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Etnografia em contexto carcerário: explorando potencialidades e limites*

Resumo

Este artigo compara duas pesquisas etnográficas em contexto penitenciário – uma prisão masculina em Portugal e uma prisão feminina em Espanha – a partir de duas perspectivas: 1) uma dimensão metodológica: ser uma antropóloga mulher tem influência no desenrolar da investigação empírica em prisões femininas e em prisões masculinas, condiciona o acesso ao terreno, observação do quotidiano prisional e as relações que se constroem com os interlocutores; 2) uma dimensão analítica: as relações de género são centrais para perceber as dinâmicas construídas entre a população reclusa, nos seus processos de convivência quotidiana e de estabelecimento de hierarquias, mas elas devem ser integradas nas relações de classe e género em que estão inseridas. Assim, defendemos uma perspectiva interseccional para compreender as dinâmicas relacionais entre os diferentes sujeitos na prisão – guardas, administradores, trabalhadores, presos – e entre eles e as pesquisadoras. No final, reflectimos sobre subjectividade e reflexividade em trabalho de campo que apresenta exigências particulares no modo como gerimos emoções, distância e proximidade.

Etnografia; Prisão; Género; Subjectividade

Abstract

This article compares two ethnographic studies in a penitentiary context – a male prison in Portugal and a female prison in Spain. Two perspectives are used: 1) a methodological dimension: to be a woman anthropologist influences the conduct of the empiric investigation in female and male prisons, conditions access to the terrain, observation of daily prison life and the relations constructed with interlocutors; 2) an analytical dimension: gender relations are central to perceiving the dynamics constructed between the inmate population in their processes of daily conviviality and establishment of hierarchies, but they must be integrated in the relations of class and gender in which they are inserted. Thus, we defend an intersectional perspective to understand the relational dynamics between the different subjects in the prison – guards, administrators, workers, inmates – and between them and the researchers. In conclusion, we reflect on subjectivity and reflexivity in field work that has particular demands in how we manage emotions, distance and proximity.

Ethnography; prison; gender; subjectivity

Que desafios se colocam na investigação qualitativa em contexto carcerário? Que implicações têm no fazer etnográfico as regras, os procedimentos, as assimetrias institucionais e (que são, também elas) institucionalizadas? De que forma os condicionalismos inerentes ao género, idade, raça do/a investigador/a influenciam, determinam ou vêm a ter um impacto na forma como é conduzida a investigação? Em suma, reconhecidos e identificados os paradoxos e oximoros que definem a instituição prisional desde a sua origem e concepção (pois seria erróneo pensar que são características recentes), que aprendizagens a antropologia retira em termos metodológicos, éticos e deontológicos da pesquisa em contextos prisionais?

Este é um artigo assumidamente exploratório que procura identificar questões, expor propostas analíticas, tomando como ponto de partida a comparação de duas etnografias realizadas em dois países europeus – Catarina Frois pesquisou na prisão do Linhó, em Portugal, e Carmen Osuna em una prisão em Espanha – e em estabelecimentos prisionais diferenciados – uma prisão masculina e uma prisão feminina. A inexperiência desta primeira investigação em contexto prisional teve impactos em termos emocionais, pessoais e mesmo profissionais. Num certo sentido, durante aqueles meses de trabalho de campo foi exigido um desdobramento das investigadoras nas suas várias personas e um confronto com a sua vulnerabilidade enquanto pessoas, antropólogas, mulheres, companheiras, professoras ou filhas. O debate com Antónia Lima sobre estas múltiplas questões deu origem ao convite para a redação conjunta deste texto.1 1 Parte deste artigo é resultado de pesquisa integrado no projecto de pesquisa “Governação, transformações políticas e negociação de quotidianos: Portugal 2008-2018”. FCT PTDC/SOC-ANT/32676/2017.

Fazemo-lo a partir de perspectivas que vão ao encontro dos temas centrais deste dossier, a saber: 1) uma dimensão metodológica – ser uma antropóloga mulher tem influência no desenrolar da investigação empírica (tanto em prisões femininas como masculinas), condiciona o acesso ao terreno e a observação do quotidiano prisional, modula as relações que se estabelecem e constroem com os diversos interlocutores. Entrecruzamos esta reflexão com 2) uma dimensão analítica – as relações de género são centrais para perceber as dinâmicas construídas entre a população reclusa com o/a investigador/a, ou da população reclusa entre si, em particular nos processos de convivência quotidiana e as hierarquias (pré-)estabelecidas. Para analisar as dinâmicas relacionais inerentes à/da prisão, e entre a população reclusa e as pesquisadoras, assumimos uma perspectiva interseccional e discutimos as questões éticas, morais e deontológicas que se colocam neste contexto singular que é prisão, procurando evidenciar de que modo diferentes condicionalismos se articulam e mobilizam.

Prisão? Prisões?

Ainda que a produção académica centrada em espaços de detenção ou estabelecimentos prisionais seja abundante e com uma riquíssima variedade interdisciplinar, cremos ser importante fazer aqui um curto apontamento sobre algumas limitações que este conhecimento tem vindo a produzir e reproduzir. Este amplo campo de produção científica mostrou que não existe algo como a prisão, mas sim vários lugares denominados enquanto tal.2 2 Vejam-se, a título de exemplo, as colecções dedicadas a estes temas em editoras internacionais como Routledge, a Palgrave Macmillan ou a Oxford University Press, com a publicação de Handbook de referência: Handbook on Prisons (Jewkes; Crewe; Bennett, 2016) publicado pela Routledge; The Palgrave Handbook of Prison Ethnography (Drake; Earle; Sloan, 2015); The Oxford Handbook of Prisons and Imprisonment (Wooldredge; Smith, 2018). A instituição-prisão, bem descrita por Michel Foucault em Vigiar e Punir, em 1975, tem, na verdade, propósitos, finalidades, existências diferenciadas por todo o mundo, em cada país e dentro de cada país. O seu modus operandi está dependente e é condicionado directamente por elementos externos: a orientação política e ideológica do país – que se reflecte, por exemplo, na definição do que é crime e na forma como deve ser punido; as tradições religiosas, culturais e morais; as condições sócio-económicas e sua interligação com, por exemplo, o índice de desenvolvimento e a observância ou reconhecimento do que são “direitos” (humanos).

Com este enquadramento em mente, é imperativo fazer uma chamada de atenção para a forma como algumas ideias sobre a “prisão” vêm sendo reificadas e tomadas como hegemónicas, sem questionar – ou talvez tendo sido relegada para segundo plano – até que ponto essas leituras e interpretações são válidas noutros contextos geográficos. De notar que não pretendemos discutir a qualidade ou pertinência dessas observações, mas sim chamar a atenção para nuances que não podem ser obviadas. Não será um exagero afirmar que a literatura anglo-saxónica dominou o debate durante décadas: os Estados Unidos da América enquanto referência de situações extremadas de encarceramento, o Reino Unido com uma extensa produção na área da criminologia e justiça criminal, beneficiando directamente de financiamento governamental, numa estreita articulação entre a academia e os decisores políticos (e.g. Bosworth; Hoyle; Zedner, 2016; Zedner; Hoyle; Bosworth, 2016). O que se verifica, então, é que determinados paradigmas tiveram, e continuam a ter, um impacto profundo na forma como a análise é conduzida noutros lugares do mundo, transplantando modelos de pensamento e teorias sobre a prisão, o encarceramento e a justiça criminal.

Considere-se, a título de exemplo, a ideia de “complexo prisional” de que falam Angela Davis (2003)Davis, Angela. Are Prisons Obsolete? Nova Iorque, Seven Stories Press, 2003., Loic Wacquant (2001)Wacquant, Loïc. Deadly Symbiosis: When Ghetto and Prison Meet and Mesh. Punishment & Society 3 (1), 2001, pp.95-133., Ruth Gilmore (que também usa a expressão “golden gulag”, 2007), entre outros autores. Explicando em poucas palavras, a ideia de complexo prisional serve para descrever toda uma série de dispositivos, estruturas e infraestruturas criadas em torno do estabelecimento prisional, num mecanismo fechado que se autoalimenta e perpetua: em termos de emprego para a população residente num determinado local, da mão de obra e benefícios que se obtêm (a abolição do trabalho escravo nos EUA não contempla os presos, que são na prática trabalhadores sem direitos laborais), na requalificação e valorização dos terrenos onde a prisão é construída. Esta forma de organização e gestão do sistema penitenciário é muito particular ao contexto, cultura e história política norte-americanos, com todas as idiossincrasias que os caracterizam. Na Europa a situação é precisamente a contrária. Dificilmente encontramos um país europeu – em particular aqueles em que o Estado-Providência desempenha um papel dominante – em que o sistema prisional esteja a cargo de iniciativa privada. Nos países escandinavos, por exemplo, a prisão é considerada uma instituição estatal equivalente a uma escola ou um hospital. Quer isto dizer que o modelo aplicado (que não iremos discutir aqui, mas que tem sido amplamente analisado) segue as mesmas premissas em termos de apoio, cuidado, benefícios tanto para quem está em liberdade e para quem está preso.3 3 A literatura é extensa e segue diversas abordagens. Veja-se, por exemplo, o estudo recente de Vanessa Barker (2019), a colectânea organizada por Scharff Smith e Ugelvik (2017), Ugelvik e Dullum (2012) ou a comparação levada a cabo por Pratt e Eriksson (2013) sobre o que descrevem por “excesso anglófono” e o “excepcionalismo nórdico” a respeito dos modelos e sistemas penitenciários. Não existe paralelo entre uma prisão de alta segurança na Noruega e a sua equivalente nos Estados Unidos, seja em termos do espaço físico, da gestão do quotidiano, da própria interacção entre guardas e sujeitos encarcerados; do mesmo modo que não existe equivalente entre a situação de sobrelotação e gestão do quotidiano prisional quando observamos casos de prisões geridas por grupos como o PCC, no Brasil, ou a situação de sobrelotação em prisões portuguesas ou espanholas (Frois, 2017Frois, Catarina. Mulheres Condenadas. Histórias de Dentro da Prisão. Lisboa, Tinta-da-China, 2017.; Biondi; 2018Biondi, Karina. Junto e Misturado. Uma Etnografia do PCC. São Paulo, Terceiro Nome, 2018.; Padovani; 2018Padovani, Natália. Sobre casos e casamentos: afectos e amores em penitenciárias femininas em São Paulo e Barcelona. São Paulo, Edufscar Editora, 2018.). Não é apenas a proporcionalidade e a ratio que estão em causa, são as próprias premissas do que significa privação de liberdade, da ligação do sujeito com o Estado, e o papel do Estado e a actuação do seu aparelho penitenciário e judiciário (e.g. Ruggiero; Ryan, 2013Ruggiero, Vincenzo; Ryan, Mick (ed.) Punishment in Europe. A Critical Anatomy of Penal Systems. Londres; Nova Iorque, Palgrave Macmillan, 2013.; Sarat, 2014Sarat, Austin. (ed.). The Punitive Imagination. Law, Justice, and Responsibility. Alabama, University of Alabama Press, 2014.).

Da mesma forma, o tipo de diversidade populacional que encontramos numa prisão norte-americana, brasileira ou norueguesa, espanhola ou portuguesa é profundamente diferente. Enquanto que nos EUA e Brasil encontramos marcadores raciais e de classe fortemente presentes nos estabelecimentos prisionais que podem mesmo ser pensados como o espelho da discriminação racial, em particular entre brancos e negros, sul-americanos, latinos, na Europa tal não é tão frequente. Até há um par de décadas, na Europa as diferenciações mais significativas eram definidas em termos étnicos e nacionais. Em alguns países europeus, como em Portugal e em Espanha, a lei não permite fazer registro de classificações dessa ordem. Por essa razão, não existe, formal, legal e institucionalmente, a contabilização e a descrição em termos quantitativos da população prisional do ponto de vista da sua composição racial ou étnica. Estas diferentes formas de construir os dados estatísticos em cada país produzem formas diferenciadas de construir percepções sobre a prisão em cada um destes contextos. A ideia de que a prisão é “negra” no Brasil e nos Estados Unidos é contraposta na Europa pela ideia de que a prisão é pobre e de imigrantes. Se até há umas décadas a população negra era numericamente pouco significativa no continente europeu e, se agora ela não é contabilizada, tal significa que se invisibiliza a transformação significativa da Europa em termos raciais. O facto de não existerem dados sobre diferenças raciais não significa que elas não existem e que não tenham consequências importantes nas formas de construção de relações e assimetrias dentro das prisões destes países, mas contribui, todavia, para não tornar visível a racialização das relações sociais, que está a tornar-se uma questão incontornável no debate político e ideológico actual. Assim, não só as categorias de racialização devem ser matizadas como elas têm de ser pensadas contextualmente, identificando quais as que fazem sentido e em que lugar. É claro que a diferenciação racial não se circunscreve a “branco” e “negro” e estas categorias devem ser matizadas (como faz Padovani, 2017Padovani, Natália. Tráfico de mulheres nas portarias das prisões ou dispositivos de segurança e género nos processos de produção das “classes perigosas”. cadernos pagu (51), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2017. [http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332017000300304&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt – acesso em: 1 set. 2019].
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) de forma a englobar outros marcadores de diferenciação social que com ela se conjugam, como sejam as categorias de género, classe, étnicas e/ou religiosas. A intersecção analítica entre estas diversas dimensões é o que nos permite ir para além de discursos que se têm vindo a tornar consensuais ainda que, em nossa opinião, acríticos.

Estabelecimento prisional masculino – Portugal

A prisão do Linhó tem uma característica particular: são homens muito novos que foram condenados com penas muito longas. Na sua maioria têm entre os 18 e os 21 anos e têm para cumprir mais de 6 anos de cadeia. Anda à volta de 9, 10, 11 anos. Furtos, roubos, é mais ou menos isso. Acho que não vai ter problemas, eles são muito acessíveis e gostam de falar. É claro que não nos podemos esquecer que são criminosos; eles estão aqui porque cometeram crimes, senão não estavam aqui, estavam lá fora (Directora do Estabelecimento Prisional do Linhó, julho, 2013).

Quando, em julho de 2013, obteve autorização para realizar entrevistas e acompanhar o quotidiano em estabelecimentos prisionais masculinos e femininos em Portugal, Frois dava início ao que viria a ser um projecto de investigação mais aprofundado sobre o contexto penitenciário português. Seria esta a sua primeira experiência de investigação em contexto carcerário, depois de vários anos a estudar temas relacionados com segurança, vigilância e criminalidade (Frois, 2011; 2013; Maguire; Frois; Zurawski, 2014). O objectivo era observar o funcionamento da instituição-prisão acompanhando o quotidiano prisional, conversando com homens e mulheres detidos, funcionários, guardas e outros profissionais presentes no quotidiano da instituição.

O Linhó, uma prisão com 500 homens situada na periferia de Lisboa, a capital portuguesa, tem uma composição que pode ser considerada atípica, uma vez que dos 49 estabelecimentos prisionais portugueses, poucos são os que concentram tão grande proporção de jovens adultos condenados por crimes violentos e graves, com sentenças de prisão com duração superior a 7 anos. Para além desta especificidade (que corresponde a um propósito explícito desde a sua criação, no final da década de 1950), a maior parte dos seus habitantes são oriundos de bairros periféricos (sobre a utilização deste conceito veja-se a discussão de Padovani, 2018Padovani, Natália. Sobre casos e casamentos: afectos e amores em penitenciárias femininas em São Paulo e Barcelona. São Paulo, Edufscar Editora, 2018.). As relações dentro da prisão reproduziam em grande medida as dinâmicas de interacção que mantinham fora dali, quer entre grupos do Bairro X, do Bairro Y, quer entre “portugueses”, “africanos” (sendo que os africanos eram, na sua maioria, também portugueses), brasileiros, ou mais genericamente de “Leste”. A prisão era uma extensão do bairro e para ali se importavam e resolviam as questões e os conflitos que decorriam no exterior (e.g. Cunha, 2002Cunha, Manuela. Entre o Bairro e a Prisão. Tráficos e Trajectos. Lisboa, Fim de Século, 2002.).

Num primeiro momento, foi obtida autorização para fazer entrevistas entre a 10 a 15 homens com percursos prisionais diferentes – isto é, primários, reincidentes, com passagens por outras prisões ou apenas esta; com crimes e condenações diversificadas. Num segundo momento, seriam realizadas entrevistas aos guardas prisionais (homens e mulheres) e restante staff prisional. A selecção dos participantes foi feita em conjunto com a directora, um membro dos serviços técnicos e o chefe dos guardas prisionais. Cada um comentava os potenciais entrevistados a partir da listagem de presos: se o preso em questão gostava ou não de participar em estudos académicos, se estava alojado na zona dos ativos ou dos inactivos,4 4 Numa fase inicial da pesquisa foram entrevistados exclusivamente presos “activos”, ou seja, aqueles que frequentavam atividades lectivas ou laborais por estarem fora da cela durante mais tempo. Na época, esta prisão tinha uma outra ala que alojava os presos “inactivos” que estavam fora das celas apenas duas horas por dia, por não terem atividades ocupacionais. em que dias receberia visitas ou se estava a trabalhar e, portanto, indisponível. No final, Frois ficou com uma lista de números, cada um correspondendo a um homem.

Ao longo da primeira semana de pesquisa, as entrevistas aconteceram no espaço da escola, um conjunto de edifícios pré-fabricados situado no exterior das alas prisionais. Eram apenas dois módulos: num deles havia uma pequena biblioteca, onde se ouvia música ou jogava no computador. O outro módulo dividia-se em salas de aula e uma sala de professores que foi destinada à investigadora.

A lista de números revelava que, ao contrário do que desejava, não era a investigadora que dava início à interacção com os presos. Na realidade, uma vez chegada à escola não sabia quem, de entre aqueles homens, eram aqueles que faziam parte da selecção. E o mesmo acontecia com os presos que eram chamados por um guarda e era-lhes perguntado se estavam disponíveis para “falar com a doutora” e que, em caso afirmativo, eram encaminhados para a sala onde a investigadora os esperava. A artificialidade que antecipava a entrevista contrastava profundamente com a prática etnográfica que defendemos. Os presos aceitavam ir conversar com alguém que não sabiam quem era, desconhecendo a finalidade da conversa, e desconhecedores de que podiam negar a participação. Assim, quase invariavelmente a primeira pergunta que colocavam era: “O que é que eu fiz?”. Aquela questão enfatizava a assimetria de poder entranhada nas relações entre as várias pessoas do lugar: a interacção não se fazia de igual para igual, de pessoa com pessoa. A interação da investigadora com os reclusos começava com uma convocatória: a pessoa em cumprimento de pena, “o preso”, era chamado para falar com alguém – neste caso uma mulher, a “doutora” – que tanto podia ser assistente social, psicóloga, advogada, juíza. Esclarecidos sobre o propósito da conversa, dos objectivos do estudo e que a sua participação teria de ser voluntária, a partir daí a conversa fluía. Para a maioria dos reclusos, o facto de poderem falar sobre si próprios apresentava-se como um momento para quebrar a monotonia. Aceitavam participar no estudo ao mesmo tempo que diziam: “Pode ser, lá fora também não estava a fazer nada…”

Num dia, depois de almoço, Frois voltou ao espaço, onde tinha já feito entrevistas da parte da manhã. Estavam ainda a ser abertos os gradões das alas e a biblioteca estava vazia. O guarda responsável por aquele espaço perguntou se queria “que fosse chamar algum [preso]” para vir falar. Não se considerou necessário, era uma oportunidade de ficar por ali, ir vendo o que se passava e talvez conseguisse começar a estabelecer outra forma de dar início à interacção com os presos. A dado momento um dos homens entrou na biblioteca, parecendo estranhar a presença da antropóloga. Não encontrando maneira de começar uma conversa “informal”, a investigadora perguntou-lhe se queria jogar às damas. Apesar de desconfiado, respondeu que sim, e sentaram-se a jogar. Passados poucos minutos entraram na sala vários homens, e ouviu-se do lado de fora alguém dizer: “Embora lá que está ali uma gaja!”. A sala ficou cheia de gente. Como a mesa estava encostada a uma janela, do outro lado começou também a formar-se uma multidão.

O homem com quem estava a jogar esforçava-se por se manter indiferente ao que se passava à sua volta, embora parecesse enfrentar um problema acrescido: como estava a perder o jogo, os outros começaram a fazer troça dele e a dar-lhe empurrões. “Xiiii, perder pra uma mulher! Sai daí! A seguir sou eu!”. Pela forma como se mantinha calado e não reagia, era evidente que seria alguém numa posição de fragilidade. Não entrou na discussão enfrentando os outros, e nem sequer se ria em conjunto em sinal de camaradagem. Em novo jogo, desta vez mais rápido, ganhou o preso. Nesse momento, Frois apresentou-se rapidamente e propôs uma entrevista formal que foi logo aceite. Foram juntos para outra sala e todos os que ali estavam saíram também e rapidamente se desinteressaram. O homem explicou porque não reagiu. Na verdade estava naquela prisão há pouco tempo, condenado por tráfico de droga. Não sendo português, e não conhecendo os outros homens nem mantendo relações de amizade, sabia que estava numa situação de inferioridade. Em caso de briga, assumia que a estratégia era não ripostar, ainda que fosse o oposto do que se esperava dele; reagir, lutar para mostrar que era “homem”.

O episódio mostra bem o impacto de ser uma investigadora mulher a trabalhar numa prisão de homens, a relevância de pensar o contexto prisional a partir das categorias de género (McCorkel, 2003; Newton, 1994; Cunha, 2007Cunha, Manuela. A reclusão segundo o género: Os estudos prisionais, a reclusão de mulheres e a variação dos contextos da identidade. In: AAVV. Educar o Outro: As Questões de Género, dos Direitos Humanos e da Educação nas Prisões Portuguesas. Coimbra, Publicações Humanas, 2007, pp.80-89.; 2010; Padovani, 2018Padovani, Natália. Sobre casos e casamentos: afectos e amores em penitenciárias femininas em São Paulo e Barcelona. São Paulo, Edufscar Editora, 2018.), mas, sobretudo de o fazer sempre numa perspectiva interseccional. Aquele homem estava a ter dificuldades de estabelecer relações de igualdade com os seus pares, tinha chegado havia pouco tempo e era “estrangeiro” (o que o colocava simbolicamente numa situação de inferioridade); e a forma como deveria demonstrar que merecia ser aceite seria através de demonstrações de força e virilidade. Aquele momento de interação directa com uma mulher (ali não era “a doutora”, era “uma gaja”) era o momento ideal para se afirmar enquanto homem aos olhos dos seus companheiros. Para aquele homem, este foi, portanto, um momento emblemático de constituição de relações de poder tanto perante os homens portugueses como perante a sua interação com uma mulher na presença deles.

Para Frois, este episódio deixou claro que a interacção com os seus interlocutores tinha de ser regulada e não podia ser de improviso, tendo de aproveitar o máximo das situações em que podia estar apenas como observadora, embora estas fossem mais frequentes quando estava entre guardas e não entre reclusos. Foi assim que as centenas de horas de conversas com reclusos, guardas e técnicos decorreram, por norma, em salas idênticas àquelas onde os reclusos consultavam o advogado, tinham audiências com juízes de execuções de penas ou, noutros casos, em espaços onde costumavam receber as visitas semanais. Espaços de ninguém, espaços de fronteira entre os quotidianos de cada um, espaços de relacionamento entre pessoas em evidentes relações assimétricas de poder, marcados pela não espontaneidade da interação.

Mais tarde nesse dia, Frois relatou o episódio a um dos subchefes da guarda prisional, que a censurou. Ser mulher era algo que não podia ser ignorado na sua interação com os reclusos, sobretudo se estivesse sozinha: “Foi uma situação perigosa que podia ter acabado mal. Não se esqueça do lugar onde está. Se nós temos receio quando só estamos sozinhos no meio deles, a doutora também deve ter. Isto aqui é uma prisão, não é uma escola”. Esta reação mostra que havia vários factores em causa. Em primeiro lugar, as pessoas externas à prisão não podiam circular sem primeiro acautelar questões de segurança. Na situação descrita poderiam ter ocorridos confrontos de várias ordens: dos presos com a investigadora, dos presos uns com os outros, dos presos com o guarda prisional que estava sozinho num local onde se concentraram meia centena de reclusos. Se as zonas administrativas eram de fácil acesso e se podia circular sem constrangimentos (apesar de parecer estranho ao guarda ou ao técnico que andasse por ali uma pessoa aparentemente sem “fazer nada”), a permanência na zona prisional estava condicionada e até interdita. A escassez de guardas, por um lado, e a sobrelotação do espaço, por outro, foram sublinhadas como podendo favorecer o escalar de situações de conflito que, de outra forma, poderiam ser evitadas (Frois 2016; 2017; no prelo). Os presos, e sobretudo homens jovens, não deviam ser expostos a situações que acentuassem os efeitos da privação de liberdade.

Neste caso, quando se ouve “está ali uma gaja” afere-se que, pelo menos para alguns daqueles homens, a limitação ou impossibilidade de contactos sexuais heterossexuais tinha um impacto no seu quotidiano, aquilo que Sykes (1958) celebrizou como “dores do encarceramento”. Mas não é só para a sexualização do significado da situação que nos remete analiticamente este episódio. Na verdade, são relações de poder que medeiam a interação entre aquele homem e aquela mulher. Ao contrário da hierarquia simbólica hegemónica em Portugal que remete para uma superioridade simbólica do masculino nas interações sociais, aqui a mulher, ainda por cima de pequena estatura, não só tinha mais poder dentro da instituição como ganhou na luta directa com aquele homem no jogo das damas. A potencial sexualização da interpretação da interacção foi invisibilizada pela reificação da relação de poder inversa ao modelo vivenciado nas práticas quotidianas daquela prisão masculina. Vemos, portanto, como estas categorias de diferenciação social, e as hierarquias que produzem, se constituem nas interseções múltiplas e complexas entre género, estatuto, classe e nacionalidade. Num contexto onde os referentes simbólicos dos conteúdos das categorias de género se constroem em elementos de hipermasculinidades, a presença física de uma mulher é expressa por uma hipersexualização da situação. Porém, os “presos” reconheceram claramente a assimetria de poder que os separa da “doutora” e dirigem todos os seus comentários para o seu camarada. Este, pensado não apenas como homem, mas como estrangeiro, não pertencente ao lugar, é colocado simbolicamente duma relação de menorização em relação aos outros reclusos e teria, portanto, de demonstrar mais do que os outros a sua virilidade para se afirmar no grupo e ser respeitado pelos seus pares. A nacionalidade é aqui um marcador de diferenciação poderoso como o género ou a classe, com os quais, na verdade, se interliga. Os guardas, pelo seu lado, ao invocar os potenciais perigos que a investigadora correu, expõem as várias camadas de significado que enformam as categorias de homem preso com base em atributos estereotipados de género, perigosidade e criminalidade. Não parecendo o perigo real, a interpretação dos guardas demonstra os conteúdos simbólicos das categorias sociais que edificam o sistema prisional.

Para os guardas prisionais, os estímulos externos não se restringiam ao desejo sexual como este episódio poderia indiciar. Eles estendem-se a todas as acções e acontecimentos que pudessem exacerbar o sentimento de privação, dando origem a frustração, inveja, raiva, angústia. Estes sentimentos de desvalorização da pessoa são, dentro da prisão, importantes elementos de constituição de relações de poder, dominação e subordinação. A diminuição dos presos enquanto pessoas livres, autónomas e completas não é apenas gerador de humilhação para o preso, mas é também um legitimador do poder dos guardas, uma forma de, através das regras da instituição e da aplicação das leis do Estado, inscrever nos corpos, nas mentes e nas acções a hierarquização e as relações de poder da ordem institucional desejada. Humilhação, frustração, inveja, raiva, angústia são, assim, ferramentas de governamentalidade que fazem parte da gramática emocional que operacionaliza o sistema penal e legitima as assimetrias em que assenta e que simultaneamente reproduz (Coelho; Rezende, 2011Coelho, Maria Claudia; Rezende, Claudia Barcelos (org.). Cultura e Sentimentos – ensaios em antropologia das emoções. Rio de Janeiro, FAPERJ / Editora Contracapa, 2011.). As emoções e comportamentos dos diferentes ocupantes do espaço prisional constituem, assim, a expressão da incorporação das relações de poder que mantêm entre si e garantem o equilíbrio do sistema.

Na realidade, nas nossas pesquisas em estabelecimentos prisionais masculinos e femininos não foi a questão sexual a que pareceu ser mais incómoda na relação diária, mas antes um outro aspecto mais prosaico: a possibilidade de se sair da prisão ao fim do dia. Ou seja, tanto com homens como com mulheres, o que era sentido como um confronto ou mesmo uma afronta, era o facto de, enquanto investigadoras, podermos entrar e sair da prisão, ao passo que eles/elas não tinham essa escolha. A normalidade em que inscreviam o seu quotidiano era posta em causa no momento em que os caminhos se separavam. E de novo a ordem de género e poder que marca a vida na prisão e a sociedade portuguesa se inverte naquele contexto particular.

Estabelecimento prisional feminino – Espanha

A prisão de mulheres onde o trabalho de campo foi conduzido por Osuna situa-se em Espanha, e tem capacidade para acomodar aproximadamente 700 mulheres em detenção. Localizada entre dois núcleos urbanos, o acesso através de transporte público é, no entanto, muito restrito. Este é um dos poucos estabelecimentos prisionais espanhóis que alberga exclusivamente mulheres e a sua arquitectura não corresponde aos chamados “centros tipo” – em que se destaca uma grande torre de vigilância –, mas sim a um modelo que no entender das próprias mulheres ali encarceradas é menos opressivo.5 5 Esta prisão foi construída nos anos 90 do século XX como centro penitenciário para jovens. A partir desta década todos os novos centros penitenciários correspondem ao chamado “centro tipo”, de modo a que todos os estabelecimentos prisionais se adequem ao mesmo modelo arquitetônico. Sobre a evolução das prisões de mulheres em Espanha, veja-se Almeda (2005). Divide-se em duas áreas denominadas de forma informal como dentro e fora. Enquanto que fora se encontram os escritórios e gabinetes dos funcionários prisionais, salas de reuniões e salas de visita dos reclusas, dentro estão os sete módulos habitacionais das reclusas e o espaço da escola. Os caminhos entre os módulos estão rodeados de árvores e roseirais e em cada módulo há um espaço para celas e zonas comuns, como salas de estar, refeitório, espaços de trabalho, economato e um pátio. A pesquisa desenvolveu-se ao longo de 18 meses e, embora o objectivo inicial se relacionasse com percursos de abandono escolar e o regresso ao sistema educativo, era prioritário compreender os mecanismos de funcionamento da prisão (Osuna, 2019Osuna, Carmen. “Yo allí soy feliz, voy de lunes a viernes sin faltar”. Reflexiones desde una etnografía escolar en una cárcel de mujeres. AIBR. Revista de Antropología Iberoamericana 14 (2), 2019, pp.277-298.).

Nos primeiros dias, o que mais surpreendeu neste lugar foi a sua aparente normalidade. Osuna nunca tinha estado num estabelecimento prisional e o seu imaginário correspondia aos estereótipos de violência e marginalidade que se veem nos filmes e séries de televisão. Enquanto o director da escola a conduzia numa visita guiada e, muito amavelmente, explicava como funcionava a prisão e onde eram leccionadas as aulas, a investigadora observava as pessoas com quem se ia cruzando e pensava: “Esta senhora podia ser minha mãe, esta miúda podia ser eu…”.

O único elemento visual que a diferenciava delas era o cartão de identificação que trazia ao peito e que certificava a autorização de entrada na prisão, e no qual constavam uma fotografia, o nome, a instituição onde trabalhava e a palavra “investigadora”. Nos meses de Inverno, quando a temperatura arrefecia e esta identificação ficava muitas vezes tapada por casacos ou camisolas, houve situações em que tanto funcionários como mulheres reclusas a tomaram como alguém que estivesse também a cumprir uma sentença de prisão. Um destes momentos de confusão entre estes dois papéis foi particularmente interessante e ocorreu no interior da zona comum de um dos módulos habitacionais. Osuna tinha estado a entrevistar uma jovem numa sala de uso comum: era Verão, estava bom tempo e quase todas as mulheres que não participavam em actividades estavam no pátio do seu módulo a apanhar sol. A sala comum estava tranquila e fresca. Pouco antes de terminar a conversa, a mulher perguntou se gostava de ver fotografias dos episódios de que tinha estado a falar (sobre a sua vida antes do encarceramento). Enquanto esperava que voltasse, entrou no módulo uma senhora que Osuna não tinha ainda conhecido. Não deve ter visto a identificação porque veio directamente perguntar-lhe se era “nova”. Surpreendida, e enquanto pegava na identificação explicou: “Bom, não… Estou a fazer uma investigação, mas agradeço, é muito amável”. Nesse momento a mulher, que rondava os 50 anos, tapou a boca com as mãos e desfez-se em desculpas: “Peço desculpa, não tinha visto”. Quando se virou, voltou-se novamente para trás e disse: “Sou a Concha, muito prazer”. Explicou então que os primeiros dias eram muito difíceis e só tinha querido ajudar a que se sentisse melhor (caso fosse realmente uma recém-chegada à prisão). A hierarquia que se constrói entre “investigadora” e “presas” é diferente da que identificamos no caso de Frois numa prisão masculina. Aqui a forma como as questões de género constituem assimetrias é exclusivamente enraizada nas suas pertenças de classe e a grupos de estatuto a marcar a diferenciação entre os agentes sociais.

Quatro meses depois de ter começado o trabalho de campo, numa manhã em que não havia aulas por ser período de férias, a mulher anteriormente desconfiada aproximou-se e disse com total confiança: “Vens entrevistar-me, certo?”. Ainda que não estivesse preparada para fazer uma entrevista formal, Osuna não deixou passar a oportunidade. Como era habitual, pediu permissão à funcionária para ir para uma das salas de aula do módulo para estarem tranquilas a conversar. A autoridade e o respeito que atribuíam à equipa de professores, a quem, sem dúvida associavam a antropóloga, esteve sempre implícita nas relações que construía: “Esta investigadora já vem há muito tempo, trabalha com os professores”, diziam os funcionários uns aos outros quando havia dúvidas. Aqui acontecia o inverso do que sucedeu na prisão masculina anteriormente descrita: não surgindo problemas por entrevistar as mulheres sozinha e sem qualquer vigilância ou intromissão, numa ocasião chegou a permanecer mais de duas horas numa sala fechada sem que houvesse algum tipo de interrupção nem vigilância. Cremos que o facto de ser mulher teve um papel facilitador na construção das interacções durante o trabalho de campo e nas suas dinâmicas. Simultaneamente, pensamos que tal não aconteceria se caso fosse um homem pois não permitiriam que ele estivesse sozinho com uma mulher durante tanto tempo. A sexualização da avaliação das interações na prisão é uma das dimensões que influenciam as condições de investigação e a mobilidade das investigadoras em contexto prisional. Ser mulher a fazer pesquisa é interpretado através de gramáticas enraizadas nos conteúdos das categorias sociais de género.

A entrevista com esta mulher marcou um antes e depois na sua relação entre as duas. Desta vez falou da sua infância, da sua escola, dos seus pais, da sua adolescência, do seu primeiro marido, das suas filhas. Contudo, esta narrativa parecia demasiado linear, estando ausente o motivo pelo qual se encontrava a cumprir pena de prisão. Interrogada discretamente sobre o assunto, começou por dizer que Osuna lhe fazia lembrar as suas filhas, que gostava que as conhecesse porque eram boas pessoas e muito estudiosas. Esta pequena reflexão foi o ponto de partida para que descrevesse a sua trajectória de vida até à entrada na prisão. Terminada esta conversa, encontraram uma outra mulher com quem Osuna conversava habitualmente, que dormia à sombra. Estava calor, mas o pátio estava animado. Algumas mulheres apanhavam sol deitadas nas toalhas e untavam-se de vez em quando com água e azeite; um pequeno grupo fazia aeróbica; outras mulheres cosiam e outras conversavam. Como faltava uma hora para o jantar e o momento em que Osuna teria de abandonar as instalações prisionais, compraram refrescos e batatas fritas e passaram o resto da tarde a comer e a conversar. Nenhuma guarda prisional fez quaisquer perguntas, ou procurou vigiar a interacção.

Duas semanas mais tarde voltou a passar a tarde na prisão. Cruzou-se com uma das raparigas que tinha conhecido na escola e chamou-lhe a atenção a mulher estar toda arranjada: vestido curto preto, maquilhagem e o cabelo muito bem penteado. Parou a conversar com ela e comentou: “Lidia, estás tão bonita hoje!”, entre risos, a mulher respondeu: “Obrigada! Arranjei-me para sair, mas mudei de ideias e decidi ficar em casa…”. Não era a primeira vez que uma destas mulheres dizia, entre gargalhadas, que se tinha estado a “arranjar” para sair com amigas ou com o marido, empregando a ironia e o sentido de humor para lidar com o facto de estarem na prisão. “Verem-se bonitas” era uma estratégia a que as mulheres recorriam não só para participar em certos eventos ou encontrarem os seus companheiros ou familiares na sala de visitas, mas também, como explicavam: “De vez em quando temos de nos ver bonitas senão ficamos malucas”. Momentos mais tarde, encontrou sentadas junto ao muro do pátio duas mulheres com quem costumava passar muitas tardes. Uma delas, que tinha ido a tribunal nesse dia, contou que se tinha embonecado toda para essa saída: “Devias-me ter visto, com o cabelo esticado, maquilhagem, saia-casaco… Linda. Nada como o outro que estava cheio de nódoas de gordura na roupa… Que horror”. O “outro” era o seu ex-companheiro. O esforço e o investimento para cuidar do aspecto físico mostra que estas mulheres recorrem aos padrões hegemónicos de género – que hipervalorizam a aparência no julgamento do feminino – tal como a força e a sexualidade são importantes marcadores na construção de assimetrias e relações de poder entre os homens.

A partir daí, começaram a falar sobre homens e sobre fiascos amorosos. Foi assim que, de tema em tema, concluíram que os homens “são todos iguais”. Entre gargalhadas, estereótipos e um ou outro palavrão, Osuna viu-se submersa nos interstícios de um dos episódios que explicava, por fim, a razão pela qual esta mulher estava condenada e compreendeu então pormenores que nunca tinham sido mencionados durante a longa entrevista que tinham realizado noutra ocasião. Esta partilha de vivências e constrangimentos de género que cruza grupos de classe aproxima investigadora e presa, que se separam nas suas relações de poder diferenciadas. Porém, os conteúdos das categorias de género hegemónicas aproximam-nas. Por seu lado, a cumplicidade estabelecida entre mulheres no contexto prisional pode ser pensada como um factor de criação de comunalidade e de criação de pontes de contacto entre pessoas que não tinham muito a ver umas com as outras antes do estabelecimento dessa forma de convivialidade. Entre as presas a situação comum em que se encontram, o afastamento que partilham de filhos e familiares que dependem delas, as condições de privação e vulnerabilidade que eram o seu dia a dia antes de serem presas constituem uma base comum para a sua interação e relações. Porém, a competição por lugares de poder e acesso a bens escassos na prisão pode constituir entraves a essa comunalidade e criar assimetrias profundas entre elas.

***

Através dos relatos das experiências de investigação etnográfica temos vindo a mostrar de que maneira o facto de sermos mulheres condicionou e moldou as nossas pesquisas em contextos prisionais originando, simultaneamente, possibilidades e restrições que escapavam, em grande medida, ao desenho metodológico definido inicialmente. Nos dois casos, o facto de sermos mulheres foi um elemento determinante no abrir ou fechar de portas no acesso ao terreno e na compreensão dos processos e das interações dentro da prisão. Na prisão feminina, Osuna teve a possibilidade de circular livremente por quase todos os espaços, e passar várias horas a realizar entrevistas sem muitas restrições ou interrupções. Na prisão masculina, Frois teve uma rígida limitação de movimentos por se considerar que, por ela ser mulher, a qualquer momento podia desencadear-se uma situação violenta que pusesse em perigo a sua integridade física. Hammersley (2015Hammersley, Martyn. Research “Inside” Viewed from “Outside”: Reflections on Prison Ethnography. In: Drake, Deborah; Earle, Rod; Sloan, Jennifer (ed.). The Palgrave Handbook of Prison Ethnography. Hampshire; Nueva York, Palgrave Macmillan, 2015, pp.21-39.:24) afirma que “é difícil saber quais [as características sociais] serão relevantes em determinadas situações”. Partindo das nossas experiências defendemos que o facto de se ser mulher ou homem na pesquisa em contextos prisionais afecta de forma decisiva as relações que se constroem no campo, pois este é muito marcado pelo exacerbamento dos elementos que caracterizam as categorias de género. Porém, e em termos analíticos, mais importante do que essa questão é o facto de estas relações serem construídas com base em categorias de género com conteúdos culturais específicos que são simultaneamente diferentes e diferenciadores para as pesquisadoras e as pessoas que constituem o seu contexto de análise. Encontramos exemplos claros da premissa assumida pelas autoridades prisionais de que uma mulher entre mulheres não será alvo de ameaça, ao passo que uma mulher entre homens pode ser objecto e sujeito de actos violentos; na maneira como as reclusas cuidam da sua imagem física e de questões de beleza, no empenho com que os homens zelam por manter forte a sua imagem de virilidades e força e competem pelos momentos de maior demonstração da sua masculinidade. O estereótipo de que as mulheres são dóceis e que se querem bonitas e bem arranjadas, e que os homens são violentos e hipersexualizados é visível tanto nos discursos de guardas e dirigentes prisionais como também na discursividade institucional, o que revela como as instituições prisionais se organizam com base em categorizações de género nas suas interseccionalidades. A relação estabelecida por Osuna na prisão de mulheres foi facilitada pelo facto de ser mulher, mas não foi homogénea nem foi uma relação entre iguais. As marcas de classe e profissão hierarquizam “presas” e “doutora” numa assimetria intersecional que distância o que a biologia parecia unir.

As relações que se estabelecem entre pesquisador e interlocutores/as na prisão são ténues e frágeis; há que saber gerir as assimetrias, a confiança e a desconfiança, a todos os níveis e em permanência. Essas assimetrias são, porém, mais profundas do que uma análise inicial poderia sugerir. É certo que prisão é um lugar de poder, de exclusão, de confronto que não se restringe a quem domina – os representantes da instituição: guardas prisionais, directores, professores ou juristas – ainda que sejam estes quem têm legitimado o exercício e a reivindicação do poder. Porém, na prática, as assimetrias são constantemente reforçadas nas interacções das/os presas/os umas/uns com as/os outras/os e face à autoridade. Também neste âmbito, as questões de género são uma dimensão fundamental. Os conteúdos culturais específicos destas categorias de diferenciação são permanentemente a base de construção das relações que se estabelecem na prisão, e que correspondem aos modelos hegemónicos fora dela. Os conflitos, as disputas, situam cada homem face a uma masculinidade hegemónica: o homem que não aceita uma afronta e que a ela reage; o homem que é respeitado e se faz respeitar pelos outros presos, mas também pelos guardas. Na prisão feminina, o ideal de mulher, de feminilidade é também convocado através da apreciação crítica da outra: como se veste, como se comporta, como se apresenta. Nas prisões em que fizemos pesquisa, as questões raciais não ganharam primazia, mas, as diferenciações introduzidas pela nacionalidade e a etnia eram importantes marcadores de diferenciação entre homens e mulheres potencialmente iguais entre si.

A prisão pode ser entendida como a instituição que dociliza os corpos (usando a célebre expressão de Michel Foucault), que os molda para um ideal normativo – a pessoa cumpridora, obediente. Ora, grande parte das etnografias realizadas em contexto prisional tendem a expor exemplos dessa imposição da submissão. Essa crítica exclui, porém, a agencialidade das pessoas presas, isto é, no nosso entender, a submissão e o conformismo devem ser analisadas sob outra perspectiva: através do exacerbar e até extremar da masculinidade e da feminilidade hegemónicas. Assim, o homem deverá ser másculo, poderoso e reactivo face aos outros. A submissão e o conformismo impostos pela instituição dão, portanto, lugar a formas de resistência e de manifestações de poder que procuravam mostrar essa virilidade, mesmo em confinamento e privados de liberdade (e aqui convocamos tanto o trabalho de Mary Bosworth, 1999Bosworth, Mary. Engendering Resistance: Agency and power in Women’s Prisons. Nova Iorque, Routledge, 1999.; de Thomas Ugelvik, 2014Ugelvik, Thomas. Power and Resistance in Prison: Doing Time, Doing Freedom. Londres; Nova Iorque, Palgrave Macmillan, 2014., ou as “hidden transcripts” da arte da resistência estudadas por James Scott, 1992Scott, James. Domination and the Arts of Resistance. Hidden Transcripts. Yale, Yale University Press, 1992.). No caso das mulheres, as nossas observações mostraram que as características que idealmente se atribuem ao feminino – docilidade e maternidade – são enfatizadas através da aparência e do cuidado do corpo. A mulher que cuida do seu cabelo, do seu corpo, que está bem “arranjada” e bem cuidada. Aqui também há uma resistência à instituição e à submissão; não permitir que se tornem em meros sujeitos confinados. A sua “arma”, a sua forma de resistir é justamente através deste cuidado com o corpo, de forma que a apresentação de si, como ensina Goffman (1993)Goffman, Erving. A apresentação do eu na vida de todos os dias. Lisboa, Relógio d’Água, 1993 [1956]., revele elementos simbolicamente associados à feminilidade hegemónica: estar arranjada, ter as unhas pintadas, os cabelos brancos cobertos torna-se, assim, uma forma de resistência.

Etnografia na prisão, etnografia da prisão: seus limites

A chamada “observação participante” faz com que o etnógrafo entre em lugares da vida humana onde ele ou ela prefeririam nunca ter estado e, uma vez lá, não sabem como sair senão através da escrita, fazendo com que os outros se tornem também testemunhas desta observação (Nancy Scheper-Hughes, Death without Weeping: The Violence of Everyday Life in Brazil, p.xii, tradução nossa).

Uma última dimensão que queremos discutir é a forma como, na investigação em contexto carcerário, a/o etnógrafa/o lida com as narrativas sobre as trajectórias das pessoas com quem trabalha, em particular quando são descritas actividades criminosas. Também aqui o facto de sermos mulheres influenciou a nossa capacidade de sentir empatia, proximidade ou distanciamento relativamente aos nossos interlocutores. Crewe et al. (2016) sublinham que os temas relacionados com a “vergonha, culpa ou procura de redenção” constituem temas centrais nos estudos prisionais, em particular quando consideramos o modo como estes sentimentos são incluídos nas narrativas das pessoas a cumprir uma pena e determinam a forma como orientam a sua vida na prisão.

A nossa própria subjectividade e percepções enquanto investigadoras-mulheres, com experiências de vida vivida e trajectórias e contextos específicos, não podem ser ignoradas (ver p.ex. Geertz, 1983Geertz, Clifford. Local Knowledge: Further Essays in Interpretive Anthropology. New York, Basic Books, 1983.). Se Osuna nunca sentiu um verdadeiro medo dentro da prisão, no outro caso, Frois (à semelhança de Fransson e Johnsen, 2015Fransson, Elisabeth; Johnsen, Berit. The Perfume of Sweat: Prison Research through Deleuzian Lenses. In: Drake, Deborah H.; Earle, Rod; Sloan, Jennifer (ed.). The Palgrave Handbook of Prison Ethnography. Londres; Nova Iorque, Palgrave Macmillan, 2015, pp.187-198.), esteve sempre consciente da condição de ser uma entre muitos, em que o seu corpo e os seus sentidos permaneciam em constante alerta. Para Frois, o aparente distanciamento com que os homens descrevem os seus crimes tornou-se motivo de desgaste emocional, e constantemente se via obrigada a não deixar interferir a sua identidade pessoal com o exercício da sua profissão. Sendo comum na literatura prisional afirmar-se, como fazem Hulley et al. (2015), que as pessoas que vivem em situação de encarceramento afirmam que se tornam pessoas “mais frias, mais duras e desenquadradas”, é certo que o impacto que os desdobramentos e/ou transformações podem apresentar nas suas narrativas produzem reacções a quem ouve que nem sempre se conseguem evitar ou mesmo ocultar. Falamos de limites pessoais em relação ao contexto de investigação, tema que não deve ser negligenciado neste contexto. Não é o ser-se homem ou mulher que determina empatia ou repulsa que desenvolvemos com os nossos interlocutores (Crewe; Ievins, 2015Crewe, Ben; Ievins, Alice. Closeness, Distance and Honesty in Prison Ethnography. In: Drake, Deborah; Earle, Rod; Sloan Jennifer (org.). The Palgrave Handbook of Prison Ethnography. Londres e Nova Iorque, Palgrave Macmillan, 2015, pp.124-142.; Drake, 2015Drake, Deborah. Finding Secrets and Secret Findings: Confronting the Limits of the Ethnographer’s Gaze. In: Drake, D.; Earle, R.; Sloan, J. (org.). The Palgrave Handbook of Prison Ethnography. Londres e Nova Iorque, Palgrave Macmillan, 2015, pp.252-270.). É o ser-se pessoa, com uma história pessoal, com uma trajectória feita de condicionantes, contextos e escolhas.

Dito de outra forma: a situação de estar numa sala a conversar com uma pessoa (homem ou mulher) com 18, 20, 30 anos, a relatar episódios da sua vida, não apresenta à partida nada de distinto ou particularmente perturbador. No entanto, naqueles lugares de confinamento e punição os elementos sensoriais foram decisivos na nossa compreensão das situações e das teias de relações que analisamos. No caso de Frois, o barulho que atravessava as finas paredes de contraplacado assemelhava-se a gritos que aumentavam de tom e que pareciam representar situações de descontrolo entre os reclusos. Porém, o impacto desta vozearia era distinto nos dois interlocutores: nos primeiros dias, Frois sentia inquietação, contrastando com a tranquilidade da pessoa que tinha à sua frente que, independentemente do que se estaria a passar-se fora dali, continuava a falar e a contar a sua história. Houve um momento numa dessas entrevistas em que a exaltação era tal que chegou a perguntar ao seu interlocutor se haveria algum problema. Ao início o homem não compreendeu a questão, mas depois explicou “não, é mesmo assim”. Ele já se tinha habituado àquele barulho de fundo, era quase como se fosse a banda sonora do Linhó. A normalização do contacto com situações de agressividade física, verbal ou simbólica promovia formas distintas de reação emocional a essas situações. Analisar esta experiência emocional e os seus significados é, portanto, uma dimensão importante nos trabalhos sobre prisões, pois essa dimensão experiencial revela significados sociais e culturais centrais para a nossa compreensão do contexto que estamos a analisar (Rosaldo, 1984Rosaldo, Michelle Z. Toward an anthropology of self and feeling. In: Shweder Richard; LeVine, Robert (ed.). Culture Theory: essays on mind, self, and emotion. Cambridge, UK, Cambridge University Press, 1984, pp.137-157.; Lima, 1993Lima, Antónia Pedroso de. A importância das emoções: novos caminhos no estudo do parentesco e da família. In: Roigé i Ventura, Xavier (ed). Perspectivas en el estudio del parentesco y la familia. Vol 4 Actas do VI Congreso de Antropologia Espanhola, Tenerife, 1993, pp.83-98.).

Era também óbvia a diferença deste lugar para outro qualquer onde tivesse feito investigação anteriormente, ou do percurso de vida daquelas pessoas que tinham a mesma idade dos alunos a quem davam aulas. Estas eram vivências de violência, pobreza, exclusão social, discriminação – na maior parte dos casos da infância, à adolescência, à vida adulta; antes de começarem a cometer crimes, durante a sua trajectória criminal, durante o encarceramento. Estes homens e mulheres eram sujeitos activos e passivos de violência, vítimas e perpetradores de crime e assumiam essa dupla agencialidade durante as nossas conversas, na linha do que sugere Bähre (2015)Bähre, Erik. Etnography’s blind spot. Intimacy, violence, and fieldwork relations in South Africa. Social Analysis 59 (3), 2015, pp.1-16..6 6 Bähre (2015) sugere algo semelhante na sua reflexão sobre fazer etnografía em torno de temas de violêia e vitimizaxão na África do Sul.

Fazer trabalho de campo em contexto prisional tem especificidades que a literatura tem vindo a sublinhar ao longo dos últimos anos, e não são factores menores a ter em conta (veja-se Drake; Earle; Sloan, 2015). São vários os autores que discutem a exigência física, emocional e afectiva implicadas na interacção com reclusos, com guardas prisionais, com o ambiente físico de uma prisão. Para um/a antropólogo/a, que desenvolve com frequência relações de empatia (e até de amizade) com as pessoas com os seus interlocutores, esta pode ser uma dificuldade adicional e um desafio metodológico a superar. Algumas decisões podem ser tomadas ab initio. Se homens e mulheres estão em prisões separadas, também o/a investigador/a pode decidir antecipadamente se quer trabalhar com homens ou com mulheres. Aqui subjazem algumas pré-noções, por exemplo, relativamente ao percurso criminal. As estatísticas e os estudos criminológicos demonstram que as mulheres raramente cometem crimes que impliquem confronto ou violência física, são raros os casos de mulheres abusadoras sexuais; o crime de violência doméstica ou maus tratos a crianças são também uma minoria entre a população prisional feminina.7 7 A literatura sobre crime, violência e maus tratos no feminino tem assumido uma expressão significativa nas últimas duas décadas, veja-se, entre outros, Bloom (2003), Cardi ; Pruvost (2011), Carlen ; Worral (2014), Gomes; Duarte (2018), Moore ;Scranton (2014), Rowe (2012). Ou seja, a escolha do lugar onde desenvolver a pesquisa pode ter em conta o grau de violência a que está disposta a ser exposto, e o mesmo sucede com as pessoas com quem se quer falar, no terreno.

Frois escolheu deliberadamente trabalhar com homens e mulheres, ao passo que Osuna optou pela prisão feminina. Se, para uma a questão não era determinante, a outra intuía que esse relacionamento iria ser mais fácil. Para além disso, quando iniciou o seu trabalho de campo, Frois não teve como preocupação seleccionar os tipos de crime cometidos pelos homens com quem iria conviver; estava interessada nas suas trajectórias antes da prisão e na experiência vivida do encarceramento. Expôs-se, dessa maneira, a descrições de actos que sentiu como repugnantes ou abjectos, fosse pelo grafismo com que eram descritos – e que sentiu que eram propositados para criar um impacto – como pela violência implicada. Osuna, por seu turno, beneficiando-se de um ambiente informal, evitou propositadamente entrevistar mulheres que tivessem cometido crimes de sangue contra os seus filhos. A sua experiência como antropóloga não foi suficiente para que fosse imune a preconceitos. Em resultado da liberdade de circulação de que beneficiou e da facilidade de acesso às reclusas, Osuna desenvolveu relações próximas com elas e, com isso, um nível significativo de cumplicidade e empatia. As mulheres com quem mais tempo passava tentavam protegê-la: “Não te juntes muito a essa que matou os filhos e está péssima”, assumindo as sanções e os modelos de género analisados por Juliano (2010)Juliano, Dolores. La criminalización de las mujeres. Estigmatización de las estrategias femeninas para no delinquir. In: Añaños, F. (ed.). Las mujeres en las prisiones. La Educación social en contextos de riesgo y conflicto. Barcelona, Gedisa, 2010, pp.25-44..

É óbvio que o ser-se mulher ou homem cria apenas uma base de identificação aparente, dando por garantidas semelhanças nos gostos, nas expectativas, nas escolhas, na visão do mundo. Mas as questões que colocamos acerca dos limites etnográficos não se restringem à relação que estabelecemos com quem está preso. A empatia ou repulsa pelos nossos interlocutores e pelos seus actos estende-se aos guardas prisionais, aos directores, aos funcionários. Os sentimentos que se vivem durante o trabalho de terreno como impotência, pena, compaixão, repulsa ou revolta em relação ao que nos é contado ou que directamente experienciamos, convocam questões de subjectividade que podem tornar-se inesperadas e condicionar a continuidade da própria pesquisa. E, porém, estas subjectividade e reflexividade sobre quem somos e como nos posicionamos enquanto cientistas sociais e/ou pessoas, tendem a ser esquecida. Sem querer cair nos extremos das tendências interpretativistas da década de 1980, concordamos com Jewkes (2012Jewkes, Yvonne. Autoethnography and Emotion as Intellectual Resources: Doing Prison Research Differently. Qualitative Enquiry 18(1), 2012, pp.63-75.:66) quando afirma que a ausência de reflexão sobre as “reacções ao que são com frequência ambientes desafiantes e extremamente emocionais” faz com que os estudiosos da prisão pouco contribuam para a preparação de novos investigadores a entrar no campo (ver ainda Jewkes; Wright, 2016Jewkes, Yvonne; Wright, Susan. Researching the Prison. In: Jewkes, Yvonne; Bennett, Jamie; Crewe, Ben (org.). Handbook on Prisons. Londres; Nova Iorque, Routledge, 2016, pp.659-676.).

Esta é, acreditamos, uma armadilha que podemos interligar com as reflexões iniciais a propósito do contexto geográfico. Da mesma forma que precisamos discutir as análises e teorias que se formulam a propósito de determinados lugares e a validade da sua utilização noutros espaços territoriais, políticos, ideológicos, económicos – também precisamos dar um passo em frente na forma como reflectimos e publicamos os nossos dados. Isto é, enquadrar práticas criminais na sua relação com fenómenos de exclusão social, pobreza, discriminação ou racismo não nos permite deixar de fora da análise a trajectória de vida desses sujeitos, incluindo os actos classificados como crime, como o indivíduo se posiciona face a eles, como se auto-avalia, reconhece ou rejeita as classificações que lhe são imputadas. É esta visão holística do sujeito que permite captar as suas identidades, como se posiciona, que estratégias emprega e mobiliza.

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  • 1
    Parte deste artigo é resultado de pesquisa integrado no projecto de pesquisa “Governação, transformações políticas e negociação de quotidianos: Portugal 2008-2018”. FCT PTDC/SOC-ANT/32676/2017.
  • 2
    Vejam-se, a título de exemplo, as colecções dedicadas a estes temas em editoras internacionais como Routledge, a Palgrave Macmillan ou a Oxford University Press, com a publicação de Handbook de referência: Handbook on Prisons (Jewkes; Crewe; Bennett, 2016) publicado pela Routledge; The Palgrave Handbook of Prison Ethnography (Drake; Earle; Sloan, 2015); The Oxford Handbook of Prisons and Imprisonment (Wooldredge; Smith, 2018).
  • 3
    A literatura é extensa e segue diversas abordagens. Veja-se, por exemplo, o estudo recente de Vanessa Barker (2019), a colectânea organizada por Scharff Smith e Ugelvik (2017)Smith, Peter Scharff; Ugelvik, Thomas (ed.). Scandinavian Penal History, Culture and Prison Practice. Embraced by the Welfare State? Londres; Nova Iorque, Palgrave, 2017., Ugelvik e Dullum (2012)Ugelvik, Thomas; Dullum, Jane. Penal Exceptionalism? Nordic Prison Policy and Practice. Nova Iorque, Routledge, 2012. ou a comparação levada a cabo por Pratt e Eriksson (2013) sobre o que descrevem por “excesso anglófono” e o “excepcionalismo nórdico” a respeito dos modelos e sistemas penitenciários.
  • 4
    Numa fase inicial da pesquisa foram entrevistados exclusivamente presos “activos”, ou seja, aqueles que frequentavam atividades lectivas ou laborais por estarem fora da cela durante mais tempo. Na época, esta prisão tinha uma outra ala que alojava os presos “inactivos” que estavam fora das celas apenas duas horas por dia, por não terem atividades ocupacionais.
  • 5
    Esta prisão foi construída nos anos 90 do século XX como centro penitenciário para jovens. A partir desta década todos os novos centros penitenciários correspondem ao chamado “centro tipo”, de modo a que todos os estabelecimentos prisionais se adequem ao mesmo modelo arquitetônico. Sobre a evolução das prisões de mulheres em Espanha, veja-se Almeda (2005)Almeda, Elisabet. Pasado y presente en las cárceles femeninas en España. Sociológica 6, 2005, pp.75-106..
  • 6
    Bähre (2015)Bähre, Erik. Etnography’s blind spot. Intimacy, violence, and fieldwork relations in South Africa. Social Analysis 59 (3), 2015, pp.1-16. sugere algo semelhante na sua reflexão sobre fazer etnografía em torno de temas de violêia e vitimizaxão na África do Sul.
  • 7
    A literatura sobre crime, violência e maus tratos no feminino tem assumido uma expressão significativa nas últimas duas décadas, veja-se, entre outros, Bloom (2003)Bloom, Barbara (ed.). Gendered Justice: Addressing Female Offender. Durham, NC, Carolina Academic Press, 2003., Cardi ; Pruvost (2011), Carlen ; Worral (2014), Gomes; Duarte (2018)Gomes, Sílvia; Duarte, Vera (org.). Female Crime and Delinquency in Portugal. In and Out of the Criminal Justice System. Londres e Nova Iorque, Palgrave Macmillan, 2018., Moore ;Scranton (2014), Rowe (2012)Rowe, Abigail. Women Prisoners. In: Crewe, Ben; Bennett, Jamie (ed.) The Prisoner. Nova Iorque, Routledge, 2012, pp.103–116..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    18 Dez 2018
  • Aceito
    2 Set 2019
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