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A importância do reconhecimento social na construção da identidade sexual de mulheres não heterossexuais no sul da Bahia

Resumo

O objetivo deste artigo é compreender o processo de construção da identidade sexual de 4 mulheres não heterossexuais, universitárias, residentes nas cidades de Ilhéus e Itabuna – BA. Este estudo de caso toma como ponto de partida a participação delas em movimentos estudantis em uma universidade pública da região e busca problematizar o reconhecimento social obtido por meio de relações de amizades construídas por meio desses movimentos, demonstrando a importância do reconhecimento na construção da autoconfiança das entrevistadas.

Gênero; Identidade; Heteronormatividade; Reconhecimento social; Visibilidade lésbica

Abstract

The objective of this study is to understand the construction of the sexual identity of four non-heterosexual, university women living in the cities of Ilhéus and Itabuna - BA. This case study began with women who participate in student movements at a public university in the region and sought to problematize the social recognition obtained through friendships established through the movements, showing the importance of recognition in the construction of these women’s self-confidence.

Gender; Identity; Heteronormativity; Social recognition; Lesbian visibility

Introdução

A escolha por pesquisar a construção da identidade sexual1 1 Se compreende por identidade sexual a maneira como uma pessoa compreende a si mesma em termos de por qual gênero se é sexualmente e romanticamente atraída. de mulheres não-heterossexuais2 2 Como as entrevistadas expressaram preferir não definir uma identidade sexual exclusivista para si mesmas, optou-se, neste caso, pela definição negativa como a melhor maneira de classificá-las: respeitando o desejo de não serem enquadradas em uma classificação estrita, as entrevistadas serão identificadas pelo que elas não são, a saber, heterossexuais. tem o intuito de cooperar com o enriquecimento das investigações científicas sobre mulheres não-heterossexuais, lésbicas e bissexuais, contribuindo também para a visibilidade política desses sujeitos. A homossexualidade masculina é um tema significativo nas ciências sociais brasileiras desde o final da década de 1970, enquanto que os estudos sobre as demais identidades que compõem o coletivo LGBTI+3 3 A sigla LGBTI+ usada neste artigo utiliza a terminologia mais atualizada sobre a população lésbica, gay, bissexual, travesti, transexual e intersexual, tendo o símbolo + sido acrescentado à sigla para abranger outras orientações sexuais, identidades e expressões de gênero não representadas nela. Essa terminologia segue o modelo do Manual de Comunicação LGBTI+ feito pela Aliança Nacional LGBTI, o Grupo Dignidade e a rede GayLatino em parceria com outras importantes entidades nacionais e internacionais de defesa dos direitos LGBTI+ [ https://www.grupodignidade.org.br/wp-content/uploads/2018/05/manual-comunicacao-LGBTI.pdf – acesso em: 14 fev. 2020]. , como as identidades lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, são mais recentes: os estudos sobre mulheres lésbicas começam a surgir na virada dos anos de 1980 para 1990, enquanto as pesquisas sobre transexualidades e travestilidades emergem na virada do milênio. Apesar de terem crescido nos anos 2000, ainda é pouco representativo o número de estudos científicos realizados sobre a homossexualidade feminina se comparado aos avanços que os estudos de gêneros já realizaram no que tange as investigações em torno dos homossexuais masculinos, por exemplo ( Simões; Carrara, 2014SIMÕES, Júlio Assis; CARRARA, Sérgio. O campo de estudos socioantropológicos sobre diversidade sexual e de gênero no Brasil: ensaio sobre sujeitos, temas e abordagens. cadernos pagu (42), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2014, pp.75-98 [http://www.scielo.br/pdf/cpa/n42/0104-8333-cpa-42-00075.pdf - acesso em: 17 fev. 2018].
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). As mulheres lésbicas (e mais ainda as bissexuais) permanecem sub-representadas, tanto politicamente, no seio do próprio movimento LGBTI+, quanto nos estudos feministas brasileiros, que ainda focam no estudo de mulheres brancas e heterossexuais4 4 Para mais informações sobre a invisibilidade da homossexualidade feminina no Brasil, consultar mott (1987) , Fry e Macrae (1991) , Bila (2009) , Simões e Facchini (2009) , Simões e Carrara (2014) . .

No caso da região sul baiana, especificamente nas cidades de Ilhéus e Itabuna, região marcada por uma história e por uma cultura extremamente ricas, onde residiam as entrevistadas no momento da pesquisa, não foi possível encontrar, durante a realização da coleta de dados para esta pesquisa, nenhum estudo científico que investigasse qualquer aspecto relacionado à homossexualidade e/ou bissexualidade feminina na região, de forma que esta pesquisa desempenha um papel importante no sentido de dar visibilidade política às mulheres não-heterossexuais que vivem e se relacionam nessa região, adicionando aos estudos de gênero o conhecimento de sua realidade social e de suas visões de mundo.

As análises apresentadas aqui são uma versão adaptada, em forma de artigo, de uma pesquisa de doutorado intitulada Identidade Sexual de mulheres que se relacionam com mulheres em Ilhéus e Itabuna-BA ( Freitas, 2013FREITAS, Lorena Rodrigues Tavares de. Identidade Sexual de mulheres que se relacionam com mulheres em Ilhéus e Itabuna- BA. Tese (Doutorado em Sociologia Política), Universidade Estadual do Norte Fluminense, Campos dos Goytacazes. 2013. ), que consistiu em um estudo de caso cuja coleta de dados foi feita por meio de entrevistas em profundidade, semiestruturadas, realizadas entre janeiro de 2012 e janeiro de 2013 com doze mulheres não-heterossexuais, entre 18 e 41 anos, que tiveram acesso ao ensino superior e que residiam nas cidades de Ilhéus e Itabuna-BA5 5 Contudo, em alguns casos, as informações colhidas por meio das entrevistas foram enriquecidas com minhas próprias observações e visitas a alguns ambientes frequentados pelas entrevistadas, além de informações provenientes de pessoas conhecidas das entrevistadas. . As demonstrações públicas de afeto6 6 Consideram-se demonstrações públicas de afeto expressões de carinho entre os casais, tanto aquelas mais fraternais como segurar a mão, acariciar os cabelos e rosto, abraçar e dar beijos no rosto como aquelas que, no Brasil, denotam claramente relacionamentos amorosos/sexuais como beijos na boca, sejam eles rápidos ou um pouco mais demorados. com as suas companheiras foi o critério escolhido para compreender a maneira como as entrevistadas encaravam a sua identidade sexual. Isso porque, por meio da forma como lidavam com demonstrações públicas de afeto, era possível compreender a maneira como compreendiam a própria identidade sexual, os sentimentos positivos ou negativos que cultivavam sobre esse aspecto do eu, o que permitiu revelar a força do padrão de poder heteronormativo incorporado, ou seja, o quanto suas percepções sobre si estavam pautadas ou não em concepções heteronormativas e a quais possibilidades de questionamentos a esse padrão elas tinham acesso.

As discussões desenvolvidas neste artigo se concentram especificamente na análise de quatro das doze entrevistas que compõem a pesquisa de tese mencionada acima. O objetivo aqui é demonstrar que a incorporação de concepções valorativas favoráveis à diversidade sexual por parte das quatro mulheres entrevistadas não dependeu apenas do acesso cognitivo a essas concepções veiculadas, por exemplo, por meios televisivos ou pelas redes sociais, mas também dependeu, nos casos analisados, do reconhecimento social ( Honneth, 2003HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo, Ed. 34, 2003. ) obtido por meio da experiência amorosa produzida por relações sociais significativas, como são as relações familiares, as relações de amizades e relações amorosas românticas.

O principal critério utilizado para a seleção das quatro entrevistadas analisadas foi o acesso à educação de nível superior e a participação em movimentos estudantis na universidade. Parte-se do pressuposto de que o acesso ao capital cultural7 7 O capital cultural pode se apresentar em 3 modalidades: objetivado (propriedade de objetos culturais valorizados), incorporado (se refere à cultura considerada legítima que é incorporada pelos indivíduos e se expressa por meio de hábitos alimentares, posturas corporais, consumo de bens culturais, comportamentos, gostos, habilidades linguísticas e conhecimentos) e institucionalizado (se refere à posse de certificados escolares que tendem a ser utilizados como atestados de certa formação cultural) ( Nogueira; Nogueira, 2004: 41). que a Universidade propicia pode proporcionar àqueles que passam por ela a possibilidade de se apresentar como potencialmente mais críticos e questionadores, sendo capazes de acolher uma maior diversidade de pontos de vista e visões de mundo, além de uma possibilidade de apresentar discursos, valores e comportamentos que expressam um questionamento possivelmente maior às visões de mundo mais tradicionais, possibilitando maior complexidade à pesquisa. As entrevistadas eram estudantes de graduação da mesma universidade pública no momento da realização da pesquisa e foram indicadas à pesquisadora por terem alguma participação em movimentos estudantis da universidade.

Essas mulheres estão vivenciando algo inédito para as gerações anteriores e raro para a maioria das pessoas da sua própria geração nas cidades onde vivem: a possibilidade de acessar e incorporar contradiscursos que ofereçam outros saberes sobre as suas sexualidades8 8 A sexualidade é compreendida aqui não apenas como o dispositivo foucaultiano (1993), mas também, tal como defendem Simões e Carrara (2014: 78), como um habitus erótico: “conjunto de princípios estruturantes de práticas e discursos, mas também de sensações, desejos, atrações, emoções, representações, que definem, sob diferentes circunstâncias, as fronteiras entre o que é sexualmente desejável e o que é indesejável, o que é respeitado e o que é vergonhoso”. , garantindo-lhes, consequentemente, a possibilidade de vivenciá-las de forma mais livre de preconceitos. A raridade que caracteriza a forma com que essas entrevistadas experenciam seu processo de construção identitária tem relação não apenas com a emergência histórica recente do movimento LGBTI+9 9 Para saber mais sobre a história do movimento LGBTI+ no Brasil, ver Simões e Facchini (2009) , Facchini e França (2009) ; Pereira (2016) . enquanto sujeito político e com os discursos críticos que ele promove, mas também com a realidade econômica e cultural da região sul-baiana onde vivem.

A emergência dos novos movimentos sociais em torno da política da identidade (movimentos negro, feminista e, principalmente, neste trabalho, o movimento LGBTI+) na modernidade tardia10 10 Utilizo o conceito de modernidade tardia desenvolvido por Anthony Giddens (1991) para caracterizar o período atual de desenvolvimento do capitalismo, marcado pela globalização, a flexibilização do capital e do trabalho, o desenvolvimento das comunicações digitais e da informática, o enfraquecimento do Estado de bem-estar social e o surgimento dos novos movimentos sociais e das políticas de identidade. Para esse autor, esses fenômenos não ultrapassam as características fundamentais que caracterizam a época moderna, mas complexificam os fenômenos que identificam e singularizam a modernidade. Giddens (2002) promove uma análise a respeito das transformações radicais que a modernidade tardia cria na natureza da vida social cotidiana, afetando os aspectos mais pessoais da nossa existência. Ele demonstra a crescente interconexão entre as influências globalizantes da modernidade tardia e a construção da identidade dos indivíduos modernos. Os movimentos sociais em torno da política da identidade possuem um papel fundamental nas arenas públicas e jurídicas dos Estados, trazendo para o debate público questões substantivas centradas nos direitos da pessoa, que por sua vez se ligam às dimensões existenciais da autoidentidade enquanto tal. Com a globalização, ninguém escapa das transformações provocadas pela modernidade, e mesmo as pessoas que vivem em ambientes mais tradicionais são afetadas por algum aspecto das instituições modernas. conecta as transformações econômicas, políticas e socioculturais trazidas por essa última com a realidade das entrevistadas desta pesquisa. Desde a década de 1960, os movimentos feministas e LGBTI+ atuam politicamente no ocidente moderno lutando por direitos civis igualitários e construindo contradiscursos, resistências aos valores patriarcais tradicionais e à heteronormatividade. Por outro lado, a desigualdade social, fruto da seletividade do processo de modernização brasileiro ( Souza, 2000SOUZA, Jessé. A Modernização Seletiva: uma reinterpretação do dilema brasileiro. Brasília, EDUNB, 2000. ; 2003), relega mais de um terço da população do país à situação de pobreza econômica e cultural, impedindo a toda essa parcela da população o acesso à infraestrutura, a serviços básicos de saúde, educação, segurança e ao direito a uma alimentação satisfatória para a manutenção de uma vida digna. Essa desigualdade social é bastante expressiva nas cidades de Ilhéus e Itabuna, afetando uma enorme parcela da população que, não tendo acesso adequado à cidadania, tem menos possibilidade de construir um olhar mais crítico às relações de poder produtoras das desigualdades sociais, inclusive às que se referem à dominação sexual e de gênero.

O sul da Bahia é considerado uma região bastante tradicional, onde os valores do coronelismo e do patriarcalismo rural11 11 Para Gilberto Freyre (1981) , o patriarcalismo rural se apresenta como a base na qual se organiza toda a sociedade brasileira do período colonial, não havendo poder político, econômico, religioso ou valores morais que impusessem barreiras aos mandos do senhor rural, que levava, por isso, seu domínio pessoal às últimas consequências. O patriarcalismo é entendido como instituição total, na medida em que a família patriarcal estende seus domínios tanto para a esfera econômica – por meio da agricultura de monocultura fundada na escravidão – quanto na vida política e cultural, na qual o senhor de terras é a autoridade absoluta sobre seus domínios. Quando instituições modernas começam a se cristalizar no mundo colonial, o patriarca vê seu poder ser pouco a pouco desmembrado, refreado por instituições e valores modernos que acabam se tornando dominantes na sociedade. Apesar de esse processo de decadência do patriarcalismo rural brasileiro sofrer seu primeiro questionamento nesse momento, ele ainda se mantém bastante vigoroso durante muito tempo, mas vai sendo aos poucos sobrepujado por valores e instituições modernas, sendo o Coronelismo, como afirma Victor Nunes Real (1975), muito mais a expressão de sua fraqueza do que a sua força. O Coronelismo se constitui, segundo ele, em um compromisso, uma troca de favores entre um poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terra. Contudo, mesmo dominado atualmente no âmbito econômico e político, já que a lógica impessoal de mercado e estado capitalista já estão consolidados no país desde a segunda década do século XX, alguns valores patriarcais encontram na Igreja, na Família, no Estado e na Escola, instituições que ainda os põe em prática. Segundo Bourdieu (2007) , a divisão sexual (dominação masculina) é a base do mundo social nas sociedades ocidentais, variando sua força em cada uma delas, sendo bastante operante na sociedade brasileira ainda hoje, graças a influência história deixada pela patriarcalismo rural nas instituições mencionadas. mais fortemente se instalaram. Mesmo com as dificuldades econômicas e sociais enfrentadas pelos municípios de Ilhéus e Itabuna12 12 De acordo com dados do IBGE, a Incidência da Pobreza do município de Itabuna no ano de 2003 foi de 42,83%, e o IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) do ano de 2010 foi de 0,712. Já em Ilhéus, a Incidência da Pobreza no município no ano de 2003 foi 47,34%, e o IDM no ano 2010 era de 0,690. Fonte: IBGE [ https://cidades.ibge.gov.br/ - acesso em: 06 fev. 2020]. , sua realidade desenha os contornos de um processo de modernização seletiva que aponta para a presença consolidada de instituições do mundo moderno, como mercado competitivo, urbanização, diversas instituições estatais (inclusive duas universidades públicas) e até mesmo a presença histórica recente de organizações LGBTI+ atuantes politicamente13 13 Em 2001 e 2002, surgiram os primeiros grupos LGBTI+ organizados politicamente na região sul baiana. A primeira parada de Orgulho LBGTI+ da região ocorreu em Itabuna no ano de 2002. Para mais informações sobre o movimento LGBTI+ no sul da Bahia, ver Oliveira Júnior (2013). .

Passaremos agora a analisar a construção da heteronormatividade e como ela influiu na construção das identidades das entrevistadas dessa pesquisa para, no tópico seguinte, compreender como o reconhecimento social se apresentou como um fator determinante no fortalecimento da autocompreensão positiva da identidade sexual das mulheres aqui analisadas.

Heteronormatividade e identidade

Teóricos e teóricas feministas e pós-estruturalistas, como Michel Foucault e Judith Butler, mostram como as identidades sexuais e de gênero nas sociedades modernas ocidentais são construídas e fixadas por padrões de poder que se fundamentam na definição da heterossexualidade como norma. Tais autores e autoras promovem uma crítica ao suposto caráter “natural”, fixo e imutável das identidades sexuais e de gênero, buscando analisar de que forma elas são fixadas pelos mecanismos de poder. O conceito de heterossexualidade compulsória relaciona a ordem social com uma ordem sexual, tal como aponta Foucault (1993) a partir do conceito de dispositivo da sexualidade; a heterossexualidade compulsória é um padrão normativo que, ancorado e reproduzido por instituições, expressa expectativas e demandas sociais fundadas nas relações heterossexuais enquanto as únicas reconhecidas como “naturais” e legítimas. Ela define a normalidade dos corpos e dos sujeitos a partir do grau de coerência que estes mantêm entre sexo-gênero-prática sexual-desejo. Quanto maior o rompimento com essa cadeia, maior a possibilidade de rejeição e violência da sociedade contra esses sujeitos ( Butler, 2006BUTLER, Judith. Deshacer el género. Barcelona, Paidós, 2006. ; 2010).

Em 1991, Michael Warner cria o conceito de Heteronormatividade para designar uma alteração que, de acordo com Richard Miskolci, pode ser explicada da seguinte maneira:

Historicamente, a prescrição da heterossexualidade como modelo social pode ser dividida em dois períodos: um em que vigora a heterossexualidade compulsória pura e simples e outro em que adentramos no domínio da heteronormatividade. Entre o terço final do século XIX e meados do século seguinte, a homossexualidade foi inventada como patologia e crime e os saberes e práticas sociais normalizadores apelavam para medidas de internação, prisão e tratamento psiquiátrico dos homo-orientados. A partir da segunda metade do século XX, com a despatologização (1974) e descriminalização da homossexualidade, é visível o predomínio da heteronormatividade como marco de controle e normalização da vida de gays e lésbicas, não mais para que se “tornem heterossexuais”, mas com o objetivo de que vivam como eles ( Miskolci, 2009MISKOLCI, Richard. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da normalização. Dossiê Sociologias, ano 11, n. 21, Porto Alegre, jan./jun. 2009, pp.150-182 [http://www.scielo.br/pdf/soc/n21/08.pdf - acesso em: 17 fev. 2018].
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: 157).

Na heteronormatividade, todos os indivíduos e relações, inclusive as não-heterossexuais, devem seguir o modelo da heterossexualidade, considerado “natural” e legítimo. Isso significa que os não-heterossexuais são considerados aceitáveis desde que se identifiquem com a heterossexualidade como modelo – em outras palavras, que mantenham a relação causal entre “sexo” (genitália) e gênero, isto é, os homens devem se comportar de forma viril, máscula, e as mulheres devem ser “femininas”. Segundo Miskolci (2009)MISKOLCI, Richard. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da normalização. Dossiê Sociologias, ano 11, n. 21, Porto Alegre, jan./jun. 2009, pp.150-182 [http://www.scielo.br/pdf/soc/n21/08.pdf - acesso em: 17 fev. 2018].
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, esse modelo pressupõe a invisibilização da erotização não-heterossexual. Assim, compreendo que a heteronormatividade é um conceito que identifica um deslocamento no mecanismo de poder no sentido de não mais ser legítimo criminalizar e nem “curar” o homossexual por meio da força e da violência física. Esse deslocamento do poder é resultado de uma sofisticação nas relações de dominação. Ainda que essas, eventualmente, abram mão do uso da violência física, não perdem, porém, o seu poder simbólico de dominação e de produção compulsória da norma heterossexual nos corpos e nas mentes dos sujeitos. Neste artigo, adotarei o termo heteronormatividade por acreditar que esse seja mais adequado por identificar tal deslocamento no mecanismo de poder centrado na heterossexualidade como norma, que Butler está chamando de heterossexualidade compulsória.

Para Butler, o gênero “requiere e instituye su propio y distinto régimen regulador y disciplinador” ( Butler, 2006BUTLER, Judith. Deshacer el género. Barcelona, Paidós, 2006.: 68). Em outras palavras, o gênero é uma norma que opera dentro das práticas sociais a partir de um padrão de normalização. É a norma que garante a inteligibilidade social das ações dos sujeitos, é ela que, ao mesmo tempo que regula e disciplina o sujeito, assujeitando-o, permite que ele seja digno de reconhecimento na esfera do aparecimento ( Butler, 2018BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. 2 ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2018. ). Assim, o aparato regulador que dirige o gênero produz modos vividos de corporificação inteligíveis, reconhecíveis socialmente como humanos. Desse modo, o gênero passa a ser compreendido por Butler como uma “estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser.” (Butler, 2010:59).

Para ela, o gênero não expressa nenhuma essência ou um ideal objetivo ao qual se aspire, visto que ele não é um dado da realidade, algo fixo, estável ou dado previamente. Butler compreende as identidades de gênero como construções que não têm status ontológico separado dos vários atos que constituem sua realidade. Uma das questões centrais de seu trabalho é romper com a ideia de um ser ontológico que preexistiria às várias funções e papéis que ele assume socialmente, em outras palavras, um rompimento com a ideia de que existe uma substância portadora de uma capacidade universal de razão, moral ou linguagem antes de sua inserção social. É por isso que não podemos subordinar a noção de gênero à de identidade, visto que, como dito acima, não há “ser” por trás do fazer, do realizar e do tornar-se, não há identidade de gênero por trás das expressões de gênero: a identidade é performativamente constituída pelas próprias expressões tidas como seus resultados. Butler continua e aprofunda a frase célebre de Simone de Beauvoir (Beauvoir, 1967) de que ninguém nasce mulher, mas torna-se mulher: ninguém nasce de um gênero, mas nos tornamos gêneros feminino ou masculino graças a um processo de construção performativa que se baseia e, ao mesmo tempo, produz padrões culturais ideais do que seriam os gêneros feminino e masculino.

Contudo, ao mesmo tempo que o gênero é o mecanismo por meio do qual se produzem e se naturalizam as noções de feminino e masculino, ele é também o aparato que torna possível desnaturalizar e desconstruir essas noções ( Butler, 2006BUTLER, Judith. Deshacer el género. Barcelona, Paidós, 2006. ). Conforme vimos acima, a heteronormatividade é um mecanismo de poder regulador hierárquico e excludente que condena e pune grupos inteiros por não estarem de acordo com um conjunto de normas que humanizam apenas as vidas que se adequam aos seus critérios fundados no binarismo macho-homem x fêmea-mulher, por exemplo. Porém, como afirma Foucault, “lá onde há poder há resistência”, e essa nunca se encontra em posição de exterioridade em relação ao poder. As resistências “percorrem os próprios indivíduos, recortando-os e os remodelando” (Foucault, 1993:91) e possibilitam, no caso das entrevistadas dessa pesquisa, a ressignificação da norma heterossexual e, consequentemente, da sua própria identidade sexual.

Essa ressignificação é possível porque “en la medida en que las normas del género son reproducidas, éstas son invocadas y citadas por prácticas corporales que tienen también la capacidad de alterar las normas en el transcurso de su citación” ( Butler, 2006BUTLER, Judith. Deshacer el género. Barcelona, Paidós, 2006.: 83). Assim, aqueles corpos que não se enquadram nos critérios do que se reconhece como humano, porque possuem identidades sexuais ou de gêneros não-heteronormativas, podem viver experiências de desfazer os conceitos normativos restritivos e desumanizadores da vida sexual e de gênero de duas maneiras, uma boa e outra ruim ( Butler, 2006BUTLER, Judith. Deshacer el género. Barcelona, Paidós, 2006. ). No último caso, Butler afirma que uma concepção normativa de gênero pode “deshacer a la propia persona al sovacar sua capacidad de continuar habitando una vida llevadera” ( Butler, 2006BUTLER, Judith. Deshacer el género. Barcelona, Paidós, 2006.: 13), ameaçando a própria possibilidade de essa pessoa existir e persistir ( Butler, 2018BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. 2 ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2018. ). Entretanto, em outras ocasiões, a experiência de desfazer uma restrição normativa “ puede desmontar una concepción previa sobre el propio ser con el único fin de inaugurar una concepción relativamente nueva que tiene como objetivo lograr um mayor grado de habitabilidad” ( Butler, 2006BUTLER, Judith. Deshacer el género. Barcelona, Paidós, 2006.: 13).

Os quatro casos que iremos analisar a partir de agora se enquadram no que Butler aponta como uma maneira boa de desfazer os conceitos heteronormativos sobre as identidades sexuais não-heterossexuais, tornando possível que as entrevistadas experenciem sua sexualidade com mais liberdade e aceitação, mesmo vivendo em uma sociedade como a brasileira, fortemente constituída pela heteronormatividade14 14 As altas taxas de assassinatos de LGBTI+ no Brasil são um exemplo bem visível do poder da heteronormatividade em nosso país. Segundo a ONG Grupo Gay da Bahia (GGB), o ano de 2017 registrou 445 mortes de LGBTI+, o maior número de assassinatos desde o início das pesquisas realizadas pelo GGB, há 37 anos. Para mais informações, ver sítio eletrônico [ https://homofobiamata.wordpress.com/ - acesso em: 06 fev. 2020]. .

Veremos a seguir como essas duas forças opostas, a heteronormatividade e os contradiscursos que a questionam, trazidos principalmente pelo movimento LGBTI+, se materializam na vida das entrevistadas por meio da maneira como elas constroem as percepções sobre a sua identidade sexual. Já sabemos que as entrevistadas puderam, em alguma medida, desfazer os conceitos heteronormativos sobre as suas identidades sexuais não-heterossexuais. Contudo, como veremos a seguir, isso só foi possível devido a construção de relações afetivas que propiciaram às entrevistadas a aquisição de autoconfiança por meio da obtenção de reconhecimento social. Analisaremos, a partir de agora, como isso ocorreu.

O reconhecimento como possibilidade de resistência à heteronormatividade

As quatro mulheres entrevistadas, Rafaela, Júlia, Marina e Alice15 15 Para garantir a privacidade e o anonimato das entrevistadas, seus nomes reais foram substituídos por nomes fictícios. Pela mesma razão, os coletivos estudantis os quais as entrevistadas fizeram parte na universidade não foram identificados. Por esse motivo, todos eles, tanto os movimentos estudantis organizados em torno da política das identidades quanto os organizados por categoria profissional, sejam locais, regionais ou nacionais, foram chamados com o nome genérico de “Coletivo”. , são jovens brancas, de classe média, entre 19 e 24 anos, estudantes de uma universidade pública localizada na região sul da Bahia. No momento de realização das entrevistas, todas mantinham relacionamentos afetivos/sexuais duradouros ou ocasionais com mulheres. Das quatro entrevistadas, duas estavam em relacionamentos monogâmicos homossexuais, uma estava solteira e a outra mantinha duas relações abertas, uma com um homem, a outra com uma mulher.

A experiência universitária na região sul-baiana propiciou para elas, além da possibilidade de sair da casa dos pais e do controle direto da família, uma grande mudança nos seus valores e estilos de vida, principalmente no que tange ao questionamento das construções tradicionais sobre gênero e sexualidade. Contudo, essa transformação valorativa, longe de ser um processo automático por qual passam todos os que ingressam na universidade, não foi propiciada automaticamente pelo acesso em si à universidade, mas pelos vínculos afetivos construídos pela participação nos movimentos estudantis, pois o preconceito à diversidade religiosa, cultural, sexual e étnica ainda fazia parte do ethos da universidade pública em questão. Todas as entrevistadas fizeram parte por algum tempo de algum movimento estudantil da universidade, e muitos dos amigos e amigas com quem conviviam de forma íntima e frequente também faziam ou fizeram parte de algum movimento de representação estudantil local ou regional, sendo três das quatro entrevistadas membros dos primeiros movimentos feministas e LGBTI+ da universidade e/ou integrantes do primeiro grande movimento de representação da categoria estudantil local.

Rafaela: Fortaleceu... as meninas, a gente está muito fortalecida nesse sentido de não tolerar brincadeirinhas, de tudo que a gente ouve que incomoda a gente vai e fala, se a pessoa bota no face 16 16 Facebook. , a gente vai lá e bota machista, ridículo!”. Coisa que a gente ia olhar e falar “puxa vida” e não ia fazer nada, agora a gente se mostra o tempo todo, a gente fala, a gente não aceita isso, e é isso que mudou na vida da gente.

Marina: faz parte desse curto período mesmo no Coletivo, eu convivi com pessoas que tinham o discurso já preparado, entendeu? Então eu comecei a absorver muito rápido, aliás, eu era uma das que menos falavam, mas eu tava ali, ouvindo tudo.

(...) eu amadureci de alguma forma. Então, tipo assim, ano passado foi um momento muito decisivo da minha vida, entendeu? (...) Eu convivi mais com pessoas que tinham a opção sexual semelhante à minha. Aí eu comecei, tipo assim, a me soltar um pouco mais, entendeu? (...) até porque eu andava num meio muito hetero, então esses assuntos eram meio que podado, ainda que a gente permaneça junto por outras características, outras semelhanças, mas essa é uma semelhança que une bastante as pessoas, mesmo que a gente não fale desse assunto, mas a gente sabe que tem pessoa que aceita e até sente a mesma coisa que a gente, sabe.

Júlia: Não, foi a entrada no Coletivo que... a entrada no Coletivo, porque a entrada na Universidade foi um segmento do ensino médio, eu estava lidando com a mesma coisa. O professor passando assunto, eu lendo, aprendendo e reproduzindo, lendo, aprendendo e reproduzindo. (...) Foi depois de estar... estando no Coletivo você passa a lidar muito com isso, porque é bem aberto, e aí quando eu me descobri, na questão da sexualidade, eu já estava dentro do Coletivo, já estava lidando com isso. Então as duas coisas foram abrindo...

Antes do convívio social estreito e das relações de afetos que estabeleceram via movimentos estudantis, as entrevistadas afirmam que a sua experiência universitária representava uma continuidade da vida que levavam anteriormente ao ingresso à universidade, quer dizer, representava um modo de vida cuja crítica às relações de poder hegemônicas (baseadas na dominação de classe, gênero, raça e sexualidade) não ocupava um espaço significativo na construção das suas identidades e das suas relações intersubjetivas.

Elas relataram que suas relações familiares não foram as fontes de obtenção de autoconfiança e aceitação de suas identidades sexuais não-heterossexuais. Ao contrário, a relação com os familiares próximos era marcada pela insegurança e pelo medo da negação do seu afeto pela descoberta das suas relações homoafetivas. O próprio medo de revelar essas relações para a família demonstra como a questão ainda era uma fonte de tensão para elas. E, por isso, apesar de não apresentarem crises de autoaceitação sobre as suas identidades sexuais, elas temiam ser rejeitadas pela família, e todas evitavam – com exceção de Marina – revelá-las aos familiares.

O processo de ressignificação positiva da identidade sexual pela qual as entrevistadas passavam no momento da pesquisa implicou uma reconstrução das concepções de mundo trazidas de suas socializações familiares, caracterizadas todas elas, em maior ou menor grau, pela heteronormatividade – expressa, nesse caso, tanto nas dificuldades de tematizar a homossexualidade como algo natural, como ocorria na família de Alice, ou nos posicionamentos contra a bissexualidade que a mãe de Rafaela direcionava indiretamente à filha, quanto no sofrimento familiar gerado pela “descoberta” da homossexualidade da irmã de Júlia, ou, ainda, no grande sofrimento gerado pela dificuldade da mãe de Marina em aceitar o relacionamento homoafetivo da filha.

Uma forma muito comum em sociedades heteronormativas de as famílias conviverem “cordialmente” com um parente homossexual é “aceitando” a sua pessoa a despeito da sua homossexualidade (que passa a ser escamoteada e tratada como se não existisse). Nesse caso, é negado ao homossexual o direito a qualquer tipo de tematização das suas relações homoafetivas, assim como a de qualquer componente de sua vida e de sua identidade: o reconhecimento é negado ao sujeito homossexual por meio do silenciamento das suas emoções e da invisibilização da sua homossexualidade e, como ela é parte constitutiva e inseparável de toda a vida do sujeito, a negação do reconhecimento atinge o sujeito como um todo. Também é comum nas relações de amizade ou entre colegas menos próximos transformar a pessoa homossexual em motivo de chacota, quer dizer, fazer piada com a homossexualidade. Porém, fazer piada com a homossexualidade significa tratá-la como estranha, caricata, digna de risos, anormal. Nos dois casos, é negado ao sujeito o direito a uma construção identitária considerada válida e digna de respeito e reconhecimento social.

Deste modo, podemos perceber que o reconhecimento social se apresenta como um componente fundamental para a construção de uma autorrelação prática positiva, isto é, uma relação positiva consigo mesmo. Importantes teóricas e teóricos contemporâneos do reconhecimento social, como Judith Butler, Axel Honneth e Charles Taylor, compartilham a premissa hegeliana básica de que há um vínculo intrínseco entre reconhecimento social e identidade, de modo que a compreensão de quem somos, das nossas características fundamentais como seres humanos, é fortemente moldada pelo reconhecimento – esteja ele presente ou ausente – que recebemos dos outros (Taylor, 2000:241).

Butler, também seguindo essa tradição, afirma que “culquiera de nosotros se constituye como ser social viable unicamente a través de la experiencia del reconocimiento ” ( Butler, 2006BUTLER, Judith. Deshacer el género. Barcelona, Paidós, 2006.: 14). Entretanto, os termos que nos permitem ser reconhecidos como humanos variam social e historicamente. Assim, estamos falando em reconhecimento social como um ato ou uma prática empreendida por, pelo menos, dois sujeitos e que constitui uma ação recíproca. Para que tal reconhecimento possa acontecer, é preciso que existam normas compartilhadas entre os sujeitos, ou seja, enquadramentos normativos que precedem as possibilidades de reconhecimento social. Segundo Butler (2011BUTLER, Judith. Vida precária. Contemporânea, n. 1, São Carlos–SP, jan./jun. 2011, pp.13-33 [https://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/18 – acesso em: 15 fev. 2022].
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; 2015; 2018), normas operam para tornar certos sujeitos pessoas “reconhecíveis” enquanto humanos, com valor, cujas vidas, se perdidas, serão consideradas socialmente dignas de serem passíveis de luto, ou seja, serão valorizadas, choradas, percebidas como vidas que importam. Assim, Butler afirma que essas normas existentes compartilhadas intersubjetivamente atribuem reconhecimento social de forma diferenciada:

El humano se concibe de forma diferente dependiendo de su raza y la visibilidad de dicha raza; su morfología y la medida en que se reconoce dicha morfología; su sexo y la verificación perceptiva de dicho sexo; su etnicidad y la categorización de dicha etnicidad. Algunos humanos son reconocidos como menos que humanos y dicha forma de reconocimiento con enmiendas no conduce a una vida viable. A algunos humanos no se les reconoce en absoluto como humanos y esto conduce a otro orden de vida inviable. Si parte de lo que busca el deseo es obtener reconocimiento, entonces el género, en la medida en que está animado por el deseo, buscará también reconocimiento ( Butler, 2006BUTLER, Judith. Deshacer el género. Barcelona, Paidós, 2006.: 14).

Segundo Honneth, são três os padrões de reconhecimento que os sujeitos precisam experienciar para que possam chegar a novas formas de autorrelação prática positiva ou bem sucedida: amor, direito e estima social:

O nexo existente entre a experiência de reconhecimento e a relação consigo próprio resulta da estrutura intersubjetiva da identidade pessoal: os indivíduos se constituem como pessoas unicamente porque, na perspectiva dos outros que assentem ou encorajam, aprendem a se referir a si mesmos como seres a que cabem determinadas propriedades e capacidades. A extensão dessas propriedades e, por conseguinte, o grau de auto-realização positiva cresce com cada nova forma de reconhecimento, a qual o indivíduo pode referir a si mesmo como sujeito: deste modo, está inscrita na experiência do amor a possibilidade da autoconfiança, na experiência do reconhecimento jurídico, a do auto-respeito e, por fim, na experiência da solidariedade, a da autoestima ( Honneth, 2003HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo, Ed. 34, 2003.: 272).

Quando um sujeito tem a sua expectativa de reconhecimento negada, pode ocorrer uma ferida na formação da sua própria identidade pessoal, já que a forma como ele se representa está estreitamente relacionada à maneira com a qual seu parceiro de interação o identifica. Honneth busca explicar de que maneira as lutas coletivas por reconhecimento social se configuram como motor de mudanças sociais que caminham para um processo histórico de progresso moral de toda a sociedade. O conflito gerado pelo reconhecimento negado tem como pressuposto a “reinvindicação de ser-se conhecido sempre em novas dimensões em que esse reconhecimento não era evidente” ( Souza, 2000SOUZA, Jessé. A Modernização Seletiva: uma reinterpretação do dilema brasileiro. Brasília, EDUNB, 2000.: 115), o que gera no sujeito uma aquisição intersubjetiva de autoconsciência progressiva, propiciando um aprendizado moral que abrange toda a sociedade. Assim, para Honneth, a experiência das formas de desrespeito social ou reconhecimento negado pode impulsionar o desenvolvimento de conflitos sociais na configuração de lutas moralmente motivadas de grupos sociais que tentam estabelecer, cultural e institucionalmente, formas recíprocas de reconhecimento. Contudo, o conceito de luta social para Honneth compreende um processo prático no qual experiências individuais de desrespeito devem ser “interpretadas como experiências cruciais típicas de um grupo inteiro, de forma que elas podem influir, como motivos diretores da ação, na exigência coletiva por relações ampliadas de reconhecimento” (Honneth, 2003:257).

Nesta pesquisa, o foco analítico será direcionado ao reconhecimento social adquirido pelas experiências amorosas. O reconhecimento social obtido por meio do amor abarca “todas as relações primárias, na medida em que elas consistam em ligações emotivas fortes entre poucas pessoas, segundo o padrão de relações eróticas entre dois parceiros, de amizades e de relações pais/filhos” ( Honneth, 2003HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo, Ed. 34, 2003.: 159). No reconhecimento pelo amor, os sujeitos confirmam de forma mútua a natureza concreta de suas carências, reconhecendo-se, assim, como seres que dependem, em seu estado carencial, um do outro ( Honneth, 2003HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo, Ed. 34, 2003. ). Honneth destaca que a autoconfiança propiciada pela experiência intersubjetiva do amor é a base psíquica para as duas outras formas de reconhecimento (direito e estima social), na medida em que faz parte de um componente fundamental do amadurecimento pessoal, sendo a base indispensável para a participação autônoma na vida pública (Honneth, 2003:178).

Para ele, o processo de internalização das normas sociais pelos sujeitos não ocorre apenas por meio de aplicação de técnicas e mecanismos de poder sobre o corpo dos sujeitos, como afirma Foucault (1987)FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes, 1987. , mas é também necessária a intermediação de relações afetivas que permitam aos indivíduos buscar uma adequação às normas, pois quando esses são socializados em relações afetivas pautadas por princípios normativos, eles vão gradativamente internalizando os componentes normativos presentes na relação, uma vez que esses componentes se apresentam como um dos fatores condicionantes do próprio recebimento do reconhecimento ( Honneth, 1997HONNETH, Axel. The Critique of Power: Reflective Stages in a Critical Social Theory. Cambridge, MA, The MIT Press, 1997. ). É por isso que a experiência de sermos reconhecidos, respeitados e valorizados por nossos parceiros de interação como um fim em si mesmo é primordial para uma autorrelação prática positiva.

Assim, quando não encontramos em nossas interações sociais mais significativas, como as familiares e as de amizades, o reconhecimento de nossa identidade sexual não-heterossexual como algo legítimo, nos deparamos com grandes dificuldades para reconhecê-la e valorizá-la como tão legítima quanto à identidade heterossexual, pois a maneira como nos avaliamos está fortemente relacionada à imagem que as pessoas mais importantes e significativas das nossas vidas nos devolvem sobre esse aspecto do eu. Por outro lado, como vimos anteriormente, a imagem construída sobre a sexualidade tem relação direta com as normas sociais e com os processos de significação compartilhados culturalmente.

As relações de amizade que as entrevistadas construíram por intermédio dos movimentos estudantis se estabeleceram a partir de uma concepção de respeito e aceitação à homossexualidade, que está relacionada ao reconhecimento desta como uma forma legítima de exercício da sexualidade. Nessas relações, elas puderam adquirir autoconfiança em sua identidade sexual, algo que pode ser percebido na maneira como as entrevistadas falam sobre si mesmas e, principalmente, como veremos mais adiante, como apresentam a si mesmas e as suas relações homoafetivas às outras pessoas.

Marina: eu não saio por aí escrito na minha testa que sou lésbica, ou que sou bissexual, ou minha opção sexual, nem nada, mas se alguém chegar e perguntar, eu falo sem problema nenhum. (...) Eu falo seja lá para quem for. Eu não tenho problema, para mim é a mesma coisa que dizer que meu namorado é, para mim é a mesma coisa dizer que minha namorada, para mim é, sei lá, cara.

Rafaela: – É isso, eu não falo, mas não escondo. Se eu tiver num ambiente conversando com alguém, vão saber, não vou esconder, eu também não vou chegar e falar: “– oi, eu sou bi, na verdade”.

Alice: Se rolar na conversa, se a pessoa perguntar ou se eu achar que tenha a necessidade de falar por algum motivo, num sei qual (sua orientação sexual).

Júlia: Eu não vejo necessidade de ficar “Ah, eu sou lésbica, eu sou lésbica, eu sou lésbica!”. Isso inclusive me incomoda, porque isso pra mim é uma questão de... as pessoas devem ter algum problema pra usar a preferência sexual para se afirmar todo momento. Acho que ela está tentando se aceitar e fica reproduzindo todo momento. Por mais que... acho que você tem que ter sua postura e não ficar negando aquilo.

Todas as quatro entrevistadas se expressaram favoravelmente às lutas por direitos civis igualitários de mulheres e LGBTI+, tais como a criminalização da LGBTIfobia, o casamento civil igualitário, a adoção homoparental, a despatologização das identidades transexuais etc., e preferem não definir claramente uma identidade sexual. Essas mulheres tendem a não enquadrar e não vivenciar a sua sexualidade de forma exclusivista, afirmando que seus desejos sexuais e sua afetividade vão além do “sexo” das pessoas com quem se relacionam, preferindo optar por afirmar que “não se rotulam”, “que gostam de pessoas” a despeito de seu “sexo”, discurso que tem no movimento LGBTI+ e feminista seus principais suportes sociais. Como afirma Anthony Giddens , “ A sexualidade torna-se livre; ao mesmo tempo em que gay é algo que se poder ‘ser’, e ‘descobrir-se ser’, a sexualidade abre-se a muitos propósitos” ( Giddens, 1993GIDDENS, Anthony. A Transformação da Intimidade: Sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. São Paulo, Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993.: 24). A maneira mais “fluida” como as entrevistadas encaram a própria sexualidade reflete os ecos da “revolução sexual” ocorrida, afirma Giddens, a partir da segunda metade do século XX, trazendo transformações revolucionárias na vida social moderna, tais como uma revolução sexual feminina e o florescimento da homossexualidade, que passa a ser encarada cada vez mais como “como uma qualidade ou propriedade do eu ”.

Quando questionadas se costumavam demonstrar afeto publicamente com suas companheiras da mesma maneira que fariam quando/se envolvidas em relacionamentos heterossexuais, todas afirmaram que sim, pois não consideravam haver nada de errado ou desrespeitoso em demonstrar afeto em público com as companheiras17 17 Na pesquisa de tese que deu origem a este artigo, outras entrevistadas afirmaram não demonstrar afeto publicamente com suas parceiras por acreditarem estar desrespeitando a sociedade ao fazerem isso. Essas mulheres possuem uma autoconstrução identitária marcada por grandes conflitos de autoaceitação, o que gera profundos sofrimentos e afeta bastante suas vidas. Para maiores informações, ver Freitas (2013) . , já que consideravam seus relacionamentos homossexuais tão dignos e legítimos quanto os heterossexuais. Contudo, muitas afirmaram que tinham medo de sofrer homofobia e serem agredidas verbal ou fisicamente, o que as levava a avaliar os espaços onde consideravam que estariam mais seguras para expressarem afetividade com as companheiras. Entretanto, excetuando as festas nas casas de amigos, alguns poucos espaços públicos considerados gays, como o Bar da Tia18 18 O Bar da Tia é um bar que se localiza em frente à Praça Olinto Leone, umas das mais conhecidas praças do centro da cidade de Itabuna, às margens do Rio Cachoeira. Apesar de ser frequentado majoritariamente por homossexuais e ser conhecido na cidade como um “bar gay ”, as regras de conduta estabelecidas pela dona (a “Tia”) não permitiam demonstrações de afeto entre homossexuais no bar. Assim, é interessante notar que, apesar de ser frequentado basicamente por homossexuais, as regras que norteavam as condutas no bar eram baseadas na hetoronormatividade: aceitava-se e convivia-se com os homossexuais, desde que eles mantivessem “a decência” que um ambiente “de família” exigia, ou seja, não dessem visibilidade à erotização não-heterossexual e que buscassem seguir o modelo heterossexual. e algumas festas gays que ocorriam periodicamente em Itabuna19 19 As boates gays de Itabuna, como eram conhecidas, eram organizadas por pessoas da cidade e ocorriam periodicamente em casas de show de Itabuna alugadas para esse fim, sendo sempre itinerantes. A possibilidade de dançar, beijar e se expressar livremente ao som das músicas pop internacionais movimentavam a população LGBTI+ de Itabuna e de vários municípios vizinhos. , as entrevistadas só foram capazes de mencionar algumas festas no Vagão20 20 Um espaço de frente para uma praia em um distrito do município de Ilhéus, onde frequentemente eram realizados shows de reggae, forró, xote e, eventualmente, rock. Era frequentado por um público mais “alternativo”, onde era comum as pessoas se comportarem de forma mais relaxada, inclusive fumando maconha livremente perto da praia. e a própria universidade como esses espaços considerados “mais seguros”, o que evidencia a existência de uma grande restrição dos espaços de sociabilidade LGBTI+ nas cidades em que viviam. Ainda assim, elas afirmaram que quando estavam com as companheiras nesses locais públicos, até mesmo na universidade, suas demonstrações de afeto sempre geravam reações das pessoas em torno, que não as encaravam com a mesma naturalidade com que lidavam com os casais heterossexuais:

Rafaela: (...) Ah, em qualquer lugar (beijava a companheira) . Assim... é isso... não era questão de pegação e tudo, era normal.

(...) Isso me gera muita crise de ficar em público ou não, porque eu acho muito desagradável ter que beijar escondido. (...) tá ali num lugar que tá todo mundo ficando e a gente ter que ir no banheiro pra se beijar escondido num ambiente sujo... sei lá... num ambiente... e aí volta e fica lá. Todo mundo sabe que você saiu pra beijar a menina, mas você não faz na frente. Aí, eu digo: “Não, tem que beijar na frente pras pessoas entenderem que isso é normal, que a gente não tá fazendo nada de errado”. Se tá todo mundo ali fazendo, ninguém tem o direito de me julgar. Mas aí eu penso na situação dos caras que ficam olhando e se excitando com a situação e aí eu me incomodo demais. E, também, eu particularmente fico preocupada com ficar me expondo por causa de perigo.

Júlia: Teve até um amigo meu que falou assim... A gente estava em Conquista (Vitória da Conquista) , eu saí de mãos dadas falando, aí o pessoal da Universidade não sabia que eu estava namorando. Aí ele falou bem assim: “Ué, Júlia, vieram me perguntar se você estava namorando com ela e eu falei que não, aí você chega de mãos dadas com a menina?!” Falei: “Ué, eles só não sabiam por que não tinham visto. Não tenho nenhum problema em falar.” (...) eu não gosto disso de estar beijando, essas coisas, mas eu sempre ando de mãos dadas, abraçada. Mas se eu sentir vontade de beijar ela eu vou beijar. Onde tiver.

Alice: (...) eu não tenho problema nenhum em ficar com mulheres na frente de outras pessoas. (...) eu já fiquei com pessoas em público, fico tranquilamente sem ter nenhum problema. Não tem inconveniente. (...) mas acho que essa dificuldade de tá sempre com medo. Medo seja de alguém de agredir, ou seja, de na família ninguém te aceitar. Mesmo que hoje a gente pense “ah, não, as coisas estão muito mais tranquilas hoje”, eu acho que isso de ficar com medo é sempre chato.

Apesar de as entrevistadas terem adquirido a autoconfiança capaz de fazê-las compreender suas sexualidades como tão legítimas quanto a heterossexual, levando-as, inclusive, a ter coragem de afirmá-las publicamente, elas não deixam de sofrer uma série de conflitos e desafios impostos pela heteronormatividade. Como vimos com Foucault e Butler, o padrão de poder heteronormativo transita e constitui performativamente todas as relações sociais e todos os sujeitos em nossas sociedades. Assim, todos somos, ao mesmo tempo, seus intermediários e seus executores, e nossas identidades sexuais são multiplamente perpassadas pela heteronormatividade, seja quando aderimos a ela, seja quando construímos qualquer tipo de resistência. Como afirma Butler, o poder não pode ser recusado, apenas deslocado; a “sexualidade é construída culturalmente no interior das relações de poder existentes”, por isso, “uma sexualidade normativa que esteja ‘antes’, ‘fora’ ou ‘além’ do poder constitui uma impossibilidade cultural e um sonho politicamente impraticável” (Butler, 2010:55).

É por isso que a possibilidade de contestação à heteronormatividade só pode ocorrer dentro dela própria. Para Butler, a visibilidade das relações homossexuais se configura como politicamente fundamental para o enfraquecimento paulatino do padrão de poder heteronormativo. Como vimos, a construção da norma de gênero não é um processo infalível, ao contrário. É por isso que demonstrações públicas de afeto entre homossexuais possuem um papel político importante, pois funcionam como elementos que ajudam a destituir o poder da heteronormatividade na medida em que questionam a suposta naturalidade com a qual as relações heterossexuais são construídas, tornando visíveis outras maneiras possíveis de se viver as identidades sexuais e de gênero. Guacira Louro ( Cult, 2013CULT, n ano 16, n.185, São Paulo, Editora Bregantini, novembro, 2013.: 34) concorda com Butler que essas “falhas” e “desvios” representados por aqueles corpos que não se enquadram às exigências da heteronormatividade podem “se constituir em oportunidade para reconstruções subversivas da identidade”, podendo até mesmo se prestar a uma política de ressignificação dos gêneros. Os discursos de ódio, ainda que não completamente apagados, podem ser reconfigurados de forma afirmativa. Entretanto, é importante não esquecer que, a depender da extensão e das circunstâncias em que este “desvio” acontece, os “desviantes” são punidos, com graus variados de danos simbólicos, físicos, psicológicos e sociais.

Como o processo de construção identitária é um devir infinito e imprevisível, é impossível afirmar de forma definitiva quais casos podem significar uma subversão da norma heterossexual e quais podem representar exemplos de colonização dos “desvios” por parte da matriz heteronormativa21 21 O artigo de Iara Beleli (2009) a respeito da ressignificação do imaginário sobre as relações homoeróticas e homoafetivas nas telenovelas e na publicidade brasileira é um excelente exemplo da complexidade que envolve a questão da subversão/reprodução da heteronormatividade. A autora aponta que as “antigas ‘caricaturas’ – marcadas pela linguagem do humor de forma a desqualificar os sujeitos” homossexuais vêm sendo substituídas nas telenovelas “por personagens sem afetação e em relações monogâmicas, uma forma de tornar a imagem palatável ao público em geral”. Assim, apesar da crescente visibilidade de relações homoeróticas e homoafetivas nos meios de comunicação de massa brasileiros e da sua importância para o alargamento dos modelos reconhecidos de família, a autora aponta como essas relações parecem ser incluídas e aceitas apenas quando a sua “anormalidade” parece ser amenizada por relações familiares estáveis e monogâmicas. Isso é problemático na medida em que leva a um encapsulamento dos “sujeitos em um modelo que remete às relações heterossexuais, pautadas por práticas que parecem predefinidas e, portanto, não necessitam ser problematizadas” e reduzem a complexidade das vivências e relacionamentos homoafetivos a um único modelo aceito, o heteronormativo ( Beleli, 2009: 117). . Porém, esta pesquisa permite apontar para o reconhecimento social como fator fundamental na construção de sociedades mais justas e igualitárias, pois somente por meio dele é possível que a população LGBTI+ adquira a autoconfiança indispensável para a participação autônoma na vida pública, para a reivindicação por redistribuição econômica e por direitos civis igualitários.

Considerações finais

Os resultados desta pesquisa reforçam os argumentos em favor da problematização das condições de vulnerabilidade e despossessão de certas identidades por meio das quais grupos inteiros são condenados e punidos pela sua “diferença”, por não estarem de acordo com as identidades inteligíveis produzidas pela heteronormatividade. Seguindo as inspirações da teoria do reconhecimento, Butler afirma que todos somos seres carentes de reconhecimento social. Contudo, como vimos, a condição de obtenção desse reconhecimento é regulada por normas de gênero excludentes e desumanizadoras: “Para aqueles apagados ou rebaixados pela norma que se espera que se incorporem, a luta se torna uma batalha corpórea por condições de reconhecimento, uma insistência pública em existir e ter importância” (Butler, 2018:44). Diante disso, é importante afirmar que a aspiração política deste trabalho é aquela proposta por Butler de produzir um questionamento das normas a fim de relaxar o seu domínio coercitivo sobre a vida generificada (compreendendo que isso não é o mesmo que transcender ou abolir todas as normas) com a finalidade de garantir uma vida mais vivível. Dito de outra forma, a aspiração política vai na direção de “salvaguardar os rompimentos com a normalidade e oferecer apoio e afirmação para os que realizam essas rupturas” (Butler, 2018:40).

Neste ponto, é bastante importante retomar a discussão realizada anteriormente a partir de Axel Honneth, frisando sua afirmação de que o processo de luta social compreende a condição de que as experiências individuais de desrespeito precisam ser interpretadas como “experiências cruciais típicas de um grupo inteiro”, para que elas possam influir, “como motivos diretores da ação, na exigência coletiva por relações ampliadas de reconhecimento” (Honneth, 2003:257). É por isso que não há possibilidades individualistas de ação política transformadora, pois o reconhecimento deve sempre partir da construção de relações dialógicas e coletivas. Para Butler, a coligação dos corpos em aliança nas ruas reivindicando suportes sociais que garantam vidas mais dignas é necessariamente uma ação entre corpos, nunca uma ação individual: “Nenhum corpo estabelece o espaço de aparecimento, mas essa ação, esse exercício performativo, acontece ‘entre’ corpos, em um espaço que constitui o hiato entre o meu corpo e o do outro” (Butler, 2018:86).

Fica evidente, com isso, a importância política primordial que possui o movimento LGBTI+ como motor de mudanças sociais em direção a uma sociedade mais justa e igualitária.

Júlia: Acho que hoje em dia penso mais como uma questão de luta. Quando penso na homossexualidade, penso como categoria. (...) Normalidade. Pra mim, eu vejo como... assim, eu definiria os homossexuais de hoje da mesma forma que eu definiria os trabalhadores de hoje. Porque eu acho que... não é questão de escolha, mas de conquista, de lugar, porque eu acho que só falta isso. Porque (de resto) seria como qualquer outra pessoa.

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  • SIMÕES, Júlio Assis; CARRARA, Sérgio. O campo de estudos socioantropológicos sobre diversidade sexual e de gênero no Brasil: ensaio sobre sujeitos, temas e abordagens. cadernos pagu (42), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2014, pp.75-98 [http://www.scielo.br/pdf/cpa/n42/0104-8333-cpa-42-00075.pdf - acesso em: 17 fev. 2018].
    » http://www.scielo.br/pdf/cpa/n42/0104-8333-cpa-42-00075.pdf
  • SOUZA, Jessé. A Construção Social da Subcidadania: Para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte, UFMG, 2003.
  • SOUZA, Jessé. A Modernização Seletiva: uma reinterpretação do dilema brasileiro. Brasília, EDUNB, 2000.
  • TAYLOR, Charles. As Fontes do Self: a construção da identidade moderna. São Paulo, Edições Loyola, 1997.
  • 1
    Se compreende por identidade sexual a maneira como uma pessoa compreende a si mesma em termos de por qual gênero se é sexualmente e romanticamente atraída.
  • 2
    Como as entrevistadas expressaram preferir não definir uma identidade sexual exclusivista para si mesmas, optou-se, neste caso, pela definição negativa como a melhor maneira de classificá-las: respeitando o desejo de não serem enquadradas em uma classificação estrita, as entrevistadas serão identificadas pelo que elas não são, a saber, heterossexuais.
  • 3
    A sigla LGBTI+ usada neste artigo utiliza a terminologia mais atualizada sobre a população lésbica, gay, bissexual, travesti, transexual e intersexual, tendo o símbolo + sido acrescentado à sigla para abranger outras orientações sexuais, identidades e expressões de gênero não representadas nela. Essa terminologia segue o modelo do Manual de Comunicação LGBTI+ feito pela Aliança Nacional LGBTI, o Grupo Dignidade e a rede GayLatino em parceria com outras importantes entidades nacionais e internacionais de defesa dos direitos LGBTI+ [ https://www.grupodignidade.org.br/wp-content/uploads/2018/05/manual-comunicacao-LGBTI.pdf – acesso em: 14 fev. 2020].
  • 4
    Para mais informações sobre a invisibilidade da homossexualidade feminina no Brasil, consultar mott (1987)MOTT, Luiz. O lesbianismo no Brasil. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1987. , Fry e Macrae (1991)FRY, Peter; MACRAE, Edward. O que é homossexualidade? Coleção Primeiros Passos, 81. São Paulo, Editora Brasiliense, 1991. , Bila (2009)BILA, Fabio. Cidadania sob o sol de Ipanema: os gays da Farme de Amoedo e suas estratégias de afirmação. Dissertação (Mestrado em Sociologia Política), UENF, Campos dos Goytacazes, 2009 [http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=178233 - acesso em: 17 fev. 2018].
    http://www.dominiopublico.gov.br/pesquis...
    , Simões e Facchini (2009)SIMÕES, Júlio Assis; FACCHINI, Regina. Na trilha do arco-íris: do movimento homossexual ao LGBT. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2009. , Simões e Carrara (2014)SIMÕES, Júlio Assis; CARRARA, Sérgio. O campo de estudos socioantropológicos sobre diversidade sexual e de gênero no Brasil: ensaio sobre sujeitos, temas e abordagens. cadernos pagu (42), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2014, pp.75-98 [http://www.scielo.br/pdf/cpa/n42/0104-8333-cpa-42-00075.pdf - acesso em: 17 fev. 2018].
    http://www.scielo.br/pdf/cpa/n42/0104-83...
    .
  • 5
    Contudo, em alguns casos, as informações colhidas por meio das entrevistas foram enriquecidas com minhas próprias observações e visitas a alguns ambientes frequentados pelas entrevistadas, além de informações provenientes de pessoas conhecidas das entrevistadas.
  • 6
    Consideram-se demonstrações públicas de afeto expressões de carinho entre os casais, tanto aquelas mais fraternais como segurar a mão, acariciar os cabelos e rosto, abraçar e dar beijos no rosto como aquelas que, no Brasil, denotam claramente relacionamentos amorosos/sexuais como beijos na boca, sejam eles rápidos ou um pouco mais demorados.
  • 7
    O capital cultural pode se apresentar em 3 modalidades: objetivado (propriedade de objetos culturais valorizados), incorporado (se refere à cultura considerada legítima que é incorporada pelos indivíduos e se expressa por meio de hábitos alimentares, posturas corporais, consumo de bens culturais, comportamentos, gostos, habilidades linguísticas e conhecimentos) e institucionalizado (se refere à posse de certificados escolares que tendem a ser utilizados como atestados de certa formação cultural) ( Nogueira; Nogueira, 2004NOGUEIRA, Maria Alice; NOGUEIRA, Cláudio M. Martins. Bourdieu & a educação. Belo Horizonte, Autêntica, 2004.: 41).
  • 8
    A sexualidade é compreendida aqui não apenas como o dispositivo foucaultiano (1993), mas também, tal como defendem Simões e Carrara (2014SIMÕES, Júlio Assis; CARRARA, Sérgio. O campo de estudos socioantropológicos sobre diversidade sexual e de gênero no Brasil: ensaio sobre sujeitos, temas e abordagens. cadernos pagu (42), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2014, pp.75-98 [http://www.scielo.br/pdf/cpa/n42/0104-8333-cpa-42-00075.pdf - acesso em: 17 fev. 2018].
    http://www.scielo.br/pdf/cpa/n42/0104-83...
    : 78), como um habitus erótico: “conjunto de princípios estruturantes de práticas e discursos, mas também de sensações, desejos, atrações, emoções, representações, que definem, sob diferentes circunstâncias, as fronteiras entre o que é sexualmente desejável e o que é indesejável, o que é respeitado e o que é vergonhoso”.
  • 9
    Para saber mais sobre a história do movimento LGBTI+ no Brasil, ver Simões e Facchini (2009)SIMÕES, Júlio Assis; FACCHINI, Regina. Na trilha do arco-íris: do movimento homossexual ao LGBT. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2009. , Facchini e França (2009)FACCHINI, Regina; FRANÇA, Isadora Lins. De cores e matizes: sujeitos, conexões e desafios no Movimento LGBT brasileiro. Revista Sexualidad, Salud y Sociedad - Revista Latinoamericana, n.3, Rio de Janeiro, 2009, pp.54-81 [http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/SexualidadSaludySociedad/article/view/41/466 - acesso em: 17 fev. 2018].
    http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.p...
    ; Pereira (2016)PEREIRA, Cleyton Feitosa. Notas sobre a trajetória das políticas públicas de direitos humanos LGBT no Brasil. Bauru, v. 4, n. 1, jan./jun. 2016, pp.115-137. .
  • 10
    Utilizo o conceito de modernidade tardia desenvolvido por Anthony Giddens (1991)GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo, Editora da Universidade Estadual Paulista, 1991. Tradução: Raul Fiker. para caracterizar o período atual de desenvolvimento do capitalismo, marcado pela globalização, a flexibilização do capital e do trabalho, o desenvolvimento das comunicações digitais e da informática, o enfraquecimento do Estado de bem-estar social e o surgimento dos novos movimentos sociais e das políticas de identidade. Para esse autor, esses fenômenos não ultrapassam as características fundamentais que caracterizam a época moderna, mas complexificam os fenômenos que identificam e singularizam a modernidade. Giddens (2002)GIDDENS, Anthony. Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro, Zahar, 2002. Tradução: Plínio Dentzien. promove uma análise a respeito das transformações radicais que a modernidade tardia cria na natureza da vida social cotidiana, afetando os aspectos mais pessoais da nossa existência. Ele demonstra a crescente interconexão entre as influências globalizantes da modernidade tardia e a construção da identidade dos indivíduos modernos. Os movimentos sociais em torno da política da identidade possuem um papel fundamental nas arenas públicas e jurídicas dos Estados, trazendo para o debate público questões substantivas centradas nos direitos da pessoa, que por sua vez se ligam às dimensões existenciais da autoidentidade enquanto tal. Com a globalização, ninguém escapa das transformações provocadas pela modernidade, e mesmo as pessoas que vivem em ambientes mais tradicionais são afetadas por algum aspecto das instituições modernas.
  • 11
    Para Gilberto Freyre (1981)FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: Decadência do Patriarcalismo Rural e Desenvolvimento do Urbano. – 1º Tomo. 6 ed. Rio de Janeiro, Livraria José Olimpio Editora, 1981. , o patriarcalismo rural se apresenta como a base na qual se organiza toda a sociedade brasileira do período colonial, não havendo poder político, econômico, religioso ou valores morais que impusessem barreiras aos mandos do senhor rural, que levava, por isso, seu domínio pessoal às últimas consequências. O patriarcalismo é entendido como instituição total, na medida em que a família patriarcal estende seus domínios tanto para a esfera econômica – por meio da agricultura de monocultura fundada na escravidão – quanto na vida política e cultural, na qual o senhor de terras é a autoridade absoluta sobre seus domínios. Quando instituições modernas começam a se cristalizar no mundo colonial, o patriarca vê seu poder ser pouco a pouco desmembrado, refreado por instituições e valores modernos que acabam se tornando dominantes na sociedade. Apesar de esse processo de decadência do patriarcalismo rural brasileiro sofrer seu primeiro questionamento nesse momento, ele ainda se mantém bastante vigoroso durante muito tempo, mas vai sendo aos poucos sobrepujado por valores e instituições modernas, sendo o Coronelismo, como afirma Victor Nunes Real (1975), muito mais a expressão de sua fraqueza do que a sua força. O Coronelismo se constitui, segundo ele, em um compromisso, uma troca de favores entre um poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terra. Contudo, mesmo dominado atualmente no âmbito econômico e político, já que a lógica impessoal de mercado e estado capitalista já estão consolidados no país desde a segunda década do século XX, alguns valores patriarcais encontram na Igreja, na Família, no Estado e na Escola, instituições que ainda os põe em prática. Segundo Bourdieu (2007)BOURDIEU, Pierre. A Dominação masculina. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2007. , a divisão sexual (dominação masculina) é a base do mundo social nas sociedades ocidentais, variando sua força em cada uma delas, sendo bastante operante na sociedade brasileira ainda hoje, graças a influência história deixada pela patriarcalismo rural nas instituições mencionadas.
  • 12
    De acordo com dados do IBGE, a Incidência da Pobreza do município de Itabuna no ano de 2003 foi de 42,83%, e o IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) do ano de 2010 foi de 0,712. Já em Ilhéus, a Incidência da Pobreza no município no ano de 2003 foi 47,34%, e o IDM no ano 2010 era de 0,690. Fonte: IBGE [ https://cidades.ibge.gov.br/ - acesso em: 06 fev. 2020].
  • 13
    Em 2001 e 2002, surgiram os primeiros grupos LGBTI+ organizados politicamente na região sul baiana. A primeira parada de Orgulho LBGTI+ da região ocorreu em Itabuna no ano de 2002. Para mais informações sobre o movimento LGBTI+ no sul da Bahia, ver Oliveira Júnior (2013).
  • 14
    As altas taxas de assassinatos de LGBTI+ no Brasil são um exemplo bem visível do poder da heteronormatividade em nosso país. Segundo a ONG Grupo Gay da Bahia (GGB), o ano de 2017 registrou 445 mortes de LGBTI+, o maior número de assassinatos desde o início das pesquisas realizadas pelo GGB, há 37 anos. Para mais informações, ver sítio eletrônico [ https://homofobiamata.wordpress.com/ - acesso em: 06 fev. 2020].
  • 15
    Para garantir a privacidade e o anonimato das entrevistadas, seus nomes reais foram substituídos por nomes fictícios. Pela mesma razão, os coletivos estudantis os quais as entrevistadas fizeram parte na universidade não foram identificados. Por esse motivo, todos eles, tanto os movimentos estudantis organizados em torno da política das identidades quanto os organizados por categoria profissional, sejam locais, regionais ou nacionais, foram chamados com o nome genérico de “Coletivo”.
  • 16
    Facebook.
  • 17
    Na pesquisa de tese que deu origem a este artigo, outras entrevistadas afirmaram não demonstrar afeto publicamente com suas parceiras por acreditarem estar desrespeitando a sociedade ao fazerem isso. Essas mulheres possuem uma autoconstrução identitária marcada por grandes conflitos de autoaceitação, o que gera profundos sofrimentos e afeta bastante suas vidas. Para maiores informações, ver Freitas (2013)FREITAS, Lorena Rodrigues Tavares de. Identidade Sexual de mulheres que se relacionam com mulheres em Ilhéus e Itabuna- BA. Tese (Doutorado em Sociologia Política), Universidade Estadual do Norte Fluminense, Campos dos Goytacazes. 2013. .
  • 18
    O Bar da Tia é um bar que se localiza em frente à Praça Olinto Leone, umas das mais conhecidas praças do centro da cidade de Itabuna, às margens do Rio Cachoeira. Apesar de ser frequentado majoritariamente por homossexuais e ser conhecido na cidade como um “bar gay ”, as regras de conduta estabelecidas pela dona (a “Tia”) não permitiam demonstrações de afeto entre homossexuais no bar. Assim, é interessante notar que, apesar de ser frequentado basicamente por homossexuais, as regras que norteavam as condutas no bar eram baseadas na hetoronormatividade: aceitava-se e convivia-se com os homossexuais, desde que eles mantivessem “a decência” que um ambiente “de família” exigia, ou seja, não dessem visibilidade à erotização não-heterossexual e que buscassem seguir o modelo heterossexual.
  • 19
    As boates gays de Itabuna, como eram conhecidas, eram organizadas por pessoas da cidade e ocorriam periodicamente em casas de show de Itabuna alugadas para esse fim, sendo sempre itinerantes. A possibilidade de dançar, beijar e se expressar livremente ao som das músicas pop internacionais movimentavam a população LGBTI+ de Itabuna e de vários municípios vizinhos.
  • 20
    Um espaço de frente para uma praia em um distrito do município de Ilhéus, onde frequentemente eram realizados shows de reggae, forró, xote e, eventualmente, rock. Era frequentado por um público mais “alternativo”, onde era comum as pessoas se comportarem de forma mais relaxada, inclusive fumando maconha livremente perto da praia.
  • 21
    O artigo de Iara Beleli (2009)BELELI, Iara. “Eles[as] parecem normais”: visibilidade de gays e lésbicas na mídia. Bagoas, n. 04, Natal, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes/UFRN, 2009, pp.113-130 [https://www.cchla.ufrn.br/bagoas/v03n04bagoas04.pdf – acesso em: 15 fev. 2022].
    https://www.cchla.ufrn.br/bagoas/v03n04b...
    a respeito da ressignificação do imaginário sobre as relações homoeróticas e homoafetivas nas telenovelas e na publicidade brasileira é um excelente exemplo da complexidade que envolve a questão da subversão/reprodução da heteronormatividade. A autora aponta que as “antigas ‘caricaturas’ – marcadas pela linguagem do humor de forma a desqualificar os sujeitos” homossexuais vêm sendo substituídas nas telenovelas “por personagens sem afetação e em relações monogâmicas, uma forma de tornar a imagem palatável ao público em geral”. Assim, apesar da crescente visibilidade de relações homoeróticas e homoafetivas nos meios de comunicação de massa brasileiros e da sua importância para o alargamento dos modelos reconhecidos de família, a autora aponta como essas relações parecem ser incluídas e aceitas apenas quando a sua “anormalidade” parece ser amenizada por relações familiares estáveis e monogâmicas. Isso é problemático na medida em que leva a um encapsulamento dos “sujeitos em um modelo que remete às relações heterossexuais, pautadas por práticas que parecem predefinidas e, portanto, não necessitam ser problematizadas” e reduzem a complexidade das vivências e relacionamentos homoafetivos a um único modelo aceito, o heteronormativo ( Beleli, 2009BELELI, Iara. “Eles[as] parecem normais”: visibilidade de gays e lésbicas na mídia. Bagoas, n. 04, Natal, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes/UFRN, 2009, pp.113-130 [https://www.cchla.ufrn.br/bagoas/v03n04bagoas04.pdf – acesso em: 15 fev. 2022].
    https://www.cchla.ufrn.br/bagoas/v03n04b...
    : 117).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    20 Fev 2018
  • Aceito
    07 Fev 2022
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