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Pastorais sexuais e gestão da vida íntima: casamento, afetividades e violência em igrejas inclusivas*

Sexual Pastorals And Intimate Life Management: Marriage, Affectivities And Violence In Inclusive Churches

Resumo

O artigo aborda o tema das pastorais sexuais em igrejas evangélicas inclusivas no Brasil. Focaliza as relações entre experiências LGBTQIA+, instituições religiosas, formas de gestão da vida íntima e políticas de subjetividade, além de discutir os usos e impactos de tecnologias e pedagogias do sujeito em aconselhamentos pastorais a partir de dados de pesquisa nas regiões sudeste e nordeste do Brasil. Também examina concepções correntes em dois eixos principais: casamento como direito e vida íntima; e experiências de violência conjugal ou violência íntima. A hipótese sustentada é a da existência de uma pedagogia do igualitarismo e da não violência, nas percepções de lideranças e fiéis, tanto nas igrejas LGBTQIA+ protestantes como nas igrejas pentecostais inclusivas.

Igrejas inclusivas; Pastorais sexuais; Vida íntima; Direitos humanos; Violência

Abstract

The article addresses the topic of sexual pastoral care in inclusive evangelical churches in Brazil. It focuses on the relationships between LGBTQIA+ experiences, religious institutions, ways of managing intimate life and policies of subjectivity; discusses the uses and impacts of the subject's technologies and pedagogies in pastoral counseling based on research data in the southeast and northeast regions of Brazil. It also examines current concepts in two main themes: marriage as a right and intimate life; and experiences of conjugal or intimate violence. The sustained hypothesis is that there is a pedagogy of egalitarianism and non-violence, in the perceptions of leaders and members, both in LGBTQIA + Protestant churches and in inclusive Pentecostal churches.

Inclusive churches; Sexual pastorals; Intimate life; Human rights; Violence

Introdução

Este artigo reflete sobre formas de regulação de sexo e gênero nas igrejas inclusivas brasileiras, grupos emergentes ( Mariz, 2013MARIZ, Cecilia L. Instituições tradicionais e movimentos emergentes. In: PASSOS, João Décio; USARSKI, Frank (org.). Compêndio de Ciências da Religião. São Paulo, Paulinas/Paulus, 2013, pp.301-312. ) formados a partir das demandas de liberdade religiosa das pessoas LGBTQIA+. O cuidado pastoral desponta de maneira estratégica para pensar as relações entre religiões e sexualidades como elementos constituidores da subjetividade, especialmente em um contexto de pluralização das formas de crer e de lutas sociais contemporâneas. Interessa levar em conta, portanto, se e como as instituições e tradições religiosas respondem às transformações na sociedade brasileira atinentes aos direitos sexuais da população LGBTQIA+, aprimorando uma dada agenda de pesquisa que têm se debruçado sobre esses vínculos em diferentes vertentes do cristianismo no Brasil ( Dias, 2022DIAS, Tainah B. Um ‘lugar para ser’: reconstruções identitárias de pessoas LGBTQIA+ cristãs nas Igrejas da Comunidade Metropolitana. Tese (Doutorado em Ciências da Religião), PPGCR/UMESP, São Bernardo do Campo, 2022. ; Gama, 2019GAMA, Maria Clara Brito da. Cura gay? Debates parlamentares sobre a (des)patologização da homossexualidade. Sexualidad, Salud y Sociedad – Revista Latinoamericana, n. 31, Rio de Janeiro, 2019, pp.4-27 [https://www.scielo.br/j/sess/a/xFWY7D4CHtKszMkz36q8txw/?lang=pt – acesso em 07 out. 202]. DOI: 10.1590/1984-6487.sess.2019.31.02.a
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; Natividade; Oliveira, 2013NATIVIDADE, Marcelo; OLIVEIRA, Leandro de. As novas guerras sexuais: diferença, poder religioso e identidades LGBT no Brasil. Rio de Janeiro, Garamond, 2013. ; Machado, 2011MACHADO, Maria das Dores C. et al. Homossexualidade e Igrejas Cristãs no Rio de Janeiro. REVER – Revista de Estudos da Religião, ano 11, n. 1, São Paulo, 2011, pp.75-104 [https://revistas.pucsp.br/index.php/rever/article/view/6031/4377 – acesso em: 07 out. 2020].
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; 2006; Machado; Piccolo, 2010MACHADO, Maria das Dores C.; PICCOLO, Fernanda Delvalhas. Religiões e homossexualidades. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2010. ; Vital; Lopes, 2012; Busin, 2008BUSIN, Valéria Meilke. Religião, gênero e diversidade sexual: refletindo sobre violência simbólica e exclusão. In: VAGGIONE, Juan Marco (coord.). Diversidad Sexual y Religión. Córdoba, Catolicas por el Derecho a Decidir, 2008, pp.61-82. ; Duarte, 2006).

A proposta descortina os meandros de experiências institucionais de um saber pastoral que opera para a solução de problemas da vida cotidiana, sobre sexo e vida íntima, implicados em discussões sobre direitos LGBTQIA+, incluindo dimensões do casamento igualitário, das conjugalidades e das várias faces da violência que permeiam a vivência dos sujeitos. Pretende-se lançar luz sobre a produção social de pessoas LGBTQIA+ cristãs no contexto desses movimentos e suas construções narrativas. Demonstramos, através de casos etnográficos diversos, como se produzem, em tais congregações, moralidades e formas de atuação distintas quando comparamos igrejas que aderem a um ethos similar ao chamado protestantismo histórico, e que assumem uma postura mais ativista no campo dos direitos, se identificam com correntes feministas, coletivos LGBTQIA+ e saberes acadêmicos – representado aqui pela trajetória das Igrejas da Comunidade Metropolitana (ICMs a partir daqui) – e, por outro lado, um ethos pentecostal, centrado nos ideais de vida cristã e modelos de uma homossexualidade santificada ( Natividade, 2010NATIVIDADE, Marcelo. Uma homossexualidade santificada? Etnografia de uma comunidade inclusiva pentecostal. Religião & Sociedade, v. 30, n. 2, 2010, pp.90-121 [https://www.scielo.br/j/rs/a/JwDwM3nzMBmY6js57YBmn7P/?lang=pt – acesso em: 07 out. 2020]. DOI: 10.1590/S0100-85872010000200006
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). No centro da reflexão destacam-se formas de agir e construir saberes e visões de mundo que almejam a transformação da tradição religiosa e da sociedade no que tange ao acesso a direitos, políticas equitativas e serviços públicos, mas, também, a emergência de elaborações teológicas e cosmovisões afeitas a projetos mais pluralistas no que tange a sexo e gênero.

Argumentamos a existência de elaborações específicas a cada uma dessas duas correntes sobre os temas da violência e sobre o vínculo amoroso, explorando significados das relações estáveis, do casamento, das conjugalidades e de suas alteridades. Buscamos compreender como, em tais grupos, tecnologias do sujeito são forjadas no anseio de regulação da vida íntima, entrelaçados a determinadas políticas de aparecimento ( Butler, 2018BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2018. ), formas de apresentação pública e construções da subjetividade. A hipótese sustentada é de que, apesar das diferentes ênfases discursivas, permanece como solo comum uma pedagogia do igualitarismo e do direito à não violência nas percepções de sexo e gênero tanto nas igrejas LGBTQIA+ protestantes como no pentecostalismo inclusivo. Com efeito, se pretende destacar as nuances de duas distintas formas de atuar e compreender as suas relações com lutas LGBTQIA+ mais globais.

O trabalho se alinha a análises recentes sobre religião e secularismos, abarcando também a temática da pluralização das formas de crer no mundo contemporâneo e reconfigurações do laico e do religioso em múltiplos contextos (Butler; Habermas; Taylor; West, 2011; Taylor, 2010; Mariz, 2013MARIZ, Cecilia L. Instituições tradicionais e movimentos emergentes. In: PASSOS, João Décio; USARSKI, Frank (org.). Compêndio de Ciências da Religião. São Paulo, Paulinas/Paulus, 2013, pp.301-312. ), cenários de modernização religiosa, de interseções e de movimentações do religioso com a política, as tecnologias e mídias, a ciência e o dito ordenamento jurídico.1 1 Não faz parte dos limites do escopo deste artigo tecer reflexões aprofundadas a respeito das relações entre secularismos e esferas ditas seculares e o campo religioso. No entanto, é pertinente considerar que não fazemos uso dessas categorias de forma a produzir dicotomias que refletem uma percepção de esferas que se opõem. Compreendemos a complexidade das relações entre religiões e outras esferas da vida social como mutuamente perpassadas e reafirmamos a impossibilidade de estabelecer quaisquer limites que as diferenciem. Ainda assim, ressaltamos, em diálogo com uma literatura específica, que determinados movimentos característicos da modernidade religiosa derivam de um processo de secularização entendido, aqui, como diferenciação e autonomia relativa de esferas sociais fundamentais, inclusive, no que tange ao pluralismo religioso e à garantia de direitos de minorias sexuais e de gênero. Para uma discussão aprofundada a respeito desta temática, ver, i.e.: Casanova (1994 ; 2007); Mariz (2000); Berger (2017) ; Guerriero (2004) ; Pierucci (2004) ; Taylor (2007) ; Hervieu-Lèger (2008). Essa agenda focaliza as tensões ou afinidades entre mensagens religiosas e certas agendas da vida pública, como é o caso das demandas dos coletivos feministas e LGBTQIA+. Ademais, também olha para redefinições do fazer religioso contemporâneo e para a ampliação de suas esferas de influência (Montero; Silva; Sales, 2018).

A pesquisa de campo que aborda parte dos materiais ofertados por Marcelo Natividade nesta análise se insere em amplo projeto temático, coordenado pela Professora Paula Montero, intitulado Religião, direitos e secularismos , no Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo, com aporte do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP).2 2 Pesquisa ampla desenvolvida com a participação de uma ampla rede de pesquisadores, incluindo sítios de investigação, abordagens, objetos muito plurais em torno da interação entre ethos religiosos e civis na contemporaneidade, abrigada no Cebrap no Processo 2015/02497-5. Ela teve início em 2015, desdobrando-se em investidas de campo nas cidades de Fortaleza, Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro para coleta de entrevistas entre os anos de 2016 e 2019, cidades nas quais se observa a consolidação de denominações específicas inclusivas ou LGBTQIA+. Com relação aos dados de pesquisa fornecidos por Tainah Dias, convém a explicitação de que fazem parte de pesquisa doutoral nas comunidades das Igrejas da Comunidade Metropolitana de São Paulo e Teresina, realizada no período de 2017 a 20213 3 A referida pesquisa foi realizada com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES/MEC) por meio de dois programas: 1) Programa de Suporte à Pós-Graduação IES Comunitárias (PROSUC) junto à Universidade Metodista de São Paulo; e 2) Programa de Doutorado-Sanduíche no Exterior (PDSE) junto à University of Wales Trinity Saint David. . O contexto político no qual a pesquisa se insere, por sua vez, é marcado por distintos tensionamentos no que concerne aos direitos da população LGBTQIA+. Muito embora diversos avanços em termos de políticas de reconhecimento e direitos de cidadania tenham sido conquistados devido à maior visibilidade da militância política – como o reconhecimento das uniões entre pessoas do mesmo sexo como entidades familiares por decisão unânime do Supremo Tribunal Federal (STF a partir daqui) em 2011 –, o ano de 2016 e polêmicas envolvendo a chamada “ideologia de gênero” passam a pulular no espaço público, marcando a constante ameaça de retrocessos em direitos já adquiridos. Ainda que haja o reconhecimento de um cenário mais amplo desfavorável – sobretudo após o pleito eleitoral de 2018, que marca a vitória de tendências conservadoras e reacionárias, e que avanços paulatinos posteriores, como a criminalização da LGBTfobia pelo STF em 2019, sejam amplamente celebrados em nossos sítios de pesquisa, nosso foco recai mais sobre as vidas íntimas dos sujeitos de pesquisa a partir de narrativas de lideranças religiosas e menos sobre seus entrelaçamentos possíveis com o cenário político de forma mais ampla.

Os materiais aqui analisados focalizam narrativas de lideranças religiosas sobre o cuidado pastoral e falas públicas dessas lideranças, que oferecem pistas para pensar práticas e pedagogias do sexo e gênero, implicadas na busca por conformar um certo modo de ser LGBTQIA+ cristão. Contudo, devido ao tempo e ao recorte empírico, não se pretende realizar um diagnóstico sobre o assunto, mas abrir reflexões que venham a ser aprimoradas em outras ocasiões. Dessa forma, a dita perspectiva dos fiéis não está aqui em discussão, num sentido estrito, mas apenas num sentido relacional. A ênfase incide para os discursos de representantes desse segmento religioso acerca de suas orientações pastorais para dilemas e conflitos da vida LGBTQIA+, inclusive, no campo da vida amorosa, das violências e das violações de direitos. Tais lideranças se sentem impelidas a ajudar na lida dessas violências e dramas, sendo assim combinam valores e práticas religiosos e laicos, demonstrando a complexidade e o dinamismo tanto do fenômeno das igrejas inclusivas quanto do fazer religioso contemporâneo. Com entrevistas de amplo espectro, dentre homens gays, mulheres lésbicas, homens e mulheres transexuais, aqui o recorte tem ênfase nas narrativas ofertadas por lideranças masculinas e gays, embora os materiais reflitam pedagogias do sexo e da vida íntima que se estendem e incidem sobre populações LGBTQIA+ de um modo geral. Consideramos, oportunamente, a possibilidade de construir análises futuras nas quais se possa cotejar discursos e experiências de mulheres lésbicas, pessoas transexuais, entre outras orientações sexuais e identidades de gênero. Por ora, a ênfase concorre para ideais e modelos e não a experiência pessoal das desses sujeitos.

Tendo como mote reflexões que se tecem dentro de uma ampla perspectiva teórica que se debruça sobre a modernidade religiosa e a delimitação de sítios de pesquisa específicos, marcados espacial e temporalmente, primeiro apresentamos a reflexão que orienta o recorte de análise das pastorais sexuais. Em seguida, serão discutidas as formas pelas quais se desenvolvem, em um dado campo religioso LGBTQIA+, e as formas de produzir, regular e gerenciar condutas, comportamentos e identidades no que tange ao sexo e ao gênero, sugerindo a existência de experiências específicas que enlaçam cuidado pastoral e pedagogias do sujeito, religião e direitos, moralidades e política. Os materiais foram produzidos em diferentes contextos de pesquisa dos/as autores/as, envolvendo fontes documentais, trabalho de campo e coleta de entrevistas, com lideranças e participantes de igrejas evangélicas inclusivas e focando em áreas metropolitanas das regiões sudeste e nordeste do país.

Reflexões preliminares acerca das pastorais sexuais

Não é novidade que sexo e gênero são objetos de formas de regulação e controle da ciência, das instituições religiosas, do ordenamento jurídico, constituindo relações de saber e poder (Weeks, 2002; Foucault, 2014FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: a vontade de saber. São Paulo, Paz e Terra, 2014. ; Butler, 2015BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2015. ). Contudo, a inovação proposta está em aprimorar a análise de como, em contextos contemporâneos, se aprofundam os nexos entre essas dimensões de maneira a instituir novos modelos de produção dos sujeitos e de suas centralidades, mas também respectivas zonas de margens. Conforme se desenrolam lutas sociais contemporâneas em face das lutas feministas e LGBTQIA+, essas configurações se alteram em novos jogos de aparição e ocultamento, envolvendo a atuação de novos sujeitos de direitos e reivindicações por proteção social. É nesse contexto que surgem igrejas evangélicas inclusivas como importantes atuantes da cena do ativismo LGBTQIA+ e que possibilitam tecer relações entre sexualidade, tradições religiosas e política. Diante deste cenário complexo e multifacetado que envolve as vivências dos sujeitos LGBTQIA+ em contextos religiosos específicos, é imprescindível pensar os papéis desempenhados pela liderança pastoral em processos de mediação, escuta e, até mesmo, na produção de pedagogias e potenciais processos de subjetivação, em relações afetivas dos sujeitos consigo e com os/as outros/as.

Partindo das discussões de Michel Foucault (2004FOUCAULT, Michel. Sexualidade e poder. In: FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade e política. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2004, pp.56-76. ; 2014; 2020) sobre o cuidado pastoral, é possível compreender como o exercício da confissão permitiu, nas sociedades ocidentais fortemente marcadas pela tradição judaico-cristã, a produção discursiva de uma verdade sobre o sexo, na medida em que são estabelecidas tecnologias que criam uma verdade sobre si. Tais tecnologias biopolíticas – ou seja, formas de controle e gestão da vida – em muito extrapolam o campo religioso, de modo a produzir novas dinâmicas de saber-poder, assim como de controle das populações. Ainda assim, o papel do cristianismo é pioneiro neste processo de interiorização de uma verdade por meio do exame dos mais profundos desejos da carne, de falar sobre si e, por conseguinte, dos processos de subjetivação. Para Foucault (2004FOUCAULT, Michel. Sexualidade e poder. In: FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade e política. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2004, pp.56-76.: 71), “[...] a técnica de interiorização, a técnica de tomada de consciência, a técnica do despertar de si sobre si mesmo em relação às suas fraquezas, ao seu corpo, à sua sexualidade, à sua carne, foi a contribuição essencial do cristianismo à história da sexualidade”.

Os discursos e práticas religiosas são, portanto, constituintes de um processo que produz a sexualidade como dispositivo histórico de poder ( Foucault, 2014FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: a vontade de saber. São Paulo, Paz e Terra, 2014. ) e que atua, primordialmente, por meio do estabelecimento de uma verdade sobre o sexo que é corroborada por processos de normalização de determinadas práticas e formas de ser em detrimento de outras. Aprofundando e complexificando aspectos desenvolvidos por Foucault, Butler (2015)BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2015. empreende a noção de uma matriz heterossexual de poder , na qual tecnologias de gênero e sexualidade produzem campos de inteligibilidade dentro de um determinado contexto sociocultural. Essa matriz, que cria discursos e legitima práticas, está centrada em uma noção de decorrência entre o sexo biológico, a performance de gênero e o desejo sexual heterossexualizado, corroborando esquemas regulatórios normativos acerca de sexo/gênero ao mesmo tempo em que estigmatiza sujeitos divergentes, como é o caso de pessoas LGBTQIA+. Os discursos religiosos, nesse sentido, são parte componente de um dispositivo que, articulando noções de gênero e sexualidade, estabelecem zonas de legitimidade e ilegitimidade no campo dos aparecimentos ( Butler, 2018BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2018. ). Especificamente no Brasil, Natividade e Oliveira (2009)NATIVIDADE, Marcelo; OLIVEIRA, Leandro de. Sexualidades ameaçadoras: religião e homofobia(s) em discursos evangélicos conservadores. Sexualidad, salud y sociedad – Revista latino-americana, n. 2, 2009, pp.121-161. identificam que este dispositivo da sexualidade atua mediante o estabelecimento de sexualidades ameaçadoras , no qual discursos religiosos são veiculadores de construções narrativas que associam a homossexualidade à epidemia do HIV/Aids e, por conseguinte, à morte iminente, ao passo em que começam a oferecer terapias de reversão e cura gay . Para os autores, tais posicionamentos se tratam de “tecnologias de constituição do self voltadas para uma supressão da diversidade sexual nas esferas do gênero e da orientação sexual” e de “uma estratégia política higienista, que não atinge os sujeitos diretamente com a ameaça da morte, mas obstrui e antagoniza formas de exercício da vida consideradas indesejáveis” ( Natividade; Oliveira, 2009NATIVIDADE, Marcelo; OLIVEIRA, Leandro de. Sexualidades ameaçadoras: religião e homofobia(s) em discursos evangélicos conservadores. Sexualidad, salud y sociedad – Revista latino-americana, n. 2, 2009, pp.121-161.: 130).

Mais recentemente, no entanto, é possível observar o surgimento e proliferação de comunidades religiosas cristãs que promovem novas significações sobre as identidades LGBTQIA+. Referimo-nos às chamadas igrejas inclusivas , formadas a partir das demandas de pessoas LGBTQIA+ frequentemente expulsas de suas comunidades religiosas de origem. O crescimento deste fenômeno a partir dos anos 2000 se reflete, inclusive, na quantidade de pesquisas desenvolvidas sobre essas igrejas. Pesquisas como as de Dias (2022)DIAS, Tainah B. Um ‘lugar para ser’: reconstruções identitárias de pessoas LGBTQIA+ cristãs nas Igrejas da Comunidade Metropolitana. Tese (Doutorado em Ciências da Religião), PPGCR/UMESP, São Bernardo do Campo, 2022. , Freire (2019)FREIRE, Ana Ester Pádua. Armários queimados: igreja afirmativa das diferenças e subversão da precariedade. Tese (Doutorado em Ciências da Religião), Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019. , Bertolino Junior (2018), Silva (2016)SILVA, Aramis Luis. Uma igreja em marcha: Relato etnográfico da participação da ICM na 20ª Parada do Orgulho LGBT de São Paulo. Ponto Urbe, n. 29, São Paulo, 2016, s/n [https://journals.openedition.org/pontourbe/3314 – acesso em: 07 out 2020]. DOI: doi.org/10.4000/pontourbe.3314
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, Oliveira (2015)OLIVEIRA, Vilmar Pereira de. Narrativas de jovens gays cristãos: experiências em igrejas inclusivas. Dissertação (Mestrado em Psicologia), Pontifícia Universidade Católica de Minas Geras, Belo Horizonte, 2015. , Maranhão Filho (2016MARANHÃO FILHO, Eduardo Meinberg de Albuquerque. Teologia queer e cristrans: transições teológicas na Igreja da Comunidade Metropolitana (ICM). Mandrágora, v. 22, n. 2, São Bernardo do Campo, 2016, pp.149-193 [https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/MA/article/view/7090/5545 – acesso em 22 out. 2020]. DOI: 10.15603/2176-0985/mandragora.v22n2p149-193
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; 2016), Natividade e Oliveira (2013)NATIVIDADE, Marcelo; OLIVEIRA, Leandro de. As novas guerras sexuais: diferença, poder religioso e identidades LGBT no Brasil. Rio de Janeiro, Garamond, 2013. , Weiss de Jesus (2012)JESUS, Fátima Weiss de. Unindo a cruz e o arco-íris: vivência religiosa, homossexualidades e trânsitos de gênero na Igreja da Comunidade Metropolitana de São Paulo. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, 2012. , Natividade (2008NATIVIDADE, Marcelo. Deus me aceita como eu sou? Disputas sobre o significado da homossexualidade entre evangélicos no Brasil. Tese (Doutorado em Sociologia e Antropologia), PPGSA/IFCS, Rio de Janeiro, 2008. ; 2010) e outras demonstram não só o crescente interesse pela temática, mas também elucidam novas perspectivas dentro dos cristianismos.4 4 Ainda que outras empreitadas religiosas LGBTQIA+ já existissem no Brasil desde a década de 1990, vale salientar que é a partir dos anos 2000 que as chamadas igrejas inclusivas encontram terreno fértil para sua proliferação enquanto comunidades religiosas autônomas. Antes deste período, algumas tentativas de fundação de comunidades religiosas LGBTQIA+ já tinham sido realizadas em solo brasileiro – como grupos emergentes ligados às ICMs –, mas os grupos majoritariamente ainda se reuniam em outros espaços e não se autodenominavam igrejas . Facchini (2005) , por exemplo, rememora a existência de celebrações religiosas no interior do Corsa, grupo de militância pelos direitos LGBTQIA+ com atuação de destaque na cidade de São Paulo na década de 1990. Ainda assim, reiteramos que somente nos anos 2000 elas se constituíram em movimentos coletivos de busca de tomada do poder religioso pelas pessoas LGBTQIA+. Vimos com tais movimentações, a emergência de teologias e filosofias específicas, representativas, de abordagens do texto bíblico por um olhar gay e lésbico e, posteriormente, LGBTQIA+ em sentido mais amplo. Das iniciativas isoladas (algumas, inclusive de pastores heterossexuais) e dos movimentos embrionários, se passou à institucionalização de uma nova vertente religiosa com a chegada da Igreja da Comunidade Metropolitana no Brasil ( Natividade, 2008 ), inclusive, com algumas aparições mais recentes, apesar de poucas, de catolicismos inclusivos. É importante realçar que a pluralização de pesquisas sobre tal temática acaba por delinear a configuração de um campo de estudos específico que conecta diversidade sexual, cristianismos e direitos sexuais, e assinala que a clássica relação entre homossexualidade e religiões afro-brasileiras é datada, sendo o espírito do tempo a necessária reflexão sobre o modo como as instituições religiosas respondem às demandas dos movimentos sociais e o surgimento de novos sujeitos de direitos.

Tendo em vista este campo fértil para reflexões sobre religiões e sexualidades no Brasil, é parte de nosso intuito contribuir com as pesquisas que se debruçam sobre essas temáticas, suscitando novas questões e aprofundando discussões já existentes. Na junção de dados coletados pelos pesquisadores, serão analisadas tecnologias e pedagogias do sujeito e seus impactos na construção da subjetividade de membros dessas comunidades. Compreende-se aqui a atuação de tais agentes religiosos como implicadas em contemporâneos dispositivos da sexualidade, na medida em que pastores e outras lideranças se convertem em especialistas, detentores de saberes sobre sexo/gênero, produtores de literatura, manuais, testemunhos, preleções, hermenêuticas, dentre outros recursos que ensejam pedagogias e tecnologias do self no manejo e gerenciamento de certas políticas de identidade que articulam tanto religião como sexualidade.

De início, podemos ressaltar que, em algumas congregações mais afeitas a um ethos religioso protestante histórico, como as ICMs,5 5 As Igrejas da Comunidade Metropolitana fazem parte da Fraternidade Universal das Igrejas da Comunidade Metropolitana (FUICM), a organização religiosa que centraliza os preceitos teológico-pastorais desta denominação no mundo. Criada em 1968 por iniciativa do Reverendo Troy Perry, a denominação chega ao Brasil no ano de 2004, no Rio de Janeiro, mas se firma, de fato, no ano de 2006, muito embora tentativas precedentes de criar uma ICM no Brasil já tivessem ocorrido desde o final da década de 1990. o vínculo amoroso comporta significações mais flexíveis e plurais, derivadas de práticas de atuação teológico-pastorais que dialogam com a chamada teologia queer ( Althaus-Reid, 2000ALTHAUS-REID, Marcella. Indecent Theology: Theological Perversions in Sex, Gender and Politics. London, Routledge, 2000. ; 2003; Althaus-Reid; Isherwood, 2007ALTHAUS-REID, Marcella; ISHERWOOD, Lisa. Thinking Theology and Queer Theory. Feminist Theology, v. 15, n. 3, 2007, pp.302-314 [https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/0966735006076168?journalCode=ftha - acesso em: 07 out. 2020]. DOI: 10.1177/0966735006076168
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; Musskopf, 2008; Tonstad, 2018TONSTAD, Linn Marie. Queer Theology: Beyond Apologetics. Eugene, Cascade, 2018 [e-book Kindle]. ) e que (re)significam preceitos teológicos acerca da atividade sexual, assim como das relações afetivas. Esse tipo de construção discursiva sobre o corpo, o sexo e a afetividade produz deslocamentos nas noções de pecado , pois concebe a atividade sexual como parte integrante da espiritualidade, configurando uma moralidade na qual o sexo é positivamente entendido como sagrado e não delimitado ao campo dos relacionamentos estáveis e monogâmicos. Entretanto, nas congregações que aderem a um ethos pentecostalizado, pode haver afinidades a concepções cosmológicas hegemônicas vigentes, como a teologia da batalha espiritual , a luta entre o bem e o mal, a prevalência da defesa irrestrita da monogamia, a ideia da indissolubilidade do vínculo, a obrigação de casar como forma de santificação e aplainamento dos desejos carnais dispersores da atenção para as coisas do Senhor, etc. Esse chamado pentecostalismo inclusivo ( Natividade, 2008NATIVIDADE, Marcelo. Deus me aceita como eu sou? Disputas sobre o significado da homossexualidade entre evangélicos no Brasil. Tese (Doutorado em Sociologia e Antropologia), PPGSA/IFCS, Rio de Janeiro, 2008. ) pode expressar uma perspectiva religiosa conservadora, herdeira de concepções de corpo, sexo e carne como negativos, corruptores da alma e do espírito, evidenciado no apego à noção de pecado que culmina, por vezes, numa formulação local de pecado sexual. A compreensão de duas tendências no campo inclusivo, uma mais afeita à abertura e à visão laica do sexo e do corpo, e outra mais reguladora, pode ser depreendida, também, da análise de nossos dados de pesquisa, na medida em que nos ajudam a delinear distintas formas de regulação do sexo.

Evidentemente, compreendemos que esse campo em específico não pode ser tratado nos termos dicotômicos de ethos conservadores ou tradicionalistas e outros representantes de narrativas progressistas ou libertárias. Parece-nos, contudo, que denominações específicas podem conferir ênfases discursivas relacionadas às vivências pregressas dos fiéis, exemplificando os movimentos do religioso no mundo contemporâneo. Sendo assim, discursos conservadores e outros libertários ou progressistas podem conviver dentro de uma mesma congregação ou comunidade religiosa. Contudo, olhar para as formas de regulação do sexo apresenta rendimento para a elucidação de modos de construções discursivas em contexto, que combinam elementos, signos, valores e ideias aparentemente contraditórios, mas que exemplificam as formas de invenção do religioso na atualidade, enlaçando distintos saberes e poderes. Sendo assim, apesar dos rótulos, inclusive, auto aplicados, que se valem das categorias conservador x libertário , o que está em foco aqui não são essas alcunhas, mas sim as formas de fazer religião que implicam em mecanismos de produção dos sujeitos e das condutas por meio de tecnologias pastorais que se espera aqui elucidar. Consideramos, então, que tais tecnologias podem combinar, inclusive, moralidades religiosas, certos discursos pretensamente científicos, linguagens do ordenamento jurídico e ideias de outras esferas sociais. É nesse sentido que nos parece desafiador e instigante a reflexão sobre como em igrejas inclusivas pentecostais se conectam linguagens e categorias do campo do direito às práticas religiosas da batalha espiritual, delineando contornos bem específicos de vida cristã e da vida cristã LGBTQIA+.

Partindo dessa caracterização preliminar, discorreremos sobre percepções de casamento e do laço amoroso em diferentes narrativas produzidas nas igrejas inclusivas, assim como abordaremos um problema ainda pouco explorado: a questão dos arranjos conjugais e da violência íntima. O intuito é tecer reflexões que permitam compreender como as igrejas inclusivas lidam com essas temáticas, assim como esquadrinhar quais pedagogias são acionadas para sua inibição, bem como possíveis mecanismos de invisibilização desses conflitos.

Casamento e vida afetiva

A questão do casamento é fundamental para se pensar na ampliação de direitos da população LGBTQIA+ no Brasil. Como rememoramos nas reflexões introdutórias, no ano de 2011 o STF reconheceu as uniões homoafetivas como entidades familiares, a despeito da resistência e ativa oposição de segmentos religiosos conservadores que obstaculizaram a tramitação de Projetos de Lei sobre a matéria no legislativo, tendo sido o primeiro destes protocolado pela então deputada Marta Suplicy no ano de 1995 (PL nº 1151/1995). À época, a proposição versava a respeito de parceria civil registrada que propunha garantir aos casais entre pessoas do mesmo sexo direitos semelhantes àqueles adquiridos por casais heterossexuais, por meio da união estável. A inserção de tais propostas legislativas é reflexo de reivindicações que decorrem de uma tendência interna ao próprio movimento político, em direção ao que Luiz Mello (2005)MELLO, Luiz. Novas famílias: conjugalidade homossexual no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro, Garamond, 2005. caracteriza como familismo , que se dá sobretudo após a epidemia do HIV/Aids e ao processo de institucionalização do movimento na década de 1990.6 6 A pesquisa de Mello (2005) mapeia a existência de diferentes posicionamentos acerca da temática dentro do movimento, e que são reverberadas com mais força nos encontros nacionais de coletivos LGBTQIA+ que, durante a década de 1990, se reuniam anualmente ou a cada dois anos. Nesse processo, o autor destaca a existência de discursos que variam desde posicionamentos que colocam o casamento como direito que deve ser indiscriminadamente reconhecido, até críticas contundentes que tratam esta empreitada como resposta normalizadora, fruto de uma espécie de cooptação do potencial revolucionário do movimento. O autor enfatiza que, a despeito de críticas internas no próprio movimento, a noção de familismo parece ter se tornado central na luta pela ampliação dos direitos sexuais, na medida em que “um número expressivo de gays e lésbicas, num inédito movimento de afirmação de sua intrínseca condição humana, assumiu a linguagem do amor romântico para definir suas parcerias afetivo-sexuais e reivindicar, para elas, um estatuto familiar” ( Mello, 2005MELLO, Luiz. Novas famílias: conjugalidade homossexual no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro, Garamond, 2005.: 43). Desta forma, pode-se dizer que o movimento assume a linguagem dos direitos, reivindicando tratamento equivalente àquele dispensado às uniões heteroafetivas por parte de instituições jurídico-normativas que garantem acesso a direitos derivados da relação conjugal.

Tendo sido uma pauta recorrente do próprio movimento LGBTQIA+ não só no Brasil, como também nos Estados Unidos, em diversos países europeus e latino-americanos, a questão do reconhecimento das uniões afetivas se tornou uma pauta popularmente encampada pelas chamadas igrejas inclusivas. No Brasil, as ICMs protagonizaram a realização da primeira cerimônia coletiva de casamento de pessoas LGBTQIA+ mesmo antes da regulamentação advinda da decisão da suprema corte brasileira. Esse evento, realizado pela ICM São Paulo no ano de 2008, é relatado em detalhes por Fátima Weiss de Jesus (2012)JESUS, Fátima Weiss de. Unindo a cruz e o arco-íris: vivência religiosa, homossexualidades e trânsitos de gênero na Igreja da Comunidade Metropolitana de São Paulo. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, 2012. , demonstrando, também, forte articulação entre a igreja local paulistana e coletivos de militância política envolvidos na organização da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo.

Reivindicações relacionadas ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, agora chamado de casamento igualitário , são representativas de processos que envolvem mudanças de percepções e significados em torno de instituições como o casamento e a família nas sociedades contemporâneas. Este processo que passa a se centrar nas formas de afeto e não mais em laços consanguíneos é explicitado por Weston (1991)WESTON, Kath. Families We Choose: Lesbians, Gays, Kinship. New York, Columbia University Press, 1991. pela noção de família por escolha , tornando-se nucleica para pensar como diferentes concepções baseadas nas relações afetivas e de afinidade têm reverberado no campo da produção dos significados sobre casamento e família, assim como afetam formas de conceber a intimidade ( Giddens, 1993GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. São Paulo, Ed. Universidade Estadual Paulista, 1993. ). Ao tecer reflexões sobre novas configurações que se estabelecem, mesmo a despeito de formas de reconhecimento público, Weeks, Heaphy e Donovan (2001) enfatizam que elas são resultado de transformações na esfera da intimidade e da primazia de noções como liberdade individual e possibilidades de compromisso .

Dessa forma, a questão do laço afetivo parece estar no cerne da construção de formas de conjugalidade e vida íntima e estes elementos são perceptíveis, também, nas formas pelas quais as igrejas inclusivas se apropriam disso.7 7 O próprio consumo da ideia de homoafetividade nestas comunidades é indicativo do valor desse laço nesse campo, na medida em que se fala muito mais de afeto e amor do que do sexo em si, sobretudo no nível das falas públicas. Esse deslocamento do sexo para o afeto é, em parte, resultante de reivindicações do movimento LGBTQIA+ em articulações e disputas no campo político, nas quais se destacam as discussões recentes concernentes ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. Como efeito, tais percepções reverberam amplamente no campo evangélico inclusivo, no qual é possível perceber a articulação entre discursos religiosos e argumentos laicos para falar da legitimidade das relações entre pessoas do mesmo sexo. Essas percepções, entretanto, adquirem significados distintos, e até mesmo divergentes, que se relacionam às moralidades sexuais específicas de cada denominação.

Que seja infinito enquanto dure: conflitos e a “benção” da separação

As ICMs se destacam no campo religioso inclusivo por produzirem novas moralidades relativas ao uso do sexo e dos prazeres, na qual a corrente separação entre carne e santidade, puro e impuro, sagrado e profano parecem não compor seu universo simbólico da mesma forma em que ocorre no pentecostalismo inclusivo . A percepção de casamento relatada por uma das lideranças da região sudeste é reflexo desse posicionamento. A despeito da realização de celebrações de casamento nas ICMs, a noção de que o casamento é uma instituição, um construto social e que, muitas vezes, permite a reprodução de relações de poder hierárquicas e desiguais, foram elementos recorrentemente acionados durante as conversas. O rito é tomado como algo que é “afetivamente importante” e como a “celebração de um direito” em uma sociedade que se organiza com base nas relações conjugais, entretanto, chama a atenção a liderança ressaltar que, em muitas ocasiões, “separações são mais abençoadas que casamentos”. Ela relata dizer aos casais que o casamento não celebra uma promessa, mas sim um desejo e uma verdade do tempo presente e que não precisam perdurar por toda a vida. Não há qualquer elemento acionado no sentido de perceber uniões entre duas pessoas como um vínculo indissolúvel. Ao contrário, o investimento pastoral se dá no sentido de fazer a mediação, a facilitação de uma possível conjugalidade conflituosa, na qual a interrupção do relacionamento é colocada sobre a mesa como uma possibilidade para o casal.

Esse não apego a uma moralidade sexual que sacraliza o casamento como perpétuo e indissolúvel fica evidente nos relatos. Entretanto, a mesma liderança ressalta que isso não deve ser confundido com aquilo que chama de “liquidez das relações”, caracterizado como o descarte do que não atende aos desejos próprios. A construção de relações, embora não indissolúvel, é tratada como um exercício mútuo de investimento na maturidade das pessoas envolvidas, em um processo de construção do respeito e da alteridade. No aconselhamento pastoral há um investimento de forma a permitir que um dos sujeitos da relação, ou que o próprio casal, perceba a não necessidade de reprodução de modelos de relacionamento, partindo da premissa de que toda e qualquer relação conjugal é “única e irrepetível”.

Outros aspectos que possibilitam pensar acerca de concepções de conjugalidade nas ICMs são documentos institucionais produzidos pela FUICM que versam sobre formas de conduta desejáveis para suas lideranças. Interessa, para nossos propósitos, um documento intitulado Manual do Clero , que discorre, dentre outras coisas, sobre a necessária afinidade entre a liderança ministerial ordenada e os princípios da denominação, sobretudo, o enfrentamento ativo às injustiças sociais e a integralização entre sexualidade e espiritualidade. No que concerne à responsabilidade sexual, o Manual do Clero enfatiza a atuação “contrária ao negativismo sexual” ( Metropolitan Community Churches, 2014METROPOLITAN COMMUNITY CHURCHES. Manual do Clero – Protocolo Iberoamericano. Office of Formation and Leadership Development, 2014, s/n [https://ofld.mccchurch.org/clergy/forms-manuals/ – acesso em 07 out 2020].
https://ofld.mccchurch.org/clergy/forms-...
: 8) por parte das comunidades religiosas. A ética sexual da denominação segue os seguintes preceitos:

Afirmamos que o sexo é um dom de Deus. O valor divino do sexo inclui, mas não está limitado a prazer, procriação, comunicações íntimas, graça, e amor. O dom de Deus da sexualidade deve ser uma responsabilidade abraçada por todas as pessoas, sejam casadas ou solteiras, leigos ou clérigos. Uma ética sexual completa e responsável abraça a beleza dos relacionamentos entre pessoas de muitas orientações sexuais ou identidades de gênero ( Metropolitan Community Churches, 2014METROPOLITAN COMMUNITY CHURCHES. Manual do Clero – Protocolo Iberoamericano. Office of Formation and Leadership Development, 2014, s/n [https://ofld.mccchurch.org/clergy/forms-manuals/ – acesso em 07 out 2020].
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: 8).

Pautada na concepção de que a atividade sexual é divina, a FUICM estabelece ainda, como modelos de má conduta sexual, direcionados às lideranças pastorais: 1) contato sexual com menores; 2) abuso e violência sexual; 3) assédio sexual de qualquer forma; 4) uso da posição privilegiada para exploração sexual; 5) envolvimento sexual com alguém com quem tenha relação de aconselhamento pastoral ou supervisão ( Metropolitan Community Churches, 2014METROPOLITAN COMMUNITY CHURCHES. Manual do Clero – Protocolo Iberoamericano. Office of Formation and Leadership Development, 2014, s/n [https://ofld.mccchurch.org/clergy/forms-manuals/ – acesso em 07 out 2020].
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). Neste sentido, destacamos que aquilo que essa denominação compreende como má conduta sexual parece estar delimitado a condutas ilegais do ponto de vista das leis seculares e das relações de caráter violento e abusivo. A ausência de quaisquer proposições que exerçam regulações da sexualidade de clérigos/as fora deste escopo permite, em nossa percepção, colocar as igrejas ligadas à FUICM como uma dissidência no campo religioso cristão inclusivo.

A postura de não vigilância das ICMs do Brasil com relação às atividades sexuais desempenhadas por seus membros merece destaque. Durante o campo, um dos pastores de uma comunidade no sudeste brasileiro relatou um episódio que nos é elucidativo. Certa vez, procurado por um casal que chegara à comunidade recentemente, foi interpelado por estes, que expressaram a necessidade de falar com o pastor sobre um “assunto muito sério”. Na sessão de aconselhamento pastoral, o casal relata ao pastor ter visto um dos diáconos saindo de um cinemão (locais de sociabilidade gay conhecidos por atividades de pegação, ou seja, lugar de sexo estritamente anônimo e sem compromisso) localizado na região central da cidade. Diante da denúncia , o pastor relata ter dito ao casal que realmente estavam diante de um pecado muito sério. E acrescenta: “estamos diante do pecado da fofoca ”. Esse episódio, ao que parece, demonstra aspectos referentes ao desenvolvimento de práticas pastorais dissidentes daquelas encontradas por Natividade em comunidades inclusivas pentecostais. Ao que parece, o policiamento dos corpos e do sexo não faz parte dos aspectos centrais das pastorais sexuais das ICMs. O deslocamento do pecado passa da atividade sexual em si para a questão das relações violentas e não consensuais, assim como outros comportamentos – como a fofoca . A vigilância e o policiamento também são, portanto, expressões de pecado, pedagogicamente desencorajadas por esta liderança pastoral.

Casamento blindado: vida cristã e conjugalidade

Na circulação por redes pentecostais, é evidente o modo como o vínculo entre os LGBTQIA+ que frequentam essas denominações está impregnado de concepções do campo evangélico hegemônico. Em campo, foram recebidos folhetos, apostilas e outros materiais que reportavam a referenciais evangélicos mais amplos e consumidos de livrarias, editoras, sites institucionais, portais e comunicação gospel. Categorias como “namoro blindado”, “casamento blindado”, “namoro santo” e “esperar no Senhor” circulavam em conversas e em materiais normativos que orientam condutas em algumas igrejas, amparados muitas vezes em ideias institucionais expressas em canais hegemônicos. Tais noções se conjugam aos ideais locais dos laços homoafetivos, constituindo formas de namoro, casamento e vínculos LGBTQIA+ cristãos, entrelaçando o laico e o religioso.

Foi notável o esforço de lideranças pela manutenção do vínculo dos relacionamentos ditos estáveis, por meio de encontros de casais , aconselhamentos aos casais ou a um dos parceiros, orações pelo casal, conselhos para oficializar a união e para a formação de projetos parentais por meio, principalmente, da adoção de crianças. Pastores, intercessores e obreiros podem ser convidados – ou se colocarem em prontidão – para administrar conflitos íntimos entre parceiros homoafetivos na igreja.

A ideia de que o vínculo, ainda que não seja indestrutível, pode ser tratado como tal, é evidente no investimento para preservar o laço, visto que os casais parecem constituir a vitrine da imagem pública em algumas igrejas. Nesse sentido, o conselho para o rompimento de uma relação pode ser a última saída para um conflito. Antes, porém, são sugeridas conversas, sessões de aconselhamento, orações, intercessões (quebra de influência espiritual), retiros, batismos e serviços diversos na casa do Senhor.

O tema da vida cristã perpassa tais pastorais sexuais, mas está embebido também em valores laicos da igualdade e liberdade. A exemplo, pode-se aconselhar a uma melhor distribuição das tarefas no lar, a maior responsabilidade na criação dos filhos, evitar atitudes e comportamentos machistas, maior ou menor convivência com as famílias de origem, mais equilíbrio entre lazer e trabalho e incentivo para autonomia financeira dos parceiros. A recomendação para o afastamento das amizades externas à congregação e aos locais de sociabilidade não religiosa é incidente, tidos como ocasiões de tentação, afastamento das coisas de Deus, prazeres mundanos, prejuízo à vida do casal.

O acesso a narrativas reverberadas nas ICMs e em congregações inclusivas pentecostais, seja por parte das lideranças religiosas como pela vivência e aspirações da membresia, revela que concepções inter-relacionadas de casamento, família, parentalidades e conjugalidades são constantemente acionadas em diferentes códigos que também se relacionam. A linguagem do campo dos direitos – reconhecimento da união e casamento como direitos – vai de encontro às aspirações encontradas no campo das vivências afetivas dos sujeitos LGBTQIA+. Diante de situações de exclusão, abandono e violência vivenciados no seio familiar consanguíneo por diversas pessoas durante o processo de coming out8 8 Coming out equivale à expressão sair do armário , comumente utilizada no Brasil para caracterizar o processo de explicitação pública da identidade sexual ou de gênero de pessoas LGBTQIA+. , as bandeiras de casamento e família parecem funcionar como suporte sociológico que permite aos sujeitos uma vida mais vivível ( Butler, 2019BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2019. ), em contraposição há impedimentos e obstáculos encontrados nas famílias de origem devido a vivências discordantes no campo das expectativas de gênero e sexualidade que promovem o rompimento de laços e o ingresso em situações de incerteza e vulnerabilidade. Neste emaranhado complexo de relações, novas noções de casamento e de família são estabelecidas, nas quais perduram a percepção da importância do afeto no estabelecimento de vínculos conjugais, assim como noções de companheirismo e parceria, realçando configurações que explicitam a família como algo que se faz, que se constrói ativamente, a partir das experiências e vivências afetivas. Não foram poucas as referências a casos em que a rejeição e expulsão da família eram resolvidas no ato de mudar-se para a casa do parceiro ou parceira ou, ainda, passar a morar com amigos da igreja, evidenciando o caráter de rede de apoio desses grupos para assumir a homossexualidade e se aceitar . Tais vínculos, assim, não podem ser vistos meramente como arranjos e experiência de obediência às normas e moralidades religiosas, mas evidenciam complexas dimensões socioantropológicas que são desnudadas na construção etnográfica.

Vejamos, a seguir, se e como se desenrolam tais relações diante de vivências implicadas em relatos de violência e conflitos entre pessoas LGBTQIA+ e seus parceiros afetivo-sexuais.

Uma pedagogia da não violência

No tópico precedente, falamos acerca de percepções correntes sobre casamento e vida afetiva em comunidades religiosas formadas por pessoas LGBTQIA+ de diferentes matrizes religiosas, enfatizando divergências discursivas entre o chamado pentecostalismo inclusivo e as ICMs. No caminho percorrido até aqui, ficou evidente como as relações afetivas estão no cerne das vivências locais, muito embora diferentes noções de afetividade, casamento e família sejam empregadas, a depender da denominação religiosa abordada. Entretanto, um elemento ainda incipientemente abordado em pesquisas a respeito das conjugalidades LGBTQIA+ diz respeito à questão da violência conjugal. Mais escassas ainda são pesquisas que abordam esta temática no campo religioso LGBTQIA+. Algumas questões aqui podem ser suscitadas de antemão: quão igualitárias são as relações homotransafetivas? Existem demandas relacionadas à violência nessas comunidades religiosas, especificamente no âmbito do aconselhamento pastoral? De que forma essas demandas são relatadas às lideranças religiosas? Como as lideranças lidam com a questão da violência íntima? Quais procedimentos pedagógicos relacionados a gênero e sexualidade podem ser pensados a partir dos discursos pastorais? Existe uma pedagogia da não-violência no trato de questões que envolvem vivências violentas no campo da intimidade?

Pesquisas em diferentes contextos têm destacado a existência de um ethos mais igualitário e democrático nas relações homoafetivas, devido à ausência de uma estrutura institucional que regulamente essas relações, o que possibilita que as narrativas se construam menos baseadas em preceitos institucionais e mais na ideia de amor e compromisso mútuo ( Yip, 1997YIP, Andrew K. T. Gay Male Christian Couples: Life Stories. Westport: Praeger, 1997. ; Weeks, Heaphy, Donovan, 2001). São enfatizadas, também, as constantes negociações realizadas na vida conjugal que permitem às relações homoafetivas um maior potencial igualitário por conta da menor incidência dos padrões altamente generificados que regulam a vida conjugal heterossexual. A despeito das possibilidades mais igualitárias, Weeks, Heaphy e Donovan (2001) reforçam a existência inevitável de fluxos de poder nas relações não-heterossexuais. Tais fluxos, pensamos, também reverberam em nossos achados etnográficos.

Amores saudáveis e batalha espiritual

A partir dos dados obtidos em campo, pensamos ser possível afirmar que, no cotidiano, estes fluxos perpassam negociações e formas de gerir as vivências afetivo-sexuais, muitas vezes com o auxílio pastoral. No caso do pentecostalismo inclusivo, subjacente ao apreço pelo laço amoroso e a valorização inequívoca da monogamia, o trabalho da liderança vai além e pode privilegiar concepções igualitárias do vínculo que incluem a elaboração e difusão de uma certa pedagogia da não violência.

As formas de violência íntima apresentam contornos plurais e vale a pena destacar como isso aparece em alguns discursos pastorais. O relato de um pastor pentecostal da região sudeste apresentou uma tipificação: abuso financeiro, violência física, violência emocional e psicológica. Existe algum tipo de apoio pastoral para situações de crise, conflito e até de violência consumada. Foram acessadas narrativas pastorais sobre a recorrência de dramas desse tipo em alguns sítios de pesquisa e a caracterização de alguns de seus aspectos sociológicos. Aparecem queixas de mulheres travestis e transexuais relacionadas a tensões com seus parceiros sexuais, geralmente mais jovens do que elas e sem formação escolar ou profissão. Levar os parceiros para morar com elas instaura impasses relacionados ao crescente controle sobre suas finanças e vida material. Tais tensionamentos podem redundar em violência física, já que elas lançam mão, segundo relato pastoral, de suas pregressas vivências masculinas para responder à violência física dos parceiros com semelhante agressão corporal. Assim, o pastor diz que já se viu apoiando mulheres transexuais em tais conflitos, em casos em que os dois parceiros encontravam-se fisicamente feridos, mas relata a dificuldade delas em lidar com as denúncias efetivas da violência sofrida. Semelhante aos casos de mulheres heterossexuais vítimas da violência doméstica, mulheres travestis e transgênero obtêm incentivo para encaminhamentos a redes protetivas, mas desistem e vivenciam sucessivas crises, em que juras de amor antecedem novos episódios de violência. Não há estímulo à continuidade de relacionamentos baseados na exploração financeira e na perpetuação de dominação como a que se percebia entre essas mulheres e seus parceiros.

O cuidado pastoral implica, muitas vezes, a reflexão sobre a “dependência emocional” e a necessidade de rompimento das relações. Categorias como “feridas emocionais”, “traumas”, “rejeições”, “relacionamentos viciados” por oposição ao “amor próprio”, “autocuidado”, “necessidade de terapia” e “apoio emocional e psicológico” indicam um repertório psicologizado, centrado no apelo a reflexividade e autonomia individual para o julgamento pessoal das interações afetivo-sexuais e à decisão de permanecer ou romper. Nas entrevistas com lideranças, poucas categorias cosmológicas foram empregadas na avaliação desse tipo de violência. Também não foram acionados valores que reforçassem a percepção de um vínculo afetivo indestrutível quando se envolve temas de violência e agressão.

A respeito da violência íntima entre homens gays, parece ser maior a recorrência entre casais intergeracionais – ligações entre um homem maduro, com estabilidade financeira, e homens mais jovens, atuando em profissões subalternas, com pouco estudo ou estudantes em cursos profissionalizantes ou universitários. Novamente o pastor conta ter ajudado casos em que chamava atenção situações de humilhação, agressões mútuas, julgamentos estéticos e xingamentos como “bicha”, “passivo”, “afeminado”, “feio”, “gordo”, “velho”, “negro”, “burro”, “sem estudo”, etc., em manifestações de gordofobia, racismo, avaliações de gênero e julgamentos relacionados ao status social inferior – na profissão ou na formação escolar. Relatou o auxílio espiritual e afetivo que prestava nesses casos que chegavam à igreja. Para ele, a relação entre um “novinho” e um “maduro” é complexa, porque envolve um jogo de interesses mútuos: de um lado, um jovem sem apoio familiar para se assumir, às vezes ameaçado de expulsão de casa e da igreja de origem, sem trabalho e autonomia; de outro, um homem com estabilidade financeira, casa própria e conforto patrimonial. As negociações se dão em torno dos capitais da virilidade e juventude, de um lado, e conforto e estabilidade material, de outro. Os jogos românticos e sexuais se tecem em uma complexa trama que se desemboca em dinâmicas de sedução, fantasias, satisfação sexual, suporte emocional e material e, por vezes, modelos de relacionamentos cristãos.

O pastor acompanhou, também, o caso de um homem gay mais velho, na faixa dos 40 anos, e seu parceiro sexual, de 19 anos. Narrou, com pesar, as tensões entre os dois. A extrema dependência material do jovem era acompanhada de ciúme excessivo, da suposta “dominação”, por parte do parceiro mais velho, que fazia exigências relacionadas ao abandono da convivência com amigos, o controle de senhas e acesso às redes sociais como uma forma de evitar possíveis traições. Situações de agressões mútuas são, muitas vezes, acionadas em eventos cotidianos da divisão social do trabalho em casa, em cobranças mútuas de responsabilidades, mas, também, encontram-se implicadas em qualquer fato cotidiano que possa acionar a encenação das diferenças entre o casal. O caso compartilhado pela liderança evidenciava os marcadores de geração, gênero, raça e até mesmo a condição sorológica, visto que um deles era soropositivo. Diante de quaisquer tensões cotidianas, por mais banais que fossem, se lançava mão de ofensas, humilhações e agressões verbais. Impressionava ao pastor que um homem maduro, de boa formação profissional e estabilidade, colocasse, à frente de seu amor próprio, o desejo sexual e o medo da solidão. Na opinião do pastor, tratava-se de um “relacionamento vencido”, uma vez que combinava a dominação do mais jovem, a fragilidade emocional do mais velho e situações de graves ofensas. Nesse caso, o mais velho era desprezado pelo parceiro jovem, tendo a condição sorológica sempre acionada como sinal de sua inferioridade pelo companheiro, evidência de que “não encontraria parceiro que o aceitasse” e sendo, ainda, acusado de ser “velho” e “negro”. O parceiro mais jovem ainda dizia que seus ex-parceiros eram brancos e ele, como pessoa jovem, branca, de olhos azuis e soronegativa, encontraria outra relação com muita facilidade. O pastor se compadecia do racismo e demais julgamentos estéticos, incluindo o preconceito e a agressão em razão de sua soropositividade. O trabalho pastoral, contudo, implicava a construção da autoestima, indicando livros de autoajuda, reflexões teológicas que ajudassem o parceiro mais velho a enxergar a dominação, a opressão e a sua dependência emocional. O pastor enfatizava que uma relação boa, plena, saudável e aprovada por Deus envolveria, obrigatoriamente, companheirismo, ausência de violência e agressões, um clima de amizade e construção, mas, também, autoestima e valorização de si. Então, se evidencia certa percepção igualitária do vínculo, na qual componentes de dominação, desigualdades e violência são tomadas como um problema a ser resolvido e que demandam intervenção, ajuda e tecnologias de cuidado de modo a produzir um casamento, ou namoro, saudável .

No entanto, vale destacar que, no pentecostalismo inclusivo, existe também a concepção de que influências espirituais demoníacas estão relacionadas aos comportamentos morais que afetam os ideais de casamento e as relações estáveis. A influência espiritual é quem, possivelmente, produz relacionamentos abusivos, rejeições familiares, discriminação na família e todo tipo de violência e intolerância. Esse aspecto não será aprofundado aqui, mas cabe destacar que essas tensões também podem ser mediadas, curadas e serem objeto de alteração por meio de orações, jejuns, subidas ao monte, correntes de libertação e intercessão (trabalho espiritual feito pelos intercessores, os agentes com habilidade ritual para a neutralização de influências espirituais malignas).

Rupturas benditas: exame de si e ressignificação dos laços

Os dados de campo coletados nas ICMs permitem apreender dinâmicas e percepções de como esta denominação lida com a questão das relações violentas e de uma conjugalidade conflituosa. Um dos elementos que mais se destacaram na conversa com uma liderança pastoral foi a primazia do indivíduo em detrimento do casal. Seu relato enfatiza que a teologia da FUICM, no que concerne às práticas de acolhimento e aconselhamento, investe na autonomia dos sujeitos, processo similar ao descrito em relação ao pentecostalismo inclusivo quando defrontado com situações de violência conjugal. Expressões correntes como a frase “até que a morte nos separe”, repetidamente acionada em ritos matrimoniais, são entendidas pela liderança não como uma benção, mas como uma “maldição terrível”, uma espécie de danação a um destino imutável em uma vida possivelmente infeliz que perdura do momento do casamento até a morte.

A liderança conta que o ciúme é queixa recorrente em situações de aconselhamento pastoral com pessoas que estão envolvidas em uma relação afetiva, chegando, por vezes, ao ápice da violência física. Na conversa, fica evidente a percepção de que o ciúme é uma forma de reproduzir padrões de relacionamento classificados como “heteronormativos” pela liderança. Esses padrões, que reproduzem formas de violência, são entendidos como uma “maldição” que deve ser quebrada “em nome de Deus”, com o propósito de construir relações mais saudáveis e maduras.

O relato dado por um pastor da região sudeste refere-se a um casal de homens gays, em que um deles procurou o aconselhamento pastoral, se queixando de infidelidade do parceiro, que havia gerado uma briga em que a violência física havia sido uma das consequências. A questão da necessidade de controle do outro ficou evidente quando um dos cônjuges levou uma pasta com várias conversas íntimas impressas de seu cônjuge com outras pessoas, o que, por sua vez, revela que o ciúme o havia feito invadir as redes sociais do parceiro. No processo de diversas semanas de aconselhamento, os investimentos da liderança foram no sentido de fazer perceber que, a despeito da traição, furtar uma senha, instalar programas de vigia e invadir redes sociais sem autorização também são formas de traição, infidelidade e violência para com o companheiro. Nesse processo, a liderança também relata que, em um determinado período, passou a aconselhar o casal – e não somente aquele que o havia procurado primeiro – e que eles decidiram permanecer juntos e repensar as formas como controlavam um ao outro. De acordo com o pastor, o que os fez permanecer na relação foi saber que podiam se separar com “a benção” do pastor, caso assim decidissem.

No processo de aconselhamento, a liderança entende que a figura pastoral atua como um agente de escuta que, por sua vez, permite um espaço seguro para que a pessoa também escute a si mesma, de modo a refletir sobre sua vida, sobre quem ela é, em um “exercício de mergulho nos seus valores, na sua relação consigo mesma, e a partir dessa relação afetiva com a sua própria vida, com a sua própria identidade, construir [...] uma relação afetiva consigo mesma”. A centralidade dada pela ICM no poder de decisão do indivíduo a respeito de sua própria vida e suas experiências é premente em um processo de escuta ativa que permite a reflexão/gestão sobre si e intervenções pastorais no sentido de priorizar e reforçar uma relação saudável consigo mesmo. Se rememoramos as reflexões de Foucault (ANO) sobre as pastorais sexuais, estamos diante de um processo de construção de uma percepção e de uma verdade sobre si que também permite colocar em discurso formas de se relacionar consigo e com outras pessoas, sobretudo no aspecto da conjugalidade e da vivência íntima.

Os dilemas narrados exemplificam o saber pastoral acerca das violências e discriminações sofridas pelas pessoas LGBTQIA+ em múltiplas dimensões, mas com destaque para a violência íntima. Se o tema da violência e discriminação é apresentado no púlpito como uma reflexão sobre a tradição religiosa e as exclusões sofridas na sociedade, a violência íntima e conjugal, sofrida no âmbito dos relacionamentos afetivos, também é um problema pastoral, demandando uma pedagogia da não violência que mescla, em sua formulação, elementos da religião, da linguagem dos direitos e o acionamento de certas tendências e saberes do campo psi na concepção de um modelo de relacionamento saudável. Evidencia-se, aqui, a construção de complexos enlaces entre políticas de subjetividade, religião e saberes locais.

Considerações finais

O artigo se debruçou sobre as pastorais sexuais nas chamadas igrejas inclusivas, procurando tecer reflexões que levam em conta percepções correntes sobre conjugalidades, vida afetiva e violência íntima em comunidades religiosas de diferentes orientações teológico-doutrinárias, considerando, fundamentalmente, as ICMs e igrejas pentecostais. À guisa de conclusão, no entanto, pensamos ser pertinente retomar alguns argumentos e inserir outros no sentido de pensar como o aconselhamento pastoral, objeto privilegiado de análise ao longo do texto, também é lócus privilegiado da produção de processos de subjetivação. Para compreender como essa dinâmica se produz rememoramos as análises de Foucault (ANO) acerca do poder pastoral, realizadas no início deste texto. Ora, se as especificidades do aconselhamento pastoral são capazes de produzir uma verdade sobre si, também é por meio de técnicas específicas do espaço do aconselhamento que determinadas pedagogias de gênero e sexualidade são empreendidas. Evidentemente, este artigo, pelos limites de seu escopo, focalizou as perspectivas de lideranças religiosas dos sítios de pesquisa, exigindo aprofundamentos futuros para compreender como o aconselhamento pastoral, de fato, reverbera nas vivências dos membros das igrejas inclusivas. Ainda assim, pensamos ser premente considerar que tais esforços no sentido de produção sociorreligiosa de uma pedagogia da não violência no que concerne às relações conjugais são potencialmente produtoras de novas formas de vida e conduta no campo das afetividades LGBTQIA+.

A importância das narrativas sobre violência evidencia como um discurso sobre a discriminação que pessoas LGBTQIA+ sofrem na vida cotidiana está no centro do culto, mas convertido em anseio de transformação da sociedade, no sentido do respeito a formas plurais de existência e de expressões da sexualidade e do gênero. As práticas discursivas do cuidado pastoral se desdobram em tecnologias de si que objetivam a passagem da vítima ao status de sujeito, cidadão e indivíduo cristão. Um esforço por relatar a si mesmo evidencia que a violência significa ( Butler, 2017BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte, Autêntica, 2017. ), sendo mecanismo produtor de subjetividades, de narrativas de diferença, de formas de apresentação reflexivas de si, conscientes da diversidade e de anseios por reparação das injustiças e iniquidades.

Os relatos acentuam a passagem de passado de violência a um presente de sujeito liberto, consciente, que acessa direitos e políticas antes impensados. As pastorais sexuais, aqui abordadas, operam por meio de mecanismos plurais, no entrelaçamento de ideias laicas e religiosas, em afinidades às demandas dos coletivos LGBTQIA+ em maior ou menor proporção.

As reflexões feitas indicam que o ambiente das congregações inclusivas opera como rede de proteção e amparo para a resolução de conflitos íntimos, familiares, conjugais e sexuais que extrapolam o cultivo e o reforço de modelos ideais. Verificou-se, também, as invenções locais no que concerne às percepções do vínculo amoroso, incluindo o diálogo com concepções hegemônicas da monogamia, casamento e afinidades eletivas às reivindicações pelo casamento igualitário e pela ampliação dos modelos familiares, de modo a incluir as parentalidades LGBTQIA+ e reforçar modelos familistas ( Mello, 2005MELLO, Luiz. Novas famílias: conjugalidade homossexual no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro, Garamond, 2005. ). Confirmou-se a configuração de narrativas afeitas a posições mais ativistas e outras mais impregnadas por modelos conservadores no que tange à moralidade sexual. Foram iluminadas distintas experiências institucionais acerca dos saberes pastorais para a solução de problemas da vida cotidiana sobre sexo, gênero e intimidade, e foi confirmada a hipótese de que, a despeito das contrariedades e dissonâncias entre comunidades inclusivas, existe a convergência para uma pedagogia do igualitarismo e do direito à não violência.

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  • No decorrer deste texto, optamos pela utilização do termo “inclusiva” como forma de caracterizar comunidades religiosas cristãs marcadas pela prevalência de lideranças e membros LGBTQIA+. O termo, entretanto, é controverso. Assim como há comunidades que preferem caracterizar a si mesmas somente como “igrejas como quaisquer outras”, encontramos também comunidades que optam por termos como, por exemplo, “igreja afirmativa” ou “igreja LGBTQIA+”. Assim, a opção pelo termo “inclusiva” se dá tanto pelo fato de que foi o termo que se convencionou utilizar para se referir a essas comunidades na literatura acadêmica, quanto como opção metodológica para facilitação da leitura. A opção pela sigla LGBTQIA+ (Lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, queer, intersexuais, assexuais e +), apresenta-se como uma das opções políticas mais recentes dos coletivos nessa luta por reconhecimento e direitos. A propalada “sopa de letrinhas” ( Facchini, 2005FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas: movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro, Garamond, 2005. ), incorpora identidades coletivas, como as pessoas intersexuais, deixando em aberto outras possibilidades de inclusão.
  • 1
    Não faz parte dos limites do escopo deste artigo tecer reflexões aprofundadas a respeito das relações entre secularismos e esferas ditas seculares e o campo religioso. No entanto, é pertinente considerar que não fazemos uso dessas categorias de forma a produzir dicotomias que refletem uma percepção de esferas que se opõem. Compreendemos a complexidade das relações entre religiões e outras esferas da vida social como mutuamente perpassadas e reafirmamos a impossibilidade de estabelecer quaisquer limites que as diferenciem. Ainda assim, ressaltamos, em diálogo com uma literatura específica, que determinados movimentos característicos da modernidade religiosa derivam de um processo de secularização entendido, aqui, como diferenciação e autonomia relativa de esferas sociais fundamentais, inclusive, no que tange ao pluralismo religioso e à garantia de direitos de minorias sexuais e de gênero. Para uma discussão aprofundada a respeito desta temática, ver, i.e.: Casanova (1994CASANOVA, José. Public Religions in the Modern World. Chicago, The University of Chicago Press, 1994. ; 2007); Mariz (2000); Berger (2017)BERGER, Peter L. Os múltiplos altares da modernidade: rumo a um paradigma da religião numa época pluralista. Petrópolis, Vozes, 2017. ; Guerriero (2004)GUERRIERO, Silas. A visibilidade das novas religiões no Brasil. In: SOUZA, Beatriz Muniz; MARTINO, Luís Mauro Martino (org.). Sociologia da religião e mudança social: católicos, protestantes e novos movimentos religiosos no Brasil. São Paulo, Paulus, 2004, pp.157-173. ; Pierucci (2004)PIERUCCI, Antônio Flávio. Secularização e declínio do catolicismo. In: SOUZA, Beatriz Muniz; MARTINO, Luís Mauro Martino (org.). Sociologia da Religião e Mudança Social: católicos, protestantes e novos movimentos religiosos no Brasil. São Paulo, Paulus, 2004, pp.13-21. ; Taylor (2007)TAYLOR, Charles. A Secular Age. Cambridge, Massachussets, The Belknap Press of Harvard University Press, 2007. ; Hervieu-Lèger (2008).
  • 2
    Pesquisa ampla desenvolvida com a participação de uma ampla rede de pesquisadores, incluindo sítios de investigação, abordagens, objetos muito plurais em torno da interação entre ethos religiosos e civis na contemporaneidade, abrigada no Cebrap no Processo 2015/02497-5.
  • 3
    A referida pesquisa foi realizada com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES/MEC) por meio de dois programas: 1) Programa de Suporte à Pós-Graduação IES Comunitárias (PROSUC) junto à Universidade Metodista de São Paulo; e 2) Programa de Doutorado-Sanduíche no Exterior (PDSE) junto à University of Wales Trinity Saint David.
  • 4
    Ainda que outras empreitadas religiosas LGBTQIA+ já existissem no Brasil desde a década de 1990, vale salientar que é a partir dos anos 2000 que as chamadas igrejas inclusivas encontram terreno fértil para sua proliferação enquanto comunidades religiosas autônomas. Antes deste período, algumas tentativas de fundação de comunidades religiosas LGBTQIA+ já tinham sido realizadas em solo brasileiro – como grupos emergentes ligados às ICMs –, mas os grupos majoritariamente ainda se reuniam em outros espaços e não se autodenominavam igrejas . Facchini (2005)FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas: movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro, Garamond, 2005. , por exemplo, rememora a existência de celebrações religiosas no interior do Corsa, grupo de militância pelos direitos LGBTQIA+ com atuação de destaque na cidade de São Paulo na década de 1990. Ainda assim, reiteramos que somente nos anos 2000 elas se constituíram em movimentos coletivos de busca de tomada do poder religioso pelas pessoas LGBTQIA+. Vimos com tais movimentações, a emergência de teologias e filosofias específicas, representativas, de abordagens do texto bíblico por um olhar gay e lésbico e, posteriormente, LGBTQIA+ em sentido mais amplo. Das iniciativas isoladas (algumas, inclusive de pastores heterossexuais) e dos movimentos embrionários, se passou à institucionalização de uma nova vertente religiosa com a chegada da Igreja da Comunidade Metropolitana no Brasil ( Natividade, 2008NATIVIDADE, Marcelo. Deus me aceita como eu sou? Disputas sobre o significado da homossexualidade entre evangélicos no Brasil. Tese (Doutorado em Sociologia e Antropologia), PPGSA/IFCS, Rio de Janeiro, 2008. ), inclusive, com algumas aparições mais recentes, apesar de poucas, de catolicismos inclusivos.
  • 5
    As Igrejas da Comunidade Metropolitana fazem parte da Fraternidade Universal das Igrejas da Comunidade Metropolitana (FUICM), a organização religiosa que centraliza os preceitos teológico-pastorais desta denominação no mundo. Criada em 1968 por iniciativa do Reverendo Troy Perry, a denominação chega ao Brasil no ano de 2004, no Rio de Janeiro, mas se firma, de fato, no ano de 2006, muito embora tentativas precedentes de criar uma ICM no Brasil já tivessem ocorrido desde o final da década de 1990.
  • 6
    A pesquisa de Mello (2005)MELLO, Luiz. Novas famílias: conjugalidade homossexual no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro, Garamond, 2005. mapeia a existência de diferentes posicionamentos acerca da temática dentro do movimento, e que são reverberadas com mais força nos encontros nacionais de coletivos LGBTQIA+ que, durante a década de 1990, se reuniam anualmente ou a cada dois anos. Nesse processo, o autor destaca a existência de discursos que variam desde posicionamentos que colocam o casamento como direito que deve ser indiscriminadamente reconhecido, até críticas contundentes que tratam esta empreitada como resposta normalizadora, fruto de uma espécie de cooptação do potencial revolucionário do movimento.
  • 7
    O próprio consumo da ideia de homoafetividade nestas comunidades é indicativo do valor desse laço nesse campo, na medida em que se fala muito mais de afeto e amor do que do sexo em si, sobretudo no nível das falas públicas.
  • 8
    Coming out equivale à expressão sair do armário , comumente utilizada no Brasil para caracterizar o processo de explicitação pública da identidade sexual ou de gênero de pessoas LGBTQIA+.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Nov 2022

Histórico

  • Recebido
    17 Out 2020
  • Aceito
    31 Maio 2022
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