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“Como atender travestis e pessoas trans?”: (des)cisgenerizando o cuidado em saúde mental *

“How to Approach ‘Travestis’ And Trans People?”: (de)Cisgenerizing the Mental Health Care

Resumo

É com a proposta de discutir o receio sentido por diferentes profissionais de psicologia, ao se verem diante de pacientes trans e travestis, que o presente artigo busca elaborar algumas reflexões. Para tanto, propõe outra forma de encarar esse desamparo, sem que, com isso, seja pressuposto um descompromisso com a clínica. Ainda, questiona a pretensa estabilidade dos discursos nosológicos que aparentavam, historicamente, saber “bem” o que estavam fazendo com tal população, visto que apostavam em uma compreensão de gênero fundamentada em estereótipos sexistas.

Clínica; Travestis; Pessoas trans

Abstract

It is with the proposal of discussing the fear felt by different psychology professionals, when faced with trans and “travestis” patients, that this article seeks to elaborate some reflections. To this end, it proposes another way of facing this helplessness, without, therefore, assuming a lack of commitment to the clinic. Still, it also questions the alleged stability of nosological discourses that historically seemed to know “well” what they were doing with such a population, since they bet on an understanding of gender based on sexist stereotypes.

Clinic; “Travestis”; Trans people

Introdução

“Não pretendo ensinar como atender travestis e pessoas trans”. Foi com essa frase que iniciei uma fala em um recente evento de que participei, sobre clínica e despatologização. Embora estivesse sido chamada para discutir a Resolução n° 01/18 do Conselho Federal de Psicologia (CFP), imaginava que a verdadeira razão de estar ali era preencher um papel de orientação, de certo modo. No entanto, apesar de ter iniciado a fala anunciando que não cumpriria dada função, na hora do debate as perguntas foram, em sua maioria, nesse sentido: o que fazer quando recebemos algum paciente trans no consultório? Dê-nos alguma luz. Passamos por uma intensa formação para aprender a não dar respostas simples a problemas complexos, por que agora seria diferente?

Reconheço que não foi a primeira vez que algum profissional de psicologia me abordou com a mesma indagação em mente. “Recebi um paciente com essa, essa e essa característica, penso que ele é trans... Como conduzo?” “O que não posso dizer de errado?” “Devo usar que nome, que pronome, que forma de tratamento?”. Em momentos assim, as tentativas de complexificar o debate parecem não dar conta de uma atuação contemporânea, de uma urgência do agora, em que tais conversas aparentam ser desinteressantes até mesmo aos supostos senhores e senhoras da escuta, como é o caso das/os psicólogas/os. Paradoxalmente, pretendo investir na pergunta mais uma vez. Talvez até pela primeira vez, confesso. Não me agrada muito a ideia de responder às demandas por uma prática psicológica instantânea, rápida e imediata. Mas penso que, ao mesmo tempo, é necessário “bancar” esse debate da forma possível. Se hoje escrevo sobre, não o faço pensando que você, que me lê, sairá daqui com menos perguntas do que quando se deparou com o título.

É necessário assumir a dificuldade que é lidar com um tema pouco explorado durante a nossa formação. Não é surpresa encontrar graduações que nunca inseriram questões relativas às identidades trans e travestis em suas grades, disciplinas, seminários, estágios, dentre outros âmbitos. É compreensível que os profissionais de psicologia se vejam diante de determinado tipo de desamparo. Convém destacar que é um desamparo próprio da práxis, que não irá nos abandonar, e que, mesmo sendo considerado uma experiência coletiva, ele pode, em alguns contextos, transformar-se em violência. Por esse ângulo, pretendo explorar o que eu não responderia. Em outras palavras, significa dizer que este texto não tem como meta ser um guia de “dez passos” para atender bem pessoas trans e travestis. Confesso que essa perspectiva até me assusta. Em contrapartida, o que proponho é que tomemos o próprio questionamento como o objeto de uma profunda reflexão. Afinal, é o que fazemos, não é mesmo? Assim, aposto na capacidade epistemológica de uma reflexão crítica sobre a prática clínica.

Investir na pergunta é algo que aprendi a fazer com Donna Haraway (2016)HARAWAY, Donna. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham, NC, Duke University Press, 2016. , quando a autora situa, em Staying With the Trouble , ser necessário reconhecer o problema como via de produção de conhecimento. Tal postura presume que deixemos para trás os vícios reducionistas, fazendo com que seja arriscado responder com diretrizes o que configuraria um “bom” ou um “mau” atendimento clínico. Ora, muito antes de pensarmos em condutas adequadas, nesse anseio de apaziguar a ansiedade que nos desampara, acredito que devemos usá-la (a angústia, o problema, a controvérsia, quaisquer que sejam as formas que queiramos chamar) como um veículo ( Haraway, 2016HARAWAY, Donna. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham, NC, Duke University Press, 2016. ). Então, de antemão, coloco este artigo em oposição a cursos e especializações que buscam “qualificar” profissionais de saúde mental para o atendimento a pessoas trans e travestis.

Reconheço achar estranha essa ideia de que é possível ser especialista em determinadas populações. Não é o mesmo que advogar contra projetos formativos acerca da violência doméstica, policial ou social. Tais questões existem, mas o que está em jogo não é como atender alguém que foi alvo de transfobia, e sim: como atender alguém que é trans? Falemos então sobre isso. É de salientar, por exemplo, que quando digo que entendo a relevância de cursos e especializações sobre violência doméstica, não o faço pensando que os profissionais sairão especialistas em “mulheres” ou “homens” – esses, embora não sejam maioria, também podem vivenciar situações de agressão domiciliar, física e psicológica. Tampouco digo para que relativizemos um sério e urgente desdobramento do machismo, mas para que pensemos que a categoria “mulheres” não é coesa, homogênea ou sintônica. Acreditar que “saber” como agir diante de casos de violência doméstica faz com que esteja garantida uma expertise em relação ao sujeito “mulher” não seria o mesmo que sintetizar a experiência feminina em uma coisa só?

Da mesma forma, a categoria “trans” também não deve ser vista como um grupo. Essas pessoas não se tratam de um bloco, de uma narrativa única e estável. Um dos pressupostos de cursos e especializações sobre “diversidade sexual e de gênero” é que será possível saber quem são esses indivíduos. Entretanto, diferenciar sexualidade de identidade de gênero, por mais pedagógico que consiga ser, não sustenta uma relação terapêutica durante muito tempo. É preciso que exista algo depois disso. Falo enquanto alguém que já ocupou a posição de paciente, mas que hoje em dia é uma terapeuta travesti, e é a partir da tensão de tal dualismo que busco atuar. Todavia, não é algo que digo para produzir alguma coerência, como se minha fala fosse mais válida por causa disso. No fim das contas, partir da crença em uma experiência autorizada só faria com que deixássemos de nos surpreender com a diferença.

Importa-me ressaltar que a tensão do “entre-lugar” já era apontada por Patricia Hill Collins (2016)COLLINS, Patricia. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Sociedade e Estado, v.31, n.1, 2016, pp.99-127 [https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100006 - acesso em: 28 nov. 2021].
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. Em seu trabalho sobre a outsider within , ou “estrangeira de dentro”, a autora situa que estar “lá” e “cá” é algo que possibilita uma perspectiva privilegiada acerca de determinado fenômeno. Sair da posição de atendida, embora situacionalmente, e passar para a posição de quem atende é algo que reverberou em certa dinamização da perspectiva que tenho acerca da psicologia. Evidentemente que psicólogas/os transitam entre as posições de terapeuta e/ou paciente/cliente, mas aqui o que está em discussão é a aproximação da disciplina psicológica com as questões trans. Dessa forma, não está sendo discutida uma prática que aparentemente diz respeito a todas as outras, pois se trata (trata-se mesmo?) de uma especificidade.

Tendo feito uma série de ressalvas, convido-lhe a construir comigo um terreno possível para a pergunta que nos move neste texto: o que faremos quando recebermos pessoas trans e travestis em nossos consultórios? Ainda que esteja em busca de um passo a passo, irei lhe frustrar mais uma vez ao dizer que tais passos esbarraram em fundamentos clínicos já há muito consolidados. Aliança, projeto, transferência, intencionalidade, rapport – não importa tanto o nome que damos a esses processos, com toda a licença poética que me for permitida; sabemos que para que eles se materializem é necessária a presença de outro alguém, ou de alguéns . O que estou dizendo é que um passo a passo me parece ignorar essa constatação, pois pressupõe que o alguém em questão não pode nos surpreender, não pode ser espontâneo, não pode escapar das nossas ancoragens. É como se ele chegasse e tudo já estivesse pronto. Das duas, uma: ou estamos falando em psicoterapia, algo que acontece na relação, que exige um encontro, uma troca, ou estamos falando de outra coisa. Sigamos.

Esse bairro fica perto de onde você mora?

Vamos começar a discutir melhor a cena que abre o texto. No evento em questão, convidaram-me para falar mais sobre a Resolução n° 01/18, que vem tentando cumprir uma função similar àquela que foi proposta pelo CFP em 1999, quando a entidade visava discutir a atuação do/a psicólogo/a no que se referia ao homoerotismo. Agora, todavia, o Conselho está se deparando com gênero, não necessariamente com sexualidade, embora ela esteja presumida ali em alguma medida. É com a proposta de regular os profissionais de psicologia que a entidade, especificamente, delimita um horizonte trans dentro da clínica, discutindo o que seriam as boas e as más práticas.

Existe todo um contexto que permitiu o desenvolvimento de uma resolução específica para pensar a expansão desse cuidado em saúde às pessoas LGBTs. Nele convém destacar a campanha “Despatologização das Identidades Trans e Travestis”, que o CFP lançou em novembro de 2014. Naquele momento, o apoio na luta contra a patologização do gênero visava englobar pesquisadores e ativistas em um projeto que discutisse, a partir dos Direitos Humanos, o fazer psicológico. Desde então, diferentes gestões estão pensando maneiras de produzir uma espécie de saber que conduza as/os psicólogas/os à reflexão sobre o que não deve ser feito.

A recente Resolução n° 01/18 estabelece algumas normas de atuação, dentre as quais podemos citar os artigos seis e sete, que definem, respectivamente, que psicólogas/os não devem legitimar preconceito ou favorecer a patologização das transexualidades, travestilidades e transgeneridades. Mas como exatamente isso pode ser alcançado? Acredite, a dúvida não me é surpreendente. Antes de chegarmos a ela, devo explicar brevemente o que digo quando separo transexual, travesti e transgênero. Determinados autores utilizam o termo “transgênero” como uma expressão guarda-chuva, como afirma Jaqueline de Jesus (2015)JESUS, Jaqueline. Homofobia: identificar e prevenir. Rio de Janeiro, Metanoia, 2015. , mas prefiro pensar que ele não diz muito sobre uma realidade brasileira. É nesse sentido que tenho optado por falar, quando necessário, em travestis e pessoas trans, embora algumas organizações representativas, como é o caso da Articulação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), tenham definido que tais sujeitos políticos respondem aos seguintes códigos: travesti, mulher transexual e homem trans. Posição política que não precisa ser dada como esgotada.

Cabe destacar que os termos sempre mudam, sendo importante, por um lado, acompanhá-los e, por outro, entender que eles dizem muito pouco sobre o tratamento em si. Por ex., é possível não dizer que o paciente “engana” como mulher ou como homem, não perguntar o “nome de verdade” ou não utilizar pronomes de tratamento que ofendam, porém, mesmo evitando essas atitudes, pode-se não conduzir um processo de subjetivação potente. Por ora, restrinjo-me a dizer que um vocabulário atualizado é algo interessante, mas que ele não garante a continuidade do tratamento por si só. Talvez trate-se apenas de um empecilho (e uma violência) a menos na relação terapêutica, todavia, não da condição pela qual ela se sustenta.

Sobre isso fui questionada no evento. Quando abrimos o debate, uma pessoa da plateia, identificada como profissional de psicologia, perguntou-me o que tinha que ela fazer, como receberia uma pessoa trans no consultório. Novamente, apesar de ter iniciado a fala informando-os que eu não saberia (e sequer poderia) responder a essa pergunta, notei que aquela angústia já havia sido minha em algum momento, quando cheguei à supervisão e após me sentar, com certo desespero e cansaço, ter dito: “não sei atender pessoas trans” – sendo ligeiramente interrompida por minha supervisora, que respondeu: “tudo bem, mas alguém sabe?”. Ao invés de tomar sua indagação como uma forma de lavar as mãos, dado que ninguém parece estar no domínio da situação, penso que é por meio dessa reflexão que podem ser construídas escutas sensíveis.

Após perguntar seu nome, respondo que saber o que fazer com pessoas trans na clínica soava-me como algo que já estivesse pronto, finalizado, esperando apenas a chegada desse outro. No entanto, uma terapia acontece na relação, sendo imprudente deixá-la preparada sem ao menos conhecer o que o outro espera de nós, do processo e da própria psicologia. Ainda assim, houve tréplica. A pessoa questionou novamente, com outras palavras: “não sei como receber essa pessoa trans, diga-me como você a receberia”. Falei, então, que receberia como qualquer outro paciente. Como está? Como foi para chegar à clínica? Esse bairro em que trabalho é perto de onde vive? Veio até aqui de carro, de ônibus, de bicicleta? Alguém te trouxe? Com quem mora?

Alguns risos na plateia. De fato, por mais que tais questionamentos soassem óbvios, às vezes é preciso um pouco de obviedade. Não se trata de dizer que todas/os as/os atendidas/os são iguais, em uma pretensa afirmação de equivalência, mas de pensar que ter a “diferença” como bússola não faz com que essa diferença consiga ser discutida. Provavelmente, movimentações que buscassem falar sobre a transexualidade, em um momento inicial, poderiam erguer um muro entre paciente/cliente e terapeuta. “Por que está me perguntando ‘desde quando sou assim’ se eu não trouxe isso como demanda?” “Qual é a necessidade de saber qual a forma que me identifico, uma vez que ela é a forma que me apresento?” A pressa em fazer dessa questão “uma questão” pode representar uma ruína ao vínculo. Por isso, é preciso um pouco de cautela, em paralelo àquilo que Pedro Ambra (2016)AMBRA, Pedro. A psicanálise é cisnormativa? Palavra política, ética da fala e a questão do patológico. Periódicus, v. 1, n. 5, 2016, pp.101-120 [https://doi.org/10.9771/peri.v1i5.17179 - acesso em: 28 nov. 2021].
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afirma quando situa que o gênero nem sempre será o protagonista das vidas de pessoas trans e travestis na clínica.

Em outros termos, isso significa assumir que a transexualidade como prioridade pode vir mais por parte de quem está atendendo do que de quem está sendo atendido. Por esse ângulo, quando minha supervisora pergunta se alguém saberia atender uma pessoa trans, ela está me colocando em contato com diálogos que tivemos em encontros anteriores: tais sujeitos, ou, mais precisamente, nós, pessoas trans e travestis, não somos previsíveis, assim como todos aqueles outros que buscam a clínica a partir de alguma demanda. Convém destacar que o reconhecimento de não saber o que fazer em nenhum momento implica um descompromisso com a clínica, mas um compromisso com a espontaneidade do outro. Ainda, deve-se conjugar o quanto de paternalismo haveria por trás desse “saber” antecipado, pois, apesar de sermos cuidadores, não temos saídas imediatas – algo que precisa ser assimilado até mesmo, ou sobretudo, por nós.

Não é possível saber o que fazer porque a fala “sei como te ajudar” pressupõe não só uma rede de estereótipos em relação à transexualidade, mas uma garantia muito sólida no resultado terapêutico. De modo paradoxal, nem sempre uma terapia será capaz de causar apenas efeitos positivos, como Leonardo Tenório e Marco Prado (2016) apontam, costuma ser o contrário. Ou seja, são justamente os tratamentos ofertados a pessoas trans e travestis que podem ser responsáveis por posteriores adoecimentos, quando os profissionais baseiam-se em uma cartilha nosológica ao invés de escutarem as produções de conhecimento (e vida) que advêm dos próprios sujeitos atendidos. Embora trabalhemos com a escuta, estamos lendo produções trans?

Eu sei, vimos pouco sobre toda essa discussão em nossas formações. Embora minha graduação tenha sido finalizada há poucos anos, imagino como, para quem se formou décadas atrás, toda essa questão pareça nebulosa. No entanto, não se trata de dar fim a um material cinzento. Trata-se, sim, de usá-lo a nosso favor. As precárias formações que tivemos não são conhecidas por seus debates raciais, de gênero, sexualidade, deficiência, gordofobia, dentre outros marcadores corporais associados à diferença, apesar de nos depararmos com esse público quando passamos a atender. Antes que me diga: “não tive aulas sobre isso”, eu digo que eu também não tive. Penso, até, que essas aulas pontuais, embora bem-intencionadas, não chegariam a fazer justiça a temas tão transversais, desde que Guacira Louro (2001)LOURO, Guacira. Teoria queer: uma política pós-identitária para a educação. Rev. Estud. Fem., v. 9, n. 2, Florianópolis, 2001, pp.541-553 [https://doi.org/10.1590/S0104-026X2001000200012 - acesso em: 28 nov. 2021].
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passou a pensar as políticas identitárias na educação.

Tampouco pretendo dizer que “aprendi o que aprendi” sozinha, em certa defesa do “mérito” que me soaria completamente inadequada. Eu quero lhe dizer, por certo, que “não saber” talvez seja precisamente a condição número um para esta discussão, pois além de ser um contraponto a todas essas especialidades psicopatológicas que sabem “bem” o que estão fazendo, também permite que a psicologia diga “menos” e escute mais. Já estamos há tempos ouvindo o que pensam os psicólogos sobre transexualidade, mas e o que as pessoas trans e travestis pensam sobre os tratamentos que são ofertados a elas? Não participam? Não constroem junto? Então, proponho que devemos fazer as pazes com a angústia do desconhecido, sem pressupor uma renúncia ética e política com quem atendemos. Caso estejamos lendo com atenção, a questão desde o começo não é o que fazer com pessoas trans, mas como falar “me diga como posso ser diferente para você?” para alguém que está cansado de ter que negociar o básico.

A necessidade de uma dissimulada parceria

Se você já atendeu alguma pessoa trans/travesti, talvez você não tenha sido o primeiro profissional de saúde mental que essa pessoa teve contato. Possivelmente, essas relações anteriores foram compulsórias, a mando da família, de parceiros ou do círculo de amizades. Não é raro escutar, quando você é visto como diferente em termos de gênero e orientação sexual, que é necessário ir à ciência em busca de algum conserto, como se o papel da psicologia fosse corrigir essa diferença. Sabemos que a disciplina psicológica não tem uma história distante desse tipo de prática, tendo sua trajetória, enquanto uma ciência aliada à norma, sido discutida amplamente por Amara Rodovalho (2017)RODOVALHO, Amara. O cis pelo trans. Rev. Estud. Fem., v. 25, n. 1, Florianópolis, Apr. 2017, pp.365-373 [https://doi.org/10.1590/1806-9584.2017v25n1p365 - acesso em: 28 nov. 2021].
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. Tudo isso deve nos levar a pensar se somos vistas/os como alianças possíveis ou ameaças, uma vez que alguns de nossos colegas de profissão1 1 A perspectiva de psicólogos “cristãos” é discutida mais profundamente por Cleber Macedo e Horacio Sívori (2018), fazendo referência àqueles que defendem publicamente seu direito de oferecer ajuda terapêutica para dar fim à homossexualidade. não parecem conter esforços negativos quando o assunto é saúde LGBT.

A partir disso é que se torna inteiramente compreensível que a figura do psicólogo seja vista com ressalvas, mas essa tensão também não está aí para ser simplesmente superada, pois é com ela que poderemos construir uma aliança mais sólida. Caso ainda não tenha ficado evidente, não está em discussão uma “clínica trans”, mas uma clínica atenta à produção da cisgeneridade enquanto um sistema que nos formata subjetivamente, algo compartilhado por autoras como Viviane Vergueiro (2016)VERGUEIRO, Viviane. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade), Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade, Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, 2016. e Jaqueline de Jesus (2012). Essa virada na compreensão do debate faz com que invertamos também a pergunta inicial do texto. Consequentemente, a indagação acerca do que faço com o outro passa a ser: “o que faço comigo?”. Para além de pensar em formas de se tornar menos ameaçador, como se para o sintoma não fôssemos sempre uma ameaça, segundo leituras de determinadas abordagens psicodinâmicas, é preciso sair do armário.

Assumir-se enquanto um/a psicólogo/a envolve processos bastante específicos. Podemos pensar, com calma, em pelo menos três. Em primeiro lugar, quem vai à clínica não está alheio ao que acontece na clínica, então falar sobre isso é necessário. Se a pessoa abordar que foi obrigada a ir à terapia quando era criança ou que está indo agora somente porque gostaria de obter um laudo, pode ser que ela não deseje sequer estar contigo. A partir daí, existem dois caminhos: disputar desnecessariamente o documento psicológico ou abrir o jogo sobre a possibilidade daquele caminho ser também produtivo de alguma forma, pensando na manutenção da autonomia e da agência. Não para dizer que iremos “reduzir danos” em psicoterapias compulsórias, mas para afirmar que não iremos fazer parte de um teatro roteirizado pela nosologia.

Em segundo lugar, reconhecer que atender pessoas cis ou trans não se trata de uma coisa tão diferente quanto gostaríamos de pensar que é. No fim, todas elas têm gênero e o trazem para discussão no consultório, umas com maior e outras com menor rigor. A despeito das apressadas interpretações de equivalência, essa sentença não deve descartar as diferentes estruturas de violência. Mães solo, pais homossexuais, mulheres que abortaram, pessoas que abandonaram o emprego devido ao relacionamento, que foram criadas pelos avós ou que são os próprios avós que criam os netos, dentre inúmeros outros exemplos que expõem como o gênero é relacional. Dessa forma, não se trata mais de pensar que gênero é sempre transgênero e que cisgênero é o natural, conforme discute Emilly Fernandes (2019)FERNANDES, Emilly. (Trans)passando os muros do preconceito e adentrando a universidade: uma análise das políticas para pessoas trans* dentro das instituições públicas de ensino superior do Rio Grande do Norte. Dissertação (Mestrado em Psicologia), Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal, RN, 2019. , mas de refletir como essa experiência comum a todos está sendo cortada pela transfobia. Dito de um modo simples, tal clínica não estaria colocada para que o sujeito crescesse enquanto trans, embora isso fosse possível, mas para que conseguisse lidar com um contexto transfóbico – sem que, para isso, a terapia torne-se um imperativo.

Por último, gostaria de pensar que uma das maneiras de responder à pergunta “o que faço comigo?” ou “o que fazemos comigo?” está em não presumir que o outro vá nos ensinar. Evidentemente, existem níveis de aprendizado em uma relação terapêutica, mas a incumbência de ser pedagógico pode representar um esforço dobrado para aquele que está em busca de assistência. Sim, é necessário saber o que o sujeito entende por transexualidade, por gênero, por sexualidade, mas não para que ele sinta como se estivesse nos dando uma exaustiva aula. É pouco indicado que tomemos esses conceitos como óbvios, sendo preciso que os estranhemos em determinada medida. Todavia, esse processo não deve fazer com que o paciente sinta como se estivesse diante de uma pessoa que está alheia à sua realidade.

Da mesma forma que Gloria Anzaldúa (2005)ANZALDÚA, Gloria. La conciencia de la mestiza: rumo a uma nova consciência. Rev. Estud. Fem., v. 13, n. 3, Florianópolis, Dez. 2005, pp.704-719 [https://doi.org/10.1590/S0104-026X2005000300015 - acesso em: 28 nov. 2021].
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trouxe ao escrever uma carta às mulheres do terceiro mundo, quando afirma que não deseja educar mulheres brancas e pegá-las pelas mãos, penso que não cabe ao outro a atribuição de atualizar nosso vocabulário – até porque a clínica é quem nos cobra uma atualização contínua. Ao mesmo tempo, saber isso não anula a inevitável afirmação: uma gramática aproximada significa apenas uma perda de tempo a menos para o paciente. Caso tenhamos o vocabulário como uma burocracia, poderemos avançar em nossas discussões. Caso o mantenhamos como a comprovação de uma expertise, pouco poderemos ajudar, em termos psicológicos, pois, nesse caso, a terapia se trataria de um lugar comum. Seríamos mais alguém que persegue uma cartilha, mas não alguém que escuta suas fissuras, seus dialetos, seus pajubás.

Já dissemos “bom dia”, “boa tarde” ou “boa noite”. A pessoa em questão já está conosco. Sentada em nossa frente, disse-nos que chegou bem, que o trânsito estava tranquilo e que o bairro em que atendemos é de fácil acesso. Nesse momento, ela está respondendo o que a trouxe ao consultório, mas não se referiu à transexualidade como uma demanda. É apenas um dentre muitos aspectos de sua vida. Parece-me que talvez fosse mais fácil se a questão da transexualidade fosse um ponto abordado, não é mesmo? Possivelmente seria, pois isso aparentemente se trataria de uma autorização para que perguntas consideradas recorrentes pudessem ser feitas. Como, por ex.: desde quando você é assim? Qual a sua lembrança mais antiga? Em que momento soube?

Podemos, ainda, dentro de uma lógica atual de debates, avançar para perguntas que supostamente não deveriam ser feitas. Geralmente, perguntas que dizem respeito ao genital, se a pessoa tem relações sexuais, como essas relações sexuais são, quais procedimentos cirúrgicos a pessoa já fez. Enfim, sem esquecer as perguntas que buscam conhecer o “nome verdadeiro” do sujeito. Nesse movimento híbrido, em que estou oscilando por minhas identidades de psicóloga travesti e travesti psicóloga, recordo de uma recente conversa que tive com outra psicóloga travesti. Ela faz parte do meu círculo de amizades e é alguém com quem divido algumas das inquietações a respeito da clínica. Em nossa conversa tivemos o seguinte diálogo, enquanto eu brincava que meu nome de registro havia sido Joaquim ou Junior, quando fui interrompida.

“Eu sei que esses não eram seus nomes” – ela falou.

“Mas como você pode ter tanta certeza?” – perguntei, curiosa.

“Não se lembra de quando me enviou o seu processo?”

Falava sobre o arquivo que continha o pedido de retificação de registro civil, feito por mim em 2013. Devo ter lhe enviado isso em meados de 2015, data em que ela também alterou os próprios dados. O que significa que teve acesso a laudos psicológicos, psiquiátricos e endocrinológicos meus. Ou seja, sabia mais do que o nome. Sabia de toda uma história ligada à compulsoriedade clínica.

“Sim, verdade, eu te mandei meu processo por email...” – comentei, lembrando.

“Tá vendo? Quer que eu te fale meu antigo nome também?” – perguntou.

“Não, não é necessário” – não sei se quero saber, lembro-me de ter pensado.

“Mas eu quero dizer mesmo assim. Aí a gente fica igual, tudo bem?” – insistiu.

“Tá bem, então me diga” – concordei. Depois disso, seguimos na conversa que estávamos tendo, embora tivéssemos acabado de cometer um “crime verbal”.

Sim, podemos pensar que a ideia de um nome de batismo enquanto “verdade” para o gênero é uma face da violência que atinge pessoas trans e travestis. Essa concepção que legitima o nascimento como uma identidade inteligível já foi intensamente discutida por Megg Rayara (2018), autora que tem se dedicado a estudar a força das expressões a que são designadas as pessoas LGBTs. De fato, uma conversa entre amigas não é o mesmo que uma conversa que se dá em um setting terapêutico. Ainda assim, insisto para que a cena seja útil para pensar que até mesmo as proibições “boas” funcionam de modo a considerar pessoas trans e travestis como blocos. Ora, é impossível que um paciente queira que conheçamos a forma que ele foi designado no passado e que esteja em “paz” com isso? Não para dizer que isso é um sinal de alguém bem resolvido -, superemos isso, se for para superar algo -, mas para defender que a transexualidade (com tudo o que a envolve) não seja desde sempre algo delicado. Ouvimos “A” transexualidade ou a pessoa que busca nossa escuta?

A delicadeza, no sentido utilizado aqui, faz referência à cristalização, um obstáculo em fazer a identidade causar menos sofrimento, ou seja, ser mais oxigenada. Por isso, se esperava um guia do que “não” fazer, talvez esteja sentindo uma compreensível decepção no momento, mas peço que possa enxergar esses limites “benévolos” como limites caros à própria relação. Às vezes, devemos segui-los, outras vezes, não. Eles são cruzados, pois uma terapia extrapola o dualismo “bem” e “mal”. Dessa forma, a única pessoa autorizada a te dizer até onde pode ir é a pessoa que está sendo atendida, não eu, não você e certamente não alguém que publicou as cinco perguntas que não devem ser feitas a transexuais. De modo contrário, estarão situadas duas pessoas com todos os mecanismos de defesa levantados. Mas a clínica não deveria ser um espaço em que outras perspectivas são possíveis?

Um autor interessado em discutir essa complexa relação entre terapia e transexualidade é o psicólogo Marco Prado (2018)PRADO, Marco. Ambulare. Belo Horizonte (MG), PPGCOM UFMG, 2018 [https://seloppgcom.fafich.ufmg.br/novo/publicacao/ambulare/ - acesso em: 28 nov. 2021].
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. Ele traz que a psicologia ainda estabelece um diálogo cínico com as práticas médicas, pois, ao passo que diz ser contra a patologização, não abre mão do papel de avaliador. Assim, permanece dando combustível a técnicas que buscam identificar uma “evidência” acerca do gênero do paciente. Em contrapartida, a proposta deste artigo é a de que esse cinismo seja convertido em uma parceria mais verdadeira, ainda que dissimulada, algo que convoque a psicologia a não responder aos protocolos psicopatológicos, lançando-a em direção a um “fazer” mais horizontal. Para além de um debate abstrato, essa horizontalidade deve soar para nós como uma alternativa.

Sem grandes soluções, às vezes esse movimento diz respeito a informar, por exemplo, a estrada que a psicologia percorreu (e percorre até os dias atuais) para lutar por seus fins despatologizantes, feitos que não estão dados, são conquistados a duras penas. Embora este texto não objetive ser um relato de experiência, pude observar, por meio desse lugar situado ( Haraway, 1995HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. cadernos pagu (5), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 1995, pp.7-41 [https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773 - acesso em: 28 nov. 2021].
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), seja enquanto paciente ou terapeuta, que uma das formas possíveis de produzir alguma confiança é justamente falando sobre ela. Não simplesmente dizer que o espaço clínico pertence a quem o busca, que ali é um território de sigilo, onde quaisquer coisas podem ser ditas e respeitadas. Embora dizê-las seja importante, estamos mais adiante. Com isso, está exposta a necessidade de ser colocado em xeque o real compromisso da psicologia.

Ora, se um paciente nos busca porque o médico endocrinologista informou que só vai atendê-lo caso ele apresente algum documento psicológico comprovando a sua condição “mental” enquanto transexual, convém refletir sobre quais alianças gostaríamos de fazer em instantes similares. De modo algum se trata de enxergar o setor “medicina” como necessariamente negativo - deixemos as caricaturas para trás -, mas de pensar que esse tipo de atribuição revela alguns entraves que não devem passar despercebidos. Se, por um lado, está presumido que iremos subsidiar, em termos laborais, a prática de endocrinologistas, como se o documento psicológico passasse a ser uma “proteção” às instituições e não um direito do usuário, por outro lado há ainda uma teia burocrática que afasta pessoas trans e travestis da saúde, situando-as na clandestinidade em relação a suas hormonizações – para mais detalhes, ler Alícia Krüger et al (2019).

As parcerias dissimuladas envolvem, dentre outras saídas criativas, estar junto. O que não quer dizer “escapar” da ética psicológica, mas disputá-la. Poderíamos pensar em paralelo a documentos como a Nota técnica sobre procedimentos voltados a pessoas transexuais e travestis (2016), do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, que estabelece algumas pistas ao orientar que não sejamos colocados como “apoiadores” de um tratamento, na consideração de como esse papel faria com que as estruturas de poder permanecessem sustentadas. Afinal, o/a psicólogo/a enquanto um “apêndice” da equipe não seria uma maneira sutil de resguardar o exercício nosológico? Em termos jurídicos, sociais, econômicos e políticos, estaria em jogo colocar a avaliação psicológica conforme um meio de tranquilizar o especialista, mas não para minimizar nenhum tipo de segregação - pelo contrário. Assim, é na intenção de mantermos esse provocativo diálogo que penso ser necessário abrir mão de algumas garantias, fazendo com que, tanto nós, quanto o processo terapêutico, não nos encontremos na obrigação de recorrer a fórmulas prontas.

Sem tantas promessas, recuemos um pouco...

Caso você seja uma pessoa entusiasta da psicologia, pode ser que pense que todo mundo precisa de terapia – uma rápida olhada em redes sociais de profissionais de saúde mental e sairemos com a mesmíssima conclusão. Aparentemente, convencionou-se dizer que a clínica é uma necessidade coletiva, mas não para pensar a ampliação de atendimentos sociais ou mediados pelo SUS (Sistema Único de Saúde). Pelo contrário, para pensar uma expansão do mercado psicológico a todo e qualquer custo, mesmo que, em busca disso, se gere aquilo que Rogério Henriques e André Leite (2017) denominaram de patologização do social e da gestão da vida.

Os autores apostam que ao invés desse tipo de afirmação ser capaz de alcançar algum fim apaziguador, fomenta uma cultura de medo e insegurança ( Henriques; Leite, 2017HENRIQUES, Rogério; LEITE, André. As artes adivinhatórias e a psiquiatria do futuro. Fractal, Rev. Psicol., v. 29, n. 1, Rio de Janeiro, Apr. 2017, pp.81-86 [https://doi.org/10.22409/1984-0292/v29i1/1552 - acesso em: 28 nov. 2021].
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). Em relação às pessoas trans e travestis, os mecanismos biomédicos parecem atuar sem menores constrangimentos, coibindo-as à clínica de maneira indiscriminada. Tal aspecto do raciocínio nosológico está fundamentado em uma simples sentença: é trans? Precisa de nossa ajuda. Uma coerção que está tão costurada no tecido social que dificilmente encontraremos alguma confecção midiática (telenovelas, documentários e até mesmo filmes) que não discuta a transexualidade sem ilustrar uma ida a algum consultório, pois, ao que tudo indica, esse é um tema que “pertence” à saúde. Mas é justamente essa a crença que queremos evitar, caso estejamos, com efeito, partilhando a mesma noção de ética.

Muitos operadores de saúde contribuíram para um registro psicopatológico do gênero supostamente divergente, como é o caso dos esforços empreendidos pelo endocrinologista Harry Benjamin (1966)BENJAMIN, Harry. The Transsexual Phenomenon. New York, Julian Press, 1966. . O médico acreditava que a única alternativa terapêutica adequada para lidar com pacientes transexuais era a cirúrgica, fazendo com que as psicoterapias passassem a ser descartadas. No entanto, em uma breve retomada histórica, as terapias daquela época não eram como as terapias que conhecemos hoje. Muitas delas visavam um “resgate às origens” quando se confrontavam com temáticas como gênero e sexualidade, pensando que a heterossexualidade e a cisgeneridade seriam, desde sempre, uma gênese para todos. Por outro lado, um movimento descisgenerizante, por exemplo, trata-se daquele que não circunscreve a terapia em torno de um inquérito generificado, que não toma o seu “fim” como tributário – necessariamente – à resolução da charada identitária: por que sou assim? Talvez nunca saibamos, e isso não precisa ser um terror.

No Brasil, tais tradições médicas e psicológicas foram problematizadas por Márcia Arán (2006)ARÁN, Márcia. O avesso do avesso: feminilidade e novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro, Garamond, 2006. , Berenice Bento (2006)BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro, Garamond, 2006. e Tatiana Lionço (2006)LIONÇO, Tatiana. Um olhar sobre a transexualidade a partir da perspectiva da tensionalidade somato-psíquica. Tese (Doutorado em Psicologia), Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília, 2006. . Autoras que refletiam sobre como a patologização das identidades trans e travestis criavam uma situação de dependência com e na clínica, algo que, novamente, deveria nos soar como “contraterapêutico”. Não podemos ignorar que esses mesmos protocolos se sustentam a partir da retirada de autonomia, também debatida nas produções de Daniela Murta (2011)MURTA, Daniela. Os desafios da despatologização da transexualidade: Reflexões sobre a assistência a transexuais no Brasil. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva), Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), 2011. . Retira-se a autonomia a partir do pressuposto que, sem a atuação de especialistas, uma transição seria sempre incerta, sempre insegura e sempre perigosa. No entanto, com um olhar mais aguçado, percebe-se que o que está sendo omitido é que às pessoas trans e travestis são negadas quaisquer possibilidades de arrependimento.

Arrependemo-nos diariamente. Da escolha de um curso, de ter tido um filho, de ter feito uma cirurgia, de ter evitado alguém, de ter iniciado uma terapia. Evidentemente, não são coisas simétricas. Nossos arrependimentos nunca serão planificáveis. Para uns, eles podem repercutir mais intensamente. Mas, para outros, não. Ainda assim, o arrependimento na clínica voltada a pessoas trans e travestis, dito grosseiramente, costuma estar dedicado a fazer referência a cirurgias. Por mais que todo e qualquer procedimento, estético ou reparador, seja irreversível, não parece que as mesmas providências (ou “preocupações”) são acionadas quanto às intervenções psicológicas. É como se entendêssemos as psicoterapias como reversíveis ou menos danosas, ainda que saibamos bem que elas não o sejam.

Devido a isso, em determinados cenários pode ser mais prudente sair de cena. Colocar-se à parte. Ou então se colocar em análise, pois a psicologia também é irreversível e a mesma capacidade de produzir saúde é aquela que fabrica adoecimento. E quem somos nós para dizer que alguém não vai se arrepender no futuro? Ou dizer que, por ter cumprido um ciclo de atendimentos, irá se arrepender menos? Uma clínica atenta às investidas nosológicas é uma clínica antagonista, que se compromete a abandonar o paradigma de uma ciência neutra, conforme propunha Céu Cavalcanti (2016)CAVALCANTI, Céu. Sobre Nós (des)organizados: Pesquisa intervenção em psicologia e o processo de implementação de políticas para pessoas trans* na UFPE. Dissertação (Mestrado em Psicologia), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, PE, Brasil, 2016. . Abandonar tal paradigma requer deixar para trás a crença de que trabalhamos para evitar que o sujeito mude. Assim, que ele se arrependa passa a ser um trabalho terapêutico a ser defendido, e não visto com horror.

O “fazer” psicológico está em controlar a vida ou em fazer essa vida ser vivida de maneira menos sufocante? A filósofa Judith Butler (2012)BUTLER, Judith. Cuerpos que Importan: sobre los limites materiales y discursivos del “sexo”. 2ª ed., 2ª reimp. – Buenos Aires, Paidós, 2012. afirma que a vida é mais vivível quando os outros não estão confinados a categorias que não funcionam para eles. Por esse ângulo, haveria pouca lógica em evitar o processo de reconsideração. Há mais saúde em se esquivar de nossas próprias ações ou em fazê-las doerem menos, integrarem-se mais? Para tanto, é necessária não só uma positivação das dissidências de gênero, mas também, desde uma perspectiva que pego emprestada de Rafael Cavalheiro (2019)CAVALHEIRO, Rafael. Caos, norma e possibilidades de subversão: psicanálise nas encruzilhadas do gênero. Dissertação (Mestrado em Psicanálise), Programa de Pós-graduação em Psicanálise, Clínica e Cultura, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, 2019.: o reconhecimento da contratransferência. Tampouco tomemos esse trabalho como um trabalho exclusivo da psicanálise, podemos chamar a ferramenta de outro nome, como “tele” ou “intencionalidade”. Nessa busca em fazer o texto ser democrático, não pretendo embaralhar instrumentos clínicos de diferentes abordagens, mas pensar como a capacidade de “se perceber” não pode ser perdida de vista de nenhuma escola psi . Do contrário, ela deve ser exercitada.

A clínica parte de uma racionalidade cissexista – essa é a suspeita que Maria Cidade e Pedro Bicalho (2019) têm ao refletir sobre quais seriam as condições de escuta em um contexto mais amplo guiado pela transfobia. Como seria um manejo que escapa do normativo?, eles questionam. Ainda que os autores estejam se referindo a decisões jurídicas, e que me pareça pouco prudente falar da “clínica” como uma entidade harmônica, as clínicas não escapam do seguinte fato: estão regidas por uma cultura, por uma visão de biologia, por uma pretensa ciência, por uma ideia de reprodução, de velhice, de família. No entanto, isso tampouco deve nos soar como uma desistência, como se a clínica fosse um caso perdido que não queremos disputar mais. Então, como fazer essa disputa sem transformar nossas reflexões em um decreto de verdade?

Esse é o convite que caminha entre os parágrafos. Tomemos este artigo como um ponto de partida, não como o único material a que teremos acesso. Possivelmente, já que estávamos há pouco tempo discutindo arrependimento, eu me envergonhe das provocações aqui escritas, entretanto, seria esse um sinal de que estou em movimento. Convido-lhe a estar também. Não só individualmente, falo em termos mais sofisticados. Parafraseando a educadora Maria Passos (2019)PASSOS, Maria. O currículo frente à insurgência decolonial: constituindo outros lugares de fala. Cadernos de Gênero e Tecnologia (CEFET/PR), v. 12, 2019, pp.196 [http://dx.doi.org/10.3895/cgt.v12n39.9465 - acesso em: 28 nov. 2021].
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, que promove o que chama de “pedagogia da travestilidade”, poderíamos construir psicologia(s) da travestilidade atenta(s) à produção social da cisgeneridade e não necessariamente uma clínica voltada a pacientes trans. É possível entender a dissonância?

(Des)cisgenerizar é cuidar

Despatologizar é uma expressão mais ou menos inteligível dentro da psicologia. Atualmente, é feio dizer que fazemos qualquer coisa que não seja despatologizante. Por certo, ninguém assume que a avaliação psicológica, voltada a pessoas trans e travestis, costuma ser psicopatológica, tendo em vista que se dedica a identificar uma espécie de evidência para a transexualidade. Afinal, falar, ainda que com boas intenções, que o tratamento psicológico garante uma melhor “certeza” em relação a uma transição é o mesmo que dizer que o papel da saúde mental é o de qualificar masculinidades e feminilidades. E espero que seja algo que queiramos evitar fazer.

Não podemos e não conseguimos certificar esse tipo de passagem. Os significados de “homem” e “mulher” não são sempre os mesmos. Para diferentes pessoas, um código, signo ou comportamento dito feminino pode ser compreendido como masculino, e vice-versa. Dessa forma, antes de nos vermos seduzidos a dizer para quem atendemos que no fim daqueles meses teremos uma resposta, talvez seja possível informar que trabalhamos com as perguntas, essas que, recorrentemente, nunca são respondidas. Uma vez que reconheçamos o gênero não mais como opositivo, mas intercambiável, conforme trouxe Patrícia Porchat (2014)PORCHAT, Patricia. O corpo: entre o sofrimento e a criatividade. Rev. Epos, v. 5, n. 1, Rio de Janeiro, jun. 2014, pp.112-130 [http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2178-700X2014000100007&lng=pt&nrm=isso - acesso em: 28 nov. 2021].
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, poderemos nos ausentar, mais tranquilamente, desse tipo de prática. No lugar de propor “descobrir” quem é aquele que atendemos, buscaremos pensar como o gênero pode causar menos dor.

Falo aqui de um empenho em exorcizar a(s) cisnormatividade(s) de uma psicoterapia. Se a base da clínica, de modo geral, é uma base cissexista, não estamos falando da necessidade de uma formação extra. Quiçá de uma formação precária. Estamos falando, estranhamente, de uma disciplina bastante nobre, que atuou junto a juízes, desembargadores, médicos e planos de saúde no detrimento da cidadania de pessoas trans e travestis. Essa formação não precisa ser melhorada, mas desfeita. O uso do termo “empenho” é porque esse distanciamento – ou o ato de (des)cisgenerizar – nunca está completo, ele é um movimento, uma constante. Não é uma mera forma de falar sobre despatologização com um termo diferente, é uma postura clínica que apresenta suas próprias estratégias para lidar com os desafios de uma ciência guiada pela psicopatologia.

Articular a cisgeneridade com uma prática clínica que está situada em um contexto de abandono familiar, evasão escolar, ausência de oportunidades no mercado de trabalho formal, brutalizações e assassinatos, é um movimento que reposiciona o fazer psicológico. Melhor dizendo, quem definiu que as prioridades de pessoas trans e travestis estão em saber se elas são “verdadeiramente” trans ou não? Aqui, talvez deva operar um senso de urgência para a psicologia, capaz de funcionar enquanto um chamado, uma convocação. Caso contrário, estaríamos discutindo uma clínica que se apresenta como tributária à diversidade, mas que se faz útil para reiterar o caráter central da norma. Nomeá-la significa desnaturalizá-la ou, como Haraway (1995)HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. cadernos pagu (5), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 1995, pp.7-41 [https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773 - acesso em: 28 nov. 2021].
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gostaria de dizer, significa expor a fronteira entre ficção e realidade social.

Se o cisgênero é construído como sinônimo de natureza, o papel da clínica é constituí-lo enquanto uma ilusão de ótica ( Haraway, 1995HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. cadernos pagu (5), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 1995, pp.7-41 [https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773 - acesso em: 28 nov. 2021].
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). Um destino que, embora se imponha como benéfico, diz respeito a um artifício violento e sufocante. Porventura, afirmaríamos: (des)cisgenerizar é oxigenar. Ressaltar os paradigmas sociais da desigualdade dentro de um sistema que regula corpos como antinaturais, inadequados ou doentios é parte do ofício de uma clínica “atenta” ao desafio enfrentado por pessoas trans e travestis. Serem vistas como quimeras, mediante uma compreensão de verdade impressa na constituição física, não faz com que nossa função se torne corrigi-las, aproximá-las da norma, mas dizer sobre as aberrações institucionais, sociais, familiares, escolares, trabalhistas, econômicas, culturais e políticas que subordinam suas cidadanias. E, então, buscar saídas. Essas saídas envolvem não puramente um domínio cognitivo, embora isso faça parte em alguma medida, mas sabendo ser possível ter participado de inúmeras palestras e “ workshops” sobre o tema, e ainda assim, justamente pelo foco errôneo imputado ao gênero, escutar “pouco” aquele que nos procura. Falo de saídas que produzam aproximações desajeitadas (e possíveis) com os coletivos, organizações e associações feitas por outras travestis e pessoas trans. A clínica não pode sair ilesa do que tais grupos têm a dizer sobre ela, tampouco a academia – não é sem um propósito que escrevo aqui sobre relações de amizade. Ademais, a cientifização da transexualidade que está sendo fomentada desde as décadas de 1960 e 1970 não deve ser tomada como obviedade, mas enquanto verdade que é produzida, não apenas encontrada, como discute João Maracci (2019)MARACCI, João. Reflexões sobre verdade e política: mapeando controvérsias do Kit Gay. Porto Alegre, Dissertação (Mestrado em Psicologia), Programa de Psicologia Social e Institucional, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, 2019. ao falar sobre o paradigma político da sexualidade.

Não substituamos uma cartilha pela outra. E vale destaque para que também não entendamos precocemente a expressão “profissional de psicologia” – utilizada ao longo deste texto – como análoga à “profissional cisgênero”. Trabalhemos com a noção de que pessoas trans e travestis também são psicólogas e que suas entradas na saúde mental reverberam a necessidade de outros horizontes. Sabemos o que foi feito conosco e mesmo chegando até aqui não desejamos repetir o que está posto. Aqueles que, balizados por alguma ideia de ciência, buscaram nos ensinar o que é ser homem e o que é ser mulher, fizeram da clínica um espaço seguro às violentas pedagogias de gênero. Tais tecnologias não nos servem.

Há, ainda, o estilo pessoal de cada terapeuta. Permitindo algum nível de contradição, venho trazer algumas ancoragens, úteis para que nos questionemos quando acharmos necessário. Penso que não se tratam de regras ou de recomendações, mas de perguntas que nos causem algum nível de angústia. Conforme suspeitava Jacques André (2001), se a situação de atender alguém é sempre angustiante, que essa perturbação possa ser abraçada por nós de uma maneira mais franca. Assim, trago algumas indagações que condensam parte das reflexões aqui desenvolvidas. Não para que se tornem, novamente, a permuta de um paradigma, mas para que possam ser adaptadas a diferentes intervenções clínicas que apareçam, desde a busca pela terapia até o seu encerramento. Seguem, mas seguem enquanto pistas, atalhos, caminhos de terra que passaremos por pouquíssimo tempo.

Estou considerando que sou fundamental a quem atendo? Estou avaliando se essa pessoa é suficientemente homem ou mulher? Quem está fazendo do gênero uma questão, o sujeito ou eu? Essa pergunta que fiz é útil ao tratamento ou é fruto de alguma curiosidade? De que maneira posso estar contribuindo para enquadrar o sujeito em uma narrativa apriorística? É necessário que sejam apresentados sintomas na infância para que a demanda do agora seja validada? Acredito que deve permanecer estável em suas decisões? Estou em busca de convencer a pessoa que atendo a desistir de alguma escolha não normativa sobre o próprio corpo? Falar sobre os resultados positivos e negativos das intervenções corporais é o mesmo que fomentar alguma espécie de pânico sobre suas irreversibilidades? Quem está tomando o corpo como um lugar sagrado sou eu ou o sujeito sentado à minha frente? Como posso mobilizar a clínica em seu benefício e não a favor de um legado psicopatológico?

Reflexões finais?

Por intermédio da pergunta que foi feita a mim e que move esse artigo, poderíamos ponderar: uma psicóloga trans e/ou travesti saberia respondê-la? Sou capaz de saber mais ou saber melhor somente porque vivo aquilo que teorizo? Não foi com essa proposta que busquei iniciar nosso diálogo, pois pensar em produção científica a partir do entrelugar não significa torná-la uma narrativa única. Buscando aprofundar o conhecimento situado, Beatriz Bagagli (2013)BAGAGLI, Beatriz. Máquinas discursivas, ciborgues e transfeminismo. Revista Gênero, v. 14, n. 1, Niterói, 2. Sem. 2013 [https://doi.org/10.22409/rg.v14i1.606 - acesso em: 28 nov. 2021].
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fala sobre a prestação de contas como um modo de não só dizer “é daqui que falo”, mas, sobretudo, uma forma de pensar a localização dos saberes corporificados, que declaram a necessidade de termos redes, conexões, encontros e trocas menos irreconciliáveis. Alternativas éticas que, para além disso, iniciam um processo de dissolução do binário cis versus trans, terapeuta versus paciente.

Desculpe-me por chamar a sua atenção até aqui com um debate que não faz a menor justiça às expectativas despertadas com o título que propusemos, mas ele se tornou a única via possível para materializar as suas, as minhas e as nossas dúvidas. Poderia ter começado lhe dizendo que sei exatamente aonde devemos ir e o que precisamos fazer. Os custos disso, sem dúvidas, seriam bastante altos. Sem falsas humildades, ser uma terapeuta trans ou cis não é algo que garante um tratamento melhor, assim como deter ou não uma suposta expertise. Controversamente, a potência da clínica reside justo em enfrentar as fantasias que nos colocam em um lugar de autoridade, muito pesado para nós e muito injusto para quem nos procura. Por isso, ao fim dessas páginas, trago mais dúvidas do que soluções.

Encontrar-se no outro é algo que fazemos desde muito cedo. Naquele fim de tarde, ao final do evento, quando o profissional se levantou e perguntou como deveria agir frente a alguém como eu, presumo que estava colocada a opção de me tornar um espelho. E embora espelhos sejam sedutores, eles também quebram, ficam sujos, embaçados, deixam de refletir tão bem quanto refletiram outrora. Peço, então, que encaremos os empecilhos que orbitam os “modelos” – mesmo aqueles autodeclarados como benéficos. Não se trata de dizer que a partir daqui iremos obrigar o outro a caminhar sozinho, mas que podemos segurar sua mão e ajudá-lo a descer as escadas. Daí em diante, a ausência de respostas pode nos assustar menos, mas essa é apenas uma hipótese, uma esperança na eficácia de perseguimos o problema ( Haraway, 2016HARAWAY, Donna. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham, NC, Duke University Press, 2016. ).

A primeira linha deste trabalho fala que não pretendo ensinar como atender pessoas trans e travestis. Se leu até aqui, foi escolha própria. Mesmo assim, quem sabe fosse mais adequado dizer que não é que não pretendo, é que não consigo, mas no lugar de tomar essa lacuna como um abrigo nosológico, penso que é nessa fronteira que poderemos sair em busca de outras epistemologias, outros métodos e técnicas. Digo, então, que não sei. E dizer “não sei” é algo que tenho feito cada vez mais em minha prática clínica, pois enquanto “saber” for a presunção de uma categoria estável, prefiro recorrer ao desconhecido poder de gestão do outro de me dizer o que espera de mim, de falar mal da psicologia comigo, de criar outros eus para nós.

Não se trata, com isso, de ser sacana de alguma forma, de dizer que iremos nos ausentar onde antes já existia muita ausência. Há poucas pessoas trans e travestis no círculo de amizades, no âmbito familiar, nas salas de aula, de supervisão, no trabalho, enfim, em inúmeros espaços. Um contraponto a isso não está em deixar as coisas prontas, esperando a “diferença” chegar ao consultório. Longe disso, uma postura contrária está em manter a psicologia atenta a limites que são contornados pelo paradigma cisnormativo, algo que envolve ter consciência dos potenciais prejuízos de uma intervenção psicopatológica e que engloba, também, a necessidade de nos distanciarmos de uma tradição clínica que produz precariedades. Assim, teimosamente, seríamos presenças sensíveis onde a ausência poderia levar a algum desengajamento.

Por fim, existem questões que não puderam ser abordadas, e essa não é uma falsa sentença. Assumo que algumas questões foram falsas perguntas, dessas que se respondem sozinhas, que são mais provocações do que indagações genuínas. Mas quando afirmo que existiram aspectos não abordados é pensando que as identidades trans, travestis e cis estão a todo o momento fabricando arranjos distintos. Justamente em razão disso é que não foi buscado fortalecer a caricatura cisgênero-patologizador, pois a patologização é uma planície maior e mais profunda que, embora materializada em práticas cotidianas, não deve ser individualizada. Que não tomemos essa virada na percepção como uma forma de nos desresponsabilizar, mas de reorientar nossos esforços éticos e políticos em defesa de outros mundos e fazeres clínicos. Criar o que não foi criado ainda.

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  • 1
    A perspectiva de psicólogos “cristãos” é discutida mais profundamente por Cleber Macedo e Horacio Sívori (2018), fazendo referência àqueles que defendem publicamente seu direito de oferecer ajuda terapêutica para dar fim à homossexualidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Nov 2022

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2020
  • Aceito
    13 Jan 2022
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