra de Yde a partir da perspectiva que o livro de 1961 ilumina. O próprio Jornal da Tarde, numa matéria assinada por Luthero Maynard, em 25/06/1988, aplaude “A Poesia Erótica de Colombina”, e num outro de 15/11/1993, depois de 30 anos da sua morte, considera que sua “obra é repassada de forte sensualismo, desde o primeiro livro, Vislumbres, com versos escritos de 1905 a 1908” (Maynard, 1988).

Rapsódia rubra foi editada, por isso mesmo, não em São Paulo, a terra natal de Yde e seu porto seguro de leitores, mas em Salvador (naquela altura bem distante da nossa capital...), pelo SENAI (Alunos do Curso de Artes Gráficas da Escola Luiz Tarquínio). E o volume conta, até hoje, com essa única edição, que, segundo se sabe (e a notícia será veiculada nas críticas a respeito), esgotou-se rapidamente. O livro é (dito pelo seu prefaciador João Guimarães Filho) um “intimismo extrovertido” – a imagem perfeita, portanto, de um oxímoro, de algo que é, não sendo. Interpretação que pode, aliás, no seu esquema de raciocínio, se prestar para designar a situação absolutamente desencontrada da própria condição feminina.

Essa derradeira obra de Yde parece, de fato, ostentar uma necessidade impulsional de integração das suas diferenças íntimas, antes que sua autora não dispusesse de mais tempo para expô-las, expressá-las e conciliar-se – poeticamente! - consigo mesma. As peças de Rapsódia rubra se inauguram com aquele antigo paradoxo, já estabelecido pela poética de Yde, entre a Carne e o Espírito. E o poema inicial tem por título, agora, justo “A Defesa da Carne”. Assim, se antes, em Distância, em sonetos diversos, Yde trabalha essa temática de modo polarizado, tomando o partido do Espírito – aqui, a posição é outra. Nesse longo poema, ela estabelece uma acusação à Carne, que parece ter sido recuperada do referido soneto anterior: ela é “pecadora”, “matéria execrável”, “maldita ré”. Enfim, a Carne é tudo o que representa “as baixezas do mundo”. No entanto, a própria Carne, como entidade alegórica, responde, agora, a tais ofensas elaborando a sua defesa, explicando a necessidade do seu existir. Ora, ela não pode ser “a origem do mal”, visto que nasceu do “amor”; e que, embora “passageira e imperfeita”, ela faz parte do “Divino”, visto que é “criação” de Deus. Assim, ela está atrelada ao Espírito, indissociável dele, e desse modo se identifica:

Eu sou o olhar que vê; a mão que escreve,

sou a boca que diz

o que o espírito pensa; e embora breve,

sou o instante feliz (Blumenschein, 1961BLUMENSCHEIN, Yde Schloenbach. Rapsódia rubra. Salvador. SENAI/Al. Curso de Artes Gráficas da Escola Luiz Tarquínio, 1961.:27).

Esse poema de abertura faz, agora, as vezes de uma espécie de declaração de princípios para introduzir o que vai se passar a partir dele, tomando a cautela de incutir no leitor o pressuposto de que o erotismo também pertence ao Espírito. Claro, é estratégica a sua posição porque antecipa a defesa contra possíveis ataques moralistas à sua obra. Outras novidades desse derradeiro livro podem ser enunciadas assim. O “leito”, o “quarto”, as “quatro paredes” são erigidos como chão da cena de amor e articulam diretamente a tópica do casal só e distanciado do burburinho e das ameaças e leis do “mundo”. As metáforas sobre o corpo humano, sobretudo o feminino, também tomam seu lugar aqui, na exposição de um continente a ser penetrado, na imagética da “ânfora”, da “taça”, da “gruta”. Verifica-se uma propensão de fuga à forma fixa, como se o formato (rítmico, silábico e formal) das peças de Rapsódia rubra pretendesse acompanhar o distúrbio provocado pelo motivo erótico, digital apenas desse livro. E os poemas conservam em comum a fala íntima, o tom de colóquio amoroso num ambiente silencioso e mágico, onde, por meio do toque, se salta para um outro universo, mas, desta feita, benfazejo. Cito apenas um poema para que se possa ter ideia desse teor profundamente sensual do volume:

Posse

Enlaçam-me os teus braços loucamente

Teus dedos, numa escala volutuosa,

Oferenda de gozo os teus anseios

E os róseos guizos, duros, empinados

Esboço conclusivo

Aquela voz que ouvíamos ainda timidamente no livro de estreia, e que notávamos como diferencial na sua poética, é a que, por fim, ocupará a cena. A escolha do pseudônimo “Colombina” e o retrato que desta surge em Versos em lá menor (distinto daquele de Vislumbres) congruem com a imagem nascente. No entanto se, por um lado, “Colombina” apaziguava as discórdias sonoras impossíveis para o público brasileiro de então, por outro lado, não podia cumprir o papel que Yde lhe destinara: o de nomear essa mulher erótica que queria dizer – a todo o custo – para que tinha vindo ao mundo. A hesitação constante entre o nome e o pseudônimo, que passeia nas páginas de rosto dos diferentes livros, remete à própria dificuldade de Yde em tomar um partido dentro de si e daquilo que produzia. No entanto, agora, na publicação de Rapsódia rubra, a “Colombina”, que acabara por se enveredar por outras plagas, e firmara (talvez por falta de oportunidade!) a sua assinatura em outro tipo de poesia (os livros de trovas) –, não possuía mais nenhum parentesco com o livro secreto. Diante de tais impasses, que nome dar a esse ser obscuro, inominável, que nascera e crescera à sombra de outras duas entidades, e que, por falta de hausto e de trato público, não conhecia a sua individuação?

Ora, esse fundo litígio interno fica concretamente firmado no corpo gráfico do manuscrito de Rapsódia rubra. O nome – o mais historicamente coerente! – que Yde encontra para essa mulher que procura com inquietação, a cada obra, se mostrar e se fazer identificar, soltando os grilhões “morais” que a abafavam – surge, afinal, na capa do manuscrito de Rapsódia rubra. E não só: é com essa assinatura de autora que Yde encerra o manuscrito. Mas, infortunadamente, tal nome, sendo emblemático do batismo, é, ao mesmo tempo, a sua negação. Falo de um nome-desnome...

Yde escolhe agora, valendo-se da mesma língua italiana em que firmara seu primeiro pseudônimo, o nome patético de... “Nessuna”! Nome que atesta, afinal, a condição feminina do seu tempo: não éramos nós, afinal, as “incompletas”, as que, até há pouco tempo, não possuíam existência social? A que escrevia sobre esse silêncio sepulcral do não-ser-feminino, também ela não podia ser alguém! E (bizarria total!) este seria o único nome estratégico para livrar a sua autora dos penosos acintes, do opróbio, das injúrias de que foi vítima.

Mas Yde toma para si esse fardo e risca, no manuscrito, a assinatura que, afinal, conferiria (pelo avesso - não sendo) uma identidade a essa mulher interdita (e maldita). De modo que ela credita a autoria não a si, mas à “Colombina” – esta, sim, tão “nenhuma” quanto a própria Nessuna! E quem deveras fica ausente desse livro é Yde: seu nome ali não comparece – é o único volume de toda a sua obra em que isso ocorre – muito embora seja de conhecimento público que Yde seja Colombina!

Os componentes do jogo dramático do feminino não param nunca de trocar de lugar, e Yde sabe perfeitamente que ela é a outra, sendo, no entanto, outra!6 6 E não é por acaso que o poema em que trato da condição feminina, intitulado “Definição imprópria”, termine justo assim: “e o prodígio consiste apenas nesta coisa simples:/em eu ser eu, sendo no entanto outra.//Não sei palavra mais perto do silêncio: feminino” (Dal Farra, 1994:55).

Referências bibliográficas

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  • BLUMENSCHEIN, Yde Schloenbach. Cantigas ao luar. São Paulo, 1960.
  • BLUMENSCHEIN, Yde Schloenbach. Inverno em flor. São Paulo, Ed. Cupolo Ltda, 1959.
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  • BLUMENSCHEIN, Yde Schloenbach. Para você, meu amor. São Paulo, Editora Cupolo Ltda, 1955.
  • BLUMENSCHEIN, Yde Schloenbach. Distância. São Paulo, Editora Cupolo Ltda, 1954a, 2ª. ed.
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  • BLUMENSCHEIN, Yde Schloenbach. Uma cigarra cantou para você. São Paulo, s/e, 1946.
  • BLUMENSCHEIN, Yde Schloenbach. Sândalo. São Paulo, s/e, 1941.
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  • BLUMENSCHEIN, Yde Schloenbach. Vislumbres. São Paulo, ed. autor, 1908.
  • CAVALHEIRO, Maria Thereza. Colombina e sua erótica Rapsódia Rubra. Linguagem Viva. São Paulo, junho de 1990.
  • CAVALHEIRO, Maria Thereza. Colombina e sua poesia romântica e erótica (esboço biográfico e seleção de poemas). São Paulo, Scortecci Editor, 1987.
  • CAVALHEIRO, Maria Thereza. A poetisa Colombina. Leitura. São Paulo, 5/5/1987
  • DAL FARRA, Maria Lúcia. Livro de auras. São Paulo, Iluminuras, 1994.
  • ELIOT, T. S. Ensaios de doutrina estética. Lisboa, Guimarães Editores, 1962. Pref.sel. e not. de J.Monteiro-Grillo. Tradução: Fernando M. Moser.
  • HADDAD, Jamil Almansur. O Maldito na Literatura Brasileira. Leitura (I), S.P., 4 set. 1982.
  • JAUSS, Hans Robert. História Literária como Desafio à Ciência Literária. A Literatura Medieval e Teoria dos Gêneros. Porto, Livros Zero, 1974. Tradução: Ferreira de Brito.
  • KRISTEVA, Júlia. O texto fechado. In: BARTHES, Jakobson et alii. Linguística e Literatura. Lisboa, Edições 70, 1976, pp.207-249. Tradução: Isabel Gonçalves e Margarida Barahona.
  • MACHADO, Gilka. GILKA MACHADO: Poesia completa. São Paulo, Demônio Negro, 2017. Organizado por Jamyle Rkain; pref. Maria Lúcia Dal Farra; orelha do livro Heloísa Buarque de Holanda.
  • MOSER, Walter. Restos e reciclagem: da temática romanesca à economia da produção. In: BERND, Zilá; CAMPOS, Maria do Carmo (org.). Literatura e americanidade. Porto Alegre, Editora da Universidade/UFRGS, 1995.
  • PERLOFF, Marjorie. O gênio não original: poesias por outros meios no novo século. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2013.
  • WAENY, Walter. Apresentações literárias (1). Santos, ed.autor, 1963.
  • 1
    Álvaro Alves de Faria em “Maria Thereza e a poesia erótica de Colombina”, crítica ao livro Colombina e a sua poesia romântica e erótica, de Maria Thereza Cavalheiro, na coluna Livros/Crítica, do Jornal da Tarde, SP, em 26 dez. 1987.
  • 2
    Especulo também se não teria colaborado para a adoção de tal pseudônimo a figura (depois célebre) com que Di Cavalcanti (1897-1976) estreara como desenhista da revista Fon Fon em 1914 (em que Yde colaborava), na capa intitulada “Colombina”, em que, casualmente, pode-se identificar alguns traços constantes no modo de se vestir da nossa Poetisa, que era de fato elegante e se trajava com certo código e esmero pessoal.
  • 3
    A propósito de tal instabilidade nominal de Yde, devo advertir, primeiro, que o nome Schloenbach, quando comparece em suas obras, vem grafado de diferentes modos: Schlöenbach ou Schlönbach ou Schloenbach. Tomo como a forma normatizada a que tenho usado, uma vez que, é de se supor, Yde não consegue dar conta das revisões a que ficam submetidos seus originais. Mas é o caso de se indagar se essa instabilidade na própria assinatura (ou a ausência de cuidado quanto a isso) não implicitaria, talvez, um sinal mais fundo dessa indecisão do nome dentro da sua produção feminina? Também ocorre que, por vezes, o nome real vem em primeiro plano dentro do volume, juntamente com o pseudônimo abaixo, entre parênteses, enquanto o pseudônimo é a indicação de autor que sempre comparece na capa. Pode ocorrer também que, internamente, o nome e o pseudônimo troquem de lugar, ora um acima ou abaixo do outro. No entanto, o procedimento muda quando da publicação de Uma cigarra cantou para você (1946), pois que, nesse volume, o nome verdadeiro é olvidado em todos os sentidos, sendo que apenas fica identificado o pseudônimo, fora e dentro do exemplar. O mesmo ocorre em Para você, meu amor (1955), Cantares de bem-querer (1956a) e Cantigas ao luar (1960), coincidentemente, todos de trovas. Aliás, nenhum desses volumes comparece neste estudo, pois que o formato muito breve da trova (contendo 4 versos, geralmente em redondilha maior) não permite a articulação da erótica. A sensualidade demanda tempo e espaço, o que faz parte dos seus próprios ardis, jogos de sedução, de atração e repulsa, de certa suspensão e desenlace, e pede um poema mais alongado para melhor se expressar.
  • 4
    Não é o momento de discorrer sobre o desconforto de tais escritoras, sempre alvo de críticas de ordem moral, o que acaba por aproximá-las. No livro no prelo, trato também de Cassandra Rios, de Ercília Nogueira Cobra, bem como de Florbela Espanca.
  • 5
    Não vou discutir a ótica que Waeny tem sobre Yde, que, aliás, lhe confere um espartilho de “parnasiana”, muito embora a considere o elo que aproxima aquele movimento ao dos “trovadores da nova geração” (Waeny, 1963:11). Também não ponho em crivo a posição de um dos mais importantes críticos e professores da época, o Professor Silveira Bueno. Estes e todos os críticos a favor e contra tal publicação serão tratados no livro a ser editado.
  • 6
    E não é por acaso que o poema em que trato da condição feminina, intitulado “Definição imprópria”, termine justo assim: “e o prodígio consiste apenas nesta coisa simples:/em eu ser eu, sendo no entanto outra.//Não sei palavra mais perto do silêncio: feminino” (Dal Farra, 1994DAL FARRA, Maria Lúcia. Livro de auras. São Paulo, Iluminuras, 1994.:55).
  • *
    Subsidiada pelo CNPq, esta pesquisa está sendo preparada para publicação em livro dedicado às sobrinhas-netas de Yde – Amaryllis Schloenbach e Maria Thereza Cavalheiro (que me dispuseram o referido Acervo) – e à memória da minha querida conterrânea Ana Maria Nogueira Pinto Quintanilha.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    24 Maio 2021
  • Aceito
    01 Fev 2022
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