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Censura e ideologia: o caso do catálogo Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira

Censorship and Ideology: The Case of the Queermuseum Catalog: Cartographies of Difference in Brazilian Art

Resumo

Aborda como atos censórios legitimam a imposição de ideologias pessoais, interferindo no acesso de minorias sociais à informação para a garantia de direitos. Discute a ideologia com abordagem teórica de cunho histórico, em analogia ao atual período, no qual surgem repetidos atos de censura às artes e à literatura no Brasil, especialmente contra o público LGBTQIA+.

Ideologia; Censura; Queermuseu; Informação; Estudos de gênero

Abstract

It addresses how censorship acts legitimize the imposition of personal ideologies, interfering in the access of social minorities to information to guarantee rights. It discusses the ideology with a theoretical approach of current period, in analogy to the current period in which repeated acts of censorship of the arts and literature appear in Brazil, especially against the public LGBTQIA+.

Ideology; Censorship; Queermuseum; Information; Gender studies

Introdução

A censura se faz presente como uma sombra que se distende e se retrai ao sabor do contexto social, político e econômico a que está circunscrita. Entretanto, ela não é apenas uma ideia incorpórea, todavia uma série de discursos que tomam corpo em ações lastreadas por um conjunto de ideias em busca de legitimação na superestrutura por meio das instituições oficiais do Estado ou da sociedade civil, que adotam um enunciado pretensamente universal, vinculando-o a toda esfera da sociedade, ainda que tais enunciados não consigam refletir todas as práticas cotidianas dos sujeitos. Assim, a censura se faz presente quando rejeitamos ou aceitamos os conjuntos de ideias que pautam a nossa compreensão da realidade e os replicamos como valores aos quais todos, sem exceção, devem se submeter.

A partir dessa reflexão, discutimos como a censura emerge, estabelece-se na sociedade e cerceia o acesso à informação, embasando a ruptura de direitos inalienáveis, negando aos sujeitos o direito de constituir livremente suas representações, preservadas, e de, nelas, encontrar ecos de si. Empregamos análise dialógica fundamentada nos preceitos teóricos dos estudos bakhtinianos como caminho metodológico capaz de permitir a apropriação dos sentidos proferidos nas condutas de censura, na literatura e nos documentos aqui estudados no que concerne suas discussões sobre ideologia. Apresentamos o episódio de censura ao Catálogo Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira em 2017, justificada por seu conteúdo aludir a elementos do universo LGBTQI+. Discorremos, então, sobre como o discurso pode se pautar em informações distorcidas e se constituir em uma ferramenta de cerceamento e manipulação a fim da manutenção do poder de grupos ora estabelecidos.

Ideologia: como é usada para cercear

O que torna uma coletânea de obras artísticas objeto de um anátema? O uso excludente da ideologia, promovida por grupos que representam interesses específicos, a fim de ampliar ou consolidar sua posição na sociedade. Para melhor entendimento, traçamos brevemente o histórico do termo, posto que se trata de um tema demasiado visitado.

Inicialmente, o termo ideologia foi utilizado na concepção de uma ciência, proposta por Destutt de Tracy na França do início do século XVII, que pretendia compreender a gênese das ideias e suas relações, capaz de compreender como as ideias surgem, se relacionam e se propagam fornecendo suporte às demais ciências, contribuindo para a boa governança dos Estados. Tal proposta encontrou apoio de Napoleão Bonaparte, que se utilizou das concepções propostas pelos ideólogos (Thompson, 2011).

O mesmo Napoleão foi quem primeiro atribuiu sentido pejorativo ao termo. Percebendo o apoio dos ideólogos ao republicanismo, ele alegou que a ideologia era usada como um modo de orientação a fim de induzir ao erro pautado em ideias subjetivas apartadas da realidade.

O termo volta a ser empregado próximo de como foi pensado pelos ideólogos franceses por Augusto Comte e, segundo Chaui (1989CHAUI, Marilena. O que é ideologia. São Paulo, Brasiliense, 1989.: 25), nesse momento possui duas acepções compreendidas como: “atividade filosófico-científica que estuda a formação das idéias (sic) […]” e como “conjunto de idéias (sic) de uma época, tanto como “opinião geral” quanto no sentido de elaboração teórica dos pensadores dessa época.”

O termo conserva sua concepção primária, a dos ideólogos franceses, e dá um passo além, vinculando tal entendimento ao contexto histórico-social, pois o conjunto de ideias de uma época não será estabelecido fora dela, será apropriado e ressignificado a partir das condições materiais em circunstâncias geográfica e cronologicamente dadas.

Essa concepção, segundo Chaui (1989CHAUI, Marilena. O que é ideologia. São Paulo, Brasiliense, 1989.: 27), leva a consequências que promovem a compreensão da ideologia como metodologia de organização e hierarquização do conhecimento, estabelecendo valoração e distinção entre teoria como algo superior a prática. Em consequência disso, ocorre a hierarquização entre trabalho intelectual e trabalho manual, estabelecendo-se a concepção de que quem domina teoria possui também o poder sobre a parcela da população que não detém conhecimento teórico e apenas executa o trabalho prático, manual. Concepção essa que será mais tarde abordada por outros filósofos, entre eles Karl Marx, que vai trazer em “A Ideologia Alemã” a noção de que não há fato social fora do contexto materialmente constituído e esse contexto é o que determina as relações humanas.

A produção de ideias, de representações, da consciência, está, em princípio, imediatamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, com a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens ainda aparece aqui como emanação direta de seu comportamento material ( Engels; Marx, 2007ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A ideologia alemã. São Paulo, Boitempo, 2007.: 93).

Inferimos, então, que o ideal não deve se sobrepor ao real e que é a partir das relações cotidianas, historicamente estabelecidas, que o homem compreende a si e o meio no qual está inserido. Assim, podemos fazer prospecções de futuro baseadas nas informações que possuímos hoje, contudo, não serão mais especulações bem embasadas se não emergirem no horizonte da materialidade como fatos constituídos. Isso quer dizer que os fenômenos sociais podem se repetir e apresentar certa constância, entretanto só serão fato em uma condição material, cronológica e geograficamente definidas.

A partir dessa divisão, se estabelece uma hierarquia entre as ideias que “serão tomadas como anteriores à práxis, como superiores e exteriores a ela, como um poder espiritual autônomo que comanda a ação material dos homens” ( Chaui, 1989CHAUI, Marilena. O que é ideologia. São Paulo, Brasiliense, 1989.: 65). E, com isso, a teoria se distanciou da prática e, por conseguinte, o discurso, as ideias gerais de um grupo ou mesmo de toda a sociedade, se afasta das práticas cotidianas e a partir de então surge a concepção atual de ideologia como um “sistema ordenado de idéias (sic) ou representações e das normas e regras como algo separado e independe das condições materiais” ( Chaui, 1989CHAUI, Marilena. O que é ideologia. São Paulo, Brasiliense, 1989.: 65).

Desse modo, as ideias passam a figurar como entidades autônomas capazes de explicar, pronta e definitivamente, o mundo e o que nele acontece, válidas para todos em todos os lugares e épocas e “em lugar de aparecer que os pensadores estão distanciados do mundo material e por isso suas idéias (sic) revelam tal separação, o que aparece é que as idéias (sic) é que estão separadas do mundo e o explicam” ( Chaui, 1989CHAUI, Marilena. O que é ideologia. São Paulo, Brasiliense, 1989.: 66).

Destarte, como essas concepções e entendimentos impregnam a mente dos indivíduos? Como nos apropriamos das certezas estabelecidas? Tais questionamentos nos remetem ao Círculo de Bakhtin, colocando-nos na continuidade do caminho traçado por Engels e Marx, quando apregoam que é no discurso constituído de palavras mutáveis, nas quais se acumulam os sentidos, que encontramos o elemento de propagação das ideologias nas relações cotidianas casuais e afirmam que em “toda refração ideológica do ser em processo de formação, seja qual for a natureza do seu material significante, é acompanhado de uma refração ideológica verbal, como fenômeno obrigatoriamente concomitante. A palavra está presente em todos os atos de interpretação” ( Bakhtin; Voloshinov, 2006BAKHTIN, M.; VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo, Hucitec, 2006.: 36).

Assim, percebemos que são nos encontros diários, nas conversas entre vizinhos, nos bares, nos lugares de culto, nos ambientes frequentados por gente que circulam as ideias, que estas submergem nas consciências individuais, são embebidas nos significados ali acumulados, emergindo como próprias dos sujeitos que as retransmitem para outros sujeitos numa cadeia ininterrupta. Essas ideias passam a compor o repertório amplo do conjunto de conceitos dispersos na sociedade, e seus sentidos são alterados conforme os ambientes e períodos de circulação.

Para Bakhtin e Voloshinov (2006)BAKHTIN, M.; VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo, Hucitec, 2006. , tais relações se estabelecem na perspectiva das interações do dia a dia, nas quais são dispersos conceitos informais, que paulatinamente adquirem status de formalidade, se estabilizam e se legitimam como ideias válidas, universais e vinculantes, ou seja, às quais todos estão submetidos ou acreditam. Isso ocorre no âmbito da Ideologia do Cotidiano, compreendida como a que “brota e é constituída nos encontros casuais e fortuitos, no lugar do nascedouro dos temas de referência, na proximidade social com as condições de produção e reprodução da vida” ( Miotello, 2010MIOTELLO, Valdemir. Ideologia. In: BRAIT, B. Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo, Contexto, 2010, pp.167-176.: 169).

Assim, percebemos que a apropriação dos sentidos, das ideias, dos conceitos não se dá de pronto como na instalação de um software que atualiza os parâmetros de uma máquina. Consumimos e reproduzimos o que nos é mais próximo e que é, via de regra, mais significativo e, portanto, mais propício a ser identificado como válido.

Por exemplo, a promiscuidade e violência nas favelas do Brasil se refletem na linguagem da esfera cotidiana informal, nos itens produzidos que afloram dessa esfera passando para um status superior, o da formalização em um item informacional como as letras do Funk carioca e do Brega recifense1 1 Ritmo musical das periferias recifenses (PE) e cariocas (RJ). , a poesia marginal de Miró da Muribeca2 2 Poeta pernambucano. , a arte gráfica de Wark da Rocinha3 3 Artista gráfico carioca (RJ). , que primeiro frequentam os becos, praças e ruelas de suas comunidades, vociferando o reflexo de suas rotinas para, enfim, chegar às instâncias de oficialização e legitimação dos discursos, como galerias de arte – lá se fazem produto consumível em outros contextos diversos de onde surgiram – academia e instâncias judiciais; estas últimas julgarão sua licitude, determinando o que é ou não válido e o que promove, por conseguinte, inclusão ou exclusão, aceitação ou repulsa dos gestos, falas e atos dos sujeitos.

Ideias a serviço de quem?

E como a ideologia promove a exclusão de grupos específicos na sociedade? Esse questionamento certamente foi feito em diversos momentos ao longo da história da humanidade, em especial quando algo novo ou diferente dos costumes reconhecidos pela maioria como aceitáveis se apresenta pronto para pôr em xeque as margens bem delimitadas da zona de conforto dos grupos estabelecidos no poder. Especialmente no que tange a temas como a fé religiosa e a sexualidade.

Tomamos como exemplo dois momentos históricos nos quais grupos específicos foram submetidos ao controle por meio de propagação de ideias não pautadas pela realidade material de seu tempo, mas por razões ideológicas a serviço de grupos dominantes em diferentes contextos: a violência contra a mulher na perseguição às bruxas na Idade Média e a Política russa de perseguição aos gays na presente década, ano de 2018.

A violência contra a mulher encontrou sua maior expressão na caça às bruxas no medievo europeu, quando mulheres foram, sistematicamente, submetidas à tortura e condenadas à morte por enforcamento ou queimadas vivas em fogueiras, com sentenças executadas em praça pública. A crença infundada e disseminada de modo indiscriminado levou ao que alguns autores contam na casa de milhares de vidas femininas ceifadas, segundo Muraro (2015MURARO, Rose Marie. Introdução. In: O martelo das feiticeiras. Rio de Janeiro, BestBolso, 2015, pp.23-102.: 78):

A extensão da caça às bruxas é espantosa. No fim do século XV e no começo do século XVI, houve milhares e milhares de execuções – usualmente eram queimadas vivas na fogueira – Muitos escritores estimaram que o número total de mulheres executadas subia à casa dos milhões, e as mulheres constituíam 85 por cento de todos os bruxos e bruxas que foram executados.

As ideias que subsidiaram esse genocídio encontraram sustento no livro Malleus Maleficarum (O Martelo das Feiticeiras) escrito em 1487 pelos inquisidores Henrich Kramer e James Sprenger. Esse foi o códex que alicerçou e permitiu aos inquisidores católicos empilharem milhares de cadáveres de mulheres, resultantes do expurgo do suposto mal satânico das vilas e cidades europeias, livres do ônus da prova por três séculos.

Por trás do fato de, em sua grande maioria, as vítimas serem mulheres, estava uma ideia concebida por uma crença comum que, supostamente, indicaria a prática de rituais satânicos envolvendo orgias e assassinatos de crianças para a consecução de sortilégios maléficos. As mulheres rotuladas de bruxas eram, geralmente, solteiras ou viúvas, parteiras, curandeiras ou participantes de grupos que principiavam se organizar e questionar a ordem vigente:

Desde a mais remota antiguidade, as mulheres eram as curadoras populares, as parteiras, enfim, detinham saber próprio, que lhes era transmitido de geração em geração. [...]. Mais tarde elas vieram a representar uma ameaça. Em primeiro lugar, ao poder médico, que vinha tomando corpo através das universidades no interior do sistema feudal. Em segundo, porque formavam organizações pontuais (comunidades) que, ao se juntarem, estruturavam vastas confrarias, as quais trocavam entre si os segredos da cura do corpo e, muitas vezes, da alma ( Muraro, 2015MURARO, Rose Marie. Introdução. In: O martelo das feiticeiras. Rio de Janeiro, BestBolso, 2015, pp.23-102.: 79).

Às tais mulheres, vistas como o inimigo do poder secular, eram atribuídos poderes de manipular e subjugar a vontade e retidão moral dos mais dedicados servos da fé por meio da força de seu erotismo, do poder de vida e de morte por serem amantes do demônio, de voar em objetos inanimados e de corromper outras mulheres. Para elas, eram reservados os piores castigos com o intento de que confessassem sua condição odiosa e, por meio de tortura, muitas confissões foram conseguidas. Partindo de tais confissões, se estabeleceu no imaginário popular a crença na real existência de pessoas com capacidades demoníacas ou poderes supra-humanos e, com isso, a posição já delicada da mulher em uma sociedade patriarcal ficaria cada vez mais frágil.

Muraro (2015MURARO, Rose Marie. Introdução. In: O martelo das feiticeiras. Rio de Janeiro, BestBolso, 2015, pp.23-102.: 68) relata como o discurso de manutenção da moral vem delimitando o espaço da mulher na sociedade quando esclarece que:

Desde a época em que o Gênesis foi escrito, até os nossos dias, isto é, de alguns milênios para cá, essa narrativa básica da nossa cultura patriarcal tem servido ininterruptamente para manter a mulher em seu devido lugar. E, aliás, com muita eficiência. A partir desse texto, a mulher é vista como a tentadora do homem, aquela que perturba a sua relação com a transcendência e também aquela que conflitua as relações entre os homens. Ela é ligada à natureza, à carne, ao sexo e ao prazer, domínios que devem ser rigorosamente normatizados. […] E ao Demônio é alocado o pecado por excelência, o pecado da carne. Coloca-se no sexo o pecado supremo e, assim, o poder fica imune à crítica.

Mulheres membros da realeza eram, eventualmente, acusadas de bruxaria ou de ter feito uso ocasional de feitiços para atingir posições de destaque como comandantes militares, rainhas, rainhas regentes, entre outras, cuja acusação de bruxaria assumia um evidente viés de controle político com a finalidade de impedir a ascensão a lugares que lhe outorgassem o poder de decisão. Entretanto, a perseguição e punição à figura maléfica dos hereges e das bruxas, concebida pela Igreja Católica, eram atribuídas mais frequentemente às pessoas das classes mais baixas que já davam sinais de não tolerar mais o tratamento ao qual eram submetidas por seus senhorios e pela própria Igreja. Percebemos que o intuito não era libertar os corpos e mentes do jugo do demônio, era pô-los sob domínio dos grupos então no poder, entre eles a Igreja Católica.

A religião católica e depois a protestante contribuem de maneira decisiva para essa centralização do poder. E o fizeram através dos tribunais da Inquisição que varreram a Europa de norte a sul, leste e oeste, torturando e assassinando em massa aqueles que eram julgados heréticos ou bruxos. Esse “expurgo” visava recolocar dentro de regras de comportamento dominante as massas camponesas submetidas muitas vezes aos mais ferozes excessos dos seus senhores, expostas à fome, à peste e à guerra, e que se rebelavam ( Muraro, 2015MURARO, Rose Marie. Introdução. In: O martelo das feiticeiras. Rio de Janeiro, BestBolso, 2015, pp.23-102.: 82).

Essa perseguição, mesmo indo de encontro aos mandamentos professados na Bíblia – no quinto mandamento do livro de Êxodo 20:13, por exemplo, lê-se: não matarás –, foi levada a cabo e encontrou sua justificativa para exterminar os supostos inimigos da fé:

Também vos destinareis à espada, e todos vos encurvareis à matança; porquanto chamei, e não respondestes; falei, e não ouvistes; mas fizestes o que era mau aos meus olhos, e escolhestes aquilo em que não tinha prazer (Isaías, 65:11,12).

Outros exemplos são fartamente distribuídos pelo velho testamento, seccionando e manipulando os escritos canônicos, estabelecendo, com isso, um discurso orientado para validar as imposições e sentenças dos tribunais eclesiásticos para vincular a figura do demônio e do ato pecaminoso, o coito, às supostas bruxas. O que ocasionou uma espécie de histeria coletiva, em que todos vigiavam a todos e qualquer atitude poderia ser suspeita, instaurando medo e desconfiança generalizados. Entretanto, com o necessário distanciamento cronológico, se constata a patente manipulação do discurso bíblico para permitir o alcance de um objetivo necessário à Igreja e a seus aliados naquele período.

Ao nos confrontarmos com as lições do passado, nos fiamos na impossibilidade de algo similar acontecer nos dias atuais, nos quais a informação é farta e acessível. No entanto, perseguição, controle e punição a grupos específicos não é prerrogativa de tempos remotos e nem da religião. Na atualidade, ano de 2018, a Rússia, um país laico, com uma quantidade considerável de ateus e agnósticos, mantém uma política severa de restrição aos direitos dos LGBTQI+4 4 LGBTQI+: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis, Queers, Intersexuais e demais expressões de gênero indicadas pelo símbolo de adição. .

Neste momento, é difícil encontrar referências mais consistentes referentes a essa questão, visto que a legislação russa atual age, exatamente, no controle da divulgação de conteúdo alusivo às temáticas LGBTQI+. Portanto, nos pautamos em matérias publicadas por sites de agências de notícias, jornais e revistas em meio digital.

Principiamos pela divulgação da aprovação da lei que proíbe a propaganda LGBTQI+ publicada em 11 de junho de 2013 pelo portal de notícias G1: “A Duma (Câmara dos Deputados) da Rússia aprovou nesta terça-feira uma lei que proíbe a propaganda homossexual entre os menores de idade, uma iniciativa que as minorias sexuais consideraram uma flagrante violação de sua liberdade de expressão”.

Percebemos que o discurso para limitar o direito à liberdade de expressão de uma parcela da população daquele país recai sobre argumento de que o convívio ou proximidade com elementos da cultura LGBTQI+ culminaria na indução de jovens e crianças à adoção dos comportamentos divulgados.

Apenas em 1993 a homossexualidade foi descriminalizada sob a égide da nova Constituição do país, promulgada no mesmo ano, na qual constam diversos artigos que, inspirados na Carta Internacional dos Direitos Humanos e no Pacto Internacional dos Direitos Humanos, versam sobre a garantia dos direitos do cidadão russo. No segundo capítulo, encontram-se as disposições sobre os Direitos e Liberdades humanos e dos cidadãos, especialmente nos artigos:

Artigo 17º – […] 2. Direitos e liberdades fundamentais são inalienáveis e pertencem a todos, desde o nascimento. 3. O exercício dos direitos e liberdades das pessoas não deve infringir os direitos e liberdades de outrem.

Artigo 19º - […] 2. O Estado deve garantir a igualdade de direitos e liberdades das pessoas e dos cidadãos […]. É proibida qualquer forma de restrição dos direitos dos cidadãos sobre a identidade social, racial, étnica, linguística ou religiosa. […]

Artigo 21º – […]. 2. Ninguém deve ser submetido a tortura, violência, nem outro tratamento ou punição cruel ou degradante. […]

Artigo 29º – 1. A todos é garantida a liberdade de pensamento e de expressão. 2. Não é permitida Propaganda ou incitação ao ódio e inimizade social, racial, étnica ou religiosa. […]. 4.Todos têm o direito de livremente procurar, receber, transmitir, produzir e divulgar informação por qualquer meio lícito.

5. Garantida a liberdade de informação de massa. A censura é proibida (grifo nosso).

O artigo 29 expressa, claramente, as garantias da liberdade de expressão. No entanto, o preconceito reminiscente permanece produzindo vítimas, como se pode observar na matéria publicada no Portal de notícias O Observador em 20 de junho de 2017: “Acredita-se que a lei anti-gay russa contribuiu para um aumento dos crimes de ódio em todo o país com pessoas homossexuais a serem atraídas para encontros, para serem espancadas e humilhadas, muitas vezes enquanto são filmadas”.

As tentativas de promover o debate sobre o assunto são coibidas com densas multas, e há, até mesmo, uma lista de materiais nocivos, como é prática comum de grupos dominantes que pretendem impor sua visão de mundo para impedir o diálogo aberto relativo aos temas que interessam a partes específicas da população ou acerca de temas sensíveis como religiosidade, sexualidade e direitos sobre o corpo. Em matéria do portal de notícias G1 , em 20 de junho de 2018, podem-se constatar tais afirmativas, assim como o nível de aceitação popular das medidas de restrição promovidas pelo governo Putin: “Quando a lei foi promulgada, uma pesquisa do instituto Vtsiom mostrou que 88% dos russos aprovavam a proibição da "propaganda" homossexual e que 54% acreditavam que a homossexualidade devia ser punida”.

Mesmo contando com o apoio de organismos internacionais, como o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, e se posicionando contra a mitigação de seus direitos, a população LGBTQI+ se viu cerceada, cada vez com menos espaço de atuação social. Na mesma matéria do portal G1 é possível observar a ampliação da atuação do governo russo quanto à restrição dos direitos devotados a esse público: “Na última semana, o presidente russo, Vladimir Putin, assegurou que também promulgará a lei que proíbe a adoção de crianças russas por parte de casais do mesmo sexo, embora tenha negado que na Rússia haja 'discriminação' das minorias sexuais ”.

Em reportagem publicada no The New Yorker (29 de dez. de 2017) o jornalista russo Masha Genssen, que vive em Nova York desde 2013, declara que viajou para a Rússia com intenção de investigar relatos de que grupos de homens (autodenominados vigilantes) que se reuniam para capturar gays, torturá-los diante de câmeras e disseminar os vídeos. Ao desembarcar em solo russo e entrar em contato com as vítimas, o que lhe parecia absurdo mostrou-se ainda pior. Não apenas pôde confirmar a existência desses grupos de torturadores como, segundo o jornalista, há fortes indícios da existência de campos de concentração para a prática sistemática de abusos análogos aos praticados pelo regime nazista na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. Segundo Genssen, as vítimas sequer procuram as autoridades para registrar as ocorrências, pois perderam completamente a confiança nelas, portanto, não é possível estabelecer uma estimativa real das pessoas que sofreram agressões ou que foram mortas.

Partindo dos exemplos expostos, fica evidente que a concepção de uma ideia pode ser imposta, por meio da estrutura do Estado, com o intuito legitimar um discurso que promete solucionar os problemas de uma população de um dado território partindo de uma universalidade que, em tese, adequar-se-ia a todos os indivíduos mesmo que não sejam de fato homogêneos.

Reiteramos o pensamento de Engels e Marx (2007ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A ideologia alemã. São Paulo, Boitempo, 2007.: 93) de que as construções mentais dos homens tomam por base as relações reais entre eles e com meio no qual estão estabelecidos, geográfica e cronologicamente, e por isso a representação, a ideia que fazemos de algo não deve se sobrepor aos fatos historicamente constituídos. Os autores enfatizam a necessidade de estarmos atentos ao que nos circunscreve a fim de evitar uma apropriação equivocada da realidade e, com isso, assumir discursos que não nos representam ou que nos subjugam. Nesse sentido, afirmam que o ponto de partida não é a ideia que o homem faz de si ou dos outros, mas do que é de fato, partindo de sua condição sócio histórica.

Isso nos leva a ponderar sobre o que os exemplos citados têm em comum: o uso de conceitos universalizantes apartados da realidade material histórica. Pois ninguém viu de fato mulheres voando em vassouras ou copulando com o demônio; tampouco se comprova o fato de que compartilhar os espaços com a comunidade LGBTQI+ transforma alguém, automática e definitivamente, em LGBTQI+. Isso implica dizer que foram difundidas ideias muito distantes da realidade material por meio da superestrutura dos respectivos governos em cada caso.

Ao analisar os exemplos, fica claro que os grupos dominantes procuram difundir conceitos, promover sua aceitação, apropriação e dispersão no meio social como algo óbvio e “natural”, invertendo o processo de produção e apropriação da informação, partindo das ideias para a materialidade por meio da normatização promovida em instâncias de legitimação. Esse processo se dá mediante o uso da linguagem, e é nesse campo que se travam as lutas de classes pela mudança de paradigmas sociais, pela ampliação do alcance de grupos que querem emergir de sua condição de margeantes do processo de concepção das ideias – dos conceitos que se constituem a partir de sua vivência real – e passar à condição de protagonistas de sua própria história.

Todo esse processo ideológico de dominação pode ser observado pelo discurso, pela materialidade das palavras, pois

a palavra penetra literalmente em todas as relações entre indivíduos, nas relações de colaboração, nas de base ideológica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relações, nas relações de caráter público, etc. As palavras são tecidas através de uma multidão de fios ideológicos e sevem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios ( Bakhtin; Voloshinov, 2006BAKHTIN, M.; VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo, Hucitec, 2006.: 39).

É nesse universo dos jogos éticos, dos conjuntos de valores formados, paulatinamente, que são determinadas as interações e relações humanas que configuram o orbe da cultura e que o Círculo de Bakhtin considera ser o nascedouro dos discursos, das ideologias, dos embates sociais, do ato responsável, que nos fazem compreender o próprio homem. É pela língua em suas mais variadas potencialidades semióticas, na sua vivencialidade fortuita que temos a possibilidade de compreender os processos da comunicação verbal, pelos quais podemos ouvir a voz da alteridade, perceber a cor e a entoação daquilo que se caracteriza em oposição a uma identidade monológica e acabada do eu. Assim, nessa acepção, a palavra como signo, como discurso, carrega consigo a ideologia da realidade material, do mundo dos produtos culturais que tomam valor a partir da interação dos sujeitos, posto que ela é a “ponte, elemento de mediação. É ela que carrega de um para o outro o ponto de vista único de cada um, e que vai constituir o outro, me constituindo” ( Gege, 2009GRUPO de Estudos dos Gêneros do Discurso - GEGE. Palavras e contrapalavras: glossariando conceitos, categorias e noções de Bakhtin. São Carlos, Pedro e João Editores, 2009.: 84).

O processo de constituição das identidades pela alteridade, conforme discute o pensamento bakhtiniano, permite a possibilidade de refletir sobre o orbe da cultura a partir de uma compreensão dialógica dos fenômenos discursivos, processos e atos que constituem os horizontes sociais do homem e dos seus “grupos específicos que estabelecem sistemas específicos de atribuição de ordem e valores axiológicos ao mundo [...] e em cada um deles os signos se revestem de sentidos próprios, produzidos a serviço dos interesses daquele grupo” ( Miotello, 2004MIOTELLO, V. Os discursos hegemônicos são turbulentos. In: GRUPO de Estudos dos Gêneros do Discurso. Quimera e a peculiar atividade de formalizar a mistura do nosso café com o revigorante chá de Bakhtin. São Carlos, GEGE, 2004, pp.63-74.: 171).

“Todas as palavras e formas são povoadas de intenções [...] é uma palavra semi-alheia, que só se torna própria quando o falante a povoa com sua intenção, com seu acento, quando a domina através do discurso, torna-a familiar com a sua orientação semântica expressiva” ( Bakhtin; Voloshinov, 2006BAKHTIN, M.; VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo, Hucitec, 2006.: 100). Portanto, não se trata de uma palavra neutra, mas da “palavra concebida mais amplamente, como um fenômeno da comunicação cultural, que deixa de ser uma coisa centrada em si mesma e já não pode ser compreendida independente da situação social que a tem engendrado” ( Volochínov, 2014VOLOCHÍNOV, V. N. A construção da enunciação e outros ensaios. São Carlos, Pedro & João Editores, 2014. Org., Trad. e Notas: João Wanderley Geraldi.: 75).

Percebemos que discursos não são inócuos. São, ao contrário disso, carregados de significados e intenções ideológicas que subjazem nas palavras. Bakhtin e Voloshinov (2006BAKHTIN, M.; VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo, Hucitec, 2006.: 263) enxergavam para além do materialismo histórico de Marx, eles percebiam que “todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem”, e lastreados por ela as ações dos sujeitos se constituem e materializam seus vieses ideológicos. Destarte, ao olharmos nesse escrito para os discursos ideológicos produzidos sobre e a respeito de um grupo socialmente organizando, a comunidade LGBTQI+, sobretudo no que se refere à teoria queer, os pensamentos desses filósofos nos ajudam a compreender o processo constitutivo da cadeia da comunicação discursiva e os sentidos que emergem e que são abafados no orbe social.

Catálogo Queermuseu na oficialidade?

Como visto, o uso da informação apartado do olhar sobre as relações reais entre os sujeitos promove o preconceito e a discriminação civil, institucional e simbólica, e no Brasil não é diferente. A censura ao catálogo proveniente da exposição Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira (2017), um objeto concebido na infraestrutura e materialmente fixado em um suporte físico, é evidência disso.

A obra censurada foi a primeira edição do catálogo Queermuseu (2017), proveniente da primeira exposição no edifício do Santander Cultural em Porto Alegre (RS), financiada por recursos públicos via Lei Rouanet (Brasil, Lei 8.313/1991), com valor captado de R$ 800.000,00, e apresentava entre seus objetivos a “Impressão de 2 mil unidades […] com a seguinte distribuição gratuita: 200 unidades serão destinadas à baixa renda através da distribuição em escolas da rede pública que visitarem a exposição; 200 unidades para Bibliotecas, museus e MinC” (Rainmaker, 2018:01).

Havia a patente intenção da distribuição gratuita do catálogo da exposição para que os sujeitos pudessem consultá-la em instituições públicas. A distribuição aconteceu, contudo, não encontramos notícias da permanência nos locais a que se destinariam. Na cidade de Uruguaiana (RS), houve a tentativa de devolução da obra à entidade produtora, O Santander Cultural, não pela recusa por parte da entidade a que se destinava, a Biblioteca Pública Municipal Luiz Guilherme do Prado Veppo, mas pela ação parlamentar de um grupo político local, representado pelos vereadores Eric Lins Grillo (DEM/RS), Carlos Delgado (PP/RS), Vilson Brites (MDB/RS), Mano Gás (PSDB/RS), Zulma Ancinello (PRB/RS), que, por meio de uma moção de repúdio (Uruguaiana, Moção 106/2017), atribuíram termos como “grotesco”, “lascívia” “distorcida”, “falta de talento” e “mau gosto” à publicação, julgando serem esses motivos suficientes para justificar a retirada de uma obra artística de uma Biblioteca Pública Municipal.

Sabemos que a apreciação da qualidade técnica de obras de arte perpassa a avaliação do domínio que o artista demonstra sobre aspectos técnicos como forma, simetria, ângulo, harmonia, proporção, entre outros, e, ainda, que a apreciação estética é subjetiva e se processa a partir da concepção de mundo individual de cada sujeito. Portanto, julgar a qualidade técnica e estética das obras escolhidas para compor o referido catálogo não é atribuição do Estado – na situação em questão, de membros do poder legislativo municipal. Há, na estrutura do Estado, profissionais qualificados para isso em autarquias como o Instituto do Patrimônio Artístico Nacional (IPHAN), nos museus e bibliotecas públicas e centros de informação – esses sim, locais com profissionais apropriados para tal tarefa.

A controvérsia acerca das obras artísticas foi especialmente direcionada às obras de três artistas: “Travesti da lambada e Deusa das águas” (2013) e “Adriano bafônica e Luiz de França She-Rá” (2013), de Bia Leite; O Eu e o Tu (1967-2015), de Lygia Clark, acusadas de apologia à pedofilia; e Cruzando Jesus Cristo com Deusa Shiva (1996), de Fernando Baril, acusado de blasfêmia. A contenda começou no período da primeira exibição da exposição no edifício do Santander Cultural, na cidade de Porto Alegre (RS), quando o advogado Cesar Augusto Cavazzola Junior publicou em seu site ataques contra a exposição Queermuseu acusando o Santander Cultural de, ao promover a exposição, fazer apologia à pedofilia, zoofilia e profanação de objetos de culto religioso. O ataque inicial encontrou nas redes sociais um ambiente propício para a propagação de ideias que dispensam o lastro de uma fonte de informação segura.

Em nota divulgada pelo site do jornal El Pais (2017), o Santander Cultural afirmou que as obras eram destinadas a provocar a reflexão quanto ao enfretamento das questões de gênero e, contrariando sua própria iniciativa, optou pelo encerramento prematuro da exposição, deixando claro que a censura imposta à exposição e aos seus produtos se deu em função de uma falsa moralidade amparada na percepção equivocada da realidade.

Bakhtin e Voloshinov (2006BAKHTIN, M.; VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo, Hucitec, 2006.: 29) localizam a produção das obras de arte na realidade material, como “um produto ideológico [...] parte de uma realidade (natural ou social) como todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo”, posto que tais obras de arte produzem discursos que estão para além do suporte material da informação, pois, para os filósofos, “tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo”. Esses sujeitos produtores propõem questionamentos sobre a realidade das relações de poder sobre os corpos subalternos, das relações aceitação ou repulsa da expressividade desses corpos, das manifestações dos sujeitos em seus fazeres cotidianos, resultando em argumentações que emergem na superestrutura em busca de legitimação nas instâncias capazes de alçar esses discursos à oficialidade.

Dessa forma, estar inserido na superestrutura, lugar formal no qual os sentidos se estabilizam por meio da estrutura de produção dos sentidos, primordialmente ideológica, é assumir caráter de existência reconhecida e, com isso, oficial e não mais margeante. Essa estrutura de produção dos sentidos é validada por instituições que endossam os temas que afloram do cotidiano a partir do aceite nessas entidades, como no caso de uma exposição de arte e da publicação de um catálogo.

Queer – diferença que afasta e igualdade que deforma

A partir do que foi discutido, remetemos ao termo queer a fim de compreender quais os indícios quanto à resistência à exibição de obras artísticas, tanto na exposição quanto no catálogo. Esclarecemos, contudo, que não pretendemos esgotar as possibilidades quanto à discussão do termo, tencionamos apenas defini-lo minimamente. Observamos que o uso do termo queer para nomear a exposição foi proposital e diretamente vinculado à representatividade dos corpos e sentidos subalternos margeantes de espaços de expressividade e representação dado o percurso histórico trilhado pelo termo.

O termo queer é uma expressão anglófona sem uma tradução inequívoca para o português, para o qual há apenas aproximações, como esclarece Lourenço (2017LOURENÇO, Daniel. Queer na primeira pessoa: notas para uma enunciação localizada. Revista Estudos Feministas, v. 25, n. 2, ago. 2017, pp.875-887 [http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2017000200875&lng=pt&tlng=pt – acesso em: 20 fev. 2018].
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
: 877-878), ao afirmar que “sua definição mais convencional, designa algo – ou alguém – excêntrico, bizarro, singular ou diferente; de natureza questionável ou suspeita; fisicamente indisposto ou mentalmente disfuncional; ou, ainda, mau, sem-valor (sic) ou falsificado”. Entretanto “sua acepção dominante é enquanto termo pejorativo para homens percepcionados enquanto não heterossexuais e/ou efeminados […] e mulheres percepcionadas enquanto não heterossexuais”.

Até então, o sentido da palavra queer era utilizado de forma pejorativa e foi atribuído a toda sorte de indivíduos não constituintes do padrão socialmente aceito – heteronormativo – em vigor, agregando-os em uma massa de sujeitos sem identidade. Na década de 1980, o termo passou “por um gradual processo de ressignificação. Precisamente na medida em que designaria o abjeto, aquilo e aqueles cuja legitimidade social e simbólica é negada por uma ordem que inclui certos sujeitos e exclui outros” ( Lourenço, 2017LOURENÇO, Daniel. Queer na primeira pessoa: notas para uma enunciação localizada. Revista Estudos Feministas, v. 25, n. 2, ago. 2017, pp.875-887 [http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2017000200875&lng=pt&tlng=pt – acesso em: 20 fev. 2018].
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
: 878) e, portanto, se tornou “vital enquanto nome de um novo modelo de crítica política e posicionamento identitário” ( Lourenço, 2017LOURENÇO, Daniel. Queer na primeira pessoa: notas para uma enunciação localizada. Revista Estudos Feministas, v. 25, n. 2, ago. 2017, pp.875-887 [http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2017000200875&lng=pt&tlng=pt – acesso em: 20 fev. 2018].
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
: 878). Deixando de ser “um diagnóstico imposto pela ordem social heteronormativa ao sujeito, mas, sim, a assinatura que este próprio sujeito inscreve no seu corpo e fala enquanto agente político dissidente.” Passando assim de “objetificação por outrem à autoidentificação (sic) do próprio, e da lógica enunciativa do objeto observado à lógica enunciativa do sujeito falante” ( Lourenço, 2017LOURENÇO, Daniel. Queer na primeira pessoa: notas para uma enunciação localizada. Revista Estudos Feministas, v. 25, n. 2, ago. 2017, pp.875-887 [http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2017000200875&lng=pt&tlng=pt – acesso em: 20 fev. 2018].
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
: 878).

Portanto, o termo assume nova conotação, passando de ofensa à emblema de grupos que buscam uma representatividade que perpasse a diversidade de enunciação de seus corpos expressivos, e não apenas de um corpo contido em um espaço delimitado por outrem. E isso se tornou possível a partir da luta instituída no campo do discurso, no uso cotidiano da palavra que acolhe ou rejeita as ideias, ideais e vivências.

Diverso e multidirecional, o termo consegue abrigar um amplo espectro de ocorrências culturais antinormativas para além do essencialismo. É importante salientar que o termo queer possibilita a inclusão de comportamento e referências queer /homossexuais, mas igualmente queer /heterossexuais, assim como outras categorias localizadas entre eles ( Fidelis, 2018FIDELIS, Gaudêncio. Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira. AMEAV. Rio de Janeiro, 2018.: 18).

Assim, queer se refere aos indivíduos que não se encontram completamente dentro da definição binária masculino/feminino e/ou heterossexual/homossexual e se dilata em direção dos atos, comportamentos, performances, conceitos e discursos que confrontam o cânone, a norma estabelecida e aceita como solução pronta e aplicável a todos os corpos universalmente. Surge, então, a partir dos estudos de gênero na academia, promovidos em princípio pelos movimentos feministas e, seguidamente, por gays e lésbicas, uma teoria que questiona qual o lugar dos que não se ajustam completamente aos conceitos até então adotados.

Foi no bojo dos questionamentos pautados pelo movimento feminista que surgiram as primeiras indagações quanto à hegemonia do masculino como padrão de normatização e moralização do corpo nas esferas privada e coletiva. A luta feminista é dividida, para fins de melhor entendimento, em três grandes momentos denominados ondas, nos quais houve coesão de reivindicações e conquistas significativas.

Na primeira onda as mulheres reivindicam o direito ao exercício paritário da cidadania com acesso a direitos como o voto e a participação política efetiva, o que conduziu o viés da luta feminista em meados do século XIX e se estendeu pelo século XX ( Caetano, 2017CAETANO, Ivone Ferreira. O feminismo brasileiro: uma análise a partir das três ondas do movimento feminista e a perspectiva da interseccionalidade. Rio de Janeiro: Escola da magistratura do estado do Rio de Janeiro (EMERJ), 2017 ).

A segunda onda teve início na década de 1950, com sua fase mais ativa entre as décadas de 1960 e 1970, se estendendo até a década de 1990, e trouxe à baila a condição de exploração a que a mulher estava submetida por seu sexo e por sua função reprodutiva, pautando, assim, a luta pelo direito reprodutivo e acerca da sexualidade. É nesse período também que emergem assuntos como o fortalecimento da ideia de coletividade, crítica à jornada tripla, divisão sexual do trabalho e diferença econômica de ganhos. As discussões desse período se dão sob a perspectiva das relações de poder que atuam sobre a condição feminina. Pinto (2010PINTO, Céli Regina Jardim. Feminismo, história e poder. Revista de Sociologia e Política, v. 18, n. 36, jun. 2010, pp.15-23 [https://revistas.ufpr.br/rsp/article/view/31624 - acesso em: 20 fev. 2018].
https://revistas.ufpr.br/rsp/article/vie...
: 16) informa que na década de 1960 o movimento feminista ganhou força, especialmente na Europa e nos Estados Unidos, com pautas que questionavam as relações de poder entre homens e mulheres. Destaca-se o caráter libertário do movimento em diversas esferas da vida da mulher que visa não apenas espaço de atuação, mas uma nova forma de relacionamento que traga autonomia, tanto nos espaços sociais como sobre o próprio corpo, em detrimento da dominação exercida pautada pela divisão sexual das funções sociais.

A terceira onda é marcada pelo surgimento de movimentos punks femininos, da confecção e estética dos fanzines5 5 Publicação periódica alternativa destinada aos fãs de determinada manifestação cultural. ; evita-se a universalização do conceito de mulher e promove-se a discussão acerca do conceito de diversidade e individualidade em detrimento da unidade promovida ao longo da primeira e segunda ondas. É o momento de tentativa de identificação da condição feminina, teorização acerca da lesbianidade e sobre como a heteronormatividade masculina molda um sistema de opressão também nas esferas de classe e raça, defesa de uma produção científica feminina e de uma teorização sob a ótica feminista. É também o momento em que emergem questionamentos de subgrupos feministas, a exemplo das questões quanto à representatividade das lésbicas trabalhadoras e negras, pois as teóricas e militantes eram, em sua maioria, brancas e de classe média. Isso direciona o olhar dessa época para o estudo e promoção de políticas e filosofias identitárias com aproximações dos movimentos negro e LGBTQI+.

Nessa época, principiam as discussões acerca da distinção entre sexo e gênero, o que seria, mais tarde, apropriado pelos movimentos em prol dos direitos homossexuais, e é na década de 1990 que têm início as publicações de Judith Butler acerca de sexo, gênero e performatividade, que fornecem maior aporte teórico para o despontar de uma Teoria Queer que viria a se firmar a partir desse mesmo período.

Assim, é correto dizer que o movimento feminista lançou as bases de afirmação da diversidade enquanto movimento que assume um posicionamento questionador da heteronormatividade masculina eurocêntrica como única maneira válida de existir e perceber o mundo, o que mais tarde se estende para as pautas LGBTQI+, que seguirão processo semelhante de emergência, insurgência e estabilização de uma nova teoria que aponta para o diverso.

Teoria Queer: emergência dos corpos discrepantes

O emergir dos estudos que se debruçam sobre questões paralelas à luta feminista vão além, na direção de corpos e conceitos não abarcados pela heteronormatividade eurocêntrica. Nas palavras de Simões e Gonçalves (2018:13): “Pode-se facilmente notar que aqueles deslocamentos do olhar voltados à sexualidade certamente também foram debitários dos intensos debates feministas travados nas duas décadas anteriores”. Assim, reconhecida a existência de outros entes independentes da identidade heterossexual masculina, as argumentações convergem no sentido de demonstrar que ser mulher não é ser um apêndice do homem, tampouco sua exata oposição, e essa visão se estende aos outros, então conceitualmente emergentes, gêneros.

Abrem-se caminhos para o questionamento acerca das outras identidades de gênero não pautadas pelo binarismo do sexo biológico e do gênero macho versus fêmea. Nesse sentido, Gonçalves e Simões (2018:13) afirmam que “as argumentações acerca do gênero e seus aspectos polimórficos foram o fino produto da decantação que adveio das transformações em curso nos domínios das práticas culturais e das identidades contemporâneas”, ratificando tal tendência convergente e nos colocando frente às indagações que permitiram a ainda gradual consolidação da Teoria Queer.

O florescer de uma Teoria Queer se dá em função da necessidade de romper com as teorizações que adaptam um discurso dicotômico delimitante macho/fêmea, heterossexual/homossexual às formas de expressividade social que não encontram eco em tais descrições. Para Louro (2001LOURO, Guacira Lopes. Teoria queer: uma política pós-identitária para a educação. Revista Estudos Feministas, v. 9, n. 2, 2001, pp.541-553 [http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2001000200012 – acesso em: 20 fev. 2018].
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
: 542), “o grande desafio não é apenas assumir que as posições de gênero e sexuais se multiplicaram e, então, que é impossível lidar com elas apoiadas em esquemas binários, mas também admitir que as fronteiras vêm sendo constantemente atravessadas”; argumenta, ainda, que “o lugar social no qual alguns sujeitos vivem é exatamente a fronteira”.

Portanto, a Teoria Queer emerge da necessidade de discutir a multiplicidade de formas de se apresentar e se reconhecer em sociedade nos discursos presentes nos orbes ético e estético, no ser e fazer humano. As linhas fixas delimitadas pela heteronormatividade masculina eurocêntrica, apesar das tentativas, não são mais capazes de pautar as falas, gestos e corpos dos sujeitos.

Assim como o movimento feminista não atendia plenamente às questões pertinentes as lésbicas que precisaram desenvolver os estudos lésbicos no interior dos estudos feministas, a Teoria Queer aparece frente a necessidade de reconhecimento e representatividade dos sujeitos fronteiriços mesmo que no campo da heterossexualidade. Queer é o que diverge do padrão, é a não conformidade que talvez nem saiba de si, mas busca o auto entendimento em um processo que se alimenta tanto de demandas internas quanto externas. Louro (2001LOURO, Guacira Lopes. Teoria queer: uma política pós-identitária para a educação. Revista Estudos Feministas, v. 9, n. 2, 2001, pp.541-553 [http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2001000200012 – acesso em: 20 fev. 2018].
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
: 544-545) argumenta que a “nova dinâmica dos movimentos sexuais e de gênero provoca mudanças nas teorias e, ao mesmo tempo, é alimentada por elas”.

Queer se coloca, então, no campo do discurso, e Louro (2001)LOURO, Guacira Lopes. Teoria queer: uma política pós-identitária para a educação. Revista Estudos Feministas, v. 9, n. 2, 2001, pp.541-553 [http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2001000200012 – acesso em: 20 fev. 2018].
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
vai afirmar que a filósofa Judith Butler (2012)BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2012. se apropria do conceito de performatividade, proveniente da linguística, para dizer que a descrição feita dos corpos constrói o sujeito a partir de um ponto de vista já dado e que ao mesmo tempo que os nomeia determina seu percurso expressivo, fornecendo-lhe uma fronteira que os limita entre as identidades de descrição possíveis, impedindo que o ponto de partida sobre sua identidade de gênero seja nulo; ou seja, o sujeito é porque foi determinado a ser por padrões socialmente constituídos e reforçados pela linguagem e, por conseguinte, por toda a cadeia comportamental daí provenientes. Isto é, os sujeitos aceitam o discurso atrelado ao corpo, o reiteram e o performam, e, na medida em que o exercem, de fato passam a se enxergar e a ver o mundo sob essa ótica, replicando-o como conceito universalizante – e é isso que Judith Butler chama de performatividade de gênero: o fato de desenvolvermos papéis socialmente dados.

E os que não se adequam? São o necessário oposto do positivo, são os estranhos, abjetos, disfuncionais e aos quais é relegado um papel de afastamento e inferioridade ou, nas palavras de Louro (2001LOURO, Guacira Lopes. Teoria queer: uma política pós-identitária para a educação. Revista Estudos Feministas, v. 9, n. 2, 2001, pp.541-553 [http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2001000200012 – acesso em: 20 fev. 2018].
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
: 549), são “aqueles que escapam da norma”; a autora diz ainda que “precisamente por isso, esses sujeitos são socialmente indispensáveis, já que fornecem o limite e a fronteira, isto é, fornecem ‘o exterior’ para os corpos que ‘materializam a norma’, os corpos que efetivamente ‘importam’”. É preciso a existência do não conforme para que a normalidade seja delimitada.

Portanto, queer é o discurso de si sobre si que não quer ser assimilado, é a enunciação do diverso que não encontra chão na descrição tanto masculina hétero/homossexual quanto feminina hétero/homossexual, assumindo amplitude e ainda estabelecendo base sólida na academia e na sociedade de um modo geral. Queer não é o apaziguador que tolhe o comportamento em função do conforto da visão alheia, mas o que se mostra sem recortes ou compreensão facilmente dada e transborda nossa limitada visão da expressividade do outro. Desse modo, se propõe à contestação de paradigmas estabelecidos, à aceitação do margeante que beira o olhar, mas é ainda ignorado como se sequer existisse e devesse permanecer circunscrito aos guetos de onde emerge.

E tal mudança, como observado anteriormente em Bakhtin e Voloshinov (2006)BAKHTIN, M.; VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo, Hucitec, 2006. , só se concretiza após a contestação dos antigos conceitos que confrontados com novas demandas são decompostos, apreendidos, assimilados e confrontados com outras ideias para, assim, emergirem reconstituídos para uma nova materialidade. Logo, o objetivo dessa teoria não seria “propriamente as vidas ou os destinos de homens e mulheres homossexuais, mas sim a crítica à oposição heterossexual/homossexual, compreendida como a categoria central que organiza as práticas sociais” ( Louro, 2001LOURO, Guacira Lopes. Teoria queer: uma política pós-identitária para a educação. Revista Estudos Feministas, v. 9, n. 2, 2001, pp.541-553 [http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2001000200012 – acesso em: 20 fev. 2018].
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
: 549), partindo de demandas sociais já existentes.

Foi essa multiplicidade de possibilidades expressivas que mobilizou artistas e entidades para tornar possível a exposição e o catálogo Queermuseu, compostos por obras clássicas e modernas que representam e questionam o nosso lugar no mundo e como o vemos. Daí a apropriação, pelo curador da exposição, da palavra anteriormente usada em sentido pejorativo – a partir da absorção do seu impacto negativo, a palavra, uma vez destituída de sua carga nociva, tornou-se oposta aos seus sentidos primeiramente empregados, para provocar reflexão sobre os temas ali propostos.

Isso porque as palavras assumem conotações diferentes, dadas por grupos sociais diferentes, por motivos diferentes, pautados na defesa de sua posição ideológica no mundo, uma vez que a palavra faz-se signo ideológico porque acumula as entonações do diálogo vivo de que é matéria, ou, nos termos de Bakhtin e Voloshinov (2006BAKHTIN, M.; VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo, Hucitec, 2006.: 66), “cada palavra se apresenta como a arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam os valores sociais de orientação contraditória”.

Os termos empregados pelos grupos no poder, em cada um desses momentos, na caça às Bruxas na Idade Média e na violenta repressão aos LGBTQI+ na Rússia, assim como a repressão ao catálogo Queermuseu, representam um conjunto de ideias carregado de significados que conformam as visões de mundo desses grupos e, por conseguinte, seus interesses na manutenção dessa posição hegemônica.

Algumas considerações

E, após esse percurso dissertativo, voltamos à pergunta inicial deste artigo: O que torna uma coletânea de obras artísticas objeto de um anátema?

A resposta se encontra nos construtos ideológicos socialmente dispersos e absorvidos pela massa como ideias vinculantes tão profundamente enraizadas que é impossível definir seu princípio. Em outras palavras: é quando uma ideia que não reflete a realidade material (o que é de fato sem a atribuição de significados secundários) se espalha de tal forma, e parece tão óbvia, que ninguém é capaz de apontar quem primeiro pensou nela, e os sujeitos se apropriam dela de forma tal que têm a impressão de que eles próprios pensaram nisso como um argumento lógico e irrefutável, de forma independente e autônoma. Em suma, uma ideia geral, antes de ser universal, foi pensada ou mesmo encontrada pelo indivíduo em primeiro plano, e todos, unanimemente, deveriam assumi-la como única direção, como norte a seguir.

Como vimos, a ideia de uma coletividade unificada e homogênea é falsa, ou no mínimo ingênua, dado que apenas aos tipos higienizados6 6 Padronizados pela heteronormatividade eurocêntrica. e claramente conforme certos padrões estabelecidos, em épocas e lugares diferentes, são reconhecidos como sujeitos aptos a frequentar certos locais, a ascender a determinadas posições, enfim, a angariar os benefícios que de maneira alguma chegam à totalidade da população.

Em cada exemplo, identificamos os padrões necessários para a sobrevivência dos grupos. No primeiro exemplo, a mulher precisava ser submissa, servil e ignorante. No segundo, não é apenas o comportamento social, mas a condição biológica que pauta o cerceamento.

A ideia geral de que tudo que não faça parte da moralidade religiosa é socialmente condenável, de que tudo que vinculado ao universo LGBTQI+ é promíscuo, de que o sexo desvinculado da procriação é sujo, de que o tudo que é proveniente do subúrbio e das favelas é ruim e de que tudo que é feminino é fraco são alguns dos construtos ideológicos vinculantes que permitem a propagação arbitrária da violência simbólica, civil e institucional.

Desse modo, reconhecemos a necessidade de discutir mais profundamente como argumentos ideologicamente pautados, no sentido pejorativo do termo, circunscrevem as ações dos indivíduos em prol da garantia de isenção almejada para a composição dos acervos e disponibilidade dos produtos informacionais para todos os sujeitos em busca de informação segura que reflita a realidade material como ela se apresenta sem acréscimos, secção ou descontextualização. Para isso, tanto os profissionais da informação e comunicação, quanto pesquisadores em ampla gama, devem estar atentos às informações que buscam, onde buscam e como buscam, pois estes replicam e validam os conteúdos posteriormente dispersos para consumo na sociedade de um modo geral.

Seja por inércia ou medo de reagir, é, ainda assim, essencial que saibamos identificar atos e condutas de censura e os mecanismos que a legitimam para, então, definir formas de enfrentamento mais adequadas e efetivas frente às violências simbólicas, civis e institucionais.

E, desse modo, protagonizar atos e discursos, validá-los na superestrutura para se encontrar representado na oficialidade, permite a garantia e ampliação dos espaços de expressão e atuação social na busca de uma vida, senão plena, ao menos paramentada para o reconhecimento dos abusos aos quais somos expostos cotidianamente.

Referências bibliográficas

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  • 1
    Ritmo musical das periferias recifenses (PE) e cariocas (RJ).
  • 2
    Poeta pernambucano.
  • 3
    Artista gráfico carioca (RJ).
  • 4
    LGBTQI+: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis, Queers, Intersexuais e demais expressões de gênero indicadas pelo símbolo de adição.
  • 5
    Publicação periódica alternativa destinada aos fãs de determinada manifestação cultural.
  • 6
    Padronizados pela heteronormatividade eurocêntrica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Jul 2020
  • Aceito
    03 Maio 2021
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