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Era o Néstor até o fim, e nunca foi careta: uma entrevista com Peter Fry, Edward MacRae e Adriana Piscitelli acerca de Néstor Perlongher*

A entrevista que se apresenta nas próximas páginas começou a ser imaginada enquanto planejávamos o dossiê que, publicado neste número dos cadernos pagu , oportuniza-a. Nós sabíamos, desde o início da sua preparação, que um dossiê voltado à obra do poeta e antropólogo argentino Néstor Perlongher requereria, necessariamente, a participação de Peter Fry, Edward MacRae e Adriana Piscitelli.

Referências fundamentais para os nossos próprios trabalhos de pesquisa, para a Antropologia e especialmente para o campo dos estudos de gênero e sexualidade no Brasil, esses três antropólogos foram, de diferentes modos, muito próximos a Néstor. Vivenciaram com ele, no início da década de 1980, o contexto da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em que Néstor desenvolveu sua pesquisa de mestrado, O Negócio do Michê ( Perlongher, 1987PERLONGHER, Néstor. O que é AIDS? São Paulo, Brasiliense, 1987. ). Atentaram às suas preocupações de pesquisa - ainda que, àquele tempo, não compreendessem a fundo suas digressões teórico-filosóficas, como veremos - e o admiravam imensamente como intelectual. Acompanhavam-no em atividades de militância política, em eventos acadêmicos, em festas inesquecíveis. Recebiam-no em suas casas, eram recebidos na casa dele.

Para que essa participação de Peter, Edward e Adriana neste dossiê se concretizasse, nós pensamos de pronto em convidá-los a colaborar com artigos seus. Adriana, que já trazia um texto - incontornavelmente belo - em processo de escrita, aceitou o convite. Peter e Edward, porém, preferiram uma conversa, para a qual também convidaríamos Adriana. Há palavras que competem à voz, tal qual há aquilo que somente pode ser dito na companhia do outro, com a confiança de quem compartilha a memória do que se viveu. Foi assim, enfim, que o projeto desta entrevista se consolidou. Tratar-se-ia de um encontro cujo objetivo principal estaria em oferecer ao público uma mirada sobre a chegada de Perlongher à Unicamp, a recepção inicial do seu trabalho de pesquisa, sua trajetória como militante político e escritor, as controvérsias em que se engajou.

O que as próximas páginas suscitam é, no entanto, bastante mais do que esse objetivo inicial poderia alcançar. Por pressuposto metodológico, antropólogos estão abertos às singularidades, imprevisibilidades e inventividades do campo. Nós compreendemos que sujeitos não se conformam ou reduzem às nossas expectativas, tampouco às perguntas que cuidadosamente organizamos em listinhas bem-intencionadas, as quais levamos às entrevistas. Há vezes, contudo, em que interlocutores conduzem aquele pressuposto ao limite e, narrando sobre gentes, fatos e tempos, surpreendem a própria capacidade de narrar, de contar uma história. Ao fim, foi isto que nós conseguimos com esta entrevista: Peter, Edward e Adriana nos ofereceram um Néstor cujas lembranças corajosamente desafiam (e estimulam) o gesto de contar uma história que também nos forma.

A entrevista aconteceu on-line, através da plataforma Google Meet, na tarde de 25 de março de 2022. Ela contou com gravação de áudio e foi posteriormente transcrita por Lucas Frota Oliveira Leite Alves Machado, estudante de Ciências Sociais da Universidade Regional do Cariri (URCA). Depois, passou por detida revisão e edição empreendidas pelos entrevistadores.

Como dito acima, entre os entrevistados estão Peter Fry, Edward MacRae e Adriana Piscitelli. Peter é professor titular aposentado do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Antes, foi professor e pesquisador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É doutor e graduado em Antropologia Social pela University of London e pela Cambridge University , respectivamente. Já Edward é professor associado aposentado dos Departamentos de Antropologia e Etnologia e de Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia, instituição em que permanece ensinando e orientando junto aos seus Programas de Pós-Graduação em Antropologia e em Ciências Sociais. É doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Sociology of Latin America junto à University of Essex e graduado em Psicologia Social na University of Sussex . Por sua vez, Adriana é pesquisadora Nível A da Unicamp junto ao Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, cujo grupo fundador ela integrou. Ainda na Unicamp, é professora dos Programas de Pós-Graduação em Antropologia e em Ciências Sociais. Atuou, como Visiting Scholar , em instituições como a New York University e a York University e, como professora convidada, em universidades como a do Chile, a de Buenos Aires e a British Columbia University . É doutora em Ciências Sociais e mestra em Antropologia Social pela Unicamp e licenciou-se em Ciências Antropológicas junto à Universidad de Buenos Aires . Aos três, novamente, agradecemos sem medida.

Guilherme Passamani: Gente, que alegria estar com vocês. Vamos começar contextualizando um pouco os antecedentes que levam a este nosso encontro. Tudo isso começa, mais ou menos, em dezembro de 2019, na VI Reunião Equatorial de Antropologia, que aconteceu em Salvador. Roberto Marques e eu propusemos uma mesa redonda sobre os setenta anos de Néstor Perlongher e, àquela altura, Roberto Efrem Filho foi o debatedor. Adriana Piscitelli, Roberto Marques e Thiago Soliva, que é professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, foram os expositores. A mesa contou com a participação de muitas pessoas, com uma audiência muito grande e, no final dos debates, nós ficamos com a ideia de, quem sabe, aprofundar um pouco aquele diálogo, que começou ali, no formato de um dossiê, marcando os 30 anos da morte do Perlongher, que se completam neste ano de 2022.

Roberto Efrem Filho: A partir de então, a gente foi atrás de saber se havia interesse dos cadernos pagu na publicação do dossiê. Isto porque faria todo sentido que ela acontecesse na UNICAMP. Conversamos com Adriana e ela achou super interessante. A partir daí, nós começamos a pensar em pesquisadores para compor o dossiê. Entre esses pesquisadores, desde o começo, estavam os nomes de vocês dois, Peter e Edward, além de alguns autores da Argentina que tiveram contato com o Perlongher e de pessoas de outros lugares que escreveram sobre ele. No Brasil, pensamos em alguns intelectuais que dialogam com os trabalhos dele. Esse é o contexto que antecede a nossa conversa de hoje.

Roberto Marques: Então, gente, a primeira questão que nós gostaríamos de lançar para vocês trata do contexto da UNICAMP, daquele espaço, no início dos anos 80. Vocês três estavam lá no início dos anos 80, e a gente pensou em ouvir um pouco vocês a esse respeito. O sentido desta conversa é evocação, mais que rememoração. Então, o que é que vocês lembram do contexto da UNICAMP e daquele momento em que na UNICAMP se iniciam os estudos em torno de gênero e sexualidade?

Peter Fry: Começou muito antes, muito antes, porque havia Verena [Stolcke]. Ela estava preocupada com a questão da mulher. Eu, em 1974, ainda tentei escrever sobre “bichice” porque, naquela época, eu acreditava que eu poderia ser um bicho político, acreditava. Mas como era e sou inglês e como estávamos no meio de uma ditadura militar, não havia espaço nenhum para política com “P” maiúsculo, ou minúsculo, sei lá. Aí eu tive essa ideia de querer participar. Estava começando nos Estados Unidos uma coisa chamada União Gay Acadêmica, Gay Academic Union , lembra, Edward? Então, eu achei, eu comecei a fazer contatos e fiz um pequeno trabalho para apresentar na American Anthropological Association. E foi a primeira vez que a homossexualidade teria sido discutida na Associação Americana de Antropologia.

Adriana Piscitelli: Uau!

P.F.: Foi um seminário dedicado a isso, eu tenho os dados em algum lugar. E foi muito interessante porque estava lá um amigo da Gay Academic Union e também estava lá Margaret Mead.

A.P.: Nossa!

P.F.: É. Aquele seminário foi absolutamente... Tudo o que foi dito naquele seminário, de fato, foram sementes que brotaram nos anos subsequentes. Te dou dois exemplos. No primeiro momento, houve um menino que falou sobre gays na cidade de São Francisco. Aí ele falou, falou, falou, falou, e no que ele falou, ele disse “só eu posso falar sobre isso porque sou gay”. Eu nunca tinha ouvido ninguém dizer isso! Isso em 1974. Aí fiquei: “eu ouvi aquilo mesmo?” Porra, se ele tem razão, então a Antropologia acabou! Porque, pelo o que eu saiba, Malinowski não é trobriandês, Evans-Pritchard não é nem azande, nem nuer. Quer dizer que toda a Antropologia já foi por água abaixo. Foi esse o meu comentário no final do paper dele. Fiz dois comentários, esse foi um. E um outro porque ele falou muito de raça, de etnia, mas não falou nada de classe social. Naquela época, no Brasil, só se falava de classe, em 1974. Não se falava de etnia, não se falava de quase nada. Está vendo como o mundo se dava? Mas, enfim…

A.P.: Interessante, maravilhoso! Agora, teve comentários da plateia? A Margaret Mead falou alguma coisa?

P.F.: Não, ela não falou. O outro exemplo que eu ia dar da Margaret Mead é esse. Que num dos papers desse seminário, comparando relações entre mulheres e entre homens… Uma das ideias é que as relações entre mulheres eram mais igualitárias que as relações sexuais entre homens. Por quê? Por quê? Entre os homens, tem o famoso peru, pau!

A.P.: (Risos) Gente, isso aqui é genial! Peter, quem falava isso em 1974?

P.F.: Quem falou isso foi a Margaret Mead.

A.P.: Margaret Mead falou isso?

P.F.: Falou. (Risos). (...) Você me perguntou sobre Campinas, mas eu estou falando do mundo, né? Do mundo não, dos Estados Unidos da América. Então, mas eu fiz isso porque uma aluna minha, Anaiza [ Vergolino e Silva (1976)VERGOLINO E SILVA, Anaiza. O tambor das flores. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), IFCH/Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), 1976. ], fazia pesquisa sobre as religiões afro-brasileiras em Belém do Pará. E lá a relação entre homossexualidade masculina e feminina e os cultos era muito forte. Como isso tinha sido escrito por Ruth Landes (1940)LANDES, Ruth.A Cult Matriarchate and Male Homosexuality. Journal of Abnormal Psychology, 1940. e depois esquecido, eu resolvi retomar e foi a primeira coisa que eu escrevi. E ninguém deu bola. Eu não sei o que eles estavam pensando, ninguém achou esquisito, ninguém achou nem interessante nem nada.

E.M.: Não, mas nós tínhamos você como referência básica. Sempre todo mundo começava se referindo ao seu livro, Para inglês ver ( Fry, 1982FRY, Peter. Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro, Zahar, 1982. ), e aos vários artigos que você escreveu. Eu acho que você foi a letra toda por onde todo mundo aqui começou.

P.F.: Mas ninguém, ninguém se incomodou, é isso que eu quero dizer.

E.M.: Ninguém se incomodou no evento?

P.F.: Se alguém se incomodou, ninguém se manifestou. Ninguém. Essa foi minha partezinha, mas a parte mais importante, acho que foi a da Verena [Stolcke] junto com a Mariza [Corrêa]. A dissertação de mestrado da Mariza (Corrêa, 1983) é, na minha opinião, a melhor coisa que ela fez na vida. Sobretudo porque, olhando para trás, ela tomou cuidado de não partir da premissa de que os homens eram os únicos provocadores de violência em casamentos heterossexuais. Tem lá uma parte que discute as mulheres que matam os seus maridos, coisa que hoje em dia ninguém fala mais, parou de existir. Respondendo a sua pergunta, na hora eu fiquei pensando muito nisso, porque de fato eu vi em Campinas, eu já disse isso milhões de vezes, eu não sei se eu inventei isso, que uma das reações à ditadura era essa, esse lado de libertação sexual. Era uma coisa muito evidente lá em Campinas. Você poderia falar com Antônio [Augusto Arantes Neto], porque Antônio também tem a versão dele dessa história, muito interessante. E havia um professor lá, famosíssimo, o Roberto Gambini, que eu acho que ele continua como psicanalista hoje em dia, havia toda uma teorização, a gente lia… O que eu quis dizer para vocês é que eu não lembro de qualquer reação negativa, nem dos economistas, por exemplo. E nós éramos dominados pelos economistas. E dominados sobretudo pelo marxismo, o marxismo, Althusser & companhia. Tudo isso era o que dominava o mundo campineiro. A antropologia era vista como uma coisa pequeno-burguesa, sem nenhuma importância, uma espécie de “pão e circo”.

E.M.: Mas você era muito popular. Você era uma figura de referência, sabe, o centro de um network . Eu nunca andei muito com o pessoal da economia, mas talvez mais com o pessoal da antropologia mesmo. Mas é o que se diz. Era uma época, não só na UNICAMP, mas no Brasil também. Não podendo fazer uma revolução política, nós fizemos uma revolução sexual. E eu acho que isso é muito importante para entender Néstor também. Mas continua, Peter.

P.F.: Não, eu ia dizer que tem outro exemplo muito óbvio, que era uma aluna nossa que tinha vindo da Argentina, Rosemary Lobert (2010LOBERT, Rosemary. A Palavra Mágica: a vida cotidiana dos Dzi Croquettes. Campinas, Editora Unicamp, 2010. [1979]), que escreveu sobre o Dzi Croquettes . O Dzi Croquettes agregava a intelectualidade paulistana e campineira, que percebeu que tinha ali um sentimento de libertação naquela situação tão… dos militares. Foi lá que a palavra “tiete” começou, dos seguidores. A Rosemary era uma grande seguidora. Foi em 1978, justamente, que começa o Lampião 1 1 O Lampião da Esquina foi um jornal brasileiro voltado, mas não só, para o público homossexual que circulou durante os anos de 1978 e 1981. Para mais informações, ver Ferreira (2010) . . Eu acho que foi por causa daquele artigo que eu escrevi sobre os pais de santo de Belém, e pra mim foi um momento. Eu tenho saudade desse momento. Porque eu me senti brasileiro pela primeira vez, não brasileiro no sentido idiota, mas me senti participante do Brasil, e éramos dois de fato estrangeiros, eu e Jean-Claude, Jean-Claude Bernardet, grande crítico de cinema. Os demais eram brasileiros, cariocas e paulistanos, basicamente. Então, tudo isso aconteceu e Campinas achou perfeitamente normal. E vem Edward, migra e vai ser orientado pela Eunice [Durham]. Eram nossas amigas, Eunice e a Ruth [Cardoso], lá na USP. E a gente fazia parte do mesmo grupo de fato, e tudo isso pra elas era absolutamente... A Eunice se fascinava pelo Edward porque elas estavam escrevendo sobre movimentos sociais. De repente, vem alguém pra falar sobre movimento gay.

E.M.: Sim, claro.

P.F.: E Néstor era parte de tudo isso, suponho. Edward, em que ano ele chegou lá em Campinas? No início de 1980, né?

A.P.: Eu comecei o meu mestrado em 1984, suponho que Néstor tenha começado em 1982.

P.F.: É, exatamente.

E.M.: Eu comecei lá em 1977.

A.P.: Em que ano você saiu, Peter, de Campinas?

P.F.: 1983. Você entrou em 1977, Edward?

E.M.: Entrei em 1977, fiquei acho que até 1981, uma coisa assim... Não, 1980, mais ou menos 1980.

G.P.: Mas até 1980 estudando?

E.M.: Sim, sim. Eu tinha feito mestrado na Inglaterra. Nasci no Brasil, mas eu estudei em uma universidade na Inglaterra, e daí eu comecei o doutorado lá, mas a certa altura eu enchi o saco e voltei pro Brasil. Fiquei dando aula de inglês durante vários anos e, em 1977, eu resolvi retomar a minha carreira acadêmica, mas eu me sentia assim muito por fora, embora já tivesse mestrado. Eu resolvi fazer o mestrado mais uma vez, no Brasil, que era de fato muito mais do que um mestrado inglês. O mestrado que eu fiz na Universidade de Essex levou um ano, aqui as pessoas levavam dez anos quase, às vezes, antigamente. Era uma coisa de muito mais peso. Eu me sentia muito por fora de conhecer realmente o Brasil. Então eu comecei a fazer o mestrado lá. E eu, quando morava na Inglaterra, a casa onde eu morava era… Quando eu estava fazendo mestrado em Essex, lá era um dos três centros irradiadores do feminismo. Eu morava com uma amiga que era conectada com todo mundo do feminismo, então era um grande centro de discussão do feminismo. Eu achava interessante, eu gostava da ideia de questionar os papeis de gênero, porque eu também era homossexual e isso é uma coisa que eu nem discutia, nem se falava. Eu comecei a sair do armário mais ou menos quando surgiu o Gay Liberation Front na Inglaterra, que foi em 1969, 1970, por aí. E daí eu logo vim pro Brasil, daí o Brasil era esse horror. Eu cheguei aqui na era do [Emílio Garrastazu] Médici, mas eu tinha amigos que eram de teatro. Eu comecei a conhecer um pessoal mais alternativo e eu tinha essas ideias do Gay Liberation Front , mas no Brasil não se falava dessas coisas, realmente. Quando eu fui pra Campinas, eu pensava em fazer alguma coisa por aí, que eu nunca tinha feito antes.

R.M.: Edward, você morava em São Paulo?

E.M.: Eu morava em São Paulo, eu dava aula na Cultura Inglesa. Eu consegui me transferir para a Cultura Inglesa de Campinas. O Peter, muito generosamente, me deu abrigo durante um tempo, foi muito bom, foi muito importante na minha vida. Eu conheci uma porção de gente muito interessante, como a Ruth e outras pessoas que frequentavam a casa do Peter. Então pra mim foi uma introdução muito boa, a que dou muito valor até hoje. Campinas nessa época, a UNICAMP, era uma coisa bastante nova, revolucionária, me lembrava das universidades em que eu tinha estado na Inglaterra, Sussex e Essex, universidades novinhas que foram feitas para os baby boomers , e tinham essa cara. Era uma espécie de gueto, lá em Barão Geraldo, porque o pessoal de Campinas era caretíssimo. E não tinha tanta gente assim, então todo mundo se conhecia, tinha festas nas casas dos professores, todo mundo ia, e era esse clima de que o Peter falou. Eu achava aquilo o suprassumo! Peter pode ter achado que era pequenininho, mas eu achava o máximo. Eu acho que então, quando o Néstor chegou lá, era esse o clima. Foi aí que eu comecei a trabalhar com o movimento homossexual porque o Peter nessa época era parte do Lampião. E daí, através do Peter, eu fiquei conhecendo o [João Silvério] Trevisan. Havia as reuniões do Somos 2 2 O Somos - Grupo de Afirmação Homossexual é considerado o primeiro grupo brasileiro em defesa dos direitos de homossexuais. Para mais, ver Facchini (2005) e MacRae (1990) . em São Paulo, então eu comecei a frequentar o Somos , que era uma coisa que me interessava pessoalmente e passou a ser o meu interesse acadêmico também. Foi quando eu conheci o Néstor. Mas, Peter, fala mais um pouco disso também.

P.F.: Não, não, você falou tudo, está confirmando, você está dando uma versão sua. Agora eu estou quase chorando...

E.M.: (Risos)...

P.F.: Não, porque eram anos de uma felicidade, mesmo com a ditadura. Esse é que era um paradoxo. Nós éramos muito felizes. Muito.

E.M.: Olha, a gente lembrando… Mas, naquela época, a gente sabia que a revolução, ou uma grande mudança, parecia estar assim: de daqui pra amanhã! Por um lado, você tinha os militares falando que havia os comunistas que queriam tomar o Brasil e o mundo, que a União Soviética ia dominando o mundo, e os países virando comunistas. Essas coisas por um lado. Havia quem tivesse medo, mas havia quem achasse isso uma ótima ideia. Eu achava! Na Inglaterra, eu tinha estado com um grupo socialista que não era stalinista. Que era contra os stalinistas! É algo de que hoje em dia a gente tem que se lembrar. Eu ando assustado com a volta de um sentimento meio stalinista que esquece os horrores do que foi o stalinismo também, sabe? Mas voltando pro Néstor: eu fui amigo do Néstor. Conheci Néstor no Somos , e foi o Trevisan que o levou para o Somos . Ele já chegou numa época em que havia uma grande questão no movimento homossexual, no Somos: “O que é um homossexual? Quem somos nós?”. Várias pesquisas bem artesanais foram feitas levando questionários para o gueto, para saber quem é que frequentava, justamente porque não se tinha muito claro o que seria essa identidade homossexual. E tinha também essa coisa revolucionária, o sexo como algo revolucionário, algo das décadas de 1960 e 1970, que é essa história de que você está falando, Peter. Não se podia fazer revolução com a classe operária organizada, ou com partidos políticos, mas se fazia uma revolução na sua vida, no dia a dia, e isso era visto como algo muito sério. Nessa época, por exemplo, a gente era muito contra o casamento.

P.F.: Totalmente.

E.M.: Né?

P.F.: Como somos agora.

Todes: (Risos)

E.M.: Essas questões aí que eu acho que eram debatidas. Eu continuo sendo.

A.P.: (Risos)

R.M.: Adriana, fale um pouco sobre o contexto de Campinas que você vivia como uma aluna nesse momento.

A.P.: É engraçado porque eu cheguei em Campinas justo quando Peter tinha ido embora. Acho que o Sérgio Carrara tinha ido embora no ano anterior. Pra mim, Peter era uma figura assim, quase que totêmica. A Verena, eu a conheci antes, porque ela veio dar um curso na UNICAMP, eu a conheci logo. Mas Peter, acho que a primeira vez que eu o vi foi na banca de defesa do Néstor. Então eu peguei o final dessa época da qual eles falam. E é muito engraçado porque você disse, Edward, que a UNICAMP parecia com aquelas universidades na Inglaterra. Eu estudei em 1988 em Sussex , e ela me lembrava muito a UNICAMP. Tudo, absolutamente tudo!

P.F.: (Risos)

A.P.: Era muito curioso, tudo, a sociabilidade era uma coisa impressionante, então...

P.F.: É, a arquitetura também, né?

A.P.: A arquitetura. Mas eram mais coisas. As festas, as articulações eram uma coisa impressionante, e eu era muito nova também. E também fiquei pensando como foi diferente a relação, Peter, porque na Argentina houve uma ditadura hiper fodida, mas não teve esse movimento na universidade, pelo contrário, os caras conseguiram que nem isso fosse possível, certo? Eu acho que aqui é por causa daquele guarda-chuva, que o então reitor da UNICAMP proporcionou a todos vocês. E uma coisa que Ana [Fonseca] sempre contava era que tinham muitos que saíram dos porões da ditadura e foram ser alunos na UNICAMP. Então, por um lado, era revolução sexual, mas por outro lado, acho que tinha uma experiência de militância entre os alunos e tudo isso se juntava. Eu peguei as grandes festas, foram maravilhosas, eram uma coisa infinitamente mais democrática entre alunos e professores. Agora você tem ilhas, mas as distâncias são muito maiores. Era extremamente efervescente tudo isso, a questão de gênero particularmente. Agora, na convivência com Néstor, os tempos estavam mudando, então na convivência com Néstor - e como colegas e circulando pela UNICAMP - as coisas já não eram tão abertas quanto antes. Muitos dos professores que tínhamos, eu os ouvi desprezando a tese do Néstor. Não vou mencionar as figuras falecidas, mas eram figuras muito importantes, tanto femininas como masculinas. Mesmo na Antropologia já tinha uma, não sei como explicar, uma percepção um pouco heterogênea sobre esses temas, ok? Por um lado, tinha a respeitabilidade da Mariza, que tinha se consolidado, quando ela defendeu o doutorado, mas que vinha desde o mestrado, e uma certa proteção que ela exercia sobre as pessoas que trabalhavam com ela. Mas, por outro lado, tinha essa coisa de desprezar um pouco o que fosse sexualidade, homossexualidade, e é algo que tem persistido até recentemente. Deixa eu ver, oito anos atrás, talvez, colegas do departamento de antropologia, na faixa, talvez, dos 40 anos, ridicularizaram alunas em sala de aula, já com o Pagu [Núcleo de Estudos de Gênero] florescente, porque trabalhavam com gênero. Isso parou só quando eu disse pra uma dessas alunas: “olha, eu tô achando horrível essa fofoca, diz para tal professor que nós podemos fazer um debate público no auditório, com muito prazer, eu sento a discutir com ele sobre gênero e sexualidade”. Aí ele murchou e parou a brincadeira. Mas falo isto pra te dizer que eu acho que o espírito que o Peter conheceu permaneceu um pouco, mas foi no meio do conservadorismo crescente e que teve reflexos na maneira em que o trabalho do Néstor foi recebido, porque os meninos sabem, o trabalho do Néstor é famoso agora, mas, na época em que ele fez, a Editora Brasiliense apostou nele, mas não teve a recepção de agora. Na época em que o Néstor defendeu, o trabalho não teve a recepção da comunidade ampla, fora de quem trabalhava com homossexualidade, que agora ele tem. Agora, nos últimos anos, o Néstor virou um clássico. A Brasiliense apostou nele de cara. Ele levou manuscritos que foram imediatamente publicados. Enxergaram que aquilo ia ser bom. Então, eu queria dizer que eu peguei um pouco dessa efervescência e muito do processo de caretização geral no Brasil e também presente na UNICAMP, inclusive dentro da antropologia.

P.F.: Posso dizer uma coisinha?

A.P.: Pode.

P.F.: Só para corroborar com o que você está dizendo. Você está abrindo os meus olhos. É que ninguém me pergunta o porquê de eu ter saído de Campinas. Eu não aguentava a cidade, para começar. Graças a Edward, que me dava abrigo no seu apartamento na Praça de República, em São Paulo, eu podia passar os meus fins de semana na cidade de São Paulo. Mas os nossos colegas, Adriana, todos moravam em São Paulo e as pessoas vinham com seus choferes, não vou nomear ninguém, que depositavam os professores e professoras que davam suas aulas e depois voltavam para São Paulo. Então, o piano ficou em minhas costas em grande parte. Essa foi uma das razões. Bastante prática. E a outra, você sabe, você também é antropóloga… Você pegou o finzinho da época carismática da UNICAMP. Mas você viveu a rotinização disso e a rotinização, a burocratização mata!

A.P.: Hunrum.

P.F.: Você não concorda comigo?

A.P.: Hunrum.

P.F.: Então eu achava que era o fim, não aguentava mais.

A.P.: Hunrum.

P.F.: Em São Paulo e no Rio de Janeiro, eu tive uma outra vida. Depois me ferrei. Mas isso é uma outra história, desculpe! Mas eu acho que é isso mesmo, Adriana, que você está falando. Essas coisas não duram pra sempre e há esse processo de rotinização, de burocratização, que todos nós conhecemos em outras situações também, não é verdade?

A.P.: Então...

P.F.: Você está dizendo que o Néstor aparece nesse momento de transição, né?

A.P.: Sim, e ele defende... Ahn, não sei em que ano ele defendeu… 1986?

R.M.: É, ele foi publicado em 1987, então acredito que ele tenha defendido em 1986.

A.P.: Quando ele defendeu, a caretização já estava bem avançada. Em pouco tempo. Eu tenho um aluno - ele até entrevistou Peter, é o João [Henrique Custodio]- que está tentando fazer um levantamento dessa época. Eu não sei te dizer agora, mas leva muitos anos até voltar a ter trabalho sobre sexualidade, mas muitos anos. Sobre gênero não, porque sempre é possível, uma mulher aqui, uma mulher ali. Mas sobre sexualidade levou um bom tempo. Não lembro agora se 10 anos ou 15, uma coisa assim. Então, pra falar disso, mas sim, foi um momento fascinante e algo que… Às vezes eu me pergunto se não é uma coisa também romântica do passado. Eu cheguei como aluna sim, mas eu frequentava a casa do Haquira [Osakabe], onde eu vi desfilar personalidades de todos os tipos de militância do meu lado, com os alunos. Era uma coisa de uma riqueza intelectual que eu não posso explicar, o que a gente aprendia naquelas noites. Era tudo misturado, absolutamente tudo misturado e sem frescura nenhuma. Se comia qualquer coisa, pizza se você tivesse, se bebia também qualquer coisa. Néstor fez parte disso na minha casa também. Agora, isso é muito diferente do período dos choferes. (Risos). Peter, é muito, muito diferente. E passou a haver também uma separação entre quem se misturava nessas coisas e quem não se misturava, ok? E tem que pensar que parte de nosso corpo de professores era formado por uma certa elite de São Paulo. Não necessariamente intelectual, mas econômica, então é... As coisas foram se diferenciando muito. Então o que eu tenho desse período é essa efervescência toda e o Néstor fazendo parte dela. É verdade que o Néstor tinha seus seguidores entre os alunos que o apreciavam muito. O que ele não tinha era o reconhecimento no corpo docente.

E.M.: Algum reconhecimento ele deve ter tido, porque ele estava trabalhando lá. Eu acho que o nível intelectual dele era uma coisa assim, por mais que algumas pessoas não gostassem do tema e coisa e tal, mas não podiam deixar de respeitar.

A.P.: Não, não podiam. Ele era...

E.M.: Mas ele era muito briguento.

A.P.: Ele era absolutamente brilhante, mas tem que se pensar quando Néstor foi escolhido. Foi o Néstor e depois foi a Heloisa [Pontes], eu não estou muito clara, não posso jurar, mas não estou muito clara de que tenha sido concurso público. Os dois foram orientados pela Mariza. Eu acho que a Heloisa e o Néstor foram aprovados em um concurso de seleção. Claro que o Néstor era absolutamente brilhante, mas ter entrado assim não garante que você vai ter o reconhecimento das pessoas que trabalham com os temas hard , violência, naquela época era pobreza, sei lá… a questão racial ainda não era forte. Mas era outra coisa. Então é assim que o Néstor começa a dar aula.

R.E.F: Queríamos falar um pouquinho sobre isso, sobre a recepção do tema na UNICAMP, naquele contexto, naquele momento, mas eu acho que isso está mais ou menos dito. Algum de vocês quer acrescentar algum elemento?

E.M.: Eu só diria que eu pude fazer esse trabalho por causa do Peter, porque Peter estava lá. Às vezes, as pessoas diziam assim: “quantas pessoas têm nesse movimento homossexual?; você devia fazer uma coisa sobre sindicato, sabe?” Coisas assim, a gente ouvia esse tipo de comentário. Mas tendo Peter como meu orientador, eu estava bastante bem, sabe?

P.F.: Mas Néstor... Néstor... Ele escolheu um tema totalmente tabu, totalmente tabu. Além disso, era o mundo dele, gay. E eu acho que isso é diferente, porque eu escrevi sobre, teoricamente, essas coisas todas… Mas não ameaça ninguém, pai de santo lá em Belém. Você, Edward, com um movimento respeitável. Néstor não. Ele trabalhava com sexo bruto. E em um mundo onde ninguém gosta de falar… Então, eu não tinha lido nada sobre isso. Eu acho que ele estava literalmente mergulhando na vida particular, pessoal dele, intelectual, num assunto mais pro lado de [Jean] Genet e de Malinowski. Eu acho que as pessoas, talvez, caretas sejamos todos nós. Nós tivemos muito mais dificuldade de nos reconciliar com esse tipo de aventura do Néstor. Um palpite.

E.M.: O Néstor foi muito influenciado também, ele era amigo da Suely Rolnik, e a Suely Rolnik era muito amiga do Félix Guattari, e o Guattari vinha frequentemente para São Paulo e dava palestras na PUC. O Néstor participava disso, eu também até participei de algumas coisas, mas era o Néstor quem levava. Daí ele tem toda essa influência deleuziana também, algo que eu, na época, não entendia absolutamente nada, até hoje não entendo.

A.P.: (Risos). Eu também não entendia. (...) Quando eu falo, não estou falando nem de crítica sobre o trabalho do Néstor, estou falando de comentários de corredor quando ele passava. Estou falando de driblar a mesa onde ele estava sentado para sentar em outra mesa na cantina. Eu estou falando desse tipo de coisa. Eu não ouvi críticas explícitas dos colegas daquela época dele - que não eram colegas meus porque eu era aluna, não era docente -, mas eu vi esses movimentos. Eu não sei se alguém teria se arriscado a fazer uma crítica, ou por escrito ou falada. Eu acho que não, mas era esse tipo de coisa.

E.M.: Bom, eu acho que a gente tem que lembrar a figura do Néstor. E era uma figura bastante inusitada. E que, como eu digo, ele era muito briguento, e assim, briguento mesmo. Ele tinha brigas feias com as pessoas. Nessa época, eu fui pra UNICAMP e, uma ou duas vezes, eu me encontrei com ele lá. Mas eu não vivi essa parte dele lá. Em geral, ele causava certas aproximações e certos distanciamentos também.

A.P.: Peter, como foi que o Néstor chegou a ser teu orientando?

P.F.: Não foi.

A.P.: Não foi?!

P.F.: Não, ele foi orientado pela Mariza.

A.P.: Eu sei, mas eu achava que teria começado contigo.

G.P.: Pois é, eu também achava isso.

P.F.: Eu sofri muito com isso, eu achei que estava sendo escanteado. Eu sofri com isso, nunca falei com ninguém, mas agora eu estou lembrando. Não, não, ele não quis, eu acho que, provavelmente, eu fico pensando, eu sou muito tradicional na minha antropologia e Mariza… Eu fiquei pensando nisso a partir dessas perguntas. Porque o milagre pra mim é que Néstor conseguiu conciliar, casar, o seu lado filosófico e criativo, deleuziano etc. e tal com o trabalho da etnografia. Uma coisa não exclui a outra, mas na época em que ele aparecia, eu não entenderia nada do que ele escrevia. Como diz Edward: “Eu não entendo até hoje”. Porque eu sou muito básico. Então provavelmente por isso, porque Mariza… Mariza também era uma pessoa muito mais aberta e mais em casa do que eu com elucubrações mais etéreas… Por essa razão. Não sei. Eu sofri com isso.

A.P.: Peter, você acaba de desmontar o que parece ter sido um mito, porque eu estava certa, pelas narrativas que eu vi, que ele tinha começado com você...

G.P.: Sim.

A.P.: E você foi embora e ele ficou com a Mariza.

G.P.: Eu acho que tem alguma coisa.

R.M.: Isso consta na memória da antropologia! (Risos).

A.P.: Olha que coisa incrível! (Em tom de surpresa).

P.F.: Não, não, foi Mariza que orientou.

G.P.: E sempre foi a Mariza desde o começo? Não teve um primeiro orientador ou uma primeira orientadora e depois foi a Mariza, sempre foi a Mariza?

P.F.: Eu estou achando que sempre foi Mariza, porque eu lembro vagamente de ter sofrido. Não pude dizer nada, claro, mas eu disse para vocês que minha memória é muito ruim.

G.P.: Quando Néstor chega na UNICAMP, ele vem com uma trajetória já na Argentina, seja como poeta, mas também desenvolvendo o trabalho que ele faz em São Paulo, esse trabalho já tinha sido, ainda que de maneira prévia e panorâmica, realizado na Argentina. Além disso, ele vem exilado para o Brasil. Vocês têm algumas outras questões que queiram aprofundar, mas sobre essa figura, um poeta, que chega num contexto muito específico, que vem da luta política lá, numa relação com as forças de resistência na Argentina?

E.M.: Ele tinha sido… Além de ter trabalhos sobre michês, ele foi membro de um grupo lá, militante e homossexual.

G.P.: Sim, a Frente de Libertação Homossexual .

E.M.: Ele chegou pra cá e já tinha essa experiência de pesquisar michê, já tinha essa experiência de movimento gay.

A.P.: Então, eu acho que talvez você, Edward, possa pensar mais, mas eu acho que a parte literária do Néstor como poeta foi mais aproveitada em São Paulo e foi mais reconhecida em São Paulo do que em Campinas. Porque ele tinha uma série de amigos que estavam enfronhados na teoria literária e que o conheciam como tal. Em Campinas, ele nunca foi reverenciado como escritor. E sobre a militância política, eu vim descobrir a importância do Néstor através de amigos argentinos e através de amigos argentinos que não eram do movimento homossexual. Uma vez, eu recebi em casa um ex-militante montonero, que se exilou na Suécia. Chamava-se Fernando Brumana, morreu há dois, três anos. Quando ele entrou e sentou para tomar café, chegou Néstor que se hospedava lá em casa. Os olhos do Fernando ficaram desse tamanho, ele se levantou e disse: “Néstor Perlongher!” E começou a contar como eram cinco ou seis militantes da Frente de Liberação Homossexual entrando numa assembleia com mil montoneros, levando os cartaizinhos e confrontando todo mundo. Então era briguento, sim. E aí meu amigo exilado assim, rendendo homenagem ao Néstor. E eu descobri a importância do Néstor como escritor, eu contei pra você, quando, depois da morte dele, eu andando por Calle Florida [um calçadão de Buenos Aires], e vejo as paredes do Ateneu, as vitrines - o Ateneu era uma livraria super careta! - todas cheias da obra do Néstor. Eu disse: “porra, quem era esse cara?” Então, mas isso é uma coisa que na UNICAMP… “Não, sim, Néstor escreve, ele é poeta”. Você tem uma corrente de seguidores de Néstor, do neobarroso na Argentina, que é pesadíssima. Tudo isso eu fui descobrindo depois.

G.P.: Na militância política, o codinome dele era La Rosa , em referência a Rosa Luxemburgo.

A.P.: Então… (Risos).

E.M.: No funeral do Néstor, foram relativamente poucas pessoas...

A.P.: Pois é, olha, eu lembro que tinha pouquíssima gente. Edward, você estava ali com o grupinho do Santo Daime e cantaram alguma coisa. Tinha Sara Torres, a grande amiga dele de Buenos Aires, que tinha acabado de chegar. Margareth Rago, a Teca [Maria Tereza Aarão], pouquíssima gente mais.

P.F.: Ele morreu em que ano, Adriana?

A.P.: 1992.

P.F.: 1992. Eu estava na África.

A.P.: A questão do Santo Daime, acho que faz sentido que não fosse muito compreendida pelos militantes. Edward, porque você era do Santo Daime… Eu sempre tive a impressão de que Néstor se fixou tanto na coisa do Santo Daime e que não dá pra separar isso da doença dele, eu acho.

E.M.: Bom, fui eu que levei ele pro Santo Daime.

A.P.: Ele já estava doente?

E.M.: Eu acho que não.

A.P.: Tá, então não tinha começado ainda.

E.M.: Eu acho que foi em 1989, por aí. Eu sei, eu lembro, ele em 1990 talvez já estivesse. 1990 eu acho que ele foi pro Mapiá3 3 A Vila Céu do Mapiá foi fundada em 1983 nas cabeceiras do igarapé Mapiá, no Estado do Amazonas, e é uma referência para os adeptos do Santo Daime. , que é essa sede lá do Santo Daime no meio da floresta, lá no Amazonas. Ele foi com o Luizmar [Evangelista]. E foi, assim, uma grande peregrinação que ele fez. Foi muito mal recebido, muito mal. O pessoal lá era cultura cabocla de ribeirinhos, seringueiros… E alguns cariocas que queriam fazer de conta que também eram caboclos e que eram mais caboclos ainda que os caboclos, de certa forma. E, naquela época, o Mapiá era uma coisa meio machista também. E daí ele chega, essa pessoa, essa figura argentina meio estranha, com o namorado dele. E, no meio da floresta, esse pessoal bastante tradicional e carola. Então foi uma coisa difícil pra ele. Mas, voltando pra coisa deleuziana, o Néstor era uma questão de intensidade, mais do que de extensão. Tudo pra ele era questão de intensidade. Isso daí foi o que o atraiu no Santo Daime. Nessa época, eu fui muito próximo dele e ele nunca foi carola, nunca foi babaquinha, de jeito nenhum! Ele era absolutamente questionador, contestador. Ele escreve aquele artigo, eu estava lendo agora, Droga e Êxtase ( Perlongher, 1994PERLONGHER, Néstor. Droga e Êxtase. Religião e Sociedade, v. 16(3), Rio de Janeiro, 1994, pp.8-23. ). Ele explica que no êxtase precisa ter a doutrina para virar alguma coisa. É a coisa do Dionísio e do Apolo. Então, essa questão ele via mais por esse lado apolíneo que dava uma certa forma e permitia que não virasse loucura. Essa parte da intensidade, da visão, dessas experiências psicodélicas. O Santo Daime é uma doutrina musical, você toma Daime, que é alguma coisa… A molécula da Ayahuasca, o DMT (dimetiltriptamina), é muito parecida com o LSD (dietilamida do ácido lisérgico). E daí você toma isso e você canta os hinários, que são assim, bastante tradicionais. Hinos que são recebidos sob a influência de Ayahuasca. Então tem muitos motivos que levam você a viajar também. São bem viajantes e não se espera que você vá, aliás, você não deve contar a sua viagem para as outras pessoas. Cada um vai tendo a sua visão. Claro que tem todo um processo social que leva a uma homogeneização, tudo isso. Mas o Néstor poderia ter uma interpretação deleuziana do Daime. É uma coisa muito interessante. O Néstor embarcou nisso, e ele escreveu, ele nunca terminou, mas ele estava fazendo um auto, estilo barroco, sobre a Ayahuasca. Ele escreveu um livrinho de poemas: Águas aéreas ( Perlongher, 1991PERLONGHER, Néstor. Águas aéreas. Buenos Aires, Último Reino, 1991. ). Um livrinho que ele inclusive dedicou pra mim, e é um livro assim, é cheio de poemas, mas poemas que parecem meio religiosos, com Nossa Senhora, coisas assim. E, nos últimos meses de vida dele, eu ia na casa dele todo dia, ele morava perto de mim e eu estava muito mexido com essa história toda. Eu fiquei muito mexido com essa história da AIDS. Eu frequentei a casa dele bastante, pra dar uma certa solidariedade e porque eu gostava muito dele. Era extremamente interessante, prazeroso não, era uma coisa… Não era prazer, mas era bom. E então um dia, ele leu pra mim esse poema, eu não comentava isso com ele, mas eu achava meio caretão, daí ele começa a ler e ele lê assim de uma forma completamente satírica. Camp, camp, camp. E daí isso dá toda uma outra visão da história.

P.F.: (Risos).

A.P.: Ahhh! (Em tom de surpresa). Entendi.

E.M.: Era o Néstor até o fim, e nunca foi careta!

A.P.: (Risos). Gente, que viagem esta entrevista! Uau!

R.M.: A gente gostaria de falar sobre a militância do Néstor. Edward, você tem um artigo, uma passagem acho que da tua dissertação, em que você fala de uma tensão entre as “bichas loucas” e os “respeitáveis militantes”. Eu estava relendo esse artigo e pensando se, em algum momento, até o convívio com Néstor te levava a pensar um pouco a partir dessa tensão e se teria alguma cena que você gostaria de compartilhar com a gente dessas duas figuras que você cria para articular esses movimentos.

E.M.: Bom, quando a AIDS chegou aqui no Brasil, o movimento homossexual, de certa forma, ele se colocava em oposição à medicina. Nessa época, os homossexuais eram considerados, a homossexualidade era vista como desvio de transtorno mental. Devia até ter algum psiquiatra por aí que dizia que se masturbar devia fazer crescer pelo na mão, sabe? Eram coisas assim, do mais básico ao mais retrógrado, o que os médicos falavam. A gente estava lá se contrapondo à medicina em grande parte. E aí, a medicina, a sociedade, querendo controlar a sexualidade, controlar os homossexuais. Aí o Néstor tinha toda essa interpretação mais deleuziana dessa história toda. E, bom, daí de repente as pessoas começam a morrer de AIDS, e, assim, os gays não acreditavam.

P.F.: Eu acreditei!

E.M.: Não, você acreditou, Peter, mas assim, eu também acabei acreditando, mas isso foi depois de um tempo, depois de um tempo, porque, Peter, naquela época, eu não estava convivendo muito tempo com você, mas, das pessoas com quem eu convivia e que eram militantes, as pessoas que estavam saindo na rua e falando, eu só comecei a acreditar porque aconteceu uma história. Eu fui convidado pra ir pra Nova York para fazer uma materiazinha para uma revista e eu tive a oportunidade de encontrar uma porção de minhas referências bibliográficas. Os líderes gays. E daí, com eles, eu vi que eles estavam apavorados. Possivelmente você estivesse apavorado, Peter, porque você já estava lendo essas coisas em inglês.

P.F.: Não, eu já estava na Fundação Ford, já estava no mundo.

E.M.: Ah, é, então é, sim, sim, sim.

P.F.: Não. Logo no início.

E.M.: É... Mas para a grande parte das pessoas, e dos militantes mesmo, a gente tinha essa posição de questionar. Então, o Néstor, eu acho, ele ficou preso, ele não teve essa oportunidade que eu tive de ir lá e conversar com as pessoas que a gente considerava bem, falando sobre isso. Não muito tempo atrás, eu estava numa reunião aí com um médico e ele falou mal do Néstor, porque esteve com ele numa reunião no teatro Ruth Escobar para discutir essa questão da AIDS. A AIDS foi um tema que, em certo momento, realmente começou a assustar as pessoas. E daí você ia fazer uma palestra sobre AIDS e lotava. Houve uma mesa na SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), de que eu estava participando, e a gente já estava no maior auditório, mas daí, sabe, não era suficiente. Era uma loucura. Houve outro momento, foi em outra SBPC, na UNICAMP, quando o prédio, o prédio de matemática, eu acho, ainda não estava construído plenamente, ainda era uma espécie de esqueleto, e o [Luiz] Mott foi dar uma palestra sobre homossexualidade. Lotou tanto a sala, que ele teve que sair, foi todo mundo para essa construção que estava meio parada, sei lá o que é que era, e ele ficou lá no meio falando. As pessoas ao redor subiram, foi uma coisa muito interessante, um monte de gente! Era um tema que realmente mexia com as pessoas e estava chamando muita atenção. Bom, lá no teatro Ruth Escobar, também havia muita gente. E tinha havido então o racha do Somos, né, havia o pessoal que era mais assim sério, militante político etc., com o qual eu tenderia a me identificar. E tinha um outro pessoal que era mais anárquico, louco, sei lá, e, sim, Néstor simpatizava mais com essa visão. O Néstor ia falar, ou falava nessa reunião do Ruth Escobar, mas tinha um grupo do pessoal do Somos que se chamava Moléculas Malucas distribuindo um panfletinho que o Néstor tinha inspirado, no mínimo, questionando toda essa questão de sexo seguro. Bom, até hoje, algumas pessoas realmente acham que Néstor foi assim o fim da picada. Mas, relendo O que é AIDS? dele ( Perlongher, 1987PERLONGHER, Néstor. O que é AIDS? São Paulo, Brasiliense, 1987. )… Que, na época, eu abominei… Porque eu achava que a AIDS era uma coisa seríssima e tinha que ter precauções, e eu não entendia. Eu não estava nem querendo entender essas coisas quando ele começava a falar sobre o Marquês de Sade e não sei o quê. Na época, estava morrendo gente. Mas, hoje em dia, lendo, eu acho que é uma coisa que tem muito a ver, sabe? Tem muito a ver. Algumas coisas que ele estava prevendo, receando, uma certa normalização da homossexualidade, uma domesticação da homossexualidade, de algo que ele via como essencialmente revolucionário, aí que ele cita o Marquês de Sade e um personagem que faz referência ao coito anal. Ele até lembra em algum lugar, não sei se é n O negócio do michê (1987), alguma coisa que ele fala sobre uma palavra de ordem numa passeata que teve do movimento gay que era: “Coito anal derruba o capital”. Isso daí é uma coisa assim engraçada, mas, de certa forma, havia uma seriedade nisso, havia um lado realmente revolucionário, que era aquilo em que a gente acreditava na década de 1970. Ou seja: que era através da sexualidade que a gente ia fazer a revolução. Não era uma loucura de uma pessoa. E, então, aí eu valorizei o livro de que eu não tinha gostado nem um pouco.

A.P.: É super importante o que você está dizendo. Muito bom.

P.F.: Em que ano ele escreveu esse livro?

E.M.: Acho que tinha saído em 1987, mas foi um livro muito mal recebido. O Caio Graco, mais uma vez mostrando toda uma certa coragem e disposição de ir contra o bom comportamento, ele comissionou o Néstor para escrever. Ele sabia o que estava fazendo. Mas daí o livro foi tão escandaloso.

P.F.: Você tem certeza de que foi o Caio Graco? Quem inventou essa série toda foi o Luiz [Schwarcz].

E.M.: Tá, então eu posso estar enganado, eu posso estar enganado, aí eu não sei.

P.F.: O Luiz pode ter sabido do Néstor através da Lili [Lilia Schwarcz].

E.M.: Seja lá quem for, foi uma pessoa bastante corajosa, mas esse escândalo foi tão grande que o livro foi meio deixado de lado e o Paulo Teixeira, que foi o criador do programa estadual de AIDS de São Paulo, que foi o primeiro programa de AIDS, ele escreveu uma coisa bem a visão médica.

P.F.: A posição do Néstor sobre a AIDS foi parecida com a do Foucault? Eu acho que sim. Porque foi com o Foucault que nós aprendemos sobre o poder da medicina, não foi? E o Michel Foucault foi absolutamente consistente consigo mesmo. E se recusou a moderar o seu comportamento e morreu.

E.M.: Ele teve uma época em que tomava ácido e se injetava heroína e o contágio pode ter sido dessa forma, por injeção.

R.E.F.: Vamos voltar para a defesa da dissertação, sobre os bastidores do dia, como aconteceu, como foi a defesa?

A.P.: Eu lembro que o Néstor veio com uns band-aids no pescoço, como se tivesse machucados. E a Mariza mandou imediatamente ele tirar. Eu lembro que a defesa foi um pouco pesada. E eu lembro que, se eu não estou enganada, ele não tirou distinção e louvor, que naquela época era “10 - Distinção e Louvor”. É isso que eu lembro. Eu sei que ele se saiu muito bem, ele estava muito contente, jogamos pétalas de rosas quando ele saiu. Ele estava realmente feliz e Mariza estava contentíssima. Mariza tinha uma coisa: ela sempre tinha medo quando os orientandos defendiam. Isso era uma coisa engraçada. E, no caso dele, ela o admirava intelectualmente, mas também estava com medo. Mas foi tudo muito legal, muito bom, é isso que eu lembro.

G.P.: Há toda uma dimensão da obra do Perlongher que reflete sobre a cidade, o contexto urbano. Peter, nos seus trabalhos, que tematizam sexualidade, e também n O Negócio do Michê do Néstor, são ressaltadas algumas relações entre desejo e contexto urbano. Então, interessa-nos aqui que você conte um pouco sobre como essas diferentes perspectivas que são trazidas por você e por ele, elas se encontram, mas elas também se diferenciam. Fala um pouco sobre isso.

P.F.: Eu não tinha pensado nisso, na cidade em específico. Eu tinha pensado mais em classe social, pelo menos na minha memória, eu tinha pensado mais numa espécie de tradição local, ibérica, que estava sob fortes mudanças vindas das classes médias urbanas, na verdade. Mas eu tinha pensado realmente em termos de classe social e não de situação. O que me interessou especificamente no trabalho do Néstor está naquele prefácio que escrevi porque me interessou que ele estava escrevendo uma etnografia sobre exatamente o que Verena me ensinou quando a gente começou a conversar sobre essas coisas todas. E ela me mandou ler o Engels sobre “a origem da propriedade privada, do Estado” etc. e tal. Ela que me ensinou que, se os casamentos não fossem homogâmicos, as sociedades de classes iam desmoronar. Ela brincava com isso. Ela dizia que tinha que ter uma lei para que as pessoas só pudessem casar com pessoas da classe oposta! Aí a gente acabaria com esse problema, né, de capital e trabalho! Foi isso que me fascinou no trabalho do Néstor. O Néstor foi etnografar exatamente as relações mais odiadas no capitalismo, pela persistência das diferenças de classe, eram relações de paixão entre pessoas da classe média urbana e… Foi isso que me interessou, por isso eu escrevi o que escrevi, essa era a coisa mais interessante do livro dele para mim. Porque uma das… Difícil dizer isso. Edward diz que ele sai do armário quando ele foi pra Essex , quando ele sai do seu Brasil. Eu fiz o caminho contrário. Quer dizer, eu saio da Inglaterra e venho pro Brasil. Na época, nos meus primeiros anos, na década de 1970, na minha experiência de homossexualidade na cidade de São Paulo e em Campinas e tal, eu era mais livre com relação à Inglaterra e eu atribuí isso ao passado de leis na Inglaterra. A homossexualidade na Grã-Bretanha foi descriminalizada apenas em 1967, três anos antes de eu chegar no Brasil. E isso não é brincadeira, não. Isso é coisa séria! Na primeira experiência sexual que eu tive, eu fiquei meses apavorado porque a polícia ia descobrir, não sei como. A gente vivia apavorado. No Brasil, eu nunca me apavorei por causa disso. Porque você tem um Código Napoleônico no Brasil. E é por isso que o Oscar Wilde foi pra França e pra Itália. O Brasil não teve essa experiência de leis criminalizando o “homossexualismo” em si. Há várias maneiras de criminalizar as pessoas, é verdade, mas lei assim não. Então, eu saí do armário aqui no Brasil, Edward, fiquei longe do meu pai, dos meus irmãos, e o que me fascinava no Brasil, o que me fascinava sobretudo… Eu não sabia muito da vida homossexual em Londres porque eu era muito apavorado, muito apavorado mesmo. Mas aqui no Brasil, eu achava que era um pouco como a praia de Copacabana, que os lugares de encontro eram de longe os mais democráticos que eu tinha encontrado no Brasil. E eu achei que era um puta privilégio ser gay. Porque através disso eu conheci o Brasil de cabo a rabo, literalmente. Acho que isso faz diferença, Edward. Você deve achar a mesma coisa.

E.M.: É!

P.F.: Eu olho pros meus amigos sociólogos falando de desigualdade e trabalho, é tudo teórico pra eles, não conhecem ninguém! Ninguém fora do seu mundinho. Então por isso que eu adorei a tese, essa foi a minha apreciação da tese, da dissertação do Néstor, porque ele vai falar sobre essas relações. E de uma forma em que a dignidade está em todos. Não há nada, nada, naquele livro do Néstor que você possa dizer que é preconceito. Não poderia ser preconceito contra si mesmo, nem contra os amantes dele. Desculpe, estou extrapolando, mas é disso que eu gostei do Brasil, quando cheguei, dessas situações verdadeiramente democráticas, a praia de Copacabana, os lugares gays, mesmo as boates em que a gente tinha que pagar pra entrar, havia várias pessoas que conseguiam entrar sem pagar. Era um mundo muito, muito democrático mesmo e eu acho que foi o meu privilégio de conhecer o Brasil dessa maneira. Estou escrevendo um livro de memórias e isso é uma das coisas que eu quero dizer.

A.P.: Uau.

P.F.: Você poderia logo estabelecer relações de confiança em qualquer lugar do mundo, né? Porque havia uma linguagem em comum, compartilhada, a sensação minha era essa, Lisboa, Nova York, Rio de Janeiro, São Paulo, aqui no Brasil. Não, vamos falar de Néstor, não vamos falar de mim. Você se lembra daquela discussão, Edward, que a gente tinha que conscientizar os michês? Está lembrado disso?

E.M.: Humm...

P.F.: (Risos). Porque eles “não sabiam”!

R.M.: Tinha um corpo a corpo, Edward? (Risos).

E.M.: (Risos). Eu nunca me engajei muito com os michês, mas tinha muito. O movimento homossexual, o Somos era muito… Transar era a coisa mais importante e era uma justificativa, sabe? Como se, quando você tivesse uma tarefa, em primeiro lugar já se começava a falar: “Ah, contra o tarefismo!” Mas aí as pessoas tinham que fazer alguma coisa, não sei o quê, e acabavam não fazendo. “Bom, eu tava lá e acabou passando um bofe escândalo e eu fui pra casa com ele”. Sei lá, mas isso era absolutamente aceito como uma boa justificativa…

A.P.: (Risos).

E.M.: Eu não estou exagerando, viu? É verdade isso! E então, no início do Somos , tinha um lema que era: “Pelo prazer”. Tudo tinha que ser pelo prazer, se não dava prazer, então não era uma coisa boa pra fazer. Se a reunião já estava ficando chata, isso em si já era um sinal de que as coisas não estavam indo bem. Então tinha muito, sabe?

R.M.: Peter, quer falar alguma coisa?

P.F.: Não, muito interessante essa conversa, desculpe, eu estou aprendendo muito.

A.P.: (Risos).

Todes: (Risos).

P.F.: É porque realmente o Néstor… Era uma coisa que eu queria dizer, que eu acho muito importante: voltando à defesa da tese dele, eu não entendi tudo o que ele escreveu, embora eu tivesse a clareza de que estava lidando com uma inteligência rara. E, repetindo o que eu disse antes, o que me impressionou mais em tudo é que, mesmo com as coisas que eu não entendi direito, ele tinha colocado no papel algo que ele aprendeu também lá na UNICAMP, a fazer uma boa etnografia, porque as pessoas são vivas lá, as situações que ele descreve. Ele conseguiu fazer isso, conseguiu fazer. Ele não sacrificou a etnografia num altar de uma teorização muito ambiciosa, não. Eu acho que ele realmente tentou fazer as duas coisas. E fez muito bem. Eu acho, por isso, aliás, agora, que ele estava na frente do tempo dele. Quero dizer que essas discussões de devir e tal viriam a ser consagradas muito tempo mais tarde, através de outras pessoas, então ele não estava escrevendo, ele estava produzindo uma antropologia que demorou mais alguns anos para se tornar reconhecida.

E.M.: Eu estava relendo O negócio do michê aqui, pra me preparar e bom… Eu tinha essa impressão de que era uma coisa densa, complicada, mas agora relendo… Talvez seja o passar do tempo. Essas ideias já estão mais… A gente já está mais familiarizado com elas. E eu não achei tão esotérico, tão hermético, como na época eu tinha a impressão de ser. E uma coisa, assim, uma orientação que o Peter sempre dava, e eu acho que o Néstor cumpriu: “conte uma história, conte uma história”. E ele conta essa história dos michês.

P.F.: Eu sempre disse isso, que as teorias vão e voltam. Nós escrevemos história e o Néstor fez isso, é verdade. Eu fiquei pensando uma coisa agora, olhando pra trás, e por que é que ele escolheu a Mariza para orientar a tese dele? Mariza também. Mariza é escritora. Mariza nasceu escritora, ela era jornalista antes de se tornar antropóloga. Tudo que Mariza fazia era nesse sentido. Ela é da área literária. Algo que eu não tenho, eu não poderia ter, e esse foi um bom casamento com ela nesse sentido. Néstor foi muito sensato em se acoplar. Era um casal, não um casal, mas uma equipe boa.

A.P.: Uma parceria.

P.F.: O Néstor evidentemente tinha talentos literários que não é todo mundo que tem. Não é mesmo?

E.M.: Pelo que me consta, ele é considerado um dos grandes poetas contemporâneos da Argentina, não é?

A.P.: Não é só da Argentina. Um grande poeta latino-americano.

R.M.: Adriana, você começou a nossa conversa dizendo que agora O negócio do michê é reconhecido como clássico, mas esse reconhecimento demorou a acontecer. O Peter falou um pouco sobre o porquê, devido à força desse texto. O que você poderia dizer pra gente, assim, por que você acredita que ele se tornou esse clássico?

A.P.: Olha, eu me dei conta dessa virada num seminário na USP. Porque era todo esse povo hard da segurança pública, e tinha um trabalho excelente sobre cracolândia e drogas e não sei o quê. Eu não me lembro mais quem era o professor na USP que trouxe como referência o trabalho do Néstor. Mas não como questão de prostituição, e sim como uma questão de estudos urbanos, como algo absolutamente exemplar, tá? E foi aí que eu me toquei, “bom, isso aqui é uma virada e tal”, porque não tinha nenhum questionamento, tinha aproveitamento etnográfico da circulação das pessoas e tal, como um modelo que o levou a trabalhar com usuários e traficantes de drogas. Então eu acho que foi isso por um lado, e eu acho que, por outro lado - mas isso é impressão minha, tá?,, a forma com que o Néstor foi trabalhando com as diferentes categorias fez muito sentido para quem depois foi trabalhar com interseccionalidade, mas muito sentido. E ele chama “tensores libidinais”, mas você tem a raça aí, claramente, e isso foi hiper precursor, hiper precursor, claro que com outro marco teórico dessas articulações, intersecções. Então, por exemplo, tem gente que não tem trabalhado com michês, ok?, mas sim com interseccionalidade e todos tomam como referência o Néstor. E depois tem a parte específica dos que têm trabalhado com relações homoeróticas. Então, eu acho que vai tudo junto, mais ou menos ao mesmo tempo, ele era reconhecido em diferentes campos, na antropologia e na sociologia também, então foi um boom , mas eu acho, como Peter e como Edward, que Néstor pensava na época de uma maneira que a gente não conseguia acompanhar. E que, depois, de uma maneira ou de outra, referenciais não idênticos, mas análogos em alguns sentidos, foram tornando possíveis os reconhecimentos do livro. Essa é a interpretação que eu dou. Então eu acho muito maravilhoso, eu não consigo parar de me maravilhar. Eu já disse isso pra vocês na Bahia, pensando no fim do Néstor e pensando na importância que esse livro tem conquistado nos últimos anos, em tantas gerações de pesquisadores. Isso é uma coisa belíssima, belíssima, belíssima! É. E eu fico feliz com isso.

R.E.F.: Querem falar algo mais sobre o livro, especialmente?

E.M.: Eu tenho recomendado para alguns orientandos que trabalham a questão da cidade. E eu mesmo não tinha voltado a ler. Assim, eu me surpreendi, estava me surpreendendo, porque as pessoas gostavam tanto. Ele fala muito sobre sociologia urbana, faz uma discussão.

A.P.: Faz, faz.

E.M.: Então é muito didático, sabe? É um ótimo livro para recomendar pras pessoas lerem, mesmo que não tenham esse interesse por sexualidade.

A.P.: É.

G.P.: Até porque ele atualiza e usa criticamente a discussão da Escola de Chicago, os conceitos da Escola de Chicago. Ele faz o conceito de região moral caminhar junto com as pessoas, e isso naquele momento foi inovador. Fez toda a diferença.

R.E.F.: A última questão tem a ver com as memórias que vocês tiveram na última semana, desde que souberam desta nossa conversa. Vocês lembraram de alguma cena, de algum momento, de algum episódio com o Néstor que vocês gostariam de contar pra nós? Há algum momento especial que vocês gostariam de trazer?

E.M.: Bom, pra mim ficaram muito marcantes esses últimos meses dele, porque a gente se via diariamente.

G.P.: Edward, no final, ele teve medo de morrer?

E.M.: Não creio, não. Muito desconforto, muito desconforto. Eu o vi algumas horas antes de ele morrer e ele estava luminoso. Ele foi extremamente gentil comigo. E estava uma coisinha frágil. Fraquinha. Terrível. Mas eu tenho memórias luminosas dele. Um dos pontos altos da minha vida.

A.P.: Ai, é difícil. Eu lembro de muitas coisas engraçadas dele. Mas eu lembro também… Lembrei agora quando vocês perguntaram. A UNICAMP foi muito generosa com o Néstor, o IFCH, como foi com outras pessoas que tinham AIDS na época, não foi exclusivamente com ele. Então, deixavam que eles não fossem trabalhar, mas sem obrigá-los a declarar que não estavam trabalhando por questões de saúde. Não era obrigado porque eles podiam ficar em casa porque estavam doentes. De qualquer maneira, o Néstor teve, num momento, que ir pra UNICAMP. Ele já estava muito magro, muito manchado, a pele com manchas, e ele me ligou pra que organizasse as coisas que ele tinha que fazer rapidamente, e eu fiz isso. Eu o acompanhei a fazer tudo. Mas eu lembro do desconforto imenso dele, de ter que enfrentar a UNICAMP, os colegas, mostrando as marcas da AIDS no corpo e como aquilo foi terrivelmente difícil. Eu acho que ele vivia como uma derrota, como algo humilhante, provavelmente em função das coisas que tinha escrito. Então esse foi um dia terrivelmente difícil. Mas eu tenho lembranças muito divertidas do Néstor, é claro, do Néstor estando bem, das sacadas geniais que ele tinha o tempo todo. Eu me lembro de uma discussão histórica com Marco Aurélio Garcia, que eu peguei quase no final, os dois estavam gritando na cozinha: “Mas silicone também é cultura!”.

P.F.: O que é que é cultura?

A.P.: Silicone! Eles estavam falando sobre travestis. Então, o Néstor era briguento, mas ele era muito divertido, criativo e bem humorado. Essas são as lembranças que vieram na minha cabeça.

E.M.: Bom, eu acho, como eu falei antes, que uma pessoa que também foi muito importante para ele nesses últimos tempos foi o Jorge Schwartz. Ele conseguiu para o Néstor essa bolsa da Fundação Vitae. No fim, ele tinha custos médicos altíssimos. As pessoas conseguiram, mais ou menos, segurar essa barra dele.

A.P.: Eu queria contar que eu acabo de consultar no computador, porque eu tinha a impressão de que o Néstor tinha tido uma bolsa Guggenheim4 4 A bolsa Guggenheim é concedida pela Fundação Memorial John Simon Guggenheim àqueles com destacada produção no campo das artes. no último ano de vida e teve mesmo, o que não é pouca coisa. E trabalhou até o fim para alcançar essa bolsa.

E.M.: Não se sabe o que aconteceu com esse texto dele. Isso seria interessante ver.

A.P.: Estás falando da questão do Daime e barroco?

E.M.: É.

A.P.: Ok. Teríamos que pesquisar isso.

R.M.: Gente, eu queria agradecer muito pelas ideias, as sugestões do Peter foram maravilhosas, as indicações do Edward muito preciosas. De fato, sem uma conversa pessoal, nós jamais chegaríamos a essas indicações. Então eu estou muito feliz com a nossa conversa e queria agradecer muito a generosidade constante da Adriana, pois estamos nessa há 3 anos.

A.P.: Coisa boa, bom, gente, eu agradeço também, aprendi muito como sempre, adorei encontrá-los, e eu amo encontrar o Peter. Peter, eu vou no Rio só pra te visitar!

P.F.: Você me deixa muito feliz, Adriana, porque essa pandemia tem deixado muita gente muito mais sozinha. Eu tenho me recolhido muito.

A.P.: Nossa, isso foi lindo. Mas foi muito legal ouvir todos vocês.

P.F.: Ainda que eu tenha sido preterido por Néstor. Preterido, a palavra é preterido.

R.M.: Jamais usaremos essa palavra, mas é um mito da antropologia brasileira que já tem 40 anos! (Risos). 40 anos de engano da antropologia brasileira!

P.F.: Eu me pergunto, ouvindo tudo que vocês falaram, você e Edward falaram da Editora Brasiliense, por que ele me convidou pra fazer o prefácio do livro dele? Não sei.

E.M.: Porque você era a grande referência, você tinha tudo a ver com isso.

P.F.: Não sei. Fiquei comovido, fiquei comovido.

G.P.: Gente, eu queria dizer que foi um momento muito bonito, para além de aprender, de conhecer sobre fatos, foi um momento muito bonito estar junto de vocês três e com os Robertos. A gente esperava por isso desde que nós começamos a pensar se seria possível, se o Pagu ia acolher o dossiê. E, depois, chegar até vocês. Porque vocês são importantes nas nossas trajetórias como pesquisadores, mais que isso, vocês são muito importantes pro campo da antropologia brasileira, então é significativo demais estar junto com vocês, é gratificante. Vocês se colocando junto conosco tão generoso, eu acho que isso faz toda a diferença, eu acho que isso é uma espécie de oásis neste momento tão triste que a gente está vivendo. Foram duas horas e meia que passaram muito rápido e a gente poderia ficar junto outras tantas horas, de preferência fora do computador, ao redor de uma mesa, dando risada, se emocionando, enfim. Eu só tenho a agradecer a vocês. E, por último, eu queria que a gente tirasse uma foto. Se organizem aí pra gente fazer uma foto final para constar nos alfarrábios da história deste dossiê. Ajeitados? Foi!

Referências bibliográficas

  • CORRÊA, Mariza. Morte em família: representações jurídicas de papeis sexuais. Rio de Janeiro, Graal, 1983.
  • FACCHINI, Regina. Sopa de Letrinhas? movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro, Garamond, 2005.
  • FERREIRA, Carlos. Imprensa homossexual: surge o Lampião da Esquina. Revista Alterjor, v. 01, ed. 01. São Paulo, 2010.
  • FRY, Peter. Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro, Zahar, 1982.
  • LANDES, Ruth.A Cult Matriarchate and Male Homosexuality. Journal of Abnormal Psychology, 1940.
  • LOBERT, Rosemary. A Palavra Mágica: a vida cotidiana dos Dzi Croquettes. Campinas, Editora Unicamp, 2010.
  • MACRAE, Edward. A construção da igualdade: identidade sexual e política no Brasil da “abertura”. Campinas, Ed. da UNICAMP, 1990.
  • PERLONGHER, Néstor. O que é AIDS? São Paulo, Brasiliense, 1987.
  • PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. São Paulo, Brasiliense, 1987.
  • PERLONGHER, Néstor. Águas aéreas. Buenos Aires, Último Reino, 1991.
  • PERLONGHER, Néstor. Droga e Êxtase. Religião e Sociedade, v. 16(3), Rio de Janeiro, 1994, pp.8-23.
  • VERGOLINO E SILVA, Anaiza. O tambor das flores. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), IFCH/Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), 1976.
  • 1
    O Lampião da Esquina foi um jornal brasileiro voltado, mas não só, para o público homossexual que circulou durante os anos de 1978 e 1981. Para mais informações, ver Ferreira (2010)FERREIRA, Carlos. Imprensa homossexual: surge o Lampião da Esquina. Revista Alterjor, v. 01, ed. 01. São Paulo, 2010. .
  • 2
    O Somos - Grupo de Afirmação Homossexual é considerado o primeiro grupo brasileiro em defesa dos direitos de homossexuais. Para mais, ver Facchini (2005)FACCHINI, Regina. Sopa de Letrinhas? movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro, Garamond, 2005. e MacRae (1990)MACRAE, Edward. A construção da igualdade: identidade sexual e política no Brasil da “abertura”. Campinas, Ed. da UNICAMP, 1990. .
  • 3
    A Vila Céu do Mapiá foi fundada em 1983 nas cabeceiras do igarapé Mapiá, no Estado do Amazonas, e é uma referência para os adeptos do Santo Daime.
  • 4
    A bolsa Guggenheim é concedida pela Fundação Memorial John Simon Guggenheim àqueles com destacada produção no campo das artes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Nov 2022

Histórico

  • Recebido
    31 Out 2022
  • Aceito
    03 Nov 2022
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