Acessibilidade / Reportar erro

Maria Lacerda de Moura: trajetória de uma rebelde

ENTREVISTA

Maria Lacerda de Moura: trajetória de uma rebelde

Entrevista com Miriam Moreira Leite* * Produção, distribuição e vendas: Laboratório de Imagem e de Som em Antropologia, Depto. de Antropologia, FFLCH-USP – (11) 3091-3045 ou lisa@edu.usp.br

Mônica Raisa Schpun

Pesquisadora do Centre d’Histoire Culturelle des Sociétés Contemporaines, Université Versailles-Saint-Quentin-en-Yvellines e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu, Unicamp. moschpun@noos.fr

A idéia dessa entrevista surgiu logo que assisti ao vídeo –Maria Lacerda de Moura: trajetória de uma rebelde – junto com a autora, na casa de Maria Lucia Mott, numa tarde de agosto de 2003. Depois de muitos anos, Miriam Moreira Leite voltou a refletir sobre essa personagem, protagonista de sua tese de doutorado, defendida em 1983 e publicada no ano seguinte.1 1 MOREIRA LEITE, Miriam Lifchitz. Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura. São Paulo, Atica, 1984. Nesse longo intervalo, a fotografia e as imagens em geral centralizaram as interrogações e reflexões da autora e vieram de encontro ao seu antigo interesse por Maria Lacerda de Moura na iniciativa de realização do vídeo.

Ele aglutina, então, dois eixos centrais da obra e do pensamento de Miriam Moreira Leite que, anos depois, reabrindo seus arquivos e suas notas sobre a personagem, adquiria um outro olhar sobre sua biografia. A bagagem já era outra e o vetor também: entre o livro e os artigos escritos e a gravação do vídeo houve um intervalo de tempo, um percurso de interrogações intelectuais e duas formas diversas de comunicação, não transparentes, não neutras. Essas questões pareceram-me suficientes para justificar a entrevista que segue, para a qual contei com a aceitação da entrevistada e dos cadernos pagu.

Fizemos a entrevista por escrito (correio eletrônico), em etapas. Mandei as primeiras perguntas e, a partir das respostas, fui elaborando as seguintes, enviadas sempre em pequenos grupos, a meu ver, coerentes. Em alguns momentos, fiz também perguntas pontuais, que visavam esclarecer ou precisar respostas anteriores. Por seu lado, Miriam Moreira Leite enviou-me, em alguns casos, complementos a respostas já escritas, e esse fato ficou registrado na entrevista. Em alguns momentos, enviei-lhe o texto, ainda parcial, da entrevista para que ela tivesse um olhar de conjunto antes de prosseguir e, eventualmente, pudesse acrescentar idéias ou informações, fato que não ocorreu. Para dar maior coerência à seqüência das reflexões expostas, alterei a ordem de algumas perguntas – e respostas –, ou intercalei perguntas novas entre duas já feitas, submetendo tais remanejamentos à entrevistada, que leu a entrevista no formato final antes que eu a enviasse para publicação. O texto não foi alterado nessa última leitura e não sofreu qualquer intervenção de minha parte sem consulta prévia à entrevistada, exceto nos casos aqui descritos.

MRS: Dona Miriam, como nasceu a idéia de realizar esse vídeo sobre Maria Lacerda de Moura?

MML: Desde 1980, quando percebi a coragem audaciosa e persistente de Maria Lacerda, em contraste à submissão ainda corrente das mulheres à autoridade da família, do Estado e da Igreja, e sua trajetória tão diferente do esperado, senti que se tratava de uma personagem digna de um filme. Além da sedução da personagem, que eu ia estudando, a idéia inicial também veio de um florescimento do cinema brasileiro e de sua preocupação com o surgimento da classe operária e de seus movimentos sociais. A década de 70 foi marcada por inúmeros filmes e documentários de novos cineastas, na trilha de Glauber Rocha, desvendando, dentro e fora do cinema novo, novos aspectos da vida brasileira. Cheguei a sugerir e a emprestar minhas anotações a um cineasta que não se animou a enfrentar as dificuldades de um filme histórico àquela altura de seus recursos.

MRS: Como foi para a senhora ter revisitado Maria Lacerda depois de tantos anos, desde seu doutoramento, mas sob um outro prisma?

MML: Quando fui trabalhar no Laboratório de Imagem e de Som em Antropologia, da USP, em que havia técnicos e equipamentos para realizar vídeos, sugeri o meu projeto de transpor em vídeo a minha documentação verbal, retratos e cartas. Isso depois de aposentada compulsoriamente, por idade (1996). A aceitação do projeto pela equipe me deixou surpresa, mas ainda mais surpresa fiquei ao ver as transformações de minha personagem nas seqüências do vídeo. A minha personagem teve de se dissolver, ou melhor, se concentrar em alguns traços, o tempo de sua atuação e de sua obra ficou condensado demais e talvez tenham desaparecido alguns de seus empreendimentos.

MRS: Pode dar exemplos precisos de como a personagem se tornou, no vídeo, distante daquilo que a senhora imaginava, ou distante daquilo que previra?

MML: Confesso que não imaginei como "ficaria". A minha surpresa se referiu mais à síntese que a imagem força, quando trabalhei sempre em análises de documentação escrita. O tempo passa a ser outro, as superposições muito significativas reduzem o que as palavras descreviam e, em muitos casos, a cor não correspondeu a suas significações na obra de Maria Lacerda. Num trabalho em que o som, a cor, os sentimentos e as idéias são veiculados por imagens em movimento torna-se difícil a correspondência adequada, mesmo tomando para roteiro, exclusicamente, palavras retiradas das obras de Maria Lacerda.

[Complemento da resposta, acrescentado num segundo momento]

Quero retificar uma declaração feita antes. Eu disse que não tinha imaginado como ficaria o vídeo. É verdade. Mas a memória que, ao que parece, é recomposta por etapas driblou uma questão que é, para mim, essencial. Trata-se do fascínio da documentação escrita que durante muitos anos fui reunindo e copiando a mão, inclusive textos de autoria de Maria Lacerda. Tenho copiada a mão toda a coleção de A Plebe, que eu retirava do Arquivo Leuenroth em micro-fichas, com prazo de devolução. Essa composição artesanal me deu uma ligação e uma penetração emocional na documentação escrita, como aconteceu também com a amostra de retratos e cenas que tinha conseguido recolher. Essa ligação me fazia pensar sempre numa cena da Maria Lacerda escrevendo e, superpostos, os textos escritos e os lugares de onde ela escrevera. Dessas intuições iniciais só foi possível aproveitar alguma coisa, e nem ficou tão expressiva quanto eu supunha.

MRS: Gostaria de retomar um ponto tratado antes, para tornar o vídeo mais presente àqueles que, lendo essa entrevista, ainda não tiveram a ocasião de vê-lo: que "empreendimentos" a senhora lamenta não ver no vídeo? Inversamente, quais identifica como estando presentes? Em que momentos ou situaçãoes precisas a senhora lamentaria que a "síntese" operada pelas imagens não teria correspondido a suas significações na obra de Maria Lacerda?

MML: O que não correspondeu ao livro – a canção infantil –"Eu sou pobre, pobre, pobre de marré, marré, marré, Eu sou rica, rica, rica de marré, marré, marre... Quero uma de suas filhas, etc.Que ofício dareis a ela, etc." – que já consta do livro pretendia exprimir a camada social (pequena burguesia) de origem de Maria Lacerda de Moura, e também a solicitação da filha da pobre para ficar com a rica (uma prática de circulação da infância muito comum nesse tempo) e os trabalhos oferecidos à menina pobre nas primeiras décadas do século XX. O aproveitamento da música como fundo musical não está ruim, mas não consegue exprimir tudo o que deveria apresentar sobre a condição feminina subalterna, denunciada por Maria Lacerda. Na entrevista feita com D. Norma Campagnoli, sobrinha de Arturo Campagnoli, ela nos relatou essa situação de opressão da menina, que é emprestada para ajudar os parentes, quando estes solicitavam, mas não liberada para estudar. Todo o trabalho de Maria Lacerda de Moura de esclarecimento da mulher sobre sua situação de escrava da família e do marido ou sua marginalização como solteirona ou prostituta ficou quase apagada.

Não puderam ser aproveitadas as duas "Profissões de Fé" que Maria Lacerda de Moura publicou em jornais. Uma desautorizando seu filho adotivo de reconhecê-la por ter ingressado nas hostes integralistas e a outra se retirando da Rosa Cruz ao saber que sua sede, em Berlim, fora cedida aos nazistas. Apesar de seu estado lamentável, ou talvez por isso mesmo, teria sido interessante apresentar mais extensamente os livros de Maria Lacerda, correspondentes às diferentes fases de sua trajetória. A repulsa à cidade grande, ao ruído intenso de rádio e da propaganda, a correria que parece exprimir a condenação do industrialismo não ficou suficientemente clara como uma face das condições que levam à guerra. O trem aparece como índice do tempo, mas poderia também ser melhor compreendido como a inquietação da personagem em busca de paz.

[Complemento respondido num segundo momento]

Voltando atrás, o que tive pena de cortar foi o depoimento de D.Norma Campagnoli, que sofreu a situação da mulher nas primeiras décadas do século e ainda se lembrava das músicas que sua mãe cantava, bem como dos brinquedos de roda com suas vizinhas japonesas, que ela acompanhou cantando em japonês. Outro depoimento que não pode ser aproveitado foi da sobrinha da maior amiga de Maria Lacerda, D.Hideuzuita (Zizi) que assistiu a morte da amiga, no Rio de Janeiro e também o de uma sobrinha neta de Maria Lacerda (ligeiramente parecida com ela) contando como a família considerava que Maria Lacerda tinha sido muito infeliz por ter sobressaido intelectualmente.

MRS: Mas por que esses depoimentos tiveram que ser cortados?

MML: Era preciso se conformar ao tempo e manter onde era possível um foco narrativo seqüencial. Esses dois elementos são estabelecidos por normas externas. Para ser possível exibir o vídeo na TV estipula-se o tempo de 30 minutos. Os desvios para Barbacena e a Alcione (a sobrinha) e a sobrinha da Zizi exigiriam muito mais. Dona Norma Campagnoli mereceria, só ela, um vídeo. Aos 77 anos, inteiramente despojada, vivendo numa casa (que fora do tio Arturo) tão deteriorada que não nos deixou entrar, conversamos com ela no pátio e na calçada, com uma vivacidade e uma voz linda, a relatar como era o tratamento a mulheres e crianças em sua infância e juventude, perfeitamente à vontade. Antes da versão final, para mostrar à FAPESP que estávamos trabalhando, fizemos uma experiência reunindo em seguida os depoimentos: meu, do Murillo Mello, de D. Norma, da sobrinha da Zizi, da sobrinha neta da Maria Lacerda e de D.Albina Moreira Lima (que aparece no vídeo final). Eu gostei dessa versão, mas deixava o espectador muito desorientado e sem saber muito bem do que se falava. Eu o exibi para o meu seminário Família & Sociedade, e foi muito criticado. Você talvez se lembre que até na versão final, foi preciso me incluir explicando alguns episódios pouco conhecidos. Na verdade, um problema foi ter escolhido um roteiro muito complexo.

MRS: No momento em que começou a fazer o vídeo, a senhora tinha a mesma imagem de Maria Lacerda que antes?

MML: A imagem de Maria Lacerda foi se tornando mais nítida lentamente. Quando começamos a planejar o vídeo, meu livro já estava publicado, mas, mesmo assim, muita coisa em sua vida e no contexto social das mulheres das décadas de vinte, trinta e quarenta ainda não estavam bastante claras, nem para mim nem para meus companheiros de equipe. Como ela era filha de um pequeno funcionário, livre pensador numa pequena cidade conservadora e dominada pelo clero ultramontano, cuja única escolaridade tinha sido a Escola Normal Municipal, não fazia parte da História Oficial, nem ainda fora incorporada nos Estudos de Mulher que pretendeu implantar nas escolas femininas. Para que eu conseguisse comunicar a condição datada de Maria Lacerda, ainda precisei analisar suas ousadias de discutir em público sua vida privada, as reações e o distanciamento que sofreu, e ainda precisar as condições de seu neo-maltusianismo, suas idéias de maternidade consciente ligadas ao pacifismo e antifascismo que proclamou. Apesar desses esforços, cada um dos membros da equipe ficou com uma idéia diferente da personagem.

MRS: Ou seja, antes de mostrar Maria Lacerda para o público do vídeo, a senhora teve que explicá-la para a equipe com quem trabalhou?

MML: Uma das maiores dificuldades para transmitir à equipe de formação heterogênea o que eu apreendera da personagem era o fato de ter de lidar, em seus escritos, com questões datadas e questões ainda muito atuais. Escrevendo entre 1918 e 1940, dispendeu enorme esforço para lidar com uma questão que era então uma grave transgressão que era o planejamento familiar, como um meio de lutar contra a miséria. Somente em 1965 é que se começou a tratar em Sociologia de questões da Sexualidade e a pílula anticoncepcional é da década de 1950. A Mulher é uma Degenerada? é um libelo contra essa afirmação muito difundida em 1923 e Amai... e não vos multipliqueis, de 1931, é um esforço no sentido de esclarecer a necessidade de não produzir "carne para canhão" como queriam os governos totalitários. Já o Amor Plural, quando mostra o absurdo da dupla moralidade (do homem e da mulher) e que não se ama uma só vez pareceu a todos um livro contemporâneo.

MRS: Como a senhora, junto com a equipe, lidou, no vídeo, simultaneamente, com a preocupação de contextualização dessas questões e com a atualidade de algumas delas?

MML: A equipe formada por pós-doutores, doutourandos, mestrandos, ténicos e auxiliares de pesquisa tinha também uma grande heterogeneidade na capacitação para lidar com visualização do texto. Essa situação foi, ora uma vantagem de complementaridade, em outras uma fonte de conflito. A maneira mais tranqüila de lidar com o contexto foram as cartelas de local e data, que é um recurso tradicional. Mas uma de nossas ambições era inventar outras: foi aí que incluimos poemas contemporâneos sobre as imagens (depois de muitas discussões!), aproveitando a presença de uma atriz doutouranda tivemos a idéia (debatida longamente) de intercalar encenações. Para isso contamos com a colaboração de maridos, irmãos e filhos, que se prestaram a nos dar sua voz e imagem em diversos momentos. A outra forma de contextualização foi feita através da voz de contemporâneos de Maria Lacerda, comentando sua atuação. O texto apresentado então foi extraido de depoimentos conseguidos em 1979 e em 2000. A simbolização dos textos da Rosa Cruz referentes a triângulos, escaladas e à fraternidade foram uma fonte de inspiração para os cenários e as cenas do vídeo.

MRS: Gostaria de fazer uma pausa para explicitar alguns elementos ligados ao trabalho e à fatura do vídeo: como era composta a equipe (quantas pessoas, de quais disciplinas), como o trabalho foi organizado, e quanto tempo durou?

MML: Equipe – Cineasta e produtor de vídeos, 45 anos, orientador técnico contratado por dois anos; Auxiliar técnico, 22 anos, manutenção, contratado pelo Laboratório; Estagiária de fotografia (Escola de Comunicações e Artes), 25 anos, (identificação com o projeto e pela possibilidade de aprendizagem); Mestrando (filosofia), 25 anos, identificação com o projeto, presença em reuniões semanais; Doutoranda (PUC-São Paulo), 40 anos, coleta de material visual; Doutoranda (Sociologia-USP), 40 anos, identificação com o projeto (um ano de tentativas de digitalização); Doutoranda (antropologia) e professora de teatro, 35 anos, identificação com o projeto e montagem do vídeo; Pós-doutoranda (Etnomusicologia-USP), 40 anos; Pesquisadora (aposentada-USP), 77 anos, autoria das pesquisas. Maiores dificuldades encontradas: programação sem hierarquia, diferença de prioridades e de interesses e ausência de meios de disciplinar o grupo.

MRS: A realização do vídeo trouxe à senhora elementos novos para sua reflexão sobre Maria Lacerda?

MML: A realização do vídeo me obrigou a novas leituras da obra e a uma compreensão mais profunda da trajetória de Maria Lacerda. Levou-me a conhecer o ocultismo e as crenças rosacrucianas, suas ligações com a maçonaria e a cabala, ampliando meus horizontes com as obras de Frances Yates e muito, também, com José e seus irmãos de Thomas Mann, que me deu uma compreensão maior das origens da Geometria no Egito.

MRS: Além do seu doutorado sobre Maria Lacerda, a senhora trabalhou muitos anos com a questão da fotografia, das fontes iconográficas para a história, fez Retratos de família, o que talvez justamente a tenha aproximado do Laboratório de Imagem e de Som em Antropologia. Como isso contribuiu na sua reflexão sobre o vídeo?

MML: Durante os 25 anos em que trabalhei no Centro de Apoio à Pesquisa em História, a minha orientação sempre foi a análise de documentação. Minha inserção na História das Mulheres se deu através de análise da imprensa, depois da análise dos viajantes do século XIX e, um pouco concomitantemente, comecei a me enfronhar em análise da documentação fotográfica. Desta última, acabei reunindo artigos feitos através da década de 80 e 90 no meu livro Retratos de Família (Análise da Fotografia Histórica) que, além de ter tido o prêmio Jabuti de Ensaio de 1993, está em terceira edição. O interesse pela fotografia para o estudo das Ciências Humanas teve, de fato, uma amplificação considerável nesse período o que me permitiu ter grande interlocução com as pós-graduações da USP, da UNICAMP e da UNESP. O meu convite a me associar ao Laboratório de Imagem e de Som provém desse livro, não há dúvida. Até me leva a dar aula na graduação de Antropologia sobre meus catálogos de análise progressiva da imagem, em que ainda estou mergulhada. Esse trabalho, de fato, ampliou muito a minha sensibilidade visual e cognitiva no relacionamento entre a imagem, a memória e a imaginação – em que ainda me debato – e pude ser uma interlocutora razoável para o vídeo. As barreiras tecnológicas talvez tenham sido um impedimento para maior aproximação de um resultado mais satisfatório – meter a mão na massa é ainda a maneira mais eficiente de lidar com as imagens.

MRS: Na prática, no momento de "meter a mão na massa" a senhora sentiu que a familiaridade com a documentação fotográfica facilitava seu acesso a um projeto onde as imagens estariam em movimento? Pode explicar, talvez através de exemplos concretos, como essa sua experiência com fontes iconográficas, essa sua já antiga reflexão com as imagens participa desse projeto?

MML: A minha compreensão da documentação fotográfica tinha me mostrado que cada fotografia é uma singularidade que não pode ser generalizada, nem transferida para o plural. Em segundo lugar, eu conseguira perceber que ler uma fotografia não era apenas olhar e refletir sobre o que era visto. A leitura exigia uma colocação numa seqüência de outras, para dar-lhe a dimensão temporal e adequação do que foi lido a seu contexto cultural e profissional. A fotografia isolada pode levar a inúmeros enganos, como mostrei no meu livro sobre Retratos de Família. Além de elementos superficiais da aparência, como existe aí um homem em atitude de estudo, atrás de uma escrivaninha que identifiquei como sendo retrato do educador Lourenço Filho, pois a origem da fotografia era de sua família, era um retrato de Sud Menucci, como um de seus filhos me corrigiu. Já no vídeo, com o trabalho com imagens em movimento, além de levar em consideração o aprendizado anterior, as relações entre as imagens tinham outras dimensões verbais e iconográficas. Não sei se respondi o que você perguntou. De fato o vídeo não era matéria inteiramente estranha às minhas práticas, mas era outra coisa. A transposição de uma trajetória polêmica para imagens que não existiam.

MRS: Vamos tentar aprofundar esse ponto, que me parece muito interessante. Fale mais um pouco dessas "outras dimensões verbais e iconográficas" que a vê no vídeo.

MML: Uma das expectativas no trabalho com imagens é poder dispensar textos verbais. Tanto novatos quanto veteranos fascinados pela beleza e expressividade das imagens tem essa aspiração. Mas ela precisa ser complementada quase sempre pelo texto. A alternativa é reduzir ao mínimo o texto verbal, pois é preciso identificar lugares e definir o tempo e ainda fornecer pressupostos da imagem para orientação do espectador. Fizemos isso atraves de poemas, mas nem sempre conseguimos os adequados para todas as cenas. Algumas idéias implícitas nas imagens precisam ser explicitadas. Embora expressões faciais, posições de corpo e gestos possam ser expressivos, não são explícitos. A dosagem de imagens e palavras foi uma dificuldade permanente, pois, como optamos por uma camera subjetiva em que a Maria Lacerda vai revelando seleções de seus escritos, aspiravamos a imagens que não banalizassem o conteúdo.

MRS: Em relação ao trabalho com a fotografia, me parece que uma das diferenças fundamentais trazida pela experiência com o vídeo, é que frente às fotos a senhora fazia exercícios de análise e interpretação, mas elas já estavam feitas, enquanto que na experiência do vídeo elas ainda deveriam ser criadas. Gostaria que a senhora desenvolvesse mais isso.

MML: De fato, o meu trabalho com Retratos de Família foi feito com fotos já prontas, datadas de 1880 a 1940. Não foram captadas no momento da análise. Agora, no vídeo, embora eu tivesse algumas fornecidas pela família em 1978 foi preciso filmar cenas e "inventar" ligações entre diferentes situações. Mas a diferença não é só essa. O trabalho em grupo é um universo muito diverso de meus hábitos de trabalho isolado. E a equipe é indispensável, pois são muitas as variáveis que é preciso levar em conta. A redação do roteiro, a digitalização e a montagem exigem mais de uma cabeça, par de olhos, de ouvidos e de tato. Os desdobramentos que ocorrem durante a filmagem, a montagem e os acasos durante o trabalho, exigem criações espontâneas que não se reduzem ao que se sabe, nem ao que se gostaria de fazer. Meu novo projeto – que é um desdobramento do que vinha fazendo – é tentar examinar essa questão teórica que ainda não apreendi.

MRS: Que questão teórica? Trata-se de um projeto em equipe ou individual?

O novo projeto temático do Laboratório, aprovado em outubro, inclui as questões teóricas referentes a "Imagem e Memória" que venho estudando quanto às aventuras empreendidas pelo Laboratório, não só o vídeo sobre Maria Lacerda, mas diversos outros, muitos premiados. Trata-se de um aprofundamento do que apresentei em meu artigo sobre "Texto Verbal e texto visual", publicado no livro de Bela Feldman Bianco Desafios da Imagem nas Ciências Humanas, publicado pela Papirus e em segunda edição. Trabalharei sozinha, mas com o material criado pelo Laboratório.

MRS: A senhora pode resumir aqui o que lhe parece ser o grande desafio teórico na relação entre texto verbal e texto visual?

MML: Achei difícil resumir. Achei melhor copiar o último parágrafo do meu artigo, na p.44. Você me dirá se não satisfizer como resposta.

Portanto, embora habitualmente a linguagem visual seja considerada de transmissão direta, ela acaba tendo uma postura parasitária em relação à linguagem verbal. E, apesar de as palavras não conseguirem evocar exatamente a imagem que se propuseram (basta verificar os fracassos em transposições de obras literárias para o cinema e para a televisão), as imagens visuais precisam das palavras para se transmitir e, freqüentemente, a palavra inclui um valor figurativo a considerar. O desenho ou a fotografia não reproduzem abstrações. Representam um caso concreto, um fato particular, o presente. A palavra revela melhor o conhecimento subjacente na memória que, todavia, é construída por imagens fixas. Mecanismos perceptivos e cognitivos ampliam a compreensão das relações entre a imagem e as diferentes formas de memória, que, pelo re-conhecimento e pela re-memoração, constróem a ponte para o texto verbal. Ao que é impossível descrever, torna-se indiscutível a prioridade da imagem visual, por sua capacidade de reproduzir e sugerir, por meios expressivos e artísticos, sentimentos, crenças e valores.

MRS: Ótimo, acho que muita gente vai procurar o seu artigo. Quanto a nós, gostaria de mudar de tema, abordando uma questão que, não por acaso, deixei para o final. Tanto no caso da sua tese sobre Maria Lacerda, dos diversos artigos que escreveu sobre ela, quanto no do vídeo, coloca-se a questão da biografia. A senhora diria que Maria Lacerda foi uma mulher exepcional? acredita que existam mulheres exepcionais?

MML: Temo não conseguir responder a esta pergunta. Em primeiro lugar o adjetivo excepcional foi reservado há algumas décadas para as crianças com diferentes tipos de deficiências, procurando não estigmatizá-las mais do que são habitualmente. Em segundo lugar, considerá-la "rebelde" não foi circunstancial, mas uma adjetivação muito pensada e fundamentada em Octavio Paz, no artigo Corriente Alterna, que mostra que as palavras mudam de intensidade no sentido como ele mostra no caso de revolta, rebeldia e revolução. Maria Lacerda de Moura (1887-1945) não era uma revoltada, nem uma revolucionária. Era uma rebelde. Muitas mulheres contemporâneas dela se destacaram por realizações profissionais, filantrópicas e sociais. Quase sempre eram mulheres com um capital social e educacional muito grande. Ela provinha de uma camada social de poucos recursos e tivera como escolaridade apenas a Escola Normal. A missão de esclarecer as mulheres sobre sua situação de escravidão da família, do Estado e da Igreja foi desempenhada através de um enorme esforço autodidata e de um despojamento total das conquistas sociais que já alcançara.

MRS: A senhora elege, com essa reflexão, algo como uma identidade diferencial para Maria Lacerda, sua "marca", no fato de ser rebelde. Isso se exprimiria em posições, opiniões, atitudes, escritos de modo suficientemente freqüente para resumir, de certa forma, seu perfil. Isso teria sido um fio condutor narrativo na construção biográfica de Maria Lacerda, tanto na obra escrita, quanto no vídeo?

MML: Foi o que se tentou fazer, e está expresso na base de um retrato de Maria Lacerda, em São Paulo, com o poema de um poeta surrealista português: Entre nós e as palavras / os emparedados / Entre nós e as palavras / o nosso dever de falar.Não é um belo final?

MRS: Sem dúvida.

Recebida para publicação em novembro de 2003, aceita em abril de 2004.

  • *
    Produção, distribuição e vendas: Laboratório de Imagem e de Som em Antropologia, Depto. de Antropologia, FFLCH-USP – (11) 3091-3045 ou
  • 1
    MOREIRA LEITE, Miriam Lifchitz.
    Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura. São Paulo, Atica, 1984.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Ago 2006
    • Data do Fascículo
      Jun 2004
    Núcleo de Estudos de Gênero - Pagu Universidade Estadual de Campinas, PAGU Cidade Universitária "Zeferino Vaz", Rua Cora Coralina, 100, 13083-896, Campinas - São Paulo - Brasil, Tel.: (55 19) 3521 7873, (55 19) 3521 1704 - Campinas - SP - Brazil
    E-mail: cadpagu@unicamp.br