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Pobreza e ousadia em Gilka Machado: uma poesia de corpo, alma e natureza

Poverty and Daring in Gilka Machado: a Poetry of Body, Soul and Nature.

Resumo

Apesar de contar com uma pequena crítica, a do seu tempo e a mais recente, a obra da primeira grande poeta erótica do Brasil, Gilka Machado (1893-1980), ainda não é reconhecida e estudada como deveria. Este artigo se detém nos aspectos de uma vida pobre, que nos revela importantes questões a respeito da corporalidade. Em trechos analisados que geralmente descrevem ambientes, podemos entrever melhor sua sensibilidade sacrificada e especificaremos o desenvolvimento de um determinado motivo literário: a riqueza na pobreza.

Gilka Machado; Poesia feminista; Simbolismo brasileiro; Natureza; Pobreza

Abstract

Despite the limited analysis of her work, either in her time or our own, the works of Brazil’s first major erotic poet, Gilka Machado (1893-1980), are still not as recognized and studied as they should be. This article focuses on aspects of an impoverished life, which reveals important issues about corporeality. By examining certain passages that generally describe environments, we can better glimpse her sensibility of sacrifice and specify the development of a determined literary motif: wealth in poverty.

Gilka Machado; Feminist Poetry; Brazilian Symbolism; Nature; Poverty

1. Introdução

Numa visão estritamente conservadora, riqueza é sinônimo de mérito, sucesso e beleza, signo de vitória dentro do jogo da competitividade social. Pobreza é sinônimo de fraqueza e fracasso. Se uma pessoa não possui determinadas qualidades desejadas, isto é, se é velho, feio, vil e covarde, mas tem dinheiro, o dinheiro compra as qualidades que ela não tem, como atesta a famosa passagem de Timão de Atenas de Shakespeare: “Esta quantidade de ouro bastaria para transformar o preto em branco;/ o feio em belo; o falso em verdadeiro; o vil em nobre;/ o velho em jovem; o covarde em valente” (Shakespeare apudMarx, 2008MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo, Boitempo, 2008. Trad. Jesus Ranieri.:158; Shakespeare, 1989SHAKESPEARE, William. Obra completa, vol. I (Tragédias). Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1989. Trad. F. e Oscar Mendes.:394).

Para ser mais preciso, a riqueza corrige qualquer falha corporal e espiritual. A riqueza transforma o corpo e a alma de seu possuidor, não só porque a pessoa pode comprar belas roupas e embelezar-se, mas porque suas próprias falhas são corrigidas estatutariamente por meio do dinheiro, de modo que seu corpo, mesmo mantendo fisicamente um traço negativo, pode apagar tal traço com ostentação de posses. Logo, a riqueza habilita a constituição de um corpo divinizado. Ela torna a pessoa rica uma espécie de semideus, um verdadeiro super-herói. Por isso, Marx atribui ao dinheiro a propriedade de ser “a divindade visível, a transmutação de todas as propriedades humanas e naturais no seu contrário, a confusão e a inversão universal de todas as coisas” (Marx, 2008MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo, Boitempo, 2008. Trad. Jesus Ranieri.:159).

Contudo, se o sistema social é desonesto, se o mundo das relações sociais não privilegia as pessoas verdadeiramente dignas, segundo os próprios valores sob os quais a sociedade se sustenta, a pobreza passa a ter dignidade. Ela pode ser, na inversão dialética que a crítica social produz, até mais digna que a riqueza. Ela se transforma em sinal de sacrifício, e ganha valor moral, como é precisamente o caso na moral cristã. Segundo Paulo, em Coríntios 2, 8:9, “Com efeito, conheceis a generosidade de nosso Senhor Jesus Cristo, que por causa de vós se fez pobre, embora fosse rico, para vos enriquecer com a sua pobreza”. Se Cristo se fez pobre, quem é rico deve doar “segundo os seus meios e para além dos seus meios”, “com toda a espontaneidade” (Coríntios 2, 8:3). O cristianismo foi um elemento determinante para a qualificação não só de pessoas humildes, mas para a promoção da ajuda ao pobre. No modo como a moral burguesa se ajusta para se justificar como parte da cristandade, criando uma conciliação forçada entre negócios e compaixão, o rico obterá dois méritos: o mérito da obtenção de sucesso material e o mérito moral de doar aos pobres. Ele será a secularização de um guerreiro piedoso, uma contradição que é falsamente superada no conservadorismo burguês. O discurso liberal de defesa do capitalismo sempre ressalta que o sucesso dos negócios produz riqueza para toda a sociedade, porém, ao longo de todo o processo de modernização, a desigualdade entre uma maioria pobre e fracassada e uma minoria rica e bem sucedida só aumentou. Logo, a pobreza não é um elemento defeituoso e diminuto do sistema, a ser corrigido: é um elemento central e estruturante.

Segundo valores liberais, o negociante deve arriscar-se para enriquecer. Segundo valores iluministas, o indivíduo livre deve buscar o conhecimento avidamente, deve ousar saber, nas palavras da expressão latina citada por Kant no famoso ensaio “Pergunta: o que é o esclarecimento”, sapere aude (Kant, 1974KANT, Immanuel. Textos seletos. Petrópolis, Vozes, 1974.:100-101).

Já segundo valores artísticos anti-burgueses, o artista deve sair do senso comum com vistas a desbravar novos territórios estéticos e existenciais. Nesses três casos, cabe indagar se é possível a um pobre ousar em diferentes modalidades, isto é, se um pobre, além de enfrentar suas dificuldades de sobrevivência, seria capaz de dar um passo à frente e obter ou sucesso comercial, ou formação de alto nível, ou resultados estéticos inovadores em expressões artísticas.

Consultemos a seguinte passagem de um importante sociólogo, Thorstein Veblen:

O abjetamente pobre e todas aquelas pessoas cujas energias estão inteiramente absorvidas na luta pelo sustento cotidiano são conservadores porque não podem arcar com o esforço de pensar além do dia seguinte; assim como os muito prósperos são conservadores porque têm pouca ocasião de descontentar-se com a situação hoje existente (Veblen, 2010VEBLEN, Thorstein; CAMIC, Charles; HODGSON, Geoffrey M. The Essential Writings of Thorstein Veblen. New York, Routledge, 2010.:259, apud Adorno, 2001ADORNO, Theodor. Prismas: Crítica cultural e sociedade. São Paulo, Ática, 2001.:90).

A questão de nosso interesse é: um pobre pode ser artisticamente ousado? Segundo Veblen, em geral, não. A classe mais apta a rejeitar a autoconservação seria a classe média. Pobres teriam mais dificuldade de sair de suas atribulações e pensar para além delas. Já os ricos simplesmente não teriam necessidade disso. Parece, no entanto, que temos muitos exemplos de criatividade popular vinda de camadas pobres da sociedade, o que coloca tal tese sob suspeita. Além disso, temos também importantes exemplos de pobres que foram reconhecidos no âmbito erudito, da chamada alta literatura, especialmente vindos do simbolismo. Além do principal poeta simbolista brasileiro ter sido pobre e negro, Cruz e Sousa, a primeira poeta mulher brasileira inegavelmente ousada era pobre – e simbolista: Gilka Machado (1893-1980).

O pai de Gilka, segundo ela, era boêmio; a mãe, Theresa Costa, trabalhava no teatro e no rádio. Ela já vinha de uma família de artistas, poetas populares e músicos, que ganharam algum reconhecimento sem sair da pobreza. Em suma: Gilka veio de uma família de artistas pobres, e o meio que artistas pobres frequentam é o boêmio, que se tornou, no século XIX, o espaço de libertação dos rigores puritanos da sociedade do final do século, que seguia um modelo parisiense ou vitoriano que sempre era repressor e preconceituoso. A boemia era um espaço de libertação de ideias e de corpos, um local de encontro de artistas, que também se constituía no local de encontro de diferentes classes, nas quais se refugiavam pessoas mais sensíveis e revoltadas. Nesse sentido, podemos dizer que, embora pobre, Gilka teve um certo privilégio: se a mãe não teve como lhe dar uma educação formal, ela, diferentemente, deu-lhe uma vasta formação artística e libertária.

O traço essencial de ousadia que despontou em sua obra ocorreu desde o primeiro momento: venceu, com 14 anos, em 1907, o concurso literário do jornal A Imprensa, já com poemas eróticos picantes, e por isso seu reconhecimento se iniciou com comentários malevolentes. A ousadia artística de Gilka se manifestou cedo, expondo uma liberdade inédita na abordagem do corpo feminino. A temática erótica se confirmou no primeiro livro, lançado nos 22 anos da autora, em 1915, Cristais partidos, e se tornou pelo menos uma das tônicas de toda a obra posterior, formada basicamente por cinco livros. O quarto, chamado Meu glorioso pecado, é inteiramente composto de poemas amorosos.

Gilka teve a coragem de se expor como a primeira mulher a dar voz a um ponto de vista estritamente feminino do erotismo e sofreu muito com tal audácia. É basicamente a isso que sua pequena crítica se detém quando se dedica a seu caso. Aliás, geralmente a crítica mais recente, que se estende dos anos 80 até hoje, tem se limitado a fazer uma avaliação negativa da crítica machista do passado (como, por exemplo, a de Humberto de Campos (Campos, 1935CAMPOS, Humberto de. Crítica: Segunda Série. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1935.), Agripino Grieco (Grieco, 1947GRIECO, Agripino. Evolução da poesia brasileira. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1947.) e Medeiros e Albuquerque (Albuquerque, 1920ALBUQUERQUE, Medeiros e. Gilka da Costa Machado: Estados de Alma. In: Páginas de crítica. Rio de Janeiro, Leite Riberito & Maurillo, 1920, pp.67-81.)), o que é necessário, mas não basta. Ambas as críticas, a do passado e a do presente, falam pouco de sua obra, menos ainda de sua poética.

Podemos considerar que as quatro principais estudiosas que se debruçaram sobre a relação entre a vida e obra, e localizaram as questões do feminismo, são Sylvia Paixão, Nádia Batella Gotlib, Maria Lucia Dal Farra e Angélica Soares. O livro pioneiro de Sylvia Paixão, A Fala-A-Menos: a repressão do desejo na poesia feminina, de 1991, contém num de seus capítulos a primeira leitura mais extensa da poesia de Gilka, visando a questões feministas. Nádia Batella Gotlib apresentou, na abertura do 5o Seminário Nacional Mulher e Literatura: Natal, de 1 a 3 de setembro de 1993, trechos de uma rara entrevista que chegou a fazer com a autora e refletiu sobre as implicações de suas afirmações para mulheres escritoras, comparando-as, por exemplo, com declarações de Clarice Lispector (Gotlib, 1995GOTLIB, Nádia Batella. Gilka Machado: a mulher e a poesia. In: DUARTE, Constância Lima. (org.) Anais do 5o Seminário Nacional Mulher e Literatura: Natal, 1 a 3 de setembro de 1993. Natal, UFRN Ed. Universitária, 1995, pp.17-30.). Maria Lucia Dal Farra tem escrito alguns artigos sobre elementos da obra de Gilka e publicou o importante prefácio da última edição da poesia completa (organizada por Jamyle Rkain), que conta com mais detalhes o pouco que se sabe sobre a vida da poeta e os causos do meio literário (Farra, 2017FARRA, Maria Lucia Dal. Prefácio. In: MACHADO, Gilka. Poesia Completa. Org. Jamyle Rkain. São Paulo, V. de Moura Mendonça, 2017, pp.18-50.). Angélica Soares desenvolveu o caminho iniciado por Sylvia Paixão de refletir sobre a poesia erótica na autora usando Bataille como referência (Soares, 1995SOARES, Angélica. O Erotismo Poético de Gilka Machado. In: DUARTE, Constância Lima (org.). Anais do 5o Seminário Nacional Mulher e Literatura: Natal, 1 a 3 de setembro de 1993. Natal, UFRN Ed. Universitária, 1995, pp.33-42.; Soares, 1999SOARES, Angélica. Gilka Machado: um marco na liberação da mulher. In: SOARES, Angélica. A paixão emancipatória: vozes femininas da liberação do erotismo na poesia brasileira. Rio de Janeiro, DIFEL, 1999, pp.93-116.). Outros trabalhos mais recentes seguiram a linha de Soares de ler Gilka a partir da chave da transgressão (Dias, 2018DIAS, Júlio César Tavares. A Poética da Transgressão de Gilka Machado. Teoliterária, v. 8, n. 15, 2018, pp.297-315.). Algumas poucas dissertações e teses começaram a surgir, e a de Soraia Maria Silva, sobre Gilka e sua filha, dançarina de sucesso, Eros Volúsia, felizmente virou livro (Silva, 2007SILVA, Soraia Maria. Poemadançando: Gilka Machado e Eros Volúsia. Brasília, Editora UNB, 2007.).

Os artigos que se preocupam mais em analisar a obra são recentes. Gilberto Araújo, em “Gilka Machado: corpo, verso e prosa” (Araújo, 2014ARAÚJO, Gilberto. Gilka Machado: corpo, verso e prosa. Revista Brasileira, Ano III, n. 80, Rio de Janeiro, 2014, pp.115-128.), faz um percurso estrito por toda a obra poética publicada e serve como a melhor introdução para ela. Já Darlene Sadlier, em “O locus eroticus na poesia de Gilka Machado” defende que a obra de Gilka apresenta uma perspectiva erótica da natureza diferente do locus amoenus clássico (Sadlier, 2013SADLIER, Darlene J. O locus eroticus na poesia de Gilka Machado. Revista Brasileira, Ano II, n. 75, Rio de Janeiro, abril-junho 2013, pp.237-244.). Se os dois últimos exemplos já ensaiam uma atenção maior a alguns procedimentos de seus versos, sinto falta de uma análise mais demorada dos poemas. A pequena crítica ainda parece sofrer de fôlego curto.

De qualquer modo, o trabalho de Gilberto Araújo foi mais preciso, pois se esmerou em caracterizar com exatidão a sequência de livros da autora se servindo, como fundo comparativo, de seu precioso trabalho em torno de vários autores pouco conhecidos da poesia simbolista brasileira. Independentemente do caráter um pouco emperrado do conjunto da crítica em geral, esses poucos nomes que se debruçaram sobre Gilka merecem o louvor de ter dado atenção a uma poeta essencial da literatura brasileira e contribuído para esclarecer aspectos de sua vida e obra.

2. Riqueza na pobreza

Não há dúvida de que na obra de Gilka predomina o erotismo. Porém, o que pretendo fazer aqui é sair do holofote dominante direcionado a ele e focar na pobreza, que nos revela importantes questões a respeito da espiritualidade e da corporalidade, que são menosprezadas quando a temática é amorosa. A pobreza de Gilka tem sido apontada pela crítica, mas sem a reflexão que merece. Não quero repassar, mais uma vez, o pouco do que se conhece da história de vida da autora, que de fato é muito importante e interessante, mas é algo que a crítica tem feito para enaltecer a autora sem necessariamente prestar atenção à obra. Basta informar que o marido, poeta e jornalista, com quem ela se casa em 1910 aos 17 anos, Rodolpho Machado, morre prematuramente em 1924, obrigando-a a sustentar os filhos como diarista na Estação de Ferro Central do Brasil e em seguida manter uma pensão, escrevendo poemas ao lado do fogão, como ela mesma diz.

Em sua breve introdução a Poesias completas, volume lançado dois anos antes de sua morte, em 1978, o que mais sobressai é a insistência em sua pobreza, seja a vinda da família, seja a do próprio marido, seja a de seu infeliz destino de viúva precoce, na altura dos 30 anos (Machado, 1978MACHADO, Gilka. Poesias completas. Rio de Janeiro, INL, 1978.). Contudo, ao examinar a totalidade da obra, ficamos surpreendidos com a quase ausência de poemas que se referem a seu sofrimento econômico concreto, bem como à sua labuta com os trabalhos modestos dos quais se ocupou.

Gilka simplesmente não narra uma história de vida pobre em sua poesia. Ela não tematiza seu lugar de subalterna, como tantos poetas contemporâneos marginais hoje. O que se pode perseguir não são mais do que pequenas pistas descritivas de onde ela vivia. Mas é justamente nesses momentos que um olhar poético confessa, indiretamente, algo de um corpo sofredor: neles se revela uma série de inversões entre os polos de juventude e velhice, tristeza e felicidade, riqueza e pobreza. Em tais trechos, que geralmente descrevem ambientes, podemos entrever melhor um outro corpo, um corpo elidido, pobre, que neles se esconde. Vamos, então, examinar a forte correlação entre corpo e ambiente nessa poética simbolista, analisando trechos de poemas que melhor exemplificam essa correlação.

No seu primeiro livro, Cristais partidos, no poema “Aranhol verde”, uma trepadeira é comparada com “uma aranha invisível” que anda “tecendo viridente trama” no “meu telhado ao nível” (Machado, 1978MACHADO, Gilka. Poesias completas. Rio de Janeiro, INL, 1978.:16). Essa “incansável fiandeira”

todo o telhado encobre,

alonga-o em glauco teto,

pelas paredes pende. . . e a minha choça

já não tem aquêle aspecto

avelhandado e pobre,

como que se enriquece e se remoça;

e ó minha choça como ficas prazenteira,

e com que garbo, embora velha, vestes

esse fato verde que te torna criança! (Machado, 1978MACHADO, Gilka. Poesias completas. Rio de Janeiro, INL, 1978.:16).

Ela morava num casebre, numa “choça” que só se enfeita e rejuvenesce vestida da cor do vegetal. A planta, tão adorada e louvada no poema, é o consolo de se viver num ambiente precário, é ela que possibilita uma forma de contemplação poética de seu entorno, pois encobre, com sua expansão aracnídea, a ruinaria e a miséria, isto é, a feiura da moradia. O “garbo”, o luxo da casa, está na trepadeira: ela é a única decoração prazerosa do lugar, enaltecida com a apóstrofe da “choça”, personificada nos três versos finais citados. É um “fato”, um tipo de indumentária que, ao contrário de dar um ar adulto, cria um ar de inocência, de rejuvenescimento, de maravilhamento em quem a traja. A vestimenta imaginária faz exatamente aquele tipo de inversão que o dinheiro produz na falha das pessoas: torna jovem a velhice da casa. A choça mesma, figurada como um corpo, um corpo feio, envelhecido, torna-se jovem e belo, isto é: rico.

A ironia de todo esse louvor da trepadeira é suspeitar que ela mesma talvez seja um sinal de deterioração da estrutura do casebre. O que parece ser a solução da feiura da choupana deve ser mais provavelmente um elemento categórico de sua ruína. Tal ironia implícita, contida na comparação com a aranha, se confirma no título: aranhol significa o buraco onde a aranha se recolhe. Toda a choça não passa de um abrigo para a “incansável fiandeira”, a trepadeira; a choça é mais a casa dela do que da poeta. Outra possibilidade: a poeta mesma é implicitamente metaforizada como uma aranha que vive num buraco qualquer; a trepadeira pode fazer o papel de seu duplo. O abrigo para seu corpo elidido confunde ruína com ornamento. O poema, inclusive, corporifica a choça para melhor elidir o corpo que a habita, pois ele não passa de uma aranha, um inseto, diante da sociedade dos homens distintos.

Mas essa variante interpretativa alegórica não é necessária para constatar todo o contato erótico entre o perfume vindo de “flores de pelica branca” e a poeta inebriada, na sequência do poema. A trepadeira é seguidamente comparada a um “polvo estranho” de “tentáculos verdes” e a uma “serpente” disfarçada no meio da noite, isto é, derivativos animais da primeira comparação com a aranha. O vegetal é predominantemente animado ao ser animalizado e é tal juvenilidade vital que alegra a vida cansada de quem a descreve.

Nesta ausência absoluta de prazer,

buscam sempre os prazeres exteriores,

estes olhos cansados de fitar

minhas íntimas dores; (Machado, 1978MACHADO, Gilka. Poesias completas. Rio de Janeiro, INL, 1978.:17).

A trepadeira é o grande consolo de uma sofredora: a enorme “ausência de prazer” motiva diretamente um deleite gratuito e simples com o vegetal, que serve para deslocar o olhar da aflição e preencher o vazio de bem-estar de uma mulher pobre.

O final do poema se angustia com a hipótese de que a planta estendida não seja mais do que uma fantasia: “vejo-a reproduzir minha seca esperança,/ tecendo a trama da ilusão primeira”. Voltando à imagem da fiação aracnídea, agora projetada na divagação enganadora, a moradora da choça se inquieta com a falta de concretude de toda essa apreciação, como se, no final das contas, qualquer prazer real, para um despossuído, devesse cair na suspeita de ser irreal, fraudulento. Ela clama a sua peculiar interlocutora que

(Não tenhas tu, formosa trepadeira,

a curta duração

dessa minha ilusão...) (Machado, 1978MACHADO, Gilka. Poesias completas. Rio de Janeiro, INL, 1978.:18).

Parece que toda a alegria da beleza singela não passa de delírio insensato de uma poeta indigente. A súplica final, posta entre parênteses, pede à planta que sustente sua existência real, em vez de se submeter à quimera de uma observadora cansada. A ponderação íntima do aparte, explicitada numa estrofe inteira terminada com a vaporosidade dos três pontos, é mais importante do que toda a contemplação duvidosa anterior. Ela roga à planta não ser mera projeção subjetiva da poeta: que a planta não seja humana, que seja um “polvo estranho”.

Se em “Aranhol” o pouco que se tem em casa de aprazível é posto sob suspeita, em outro poema a jovem se vê abastada pelo que não possui. No próximo livro, Estados de Alma, de 1917, em “Manhã de bonança”, ela se considera “rica” simplesmente por usufruir da luz da manhã, a qual carrega um “tesouro” feito de “ondas de ar”, que doura, embeleza e alegra as coisas.

Como eu sou rica! a luz me é portadora

de um tesouro trazido em ondas de ar...

Nesta manhã completamente loura,

tenho a alma de alegria a chocalhar!

[...]

Quanta riqueza! — Sob os céus escampos,

rola um rio, rutila a prata fluente,

e, atapetando de pelúcia o ambiente,

há pubescências vírides de campos (Machado, 1978MACHADO, Gilka. Poesias completas. Rio de Janeiro, INL, 1978.:66).

O olhar poético vê fortuna na beleza bucólica: brilho da água fluvial, céus sublimes, viço verdejante, tudo participa da atmosfera fausta condecorada com o tapete do gramado. Pensando historicamente, a “pelúcia” das alfombras é um signo de opulência por vir inicialmente das peles de animais caçados. Ter a propriedade de peles valiosas, obtidas da execução impiedosa de mamíferos, é signo de abundância. A poesia, nesse caso, atribui à natureza viridente o requinte ligado à propriedade de peles, cuja impressão tátil se desloca para a “pubescência”, isto é, a penugem vegetal. A vegetação é majestosa. Ainda assim, o luxo do trecho acima está menos na ideia de propriedade do que na de prazer sinestésico, entre a suavidade tátil e o brilho visual. A concentração de tantos estímulos paisagísticos revela a opulência que a interessa.

Perfumes... cores... sons... e a alma, surpresa,

sem carinho, sem pão, sente-se rica,

no gozo emocional da Natureza! (Machado, 1978MACHADO, Gilka. Poesias completas. Rio de Janeiro, INL, 1978.:67).

A alma, sem pão para o corpo, é quem sente, e não o corpo; ela surpreende-se abastada no êxtase bucólico: é o que lhe basta, se o sujeito, de corpo e alma, não tem de onde tirar outro tipo de riqueza. “Perfumes… cores... sons...”, três palavras de contagem silábica decrescente, como se houvesse uma redução ao essencial, denotam puras sensações soltas, plenas de sugestão e vazias de sentido, no plural, e povoam a suntuosidade sensitiva da experiência espiritual, na falta do carinho superficial que posses como bichos de pelúcia, por exemplo, dariam a uma menina bem-nascida. A aliteração da letra s reforça a pluralidade dessa fartura de sensações, enquanto o polissíndeto da preposição sem, por contraste, reforça a escassez de alimento e conforto, de nutrição material e afetiva. Se o capitalismo predador destrói a natureza e empobrece a maioria, a poeta mulher pobre sabe sentir a verdade da natureza, com maiúscula, isto é, a sua riqueza essencial, de onde todas as outras mercadorias manufaturadas provêm. A sugestão solta de sensações e a conjunção sinestésica de sentidos diversos, provas de esbanjamento propriamente simbolista, espiritualizam a vida pobre com uma riqueza de outro mundo, que não é o mundo espiritual, é o mundo natural mesmo.

Nesses dois exemplos já se delineia o tópos literário que mais rege a relação de Gilka com a pobreza: a riqueza na pobreza. É esse motivo que transforma um corpo concreto “sem carinho, sem pão” em corpo farto de bens espirituais, na qualificação poética da natureza. Sabemos que esse motivo, riqueza na pobreza, é bem comum na literatura cristã e tem origem em exemplos como o de Paulo citado acima.

Ernst Robert Curtius, no seu clássico Literatura europeia e Idade Média latina, identifica no modesto barqueiro Amiclas a origem da imagem da “pobreza contente”. Amiclas, “cuja pobre choupana era a morada da paz, enquanto se tratava a guerra civil e o soberano de Roma [César] temia pela sua vitória”, foi retratado por Lucano na Farsália (epopeia incompleta escrita entre 61 a 65 d.C.; Lucano, 1984LUCANO, M. Anneo. Farsalia. Trad. Antonio Holgado Redondo. Madrid, Gredos, 1984.:235). Tal imagem do personagem tornou-se influente na poesia a partir do século XII, sendo transformada pelo cultivo da virtude da humildade cristã. “Em Dante, Tomás de Aquino, em seu elogio a Francisco de Assis, aponta Amiclas como exemplo de pobreza virtuosa, e Petrarca ainda o menciona (8° écloga)” (Curtius, 1979CURTIUS, Ernst Robert. Literatura européia e Idade Média latina. Brasília, Instituto Nacional do Livro, 1979.:63). Porém, em Gilka, tal motivo apresenta algumas modificações, que ficarão mais claras em seguida, e ganha um novo rendimento, ao ostentar o excesso sinestésico simbolista a seu favor.

Em Sublimação, de 1938, um poema chamado “Serenata” – uma homenagem à ilha de Paquetá, no Rio de Janeiro, que se tornou bem conhecida de seus habitantes e até aproveitada pelo turismo – repete a mesma pompa silvestre:

Quando te vejo, à lua e ao sol, acesa,

e erro por teus caminhos solitários,

sonho parques lendários,

sonho-me uma princesa

exilada, sozinha,

e como, então, sinto que és toda minha,

que é minha tua esplêndida riqueza! (Machado, 1978MACHADO, Gilka. Poesias completas. Rio de Janeiro, INL, 1978.:206).

Na ilha, a fantasia da poeta de fazer parte de um reino só seu de verde e mar reforça a ideia da felicidade vinda de uma riqueza simples, sob a luz do céu diurno ou noturno, que permite a contemplação embevecida. A bela realidade do lugar provoca o incitamento onírico da aventura em solitude, que se acentua na prosopopeia de “caminhos solitários” percorridos por uma “princesa exilada”. O lugar é o exílio ideal tomado por uma personalidade estranha, diferenciada. A anáfora de “sonho” e a anadiplose do possessivo “minha” reforçam a ligação íntima do eu lírico com certo arquétipo da ilha da fantasia, da ilha dos sonhos. A beleza natural do ambiente leva o eu poético feminino a se sentir “princesa”, isto é, rica, nobre, jovem. Mais uma vez, o fausto natural se torna riqueza espiritual, que transfigura o corpo da poeta.

Contudo, é nesse livro que se verifica, diferentemente da rarefação simbolista de Estados de alma, uma poética social mais concreta, vinda do momento histórico nacionalista, de preocupação com camadas populares, que a poesia na ocasião apresentava. No entanto, se esse livro é o menos simbolista, é também impensável sem o legado do movimento, que, precisamente, encontra nos elementos brasileiros que identifica um pendor extático, místico, que não vem senão de um olhar embevecido próprio do simbolismo, o que justifica a caracterização do livro como pós-simbolista. Por isso, discordo de Darlene Sadlier quando afirma que “Gilka Machado nos mostra um diferente tipo de natureza – uma natureza mais pagã e animista cujas implicações são freudianas em vez de espirituais – e é isso que a distingue dos simbolistas” (Sadlier, 2013SADLIER, Darlene J. O locus eroticus na poesia de Gilka Machado. Revista Brasileira, Ano II, n. 75, Rio de Janeiro, abril-junho 2013, pp.237-244.:239).

Em vez de supor que o simbolismo seja um movimento puramente espiritualizante, para seus estudiosos mais dedicados é notório que ele mistura, confunde e embaralha corpo e espírito. Já nos primeiros momentos decadentistas do simbolismo, por exemplo, no famoso livro Às avessas, de Huysmans, o personagem Des Esseintes, quando busca as correspondências entre sons e cores, adora “o odor do pecado, a sensualidade dos perfumes profanos [...] essas orgias olfativas determinam nele as visões, os êxtases mais delirantes” ["l’odeur du péché, la sensualité des parfums profanes [...] Et ces débauches olfactives déterminent en lui des visions, des extases toujours plus délirantes"], pois, ao contrário dos naturalistas, que são somente materialistas, “tal sensualidade se impregna de um certo misticismo” ["cette sensualité s’imprègne d’un certain mysticisme"], segundo um dos maiores teóricos do simbolismo, Guy Michaud (1961MICHAUD, Guy. Méssage poétique du symbolisme. Paris, Nizet, 1961.:252, tradução minha,). Também não é possível dizer que a sensualidade só ocorre no decadentismo e não no desdobramento do simbolismo. Saint-Pol-Roux afirma sua profissão de fé para a famosa enquete de Jules Huret, que foi essencial para a teoria simbolista:

Sim, a Poesia, síntese de artes diversas, é a uma só vez sabor, perfume, som, luz, forma. Sua obra prismática (às cinco facetas, saborosa-odorante-sonora-visível-tangível) é o domínio onde a alma reina sobre o mosaico formal e governa em meio a uma orquestração fundamental. O subjetivo no objetivo. Arte perfeita, onde, por uma vizinhança estranha, quase parece espiritualizar a matéria e materializar a ideia, a forma é a gaiola de leões e de faisões da abstração, ela corporifica a idealidade, idealiza a realidade” (Huret, 1891HURET, Jules. Enquête sur l’évolution littéraire. Paris, Charpentier, 1891.:150, tradução minha).1 1 “Oui, la Poésie, synthèse des arts divers, est à la fois saveur, parfum, son, lumière, forme. Son oeuvre prismatique (aux cinq facettes, sapide-odorante-sonore-visibletangible) est le domaine où l’âme règne sur une mosaïque formelle et gouverne au milieu d’une orchestration foncière. Il em résulte un art attique amplifié: l’idée enchâssée dans un quintuple climat. Le subjectif dans l’objectif. Art parfait, où, par un voisinage étrange, semble presque se spiritualiser la matière et se matérialiser l’idée, la forme est la cage des lions et des faisans de l’abstraction, elle corporise l’idéalité, idéalise la réalité.”

Tal reciprocidade potencializadora entre espiritualidade e materialidade é uma típica característica da teoria e prática do movimento, mesmo nas suas manifestações mais espiritualistas, e a característica diferencial de seu espiritualismo é ser ostensivamente sensual, criando uma pletora de nexos entre elementos materiais, bem como entre o material e o espiritual. Ambos os dois tipos de correspondências pretendem enriquecer a corporalidade da experiência. Logo, não faz sentido opor natureza e espiritualidade, se grandes poetas simbolistas, como Verlaine, Cruz e Sousa e Mallarmé desmontaram tal binarismo em vez de escolher um só lado.

Além disso, também é falso dizer que o simbolismo não tem uma face social. Segundo Michaud, as obras Les Campagnes hallucinées, de 1893, e Les Villes tentaculaires, de 1895, de Émile Verhaeren são exemplares do ramo do simbolismo mais dedicado a questões sociais e políticas (Michaud, 1961MICHAUD, Guy. Méssage poétique du symbolisme. Paris, Nizet, 1961.). No caso do simbolismo brasileiro, basta mencionar todo o engajamento político dos escritores anticlericais paranaenses, para só ficar com o exemplo mais evidente2 2 Veja o capítulo 4, “Escritores e militantes anticlericais”, de Bega, (2013:309-334). . Finalmente, vale citar a ponderação de Péricles da Silva Ramos: “não vemos como arredar do Símbolo alguns poetas que às vezes são apresentados como ‘pré-modenistas’: Augusto dos Anjos, Gilka Machado, Raul de Leoni e outros, todos de nítidos característicos simbolistas” (Ramos, 1979RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. Do barroco ao modernismo. Rio de Janeiro, Livros Técnicos e Científicos, 1979.:230). Maria Tarcisa Bega corrobora:

Concordamos com a posição de Ramos por considerar a expressão “pré” destituída de conteúdo específico, não podendo tornar-se uma categoria, nem analítica, nem classificatória. Demonstra, no mais das vezes, a incapacidade teórica em explicar um fenômeno social pelas características intrínsecas, isto é, não podendo dizer o que é, atribui-lhe um sentido pelo que não é (Bega, 2013BEGA, Maria Tarcisa Silva. Letras e política no Paraná: simbolistas e anticlericais na República Velha. Curitiba, Editora UFPR, 2013.:148).

No caso do livro Sublimação, deve-se salientar, então, que seu pendor social não é nenhuma prova de diminuição ou afastamento de características simbolistas. A “alma”, segundo o poema citado acima, “Serenata”, se enriquece na natureza, não se anula nela. Na verdade, esse tipo de afirmação da crítica serve, justamente, para menosprezar e marginalizar o valor da poesia brasileira simbolista, que ainda merece ser melhor estudada. É muito comum observar uma diminuição do movimento por meio do enaltecimento de um poeta que se quer canonizar. O problema é que diminuir o período engrandecendo sempre só um ou uma poeta (como Augusto de Campos tentou fazer com Pedro Kilkerry, por exemplo) implica manter todos os outros no esquecimento. Mais vale, na verdade, analisar a singularidade de cada um do que desprezar a maioria para coroar o único escolhido, que, aliás, em seguida é frequentemente nobilitado como acima e fora da tendência. É justamente por causa dessa lógica, inclusive, que Gilka Machado não foi devidamente reconhecida e estudada até hoje, e retirá-la do meio simbolista, o único que a acolheu, é uma forma equivocada de defendê-la.

Voltando ao livro Sublimação, há vários poemas, de fato, que retratam o pobre com total simpatia e entusiasmo por sua brasilidade, como “Negra baiana”, “Ode aos trabalhadores” e “Mocambos”. No livro Mulher nua, de 1922, já havia um poema dedicado à “Lavadeira”, que antecipava tal inflexão.

Mas no último, no derradeiro poema de Sublimação, cujo título é “Felicidade”, encontra-se uma solene declaração que concentra a verdade de uma vida inteira:

FELICIDADE

Felicidade

de não ter nada meu

e escancarar, com as mãos vazias,

as janelas aos dias,

agradecendo aos céus esta riqueza

da minha super sensibilidade

para a beleza,

para a bondade.

[...]

Felicidade

ridícula talvez, talvez insana,

de recalcar tudo que me consome,

de distrair minha própria fome

com a fome de matar a fome humana.

[...]

Felicidade

(que é meu orgulho certamente vão),

de, em versos, me haver dado inteira à humanidade

na impossibilidade

de ser pão (Machado, 1978MACHADO, Gilka. Poesias completas. Rio de Janeiro, INL, 1978.:246).

A entrega desabrida e satisfeita do que não se possui é o primeiro paradoxo a se observar. “Escancarar” com mãos vazias as janelas abertas é a imagem de sua doação integral à humanidade sem segurar nada para oferecer; mãos que, justamente, podem abrir a janela “na impossibilidade de ser pão”, isto é, metonímia de “ter alimento para os pobres”, não poder dar ao faminto o que ele precisa, mas apenas a única riqueza que se tem: poesia, que motiva um orgulho, talvez beletrista, imediatamente caracterizado como vão. A rima oposta dos monossílabos “vão” e “pão” conotam carência e privação, contrastando com a grandiloquência da rima dos versos de dentro da terceira estrofe, com palavras alongadas, “humanidade” e “impossibilidade”, reflexos da anáfora de “felicidade”.

Na primeira estrofe, quando nega que se tenha recursos, ela agradece “aos céus”, ao elemento aéreo, rarefeito, superior, soberano da natureza, “esta riqueza da minha super sensibilidade”, o alcance de uma faculdade estranha e ímpar. Nega posses e afirma a desmedida capacidade de recepção da materialidade gratuita da natureza, que doa beleza e bondade, duas qualidades bem platônicas, mas que nada levam a possuir. A faculdade extática, que podemos chamar de suprassensível, de Gilka, é uma espécie de dom de captação do sublime natural (beleza) e moral (bondade), que não se pode positivar nem obter.

A felicidade, dita irrisória, da segunda estrofe, isto é, ridicularizável, sem valor, “ridícula talvez, talvez insana” varia o ritmo com uma anadiplose que conjectura entre a loucura e a insignificância, duas típicas formas de apagamento da voz subjetiva. A reiteração insistente e dialética da palavra “fome” assevera que há uma satisfação desatinada a disfarçar a própria falta de alimento com o desejo de resolver o problema da subnutrição dos famintos. Ter fome de “matar” a fome: um oxímoro (ter fome de alimentar o outro) e uma conhecida expressão hiperbólica (“matar a fome” sugere o teor trágico de que, se ninguém matar a fome, é a fome que mata). Uma figura redobra a outra com vistas a dramatizar a necessidade absoluta de eliminar o principal problema da humanidade com a impotência da poesia de fazer algo concreto, cuja potência real, entretanto, está em dizer, melhor do que qualquer outra expressão e atividade, o absurdo extremo a que chega a desigualdade social – é o que a poeta dá de si mesma, ela se dá em versos. Na verdade, desde que a escritora quis “ser pão” (recorde-se do poema anterior, “Manhã de bonança”, em que a alma estava “sem pão”), há um desejo furtivo arcaico de ser vítima do sacrifício pré-histórico, mediado por uma certa sugestão indireta de imitar Cristo e servir ela mesma como parte de uma eucaristia que nutra, concretamente, e não só simbolicamente, o pobre. Em outras palavras, trata-se de uma sacralização da subsistência do esfomeado e uma dessacralização política da eucaristia.

Pode-se pensar uma outra raiz primitiva da operação específica de alimentar o outro com o próprio corpo. A palavra felicidade vem do latim felix, que significa fértil, frutuoso, mas cuja raiz indo-europeia, dhehi, significava amamentar, dar nutriente, qualidade própria da fêmea. O poema, então, explora rigorosamente a etimologia: a poeta se sente uma fêmea impossibilitada de amamentar concretamente os famintos, mas dedica seu ofício à causa, isto é, na falta de alimento concreto, oferece alimento verbal. O alimento que vem do próprio corpo da fêmea falta à poeta, restando-lhe recriá-lo no corpo poético. Nesse caso, o lugar da mulher na dimensão política do poema contém surpresas ocultas.

A felicidade da poeta está em insistir não no que a conservaria, mas no que arrisca sua existência no cerne da aporia. O verbo recalcar não é empregado, naturalmente, no sentido psicanalítico, e sim no sentido mais comum de reprimir desejos inapropriados, ao mesmo tempo que não desiste de se doar radicalmente enquanto mulher nua para a causa social numa espécie de afirmação alegre e trágica, em que, porventura, o engajamento e a embriaguez dionisíaca se encontram.

A palavra felicidade inicia tais estrofes, como um verso inteiro anafórico, criando uma atmosfera de agradecimento e asserção, quase como a ladainha da prece. As rimas são fáceis e pobres (em “dade” e “ão”), como se tal pobreza intencional desse recurso formal refletisse a pobreza de bens. Somando a repetição anafórica de “felicidade” e dos versos polimétricos e de número variado nas estrofes, o todo compõe uma harmonia sonora elementar, com um conteúdo, no entanto, vigoroso e imponente.

3. Opulenta ousadia

Em todos os trechos analisados, o tópos da riqueza na pobreza, vivida na proximidade com a pompa natural, se evidenciou. Em “Aranhol verde”, do livro Cristais partidos, a trepadeira aracnídea embeleza e rejuvenesce a moradia pobre e a choça mesma é figurada como um corpo debilitado que veste um “fato” e se torna rico. Em “Manhã de bonança”, de Estados de alma, a luz da aurora é portadora de um tesouro no ar, inalado, experienciado, mas que não pode ser apreendido; a alma sente-se abastada no êxtase bucólico, mesmo que o corpo não tenha pão. O poema “Serenata”, de Sublimação, dedicado à ilha de Paquetá, encontra na beleza silvestre da ilha um exílio ideal onírico da poeta, seu reino encantado, onde ela se vê transfigurada como princesa. “Felicidade”, também de Sublimação, agradece aos céus a dádiva, por ele concedida, de uma faculdade suprassensível, a faculdade poética da “super sensibilidade” de captar o sublime simultaneamente natural e espiritual, que lhe motiva um orgulho vão, bem como distrai sua miséria ao desejar “matar a fome” de seus companheiros famintos. “Felicidade” assume a afirmação trágica de, com mãos vazias, sem posses, doar seu ser, seu estado permanente de mulher nua, à causa da redução da desigualdade social. Nesse caso, a poesia enriquece espiritualmente a condição de pobreza da poeta em meio aos esfomeados.

É precisamente o último poema analisado, final do livro Sublimação, que conta a verdade da ironia implícita no primeiro poema, “Aranhol verde”. Neste, ela só queria ver o embelezamento produzido pela trepadeira na choça, e não o seu sinal enquanto parte de um processo de desconstrução da casa. Afinal, Gilka não quis narrar sua história de vida subalterna, e só apontou explicitamente o quanto foi pobre na introdução biográfica de Poesias completas.

Sua ousadia não está em escancarar sua pobreza, possibilidade que na época era literariamente inviável, antes, está em elaborar um olhar poético que percebe uma poderosa riqueza vital por trás da situação de penúria, encontrada especialmente no contato revigorante com a natureza, essa amamentadora originária não só de nutrientes a serem ingeridos, mas de belezas sensitivas a serem contempladas. A natureza não cobra para ser contemplada, e na época de Gilka havia mais facilidade de acesso a ambientes bucólicos.

Diferentemente da “pobreza contente” do barqueiro Amiclas, que estava ao abrigo da guerra em uma moradia distante dos centros de poder da Antiguidade, a pobreza de Gilka não goza absolutamente de nenhuma vantagem. A riqueza que ela desvenda em sua pobreza é um modo de contemplação da natureza, é uma forma de percepção vinda da elaboração de um olhar poético, tão especial quanto vão para ricos e pobres do mundo em que viveu.

A oportunidade de contato gratuito com espaços verdejantes, outrora ainda usufruída pela poeta pobre no início do século XX, é cada vez mais rara e inacessível, cada vez mais escamoteada do cidadão do século XXI. Seguramente estamos mais pobres, hoje, de contato com a natureza do que o pobre do passado, que ainda gozava mais facilmente desse fundamental consolo.

A sensibilidade de Gilka era, de fato, mais rica de contato natural do que o corpo emparedado dos moradores de apartamentos de prédios ou favelas de hoje. Nesse sentido, Gilka, no auge de sua pobreza econômica, pressentiu que ainda vivia uma riqueza ambiental.

A pobreza da mulher Gilka não tinha a posse daquilo que poderia transfigurar suas imperfeições em virtudes: o dinheiro. Se Marx diz que o dinheiro tem a propriedade de transmutar características humanas e naturais em divinas, se ele diz que o dinheiro produz a inversão universal de todas as coisas, a poesia de Gilka introduziu, precisamente, a inversão da inversão. Ela descobriu na choça invadida pela trepadeira um ornamento, no ar da manhã o ouro, no fausto natural da ilha um reinado, nas mãos vazias de pão um alimento poético. Se o dinheiro diviniza o homem rico diante de uma sociedade desigual, a poesia diviniza a ousada poeta pobre que pensa nos famintos.

O motivo tradicional da “pobreza contente”, pagão e cristão, torna-se em Gilka uma forma de riqueza na pobreza, isto é, riqueza da poesia na pobreza da realidade.

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    Veja o capítulo 4, “Escritores e militantes anticlericais”, de Bega, (2013BEGA, Maria Tarcisa Silva. Letras e política no Paraná: simbolistas e anticlericais na República Velha. Curitiba, Editora UFPR, 2013.:309-334).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    10 Fev 2020
  • Aceito
    22 Dez 2020
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