Acessibilidade / Reportar erro

Corpos duplamente dissidentes: a condição da migrante brasileira no Japão

Dually Dissident Bodies: Brazilian Women Immigrants in Japan

Resumo

A partir de uma experiência etnográfica no Japão, este artigo visa refletir sobre a condição das mulheres brasileiras na sociedade japonesa. Em um primeiro momento, resgato as experiências vividas e afecções do trabalho de campo, considerando a ação da norma na construção política do corpo. Em seguida, a partir de uma contextualização dos dados etnográficos, analiso a situação de dupla subordinação e o status da mulher migrante, como um corpo feminino e dissidente. E, por fim, mostro que a condição de subordinação aponta, contudo, para um novo devir.

Migrantes; Brasileiras no Japão; Corpo; Alteridade

Abstract

This article uses an ethnographic experience in Japan to reflect on the condition of Brazilian women in Japanese society. At first I consider elements of lived experiences and affections from the fieldwork to think about the action of the norm on the political construction of the body. Then, by contextualizing ethnographic data, I analyze the situation of dual subordination and the status of migrant women as dissident and female bodies. Finally, I present how the condition of subordination points to a new becoming.

Migrants; Brazilian women in Japan; Body; Otherness

Introdução

Este artigo visa a refletir sobre a condição feminina a partir da análise das relações de poder inerentes aos processos de construção da corporeidade e da expressão da alteridade prementes na experiência etnográfica e nas narrativas das brasileiras1 1 Utilizo o termo “brasileiras” para não incorrer ao modelo de etnicidades-hifenizadas muito bem descritas por Lesser (2003), mas que limita e coloca distinções estanques entre descendentes e não descendentes de japoneses. Neste sentido, a escolha do termo “brasileiras” aponta para uma ruptura com a noção de margens, indo de encontro com uma noção de “japonesidades múltiplas” proposta de Machado (2011). A japonesidade vista como múltipla é mais inclusiva e permite que não analisemos as condições desses sujeitos como “menos ou mais” japonesas, mas com suas identificações múltiplas à sua maneira. Da mesma forma que há também uma identidade múltipla entre os brasileiros(as) no Japão que compartilham experiências e se identificam com moralidades, sentidos e símbolos de forma idiossincrática e fluída, mas que no final são todos(as) (“burajirujin”) brasileiros(as). no Japão. Pressuponho que a etnografia não tenha momento certo para começar e acabar. Esses momentos são arbitrários e dependem, como apontou Peirano (2014)PEIRANO, Mariza. Etnografia não é método. Horizontes Antropológicos, 20 (42), Porto Alegre, UFRGS, 2014, pp.377-391., da potencialidade de estranhamento, do insólito da experiência, da necessidade de examinar por que alguns eventos, vividos ou observados nos surpreendem. Dessa maneira, o trabalho etnográfico não é algo delimitado a um espaço-tempo, fatos vividos no campo há anos podem ser revisitados e reinterpretados constantemente ao longo do tempo, pois eles constituem a memória etnográfica que pode ser acessada e atualizada pelo antropólogo em vários momentos reflexivos.

Revisito, assim, o trabalho de campo no Japão que se iniciou em 1998, quando iniciei meus estudos no país, e se alongou até 2006, por quase uma década, ininterruptamente. De 2007 a 2008, realizei visitas esporádicas a algumas comunidades espalhadas pela região de Kanto, circunvizinha à Tóquio. Ressalto também que, desde então, o contato e conversas com vários informantes e pessoas que participaram da pesquisa foram mantidos por e-mails e mídias sociais.

Analogamente, como apontados em estudos anteriores, o resgate que proponho realizar incorpora à interpretação etnográfica elementos biográficos da ordem dos afetos e dos sentidos (Peirano, 2008PEIRANO, Mariza. Etnografia, ou a teoria vivida. Ponto Urbe, (2), São Paulo, USP, 2008, pp.2-9.; Matsue; Pereira, 2017MATSUE, Regina Y.; PEREIRA, Pedro Paulo. “Quem se diferencia apanha” (deru kui ha watareru): experiência etnográfica, afeto e antropologia no Japão. Mana, 23 (2), Rio de Janeiro, Museu Nacional, 2017, pp.427-454.), mas, desta vez, o foco é especificamente a perspectiva feminina. Como nissei (segunda geração de japoneses), a minha posição no mundo foi construída a partir de relações familiares e de gênero pautadas em vínculos com valores e ideologias ditas japonesas com forte apelo emocional e simbólico de ligação com a “terra dos ancestrais” (Roth, 2002ROTH, Joshua H. Brokered Homeland: Japanese Brazilian Migrants in Japan. New York, Cornel University Press, 2002.; Tsuda, 2006TSUDA, Takeyuki. Local Citizenship in Recent Countries of Immigration. New York, Lexington, 2006.). Em contrapartida, a vivência familiar me levava a questionar muitos dos valores e a forma de organização social hierárquica do grupo, principalmente a posição subalterna e secundária da mulher. Comumente, no modelo tradicional da família japonesa, a hierarquia prevalece nas relações familiares, principalmente entre homem e mulher, entre o filho mais velho e os mais novos2 2 Alguns autores contemporâneos, baseados em dados etnográficos, criticam a reificação de um “modelo invariável de família japonesa”, apontando nuances regionais de “formas de organização familiar” e que também sofreram transformações ao longo do tempo (ver Ryang, 2004). Contudo, o modelo patriarcal de família é ainda predominante. , etc.

Ao assinalar tais elementos biográficos e reflexões, considero as experiências vividas como parte indispensável e fundamental da reflexão teórica e etnográfica. Como afirma Peirano (2008)PEIRANO, Mariza. Etnografia, ou a teoria vivida. Ponto Urbe, (2), São Paulo, USP, 2008, pp.2-9., o campo não está lá fora de nós (no tempo e espaço), e sim interiorizado. Não se trata de uma interioridade apenas intelectual ou de conceitos, mas de afecções e afetos que se manifestam no corpo e na vida cotidiana. Precisamos aprender com nossos corpos dotados de sentidos como vincular o sensorial aos instrumentos teóricos e políticos, construindo saberes não duais, mas sim localizados e responsáveis pelo que aprendemos a ver e a questionar (Haraway, 1995HARAWAY, Donna. Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. cadernos pagu (5), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu/Unicamp, 1995, pp.07-41.).

Nesta perspectiva, mostro que a experiência etnográfica no Japão me fez questionar e contextualizar, sobretudo, o vínculo dos nikkeis3 3 O termo nikkei doravante será utilizado para designar os descendentes de japoneses de gerações variadas que nasceram no exterior e que, em sua maioria, não possuem a nacionalidade japonesa. com aquele país. Saliento que no decorrer deste trabalho busco apontar e refletir sobre os mecanismos de construção dos corpos duplamente dissidentes das brasileiras no Japão, como mulheres e migrantes. Tais temas, apesar de não terem sido o cerne de minhas pesquisas, interpelavam-me o tempo todo. Como o subalterno, mesmo sem perceber, subverte a norma e reconstrói seu corpo, negociando sentidos em espaços de tensão cultural? Essas são algumas das questões que buscaremos tratar neste ensaio.

Em um primeiro momento, ao resgatar as experiências vividas e afecções do trabalho de campo realizado no Japão, busco refletir sobre a construção política do corpo – o anseio de sujeição à norma, mas uma sujeição que, ao mesmo tempo, subverte ao destoar. Pois, por mais que se busque condescender à norma, o devir só poderá ser concebido em uma forma mais porosa, aberta a outras possibilidades. Logo a seguir, apresento a questão da alteridade no Japão, evocando o poder de um discurso ideológico de homogeneidade racial. E, por fim, a partir de um resgate de fatos históricos e dados etnográficos, analiso a condição de dupla subordinação e o status da mulher migrante, como um corpo feminino e dissidente.

Vínculos apaixonados e resistência

A seguir, apresento um relato crítico de como valores vinculados a um ideal de vir a ser afetam e operam na constituição da pessoa em termos de “sujeição” e dos efeitos constitutivos e regulatórios do poder.

Recordo-me de que desde muito jovem sempre fui repreendida pela minha família por ter um comportamento rude (rambou) e não delicado (otenba) para uma “menina”. Em contraste com o ideal da mulher japonesa como delicada, polida e graciosa (kawai). Paradoxalmente, apesar de não corresponder a esse ideal, ele foi incorporado por mim como um “vir a ser”, pois, como assinala Butler (1997)BUTLER, Judith. The psychic life of power: theories in subjection. Stanford, Stanford University Press, 1997., a ação da norma se dá precocemente na vida do ser humano.

O poder não atua simplesmente oprimindo ou dominando as subjetividades, mas operando na sua própria construção (Foucault, 1987FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis, Vozes, 1987.). Assim, devemos vincular o caráter formativo ou produtivo do poder aos mecanismos de regulação e disciplina sutis que ele mesmo instaura e procura conservar. Isso ocorre quando uma norma se torna internalizada: mesmo que não seja de forma previsível, ela se torna parte das nossas subjetivações. Neste sentido, quando determinadas categorias sociais parecem garantir a existência subjetiva, certo apego à sujeição pode muitas vezes ser preferível à não existência. A expectativa de existência social requer e institui o desejo de se sujeitar; emergindo como instrumento e, ao mesmo tempo, efeito do poder de sujeição.

E foi assim que, ao ingressar no curso de antropologia da Universidade de Brasília no início dos anos noventa, busquei, inconscientemente, por meio dos estudos japoneses, contextualizar e compreender as normas e valores inerentes à minha família. Neste sentido, minha monografia de final de curso versou sobre o valor-família e tradição entre os migrantes brasileiros no Brasil. Buscava compreender, principalmente, a lógica do “valor-família” que mesmo no Brasil orientava as relações de gênero e a divisão de trabalho no interior de unidades agrícolas de produção familiar. Analogamente ao que foi apontado pela antropóloga Chie Nakane (1977)NAKANE, Chie. Japanese Society. Harmondsworth, Penguin Books, 1977. sobre a organização social das empresas japonesas, encontrei elementos de uma hierarquização da empresa familiar baseada em um modelo patriarcal e as consequências dessas orientações nas vidas dos membros da família4 4 Apesar de o modelo teórico sobre a família tradicional no Japão ter sido questionado por estudos posteriores, ele ainda serve de base para se pensar vários aspectos da organização social do Japão (Ryang, 2004). .

O meu esforço antropológico era entender algo tão familiar, tão próximo e naturalizado, “a ordem natural das coisas”, mas que trazia sérios conflitos geracionais, de senioridade e de gênero intrafamiliares que questionavam tal ordem. Percebia a existência de interstícios ou obliterações, mas que, apesar destes, havia uma norma que orientava as ações. Compreendi então que para entender melhor como tal norma era introjetada, seria necessária uma compreensão mais aprofundada sobre o ethos e do universo cultural japonês. E, desta forma, o desejo de estudar no Japão se tornou premente. Mas antes de me arriscar, busquei aprofundar meus conhecimentos sobre essa tradição cultural realizando o mestrado em Antropologia Social da mesma universidade. Dessa vez, a pesquisa da dissertação abordou o tema da religiosidade, particularmente o Budismo japonês no Brasil. Naquele momento, dei-me conta de que o estudo da religiosidade japonesa propiciaria um melhor entendimento dos valores, da ética e do habitus dessa tradição.

Finalmente, em 1997, participei de um processo seletivo na embaixada do Japão em Brasília para a obtenção de uma bolsa de estudos no Japão. Ironicamente, na entrevista, o cônsul japonês questionou minha intenção de seguir carreira acadêmica, visto que eu já estava com 26 anos, momento em que eu deveria pensar em me casar e ter filhos. Este fato causou-me espanto na época, porém, como veremos adiante, o modelo “tradicional” de família ainda vigente no Japão desencoraja a mulher a seguir uma carreira, principalmente após o matrimonio5 5 Há ainda uma pressão para que as mulheres japonesas se casem e tenham filhos jovens. Atualmente, muitas mulheres têm questionado essa norma, adiando o casamento ou mesmo permanecendo solteiras, mas são criticadas e denominadas pejorativamente de “parasite singles” (Ver Nemoto, 2008). (Matsue, 2013MATSUE, Regina Y. Religiosidade e Rede de Apoio Social na Vida das Mulheres Brasileiras e suas Famílias no Japão. Saúde e Sociedade, 22 (2), São Paulo, USP, 2013, pp.298-309.; Sekiguchi, 2010SEKIGUCHI, Sumiko. Confucian Morals and the Making of a “Good Wife and Wise Mother”: from “Between Husband and Wife There Is Distinction” to as “Husbands and Wives Be Harmonious”. Social Science Japan Journal, 13 (1), Oxford, Oxford University Press, 2010, pp.95-113.). Apesar dessa observação do cônsul, outros membros do comitê de avaliação consideraram meu bom desempenho em todas as etapas do processo seletivo (prova de conhecimentos em língua, projeto e entrevista), no qual fui comtemplada com a bolsa de estudos.

Recordo-me que ao desembarcar no aeroporto de Narita no Japão, havia lá todo um suporte da equipe de recepção aos bolsistas estrangeiros, esta vinculada ao MEXT (Ministério da Educação, da Cultura, dos Esportes, da Ciência e da Tecnologia), que nos organizavam no transporte para que chegássemos aos nossos destinos. Supreendentemente, nesse momento deparei-me também com a presença do meu tio paterno que não migrou e sempre viveu no Japão. Ele me aguardava no portão de desembarque juntamente com a equipe oficial do MEXT e me saudou calorosamente dizendo Okaerinasai! (bem vindo de volta). Aquela saudação teve um duplo sentido: por um lado, ele estava feliz e aliviado pelo fato de eu estar indo como estudante e não como decasségui6 6 O termo foi usado originalmente para designar os imigrantes japoneses das regiões menos industrializadas no nordeste da ilha de Honshu e de outras regiões que foram trabalhar nas regiões industrializadas do Japão. Desde os meados da década de 1980, contudo, o termo passou a ser usado para denominar os nikkeis, ou seja, pessoas descendentes de japoneses oriundos de diferentes países que vão trabalhar temporariamente no Japão (Beltrão; Sugahara, 2006). ; e, por outro lado, estava sinalizando que “a boa filha à casa retorna”, aceitando-me como “parte da família” e, desta forma, eu “deveria” estar ciente das normas e regras. Embora essa tenha sido a minha primeira viagem ao Japão7 7 Apesar de ser a minha primeira viagem ao Japão, naquele momento eu tinha um sentimento idílico de retorno introjetado a partir da influência de um ideal político. Mais adiante, iremos problematizar as implicações desse conceito (Ver Sasaki, 2006). , havia um sentimento de estar “retornando” ao “furosatô” ou “homeland”, a terra dos meus ancestrais, o que provocou em mim uma euforia inicial (Matsue; Pereira, 2017MATSUE, Regina Y.; PEREIRA, Pedro Paulo. “Quem se diferencia apanha” (deru kui ha watareru): experiência etnográfica, afeto e antropologia no Japão. Mana, 23 (2), Rio de Janeiro, Museu Nacional, 2017, pp.427-454.).

Fui encaminhada para Universidade de Tsukuba8 8 A cidade de Tsukuba, diferentemente da maioria das cidades japonesas, é relativamente jovem, foi planejada e construída na década de 1970, possui ruas largas e bem planejadas. Além disso, a Universidade de Tsukuba era considerada uma das universidades mais internacionais do país, particularmente pelo grande número de estudantes estrangeiros (mais de 1.500), professores estrangeiros e japoneses formados no exterior (Ver Ogasavara, 2007). , a sessenta quilômetros ao norte de Tóquio, onde fui aceita como estudante estrangeira. Cheguei no início do Outono, momento em que a Universidade estava em clima festivo, celebrando a entrada da nova estação com danças, música, comidas típicas e bebidas. O espaço muito arborizado e o ambiente da universidade com suas construções modernas, somado a uma paisagem outonal belíssima remetiam a uma imagem “perfeita” do país. Em contrapartida, o impacto da imagem dos jovens universitários com suas cabeleiras “amarelas” e suas formas de vestir extravagante, principalmente as meninas, causaram-me espanto, pois divergiam da imagem da mulher delicada e dócil que me perseguia desde a infância. Posteriormente, percebi que durante o período universitário, os estudantes (gakusei) japoneses desfrutam de uma “liberdade temporária”, que é finalizada logo após a graduação, momento em que ingressam no mercado de trabalho.

Essa euforia das primeiras semanas, no entanto, foi se esvaecendo, pois comecei a perceber que eu destoava dos demais e que meus esforços para falar ou comportar-me como uma “nativa” eram em vão. Os meus erros linguísticos em sala de aula e minha pouca habilidade em gramática denunciavam-me e eram percebidos como displicência por meus colegas e professores. Pois, apesar de eu estar familiarizada com a língua, meus conhecimentos e habilidades linguísticas eram limitados, e, mesmo eu sendo estrangeira, eu não era vista como tal. Além disso, minha linguagem corporal, gestos, posturas e vestimentas não condiziam com o que “deveriam ser”. Como alguém que possuía características fenotípicas e um sobrenome de família japonesa era incapaz de se comunicar ou expressar corretamente9 9 De acordo com as teorias sobre a niponicidade (nihonjinron), “ser japonês” é definido por três critérios: raça/sangue, cultura/língua e território (Ver Befu, 2001). Com base nessa concepção, ser racialmente japonesa implicava também dominar a língua e comportar-se de determinada maneira. Assim, minhas ações “inadequadas” e meus erros linguísticos provocavam reações de perplexidade e de repulsa (Ver Matsue; Pereira, 2017). ?!

E foi assim que as correções cotidianas de meus colegas incidiam não só sobre os erros linguísticos, mas também sobre minha corporeidade, pois meus gestos ou comportamentos eram considerados inadequados10 10 A antropóloga Dorinne Kondo, filha da diáspora japonesa nos Estados Unidos, relata situação semelhante em um texto da década de 1980 que versa sobre sua dramática experiência de desintegração do self na realização de seu trabalho de campo (Ver Kondo, 1986). . Isso se deu ao longo dos oito anos que estudei e vivi no Japão, pois ocupava uma posição limítrofe como mulher e filha de japoneses. Essa sensação de inadequação e incompletude causava-me um grande constrangimento. Ao contrário do que vivenciou Glória Anzaldúa (1987)ANZALDÚA, Gloria. Bordelands/La Frontera: The New Mestiza. San Francisco, Spinsters/Aunt Lute, 1987., tal sensação decorria da semelhança e não por ser totalmente estrangeira. As críticas eram frequentes, e todos que me circundavam “batiam na cabeça do prego até ele se moldar”, utilizando a expressão de um velho provérbio japonês (Deru kui wa utareru) (Matsue; Pereira, 2017MATSUE, Regina Y.; PEREIRA, Pedro Paulo. “Quem se diferencia apanha” (deru kui ha watareru): experiência etnográfica, afeto e antropologia no Japão. Mana, 23 (2), Rio de Janeiro, Museu Nacional, 2017, pp.427-454.). E, desta forma, as correções cotidianas e as frases de desaprovação iam construindo em mim novas posturas e desenvolvendo outras maneiras de falar, pois como apontou John Austin (1990)AUSTIN, John. Quando dizer é fazer. Porto Alegre, Artes Médicas, 1990., a ação é realizada por meio do dizer.

Parecia haver um consenso entre as pessoas com quem eu convivia; sejam colegas de aula, professores e mesmo as pessoas de fora da universidade, para que eu me comportasse como um deles. Como descrevi em outro momento; a maneira de comportar-me, a postura corporal, gestos, vestimentas, etc. tudo era vigiado (Matsue; Pereira, 2017MATSUE, Regina Y.; PEREIRA, Pedro Paulo. “Quem se diferencia apanha” (deru kui ha watareru): experiência etnográfica, afeto e antropologia no Japão. Mana, 23 (2), Rio de Janeiro, Museu Nacional, 2017, pp.427-454.). Com isso, fui aprendendo a “moldar” meu corpo a partir do olhar do outro e com o tempo fui criando um vínculo com colegas de classe e de meu grupo de estudos. Constantemente faziam-me elogios ou encorajavam-me dizendo: Kimi wa yoku gambateimasu né! [Você está se esforçando!] ou Kimi wa nihonjin no kokoro wo motteimasu! [você tem um “espírito japonês”]. E assim eu tive a impressão de que se eu me esforçasse para aprender com eles, eu poderia ser aceita.

Neste sentido, havia um grande esforço de minha parte em me adequar, e isso exigia que eu fosse receptiva às críticas de meus interlocutores e mostrasse grande emprenho em “aprender” a linguagem falada e corporal e as normas de comportamento. Essa tendência em ressaltar em mim uma pretensa “niponicidade” manifestava-se também nos momentos lúdicos, como nas aulas de caligrafia e cerimônia do chá ou na casa de meus parentes japoneses. Era como se tudo conspirasse para que eu assumisse um “modo de ser e uma corporeidade japonesa”.

Para a norma social, cada sujeito é importante para a manutenção da matriz dominante. A partir daí, ele será mantido sob vigilância ostensiva pelo meio social até que finalmente interiorize as leis como se fossem suas próprias substâncias. Tal vigilância sobre minhas ações demonstrou como o corpo está imerso em um campo político, sendo invariavelmente sujeito a técnicas cotidianas e a manipulações (Mauss, 1984MAUSS, Marcel. As Técnicas Corporais. Sociologia e Antropologia. São Paulo, EPU/Edusp, 1984, pp.211-233.; Foucault, 1987FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis, Vozes, 1987.). Eu deveria aprender a atuar e a agir de acordo com a expectativa dos que me circundavam; o corpo devia tornar-se útil, eficiente e moldável. É nesse ponto que o poder disciplinador se revela bem sucedido. As relações cotidianas inserem em nós mecanismos que atuam sobre o corpo e as ações; as leis e normas devem ser internalizadas pelo corpo como se fossem suas próprias substâncias. Somos convencidos a melhorar nossas ações e a moldar nosso corpo na medida em que desejamos ser aceitos e incluídos por aqueles que acreditamos já ser parte de “nós”. Tais mecanismos controlam e, ao mesmo tempo, produzem o corpo.

O que é representado pelo sujeito é possibilitado pelo trabalho prévio do poder; contudo, a agência excede o poder que lhe possibilita agir. Nem sempre os propósitos do poder não são os propósitos da agência. E, na medida em que divergem, podem operar em uma relação de contingência inversa ao do poder que faz a agência possível ou a qual ela pertence (Butler, 1997BUTLER, Judith. The psychic life of power: theories in subjection. Stanford, Stanford University Press, 1997.). Assim sendo, a “sujeição” representa um tensionamento, pois é uma repetição que não se repete. Por tentar reproduzir o irreproduzível, gera cópias fraturadas, que a todo instante subvertem a norma, mesmo na tentativa de afirmá-la. Em outras palavras, o lugar de sujeição leva a pessoa a experimentar ser afetada também pelas disjunções e desconforto desse domínio. Tal afetação pode levá-la a vislumbrar formas de resistências.

As questões que me afetavam (Favret-Saada, 2005FAVRET-SAADA, Jeanne. Ser Afetado. Cadernos de Campo (13), São Paulo, USP, 2005, pp.155-161.) profundamente na etnografia ficaram caladas; só depois de longos anos de reflexão e distanciamento, pude trazer à tona questões intrínsecas ao meu trabalho de campo e o cotidiano no Japão. E foi assim que, após esse período, pude refletir e ressignificar as vivências seminais desta experiência etnográfica que compõem uma teoria vivida (Peirano, 2008PEIRANO, Mariza. Etnografia, ou a teoria vivida. Ponto Urbe, (2), São Paulo, USP, 2008, pp.2-9.).

O trabalho de campo e as afecções

O trabalho de campo no Japão inicia-se com as minhas primeiras incursões às comunidades brasileiras no país no final de 1998 até meados de 2006, sendo complementado por coleta de dados em junho de 2008 na região circunvizinha à Tóquio (Kanto). A pesquisa de campo, visitas, observações, conversas informais e entrevistas com locais e brasileiros foram realizadas ininterruptamente nesse período. Tais incursões iniciaram-se nas províncias de Gunma e Saitama, onde se localizam cidades com grande concentração de brasileiros, tais como Oizumi e Ota11 11 Aproximadamente dez por cento da população de ambas as cidades era composta por brasileiros. . O estudo também incluiu algumas pequenas comunidades de brasileiros localizadas nas proximidades da cidade de Tsukuba, onde eu residia, tais como Tsuchiura, Joso e Mitsukaido, na província de Ibaraki, e a cidade de Moka, na província de Tochigi. Ressalto que o contato com algumas pessoas que participaram da pesquisa se mantém por meio das mídias sociais.

É sabido que os muitos brasileiros descendentes de japoneses e seus familiares iniciaram a saga de “migração de retorno12 12 Utilizo a expressão “migração de retorno” em alusão à ideologia adotada pelo governo japonês para lograr seus valores ideológicos conservadores. Nesta perspectiva, os decasséguis atenderiam as necessidades raciais e ideológicas do governo japonês e, ao mesmo tempo, supririam as demandas do mercado de trabalho por mão-de-obra barata e não-qualificada. Porém, como já ressaltou Sasaki, a expressão faz sentido somente nestes termos, pois a experiência migratória dos brasileiros que estão indo para o Japão nas últimas décadas é totalmente diferente da dos japoneses que imigraram para o Brasil no início do mesmo século XX. O contexto é bastante distinto para os decasséguis, talvez o termo correto seria "a volta dos que não foram", pois a grande maioria nunca estiveram antes no Japão (Ver Sasaki, 2006). ” nos anos 90, impulsionada pela crise econômica brasileira e a necessidade de mão de obra no setor manufatureiro no Japão. Desde então, muitos descendentes e suas famílias deram início a um processo migratório massivo, que sofreu alterações em termos de intensidade e quantidade de pessoas ao longo do tempo: em momentos de crise na economia japonesa, houve um declínio, como foi registrado durante a crise de 2009 e em 2011, devido ao terremoto seguido de tsunami e acidente nuclear. Apesar disso, a comunidade brasileira e suas networks persistem no Japão por mais de 30 anos. A partir de 2014, devido à crise brasileira, o fluxo aumentou novamente, e, em 2018, aproximadamente 200 mil brasileiros viviam no Japão. Estima-se que 46 por cento dessa população seja composta por mulheres (Consulado Geral do Brasil em Tóquio, 2018).

Desde o início do processo migratório, os brasileiros no Japão iniciaram um processo de organização e formação de “comunidades” em busca de redes de serviços e formas alternativas de socialização. As redes de serviços ajudam e simplificam a vida dos migrantes que têm à sua disposição lojas de produtos brasileiros, restaurantes, agências de viagens, salão de beleza, bancos, etc. Entretanto, tal tendência impele os brasileiros a viver isolados nas suas redes comunitárias, sem muito contato, convivência e apoio da sociedade local (Tsuda, 2006TSUDA, Takeyuki. Local Citizenship in Recent Countries of Immigration. New York, Lexington, 2006.; Matsue, 2013MATSUE, Regina Y. Religiosidade e Rede de Apoio Social na Vida das Mulheres Brasileiras e suas Famílias no Japão. Saúde e Sociedade, 22 (2), São Paulo, USP, 2013, pp.298-309.).

Ao visitar a cidade de Oizumi (província de Gunma) circunvizinha à Tóquio pela primeira vez, recordo que tive a estranha sensação de estar em um simulacro de uma cidade do interior do Brasil. Na rua principal, localizavam-se as lojas e o Plaza Shopping, com muitos restaurantes e pequenos quiosques, muitos deles decorados com a bandeira brasileira. Os comerciantes, a clientela e os transeuntes que circulavam eram em sua maioria brasileira. A forma de vestir, de mover e gesticular destes destoava da população local: as mulheres com seus cabelos longos, roupas que marcavam e delineavam o corpo, e os homens vestidos de forma descontraída, com bermudas e camisetas largas que colocavam à mostra o corpo tatuado, simbolizavam a diferença e a marginalização no Japão (Kaplan, 2012KAPLAN, David. Yakuza: Japan's criminal underworld. Berkeley, University of California Press, 2012.).

Ressalto que meu projeto de pesquisa original versava sobre religiosidade e práticas mágico-religiosas a partir dos estudos do antropólogo japonês Yanagita Kunio13 13 Foi responsável, no final da década de 1920, pelo desenvolvimento de um estilo de antropologia original, cujo enfoque estava centrado nos estudos sobre o folclore japonês, diferentemente dos outros escritores da época, que recebiam grande influência da antropologia europeia. (1875-1962), pioneiro na área. Entretanto, as minhas frequentes visitas aos locais onde viviam os brasileiros e o convívio com eles mostravam várias problemáticas que a comunidade enfrentava no Japão – questões relacionadas ao isolamento, discriminação, problemas de barreiras linguísticas e culturais, não conhecimento dos direitos e deveres, identidade e educação dos filhos, dente outros. Tais questões me interpelavam e afetavam de tal forma que fui redirecionando o tema de minha pesquisa. Pois, apesar de eu estar na condição de estudante e pesquisadora, eu vivia a mesma condição de liminaridade e incompletude que meus interlocutores.

E foi assim que eu reescrevi meu projeto de doutorado: redimensionei o tema da religiosidade como parte de uma rede de apoio social entre os migrantes brasileiros. Nessa condição de exclusão social em que viviam os brasileiros, percebi que os grupos religiosos representavam então um local privilegiado de socialização e network entre os compatriotas. Além de oferecerem serviços religiosos, suporte moral para a manutenção de valores e de identidade cultural, orientavam também na educação dos filhos e nas ações de cuidado e de prevenção, relacionadas aos conflitos pessoais, familiares e sociais. Grosso modo, a afiliação religiosa ajudava a mobilizar recursos humanos e institucionais em prol do reconhecimento de valores culturais e religiosos alternativos, favorecendo um empoderamento do migrante (Matsue, 2013MATSUE, Regina Y. Religiosidade e Rede de Apoio Social na Vida das Mulheres Brasileiras e suas Famílias no Japão. Saúde e Sociedade, 22 (2), São Paulo, USP, 2013, pp.298-309.; Turner, 2011TURNER, Bryan S. Religion and Modern Society: Citizenship, Secularisation and the State. Cambridge, Cambridge University Press, 2011.).

No período que realizei o trabalho de campo, engajei-me também, durante quatro anos, como tradutora da prefeitura da cidade de Tsukuba e como professora auxiliar da escola primária de Ishige, uma cidade vizinha que recebia grande quantidade de alunos brasileiros. Tanto na prefeitura como na escola, os moradores e as mães brasileiras buscavam informação e ajuda em relação às normas e regras da comunidade e da escola no Japão. Tais atividades me impeliam na busca de um diálogo que reconhecia as diferenças entre os brasileiros e os locais, mas que, sobretudo apontasse uma forma de permeabilidade nas diferenças. Assim, eu buscava realizar o trânsito e as traduções e, ao pesquisar sobre a questão dos decasséguis, percebi que a situação de liminaridade era coletiva, com algumas nuances individuais. Vivenciávamos realidades semelhantes, mas o fato de eu ser estudante colocava-me em uma situação privilegiada. Assim, aprendi a lidar com meus dilemas cotidianos, reportando-me às possibilidades de reinterpretações de muitos de meus valores naturalizados e crenças na relação dinâmica com meus interlocutores.

Como assinalei acima, os brasileiros eram identificados a partir de sua corporeidade. Assim como eu, as crianças brasileiras na escola ou os trabalhadores no espaço de trabalho eram constantemente vigiados, uma vez que seus corpos eram dissidentes – não eram domesticados ou submissos às normas locais. Os trabalhadores braçais14 14 A maioria dos migrantes brasileiros é oriunda da classe média, profissionais liberais ou donos de pequenos negócios no Brasil. Entretanto, no Japão, eles se tornam invariavelmente trabalhadores braçais, operários da linha de produção, desempenhando um tipo de trabalho totalmente impessoal, mecânico e repetitivo, estigmatizado por três palavras começadas por k: kiken (perigoso), kitsui (árduo) kitanai (sujo) (Matsue; Pereira, 2017). e seus filhos estavam em desvantagem, pois seus corpos ocupavam uma posição social inferior, sendo estigmatizados, excluídos ou categorizados como estrangeiros (gaijin).

Veremos adiante como as minorias e as mulheres estão em de desvantagem neste discurso. Assinalo que, por algum motivo, a maioria de meus interlocutores era mulheres; porém, na época, eu carecia de um distanciamento e de elementos para lidar com as implicações desse fato. Na última parte deste ensaio, apresento os relatos de algumas mulheres que foram entrevistadas ao longo da pesquisa, utilizando nomes fictícios.

Corpos dissidentes

A seguir, irei abordar a questão dos corpos dissidentes no Japão que inevitavelmente faz alusão ao ideal moderno de formação do Estado japonês. Tal ideal reifica a imagem do Japão como sendo uma sociedade “homegênea”15 15 Ainda no século XVII, surgiu o movimento Kokugaku [Estudo dos Clássicos Nacionais] ou estudos exegéticos, de caráter fortemente nacionalista. Tais estudos buscavam definir e afirmar a identidade e o caráter único da cultura e do povo japonês, tendo como representante máximo o pensador Motoori Norinaga (1730-1801). A partir do estudo da obra clássica Kojiki [Crônica das Coisas Antigas], o autor buscava os elementos autóctones e “puros” da cultura japonesa que, segundo ele, ainda não tinham sido desvirtuados pela influência posterior do Budismo e do confucionismo chinês. Esse pensamento influenciou fortemente os intelectuais japoneses do pré-guerra. , elegendo e estratificando os corpos que devem ser incluídos ou excluídos no conceito de nação. Nesta lógica, a norma da supressão das diferenças dita as regras no projeto oficial de construção da nação. Contudo, estudos arqueológicos revelam que o contato do Japão com outros povos aconteceu desde os primórdios da história do país, a partir de levas migratórias antigas que entraram por diversas localidades, principalmente no norte da ilha de Hokkaido e ao sul na região de Kyushu (Denoon, 2001DENOON, Donald (ed.). Multicultural Japan: palaeolithic to postmodern. Cambridge, Cambridge University Press, 2001.).

Da mesma forma, historiadores apontam que mesmo durante o período de “seclusão” feudal (Sakoku) houve uma intensa atividade comercial com os países vizinhos, principalmente com a China e Coréia e com os portugueses que trouxeram o cristianismo para o Japão. E, desta forma, a entrada e o contato com pessoas de outros povos e tradições culturais diferentes, em menor ou maior intensidade, sempre ocorreu. Em sequência, a expansão e disputas por território na ilha de Hokkaido iniciada no período feudal levou a anexação à ocupação de seu território no período Meiji e, posteriormente, ocorreu a anexação das ilhas Ryukyus (Okinawa). A dominação do Japão sobre esses territórios levou a uma tentativa de apagamento e aniquilamento da diversidade cultural, linguística e de costumes que existiam entre os povos e as tradições locais.

No século XX, com o expansionismo nacionalista do Estado, o Japão invade e conquista parte do território chinês (Nanquin, Taiwan e Manchúria) e da Coréia, que por mais de três décadas foram colônias do império japonês. Muitos súditos do império desses países eram trabalhadores braçais no território japonês e circulavam livremente entre esses territórios. Porém, com a derrota do Japão na segunda guerra, muitos desses trabalhadores, principalmente da Coreia, permaneceram no país, tornando-se apátridas (Ryang, 2005RYANG, Sonia. Koreans in Japan: Critical Voices from the Margin. New York, Routledge, 2005.). Apesar das evidências históricas, no discurso oficial do Estado não há menção à presença ou reconhecimento da contribuição dessas minorias.

Há ainda outro tipo de minoria “invisível” que não é baseado na diferença étnica: os Burakumins. Em sua origem, esse grupo pertencia a uma estratificação social marcada por um tipo de trabalho abjeto: a lida de cadáver humano e/ou de animais. Tradicionalmente, essas profissões são consideradas impuras, e mesmo hoje existe um tipo de discriminação velada que impede a incorporação e a ascensão social desse grupo, que vive anonimamente em locais marcados em algumas periferias de grandes metrópoles, tais como Osaka e Quioto (Amos, 2011AMOS, Timothy D. Embodying Difference: The Making of Burakumin in Modern Japan. Honolulu, University of Hawai Press, 2011.).

Todavia, o moto de construção de nação e do Estado japonês aponta para a fábula da homogeneidade étnica (Ono; Ono, 2015ONO, Hiroshi; ONO, Hiromi. Race and Ethnic Relations in Contemporary Japan. In: SÁENZ, Rogelio; EMBRICK, David; RODRÍGUEZ, Néstor (ed.). The International Handbook of the Demography of Race and Ethnicity. New York; London, Springer, 2015.). Há uma premissa básica disseminada em todos os setores da sociedade de que os japoneses são um povo homogêneo, com uma nação unificada (tan’intsu minzoku/kokka), cuja “essencia cultural” persiste deste os tempos imemoriais até hoje. A literatura (acadêmica ou não) produzida no pós-guerra reforça a ideia de que a “sociedade japonesa é singular e única, inigualável”; tais escritos receberam a denominação de Nihonjinron (teorias sobre o povo e a cultura japonesa). Nesta perspectiva, mesmo as obras seminais das antropólogas Chie Nakane, Japanese Society (1977), e da americana Ruth Benedict, The Chrysanthemum and the Sword: Patterns of Japanese Culture (1989), primeira impressão de 1946, e do psiquiatra Takeo Doi, The anatomy of dependence: The key analysis of Japanese behavior (1970), foram utilizadas mundialmente para justificar comportamentos, padrões e estereótipos sobre o povo japonês.

Todo esse saber, mesmo carecendo de uma coerência interna para se qualificar como um sistema unificado de conhecimento, faz parte do imaginário do povo, da nação e dos próprios estrangeiros sobre o país. Tal ideologia, juntamente com suas práticas discursivas, compõe um potente dispositivo, implícito nos discursos oficiais do Estado, sendo disseminado por todos os setores da sociedade, pela mídia e inclusive no meio acadêmico. Tais discursos e práticas foram produzidos ao longo da história, atuando sobre o imaginário, na construção dos corpos e desejos. Explicitam, sobretudo, quais corpos podem e devem pertencer à nação, visando a exorcizar o perigo que os corpos dissidentes representavam e a controlar os acontecimentos aleatórios. Nesse enredo histórico, todos os corpos que de alguma forma subvertiam a norma foram excluídos e discriminados. O que sempre esteve em jogo foi a busca de controle da narrativa histórica na tentativa de o dominador silenciar ou apagar a versão do subalterno (Carvalho, 2001CARVALHO, José Jorge. O olhar etnográfico e a voz subalterna. Horizontes Antropológicos, 7 (15), Porto Alegre, UFRGS, 2001, pp.107-147.).

Até a década de 1980, o governo japonês negava a existência e os direitos de grupos minoritários no país, reforçando o discurso hegemônico de idealização de um mito e supressão de fatos históricos e sociais (Burgess, 2014BURGESS, Chris. Japão multicultural? O discurso e o mito da homogeneidade reexaminados. In: PEREIRA, Ronan A.; SUZUKI, Tae (org.). O Japão no caleidoscópio: estudos da sociedade e da história japonesa. Campinas, Pontes, 2014, pp.109-144.). Contudo, com a pressão de ativistas de grupos minoritários e ONGs (direitos da população ainu, burakumin, coreanos residentes, dentre outros) iniciou-se um processo de reinvindicação dos direitos de alguns desses grupos (Shipper, 2011SHIPPER, Apichai. Fighting for foreigners: Immigration and its impact on Japanese democracy. Ithaca and London, Cornell University Press, 2011.). A partir de então, ativistas, apoiados por uma nova geração de acadêmicos, iniciaram movimentos isolados no país, mas que ganharam certa visibilidade no momento em que o Japão estava pleiteando uma vaga no conselho geral da ONU. Ao mesmo tempo, outros grupos minoritários que foram negligenciados pelo estado, tais como vítimas de bomba atômicas (hibakusha), pessoas com necessidades especiais, grupos de migrantes ilegais, refugiados, dentre outros (Roth, 2005ROTH, Joshua H. Political and Cultural Perspectives on “Insider” Minorities. In: ROBERTSON, Jennifer (ed.). A Companion to the Anthropology of Japan. Malden, Wiley-Blackwell, 2005.) que vivem no Japão e iniciaram também um movimento de reinvindicações de seus direitos (Shipper, 2011SHIPPER, Apichai. Fighting for foreigners: Immigration and its impact on Japanese democracy. Ithaca and London, Cornell University Press, 2011.).

Em 1990, a reforma da Lei de Controle da Imigração do Japão implementou uma política imigratória mais restritiva em relação aos trabalhadores estrangeiros ilegais de países asiáticos, mas permitiu a entrada de trabalhadores descendentes de japoneses provenientes da América do Sul, principalmente do Brasil e do Peru. Tal reforma inspirou um debate controverso, pois pressupunha que os imigrantes com ancestralidade japonesa não perturbariam a homogeneidade étnica mítica do país (Sasaki, 2006SASAKI, Elisa. A imigração para o Japão. Estudos Avançados, 20 (57), São Paulo, USP, 2006, pp.99-117.).

Na mesma década, em 1993, o governo criou também um “programa de treinamento” [Technical Intern Training Program] para jovens “trainees” de países em desenvolvimento que permitia um visto de permanência renováveis por três e no máximo cinco anos. Esse programa que se expandiu nas últimas décadas, na realidade, foi uma forma alternativa que as autoridades encontraram para possibilitar a entrada de mão de obra estrangeira barata e não qualificada demandadas pela indústria, agricultura, hotelaria e a crescente população idosa necessitada de cuidadores.

Nos últimos cinco anos, o número de “trainees” dobrou, tornando-se a maioria dos residentes estrangeiros do Japão com uma maior diversidade étnica e cultural. Há aproximadamente 2.700,000 residentes estrangeiros no Japão oriundos principalmente da China, Coréia, Vietnã, Filipinas, dentre outros (National Institute of Population and Social Security Research, 2018). Muitos destes “trainees”, permanecem no país após o término do coberto pelo visto. Assim, apesar da lei restritiva aos indocumentados, há uma estimativa de que atualmente 79 mil pessoas vivem ilegalmente no Japão (Tian; Chung, 2018TIAN, Yunchen; CHUNG, Erin. Is Japan Becoming a Country of Immigration? Why More Foreign Labor Doesn't Imply Liberalization. Foreign Affairs, n. 2, New York, Council on Foreign Relations. 2018.).

Todos estes fenômenos impulsionaram a discussão sobre questões da diversidade cultural e étnica e sobre os direitos das minorias no contexto da sociedade japonesa (Befu, 2001BEFU, Harumi. Hegemony of Homogeneity: An Anthropological Analysis of Nihonjinron. Melbourne, Trans Pacific, 2001.; Lie, 2001LIE, John. Multiethnic Japan. Cambridge, Harvard University Press, 2001.; Weiner, 2004WEINER, Myron (ed.). Japan’s Minorities: Illusion of Homogeneity. London, Routledge, 2004.; Ryang, 2005RYANG, Sonia. Koreans in Japan: Critical Voices from the Margin. New York, Routledge, 2005.; Shipper, 2011SHIPPER, Apichai. Fighting for foreigners: Immigration and its impact on Japanese democracy. Ithaca and London, Cornell University Press, 2011.; Burgess, 2014BURGESS, Chris. Japão multicultural? O discurso e o mito da homogeneidade reexaminados. In: PEREIRA, Ronan A.; SUZUKI, Tae (org.). O Japão no caleidoscópio: estudos da sociedade e da história japonesa. Campinas, Pontes, 2014, pp.109-144.; Ono; Ono, 2015ONO, Hiroshi; ONO, Hiromi. Race and Ethnic Relations in Contemporary Japan. In: SÁENZ, Rogelio; EMBRICK, David; RODRÍGUEZ, Néstor (ed.). The International Handbook of the Demography of Race and Ethnicity. New York; London, Springer, 2015.). Esses movimentos indagam hierarquias e estratificações naturalizadas, assinalando as obliterações existentes no discurso e nas práticas hegemônicas.

Destarte, muitos brasileiros vivem ainda em situação de liminaridade social ou uma diáspora dual, pois estão entre dois países sem efetivamente participar da vida social de nenhum, causando um sentimento de desenraizamento (Tsuda, 2006TSUDA, Takeyuki. Local Citizenship in Recent Countries of Immigration. New York, Lexington, 2006.). Muitos deles, que se consideravam "japoneses no Brasil", são rejeitados como estrangeiros no Japão, passando a se identificar brasileiros (burajirujin) em uma celebração móvel da identidade (Hall, 2005)HALL, Stuart. Cultural identity and diaspora. In: RUTHERFORD, J. (ed.). Identity: community, culture and difference. London, Lawrence & Wishart, 2005, pp.222-237..

Diante dessa realidade, alguns brasileiros vivem um processo de migração circular entre o Brasil e o Japão, no qual a adaptação ou readaptação em ambos os países se torna difícil (Tsuda, 2006TSUDA, Takeyuki. Local Citizenship in Recent Countries of Immigration. New York, Lexington, 2006.; Matsue, 2013MATSUE, Regina Y. Religiosidade e Rede de Apoio Social na Vida das Mulheres Brasileiras e suas Famílias no Japão. Saúde e Sociedade, 22 (2), São Paulo, USP, 2013, pp.298-309.). Há outros que residem no Japão com visto permanente por mais de duas décadas, incluindo a segunda geração de migrantes, muitos deles nascidos no Japão, mas sem a cidadania japonesa16 16 O sistema de registro no Japão “koseki” é baseado no princípio de jus sanguinis, no qual uma criança só pode receber a cidadania se um dos pais for cidadão japonês com um registro de família no país (Ver Krogness, 2014). .

A maioria são trabalhadores temporários, contratados por empreiteiras, sem os mesmos direitos que os cidadãos japoneses, tais como seguro desemprego ou de saúde, pensão, dentre outros. Assim sendo, são considerados cidadãos de segunda categoria, isto é, sem direitos políticos ou de participação social efetiva e de baixo nível educacional, o que os impede de ascender socialmente ou galgar melhores posições na sociedade japonesa. Neste contexto, assinalo que as migrantes brasileiras encontram condições ainda mais precárias de trabalho e de status social.

Corpos duplamente abjetos: o feminino e a alteridade

A questão da mulher estrangeira no Japão perpassa por dois tipos de subjugo: Primeiramente, pela própria discrepância social entre os papéis masculino e feminino na sociedade japonesa. E, em segundo lugar, como apontarei, pelo fato de ser o corpo do “outro” subalterno.

O modelo patriarcal adotado pelo Estado japonês, desde a época Meiji, sempre colocou a mulher em situação de desvantagem na sociedade. Tal modelo baseia-se na divisão sexual do trabalho na qual o homem é enaltecido como provedor (breadwinner) da família e à mulher cabe um papel secundário, de reprodutora, responsável pelos assuntos domésticos e pela educação dos filhos (Good wives, wise mothers) (Hirao, 2001HIRAO, Keiko. Mothers as the Best Teachers: Japanese Motherhood and Early Childhood Education. In: BRINTON, Mary (ed.). Women's Working Lives in East Asia. Stanford, Stanford University, 2001, pp.180-203.). Há uma naturalização deste modelo que organiza as relações sociais, tanto na família, como na empresa, estando no cerne do crescimento econômico do Japão. Como consequência desse modelo, as mulheres japonesas são desencorajadas a seguir carreira após o casamento.

Desta forma, a maioria das mulheres japonesas é pressionada a deixar o trabalho logo após o casamento. Na meia idade, a mulher tende a retornar ao mercado de trabalho, quando os filhos se tornam independentes. Contudo, a sua condição é de trabalhadora não especializada com vínculos temporários (arubaito ou freelancer), não contando com os mesmos direitos trabalhistas que os homens. Neste sistema, a disparidade de salários entre homens e mulheres é grande, maior dentre todos os países desenvolvidos. Em geral, os salários das mulheres são cerca de um terço menor do que o dos homens, e raramente as mulheres ocupam posição de destaque na sociedade ou cargos de chefia nas empresas (Shuto, 2009SHUTO, Wakana. Occupational Sex Segregation and the Japanese Employment Model: Case Studies of the Railway and Automobile Industries. Japan Labor Review, 6 (1), Tokyo, The Japan Institute for Labour Policy and Training , 2009, pp.21-35.).

Na década de 1980, foi promulgada a lei de “Oportunidades Iguais de Emprego”, revisada em 1999. Entretanto, na prática, o Estado e as empresas continuam seguindo o mesmo modelo baseado na iniquidade de gênero. Além disso, o Estado não oferece serviços ou facilidades que auxiliem a mãe na educação dos filhos: as creches para crianças em período integral são escassas e não há oferta de profissionais que possam ajudar nos afazeres domésticos e no cuidado com os filhos (Hirao, 2001HIRAO, Keiko. Mothers as the Best Teachers: Japanese Motherhood and Early Childhood Education. In: BRINTON, Mary (ed.). Women's Working Lives in East Asia. Stanford, Stanford University, 2001, pp.180-203.).

Para as mulheres migrantes, a situação é ainda mais precária. Muitas brasileiras que migram com seus cônjuges e filhos, ou outras que deram à luz no Japão, enfrentam essa escassez de oferta de serviços ou facilidades no cuidado com os filhos. Portanto, elas têm poucas opções de trabalho, pois eles devem ser condizentes com a rotina de mães. Apesar desses limites, as pequenas empresas japonesas têm grande interesse em contratar os serviços dessas mulheres. Elas são relativamente jovens e dispostas a trabalhar com salário inferior ao dos homens para complementar a renda familiar em serviços que sãos desprezados pela maioria dos japoneses.

A disponibilidade das brasileiras se torna ideal paras as empresas, pois estas podem contar com o trabalho dessas mulheres para serviços temporários no período em que há demandas. Elas representam um tipo de mão de obra descartável mais barata que seus compatriotas masculinos. E, assim, as brasileiras são capturadas por um modelo de produção que discrimina e explora duplamente as mulheres estrangeiras.

Além disso, ao analisar a situação atual da mulher brasileira no Japão, é necessário contextualizar também a condição das mulheres de outras etnias no país. Um olhar retrospectivo na história da construção da nação mostra que, na versão oficial do Estado japonês, não há registros diretos sobre as mulheres dos povos conquistados. Como foram tratadas as mulheres de territórios anexados, seja das Ilhas Ryukyu ou de Hokkaido? Os relatos e registros de pesquisadores nativos mostram vários abusos que essas mulheres sofreram sob a dominação japonesa; muitas delas tornavam-se forçadamente concubinas de oficiais ou comerciantes japoneses (Honda, 2000HONDA, Katsuichi. Harukor: an Ainu woman’s tale. Berkeley, University of California Press, 2000.).

O mesmo aconteceu com muitas mulheres jovens da Coreia do Sul, da China, e algumas de países do sudeste asiático que estavam sob ocupação japonesa antes e durante a Segunda Guerra Mundial. Na década de 1990 tornou-se público o escândalo relacionado às atrocidades cometidas pelo exército japonês contra essas mulheres. Tal fato foi denominado eufemisticamente pela mídia internacional de “comfort women” (mulheres ou damas de conforto ou de alívio), quando na realidade muitas foram forçadas à prostituição ou serviam como escravas sexuais aos soldados japoneses durante a segunda guerra mundial. Fontes indicam que mais de 200 mil mulheres desses países foram vitimadas (Tanaka, 2001TANAKA, Yuki. Japan’s Comfort Women: Sexual Slavery and Prostitution during World War II and the Us Occupation. Cornell, Routledge, 2001.).

Também nos anos 1990, alguns estudos apontavam para o problema do tráfico de mulheres ou “escravas sexuais” do sudeste asiático para o Japão, principalmente da Tailândia e das Filipinas (Suzuki, 2003SUZUKI, Nobue. Transgressing "Victims" Reading Narratives of "Filipina Brides" in Japan. Critical Asian Studies, v. 35, Routledge, Taylor & Francis. 2003, pp.399-420.; Willians, 2012). O corpo abjeto e subalterno foi sujeito a violações diversas ao mesmo tempo que se tornam objetos de desejo. Assim, as mulheres de povos conquistados e de países do sudeste asiático no Japão foram simultaneamente constituídas, racial e sexualmente, como fêmea marcada (sexualizada e sem direitos), raramente como esposa17 17 Com exceção de algumas mulheres tailandesas, filipinas, dentre outras, que se tornaram esposas de homens que, em sua maioria, viviam no meio rural e eram responsáveis pelos serviços domésticos e pelos cuidados com os filhos e a família (Suzuki, 2003). , analogamente ao que ocorreu com a mulher negra nos Estados Unidos (Haraway, 2004HARAWAY, Donna. “Gênero” para um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra. cadernos pagu (22), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu/Unicamp, 2004, pp.201-246.).

Atualmente, a prostituição é proibida no país, mas o comércio do sexo, denominado metaforicamente como “comércio da água” (mizu shobai), que faz alusão aos prazeres efêmeros, é representado por estabelecimentos noturnos que oferecem diversificados serviços para uma vasta clientela. Assim, existe uma infinidade de casas noturnas e clubes que oferecem vários serviços, desde artistas que realizam apresentações e entretêm os clientes, “damas” de companhia (hostess) para beber e conversar nos bares mais refinados, karaokês, casas de massagem e bares mais populares com strippers e garotas e mulheres que de forma não declarada também oferecem serviço de sexo pago (Parry, 2012PARRY, Richard. People Who Eat Darkness. New York, Farrar Straus Giroux, 2012.).

A organização desses serviços reflete também a hierarquização social: quanto mais caro, exclusivo e “respeitável” o estabelecimento, maior a probabilidade de as mulheres serem japonesas. Na outra extremidade, mais barata e acessível, estão as tailandesas, filipinas, chinesas e coreanas. Entre as “ocidentais” também há diferentes status, mas, de forma geral, as europeias, norte-americanas e australianas iniciam como hostess. Já as russas e as latino-americanas, inclusive algumas brasileiras, podem ser ou hostess ou strippers. Mais que tocar, as atrações principais são conversar e observar, mas eventualmente podem evoluir para um contato físico mais íntimo, onde o limite é tênue e acobertado (Takeyama, 2005TAKEYAMA, Akiko. Commodified romance in a Tokyo host club. In: MCLELLAND, Mark; DASGUPTA, Romit (ed.). Genders, Transgenders and Sexualities in Japan. Cornell, Routledge Studies in Asia’s Transformations, 2005, pp.01-08.).

Não obstante, o trabalho de campo e outras pesquisas (Tsuda, 2006TSUDA, Takeyuki. Local Citizenship in Recent Countries of Immigration. New York, Lexington, 2006.; Matsue, 2013MATSUE, Regina Y. Religiosidade e Rede de Apoio Social na Vida das Mulheres Brasileiras e suas Famílias no Japão. Saúde e Sociedade, 22 (2), São Paulo, USP, 2013, pp.298-309.) mostraram que a maioria das brasileiras trabalhava no setor manufatureiro, na linha de produção de pequenas peças e acessórios para celular, acessórios de automóveis, do setor alimentício, dentre outros. Algumas outras mulheres, geralmente de primeira ou segunda geração que dominavam o idioma, trabalhavam em serviços de escritório (office lady) ou realizavam trabalhos de tradução. Havia também muitas mulheres sem descendência japonesa de diversas regiões do Brasil que estavam acompanhando seus cônjuges, o que revelava a diversidade entre as elas.

Muitas mulheres, devido a questões relacionadas à dificuldade com a língua, discriminação no local de trabalho ou ausência de apoio no cuidado com os filhos, optavam por trabalhar em serviços informais ou no interior da comunidade brasileira. Na busca por trabalhos que se adequassem às suas necessidades e rotina, essas mulheres iniciavam seus negócios, por conta própria, como cozinheiras na produção e entrega de marmitas ou em pequenos restaurantes domésticos, cabelereiras, manicure, e algumas trabalhavam também como hostess em clubes noturnos, como é o caso de Clara, uma brasileira que acompanhou seu cônjuge para trabalhar no Japão.

Vim para o Japão com meu marido ainda muito jovem, com 21 anos. Logo que chegamos, trabalhamos muito, e, naquela época, em meados dos anos noventa, ainda se conseguia fazer um bom dinheiro. Eu sou neta de italianos e não sabia me comunicar em japonês, mas isso não me prejudicava, pois eu trabalhava na linha de produção junto com meu marido, que sabia falar japonês. Depois de dois anos e meio eu engravidei e, quando minha filha nasceu, eu não conseguia mais trabalhar tempo integral. Já tínhamos economizado um bom dinheiro para investir em nosso próprio negócio. Abrimos uma espécie de lanchonete que era frequentada no início só por brasileiros, mas que logo alguns japoneses da vizinhança começaram a vir também. Eu aprendi a me comunicar e os japoneses gostavam de conversar comigo, comecei a fazer amizades e muitos deles se tornaram fregueses assíduos. Depois de quatro anos, tivemos problemas com nossos fornecedores e começamos a acumular dívidas. Entramos em falência, meu marido ficou mal e começou a beber e eu não sabia o que fazer. Um dos clientes me convidou para trabalhar como acompanhante no clube de golfe. Basicamente, eu trabalhava todas as manhãs acompanhando os clientes nos campos de golfes, conversando, ajudando a carregar os equipamentos e, às vezes, eles me convidavam para almoçar. Isso me rendia um bom dinheiro e eu conseguia conciliar o trabalho com a escola da minha filha. Depois de um tempo, os clientes do clube começaram a me convidar para sair à noite para bares, mas somente para fazer companhia e bater papo. Às vezes os clientes extrapolavam, ficavam bêbados, e eu tinha que lidar com a situação. Fiz isso durante uns cinco anos, até minha filha começar a frequentar a escola em período integral, e daí eu pude trabalhar na fábrica novamente. Mas eu não me arrependo, eu aprendi a falar em japonês e aprendi muito sobre a forma de viver dos japoneses e sobre o Japão nestas conversas, hoje eu me comunico melhor que o meu marido (entrevista realizada em Moka/2008).

Em conversas e entrevistas com as mulheres mais jovens, elas se queixavam do comportamento insolente (sukebe) por parte dos homens japoneses nos locais de trabalho, como podemos ver no relato de Helena:

Eu tinha um chefe na minha na fábrica que gostava de tocar nas nádegas ou em outras partes do corpo das brasileiras, principalmente das mais jovens. Eu, por exemplo, não tenho descendência japonesa e eu vim para o Japão junto com meu marido que é filho de japoneses... Uma vez, o chefe me tocou nos seios e eu fiquei muito nervosa, fui falar com meu marido que sabia falar japonês. Ele veio e foi tomar satisfação com o chefe. Nunca mais ele mexeu comigo, mas era bem comum esse tipo de comportamento. E se a gente se queixava com os superiores, eles argumentavam que o fato de nós brasileiras expormos o corpo, usando roupas apertadas, provocava neles este tipo de comportamento. Mas com o tempo eu me habituei e aprendi a me defender e a lidar com as situações mais complicadas no trabalho. Hoje, depois de 12 anos aqui, eu gosto do Japão, eu me sinto bem familiarizada com a nossa rotina, e meus três filhos foram todos criados aqui... (entrevista realizada em Tsuchiura/2008).

No imaginário da nação, o corpo da mulher gaijin (estrangeira) é considerado um “objeto” de desejo que pode ser apreciado ou até tocado. As mulheres brasileiras representam um elemento novo neste sistema que as categoriza, e seus relatos ilustram como os mecanismos ideológicos agem na construção social de seus corpos, situando-os no imaginário e na hierarquia social.

Em contrapartida, as mulheres nikkeis que possuíam algum conhecimento na língua japonesa queixavam-se mais do assédio moral que sofriam: eram destratadas pelo fato de não terem o domínio do idioma como “deveriam”. Naomi se queixava da forma como foi tratada no local de trabalho.

Quando eu comecei a trabalhar, eu sofri muito com a discriminação na fábrica. Eu sou filha de japoneses e, apesar de falar japonês, no início eles me xingavam de bacayaro (idiota), pois eu não entendia tudo o que eles falavam. Gritavam o tempo todo: osoi! (lenta), pois, ao realizar o serviço, eu ainda não tinha muita habilidade e fazia mais devagar que as demais pessoas. Eu sofria muito, porque eles não me consideravam como pessoa e me tratavam mal. Após dois anos, eu comecei a ficar deprimida. Eu resolvi sair da fábrica e comecei a fazer salgadinho em casa para vender entre os brasileiros, montei meu próprio negócio. Hoje vivo disso e tenho até fregueses japoneses (entrevista realizada em Oizumi, 2008).

O relato de Naomi, assim como a minha vivência no Japão, remete-nos à sensação de incompletude descrita por Glória Anzulzia (2005), por sermos diferentes e por destoarmos da condição de normalidade. Essa afecção me impeliu a pesquisar as mulheres, pois eu vivia uma condição semelhante a delas. Consciente e inconscientemente, eu queria investigar como a construção de alteridade agia e manifestava-se nos corpos das migrantes, pois eu mesma vivenciava um processo análogo. O fato de ser estudante colocava-me em um “status” diferenciado, porém, mesmo assim, eu era um corpo dissonante que deveria ser moldado (Matsue; Pereira, 2017MATSUE, Regina Y.; PEREIRA, Pedro Paulo. “Quem se diferencia apanha” (deru kui ha watareru): experiência etnográfica, afeto e antropologia no Japão. Mana, 23 (2), Rio de Janeiro, Museu Nacional, 2017, pp.427-454.).

Ao pesquisar sobre a questão dos decasséguis, percebi que, apesar de o grupo ser heterogêneo, multifacetado e com nuances identitárias individuais, a situação de liminaridade era coletiva e comum a todos. De tal modo que, independentemente da ligação que tínhamos ou não com o Japão (ou de nossas “japonesidades”), identificávamo-nos acima de tudo como brasileiros(as) (burajirujin). Ou seja, reconstruímos a nós mesmos(as) a partir da imagem que nossos interlocutores nos devolviam. Portanto, o que nos unia naquele momento era o nosso embate e negociações em prol de um espaço, um vir a ser em uma sociedade que dificilmente tolerava a diferença e sempre nos colocava em condição de anomalia subalterna. De certa forma, eu buscava apontar as possibilidades em formas dissonantes de ser mulher.

Naomi sofreu discriminações por ser nikkei e não ser considerada enquanto tal, mas vista enquanto um “ser incompleto”. Clara e Helena se tornaram alvo de assédio e desejo por serem corpos rotulados como estrangeiros. Os três relatos são marcados por episódios de dificuldades, discriminações e sexismos. Todavia, assinalo que essa condição discrepante proporcionada pelos relatos e afecções da pesquisa de campo, em que toda gama de elementos ideológicos e culturais conflitantes interagiram, revelou também o interstício e a abertura para novas formas de vir a ser. Pois, os relatos nos revelam também um certo protagonismo das brasileiras que aprenderam a viver em tradução e desenvolveram alternativas de trabalho e de vida no cotidiano do Japão. É nesse espaço que o híbrido surgiu como uma forma de resistência criativa, em toda sua autenticidade.

Considerações finais

A experiência etnográfica, por um lado, permitiu-me estranhar e desnaturalizar vínculos do ideal de “niponicidade” que fazia parte do meu imaginário e afetava minha posição no mundo. Tal ideal está presente no discurso oficial do Estado, classificando e deliberando quem merece pertencer ao Estado nação japonês, causando angústias e desconfortos para quem dele destoa.

Portanto, parafraseando Dona Haraway (1995)HARAWAY, Donna. Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. cadernos pagu (5), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu/Unicamp, 1995, pp.07-41., argumento a favor de uma prática de fazer ciência que privilegie a contestação, a desconstrução, as conexões em rede e a esperança na transformação de sistemas de conhecimento e nas maneiras de ver o outro. E, para que isso ocorra, é preciso que haja um “distanciamento apaixonado” que requer mais do que parcialidade reconhecida e autocrítica. Deve ser privilegiado também o ponto de vista dos que não são reconhecidos, mas que representam um conhecimento potente para a construção de um mundo menos organizado por eixos de dominação.

Esse conhecimento transformador e o estímulo de uma firme avaliação crítica de dentro inaugura uma nova ontologia que não só desfaz a dicotomia sujeito-objeto como também aponta para a possibilidade de se considerar identidades e autoidentidades que se posicionam criticamente. Nessa acepção, as questões de diferenças e nuances identitárias entre mim e minhas interlocutoras tornaram-se irrelevantes, pois, além de serem borradas e movediças, refletem justamente o ideal hegemônico que classifica. Busquei, antes, descontruir e assinalar as porosidades e as fissuras desse ideal e as possibilidades que se abrem a partir de suas incongruências.

Fomos rotuladas e enquadradas enquanto “corpos subalternos ou incompletos” , então busquei explorar as consequências desse rótulo em nossas vidas, mas, acima de tudo, não me pautei nos prejuízos. Pois, com o tempo, percebi que a posição dual ou híbrida é uma terceira via que possibilita o surgimento de outras posições que possuem um caráter estratégico de sobrevivência e de negociação cultural. Invocando Veena Das (2007), considero que as minhas vivências e experiências do cotidiano e de minhas interlocutoras não devem ser pautadas nas limitações e danos causados pela posição subalterna da mulher migrante ou nos seus sofrimentos. Mas, sobretudo, nas suas formas de resistência criativas marcadas por uma maleabilidade e uma necessidade de viver em traduções que extrapolam a condição de subalternidade.

Referências bibliográficas

  • AMOS, Timothy D. Embodying Difference: The Making of Burakumin in Modern Japan. Honolulu, University of Hawai Press, 2011.
  • ANZALDÚA, Gloria. Bordelands/La Frontera: The New Mestiza. San Francisco, Spinsters/Aunt Lute, 1987.
  • AUSTIN, John. Quando dizer é fazer. Porto Alegre, Artes Médicas, 1990.
  • BEFU, Harumi. Hegemony of Homogeneity: An Anthropological Analysis of Nihonjinron. Melbourne, Trans Pacific, 2001.
  • BEFU, Harumi. Japan: An Anthropological Introduction. New York, Charles E. Tuttle Company, 1985.
  • BELTRÃO, Kaizô Iwakami; SUGAHARA, Sonoe. Permanente Temporário: Decasséguis Brasileiros no Japão. Revista Brasileira de Estudos de População (1), Rio de janeiro, Associação Brasileira de Estudos Populacionais. 2006, pp.61-85.
  • BENEDICT, Ruth. The Chrysanthemum and the Sword: Patterns of Japanese Culture. Boston, Houghton Mifflin, 1989.
  • BURGESS, Chris. Japão multicultural? O discurso e o mito da homogeneidade reexaminados. In: PEREIRA, Ronan A.; SUZUKI, Tae (org.). O Japão no caleidoscópio: estudos da sociedade e da história japonesa. Campinas, Pontes, 2014, pp.109-144.
  • BUTLER, Judith. The psychic life of power: theories in subjection. Stanford, Stanford University Press, 1997.
  • CARVALHO, José Jorge. O olhar etnográfico e a voz subalterna. Horizontes Antropológicos, 7 (15), Porto Alegre, UFRGS, 2001, pp.107-147.
  • CONSULADO Geral do Brasil em Tóquio. Portal do site do Consulado geral do Brasil em Tóquio, 2018. [http://cgtoquio.itamaraty.gov.br/pt-br/estatisticas_e_bibliografia.xml#estatisticas2018 - acesso em: abril de 2019].
    » http://cgtoquio.itamaraty.gov.br/pt-br/estatisticas_e_bibliografia.xml#estatisticas2018
  • DAS, Veena. Life and Words: Violence and the Descent into the Ordinary. Berkeley, University of California Press, 2007.
  • DENOON, Donald (ed.). Multicultural Japan: palaeolithic to postmodern. Cambridge, Cambridge University Press, 2001.
  • DOI, Takeo The anatomy of dependence: The key analysis of Japanese behavior. Tokyo, Kodansha International, 1973.
  • FAVRET-SAADA, Jeanne. Ser Afetado. Cadernos de Campo (13), São Paulo, USP, 2005, pp.155-161.
  • FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis, Vozes, 1987.
  • HALL, Stuart. Cultural identity and diaspora. In: RUTHERFORD, J. (ed.). Identity: community, culture and difference. London, Lawrence & Wishart, 2005, pp.222-237.
  • HARAWAY, Donna. “Gênero” para um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra. cadernos pagu (22), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu/Unicamp, 2004, pp.201-246.
  • HARAWAY, Donna. Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. cadernos pagu (5), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu/Unicamp, 1995, pp.07-41.
  • HIRAO, Keiko. Mothers as the Best Teachers: Japanese Motherhood and Early Childhood Education. In: BRINTON, Mary (ed.). Women's Working Lives in East Asia. Stanford, Stanford University, 2001, pp.180-203.
  • HONDA, Katsuichi. Harukor: an Ainu woman’s tale. Berkeley, University of California Press, 2000.
  • KAPLAN, David. Yakuza: Japan's criminal underworld. Berkeley, University of California Press, 2012.
  • KONDO, Dorinne. Dissolution and Reconstitution of Self: Implications for Anthropological Epistemology. Cultural Anthropology, 1(1), Arlington, American Anthropological Association, 1986, pp.74-88.
  • KROGNESS, Karl. Jus Koseki: Household registration and Japanese citizenship. Asia-Pacific Journal, 12 (35) 1, Cambridge, Harvard University, 2014, pp.01-24.
  • LESSER, Jeffrey. Searching for Home Abroad: Japanese Brazilians and Transnationalism. Durham, Duke University Press, 2003.
  • LIE, John. Multiethnic Japan. Cambridge, Harvard University Press, 2001.
  • MACHADO, Igor. Japonesidades multiplicadas: novos estudos sobre a presença japonesa no Brasil. São Carlos, EdUfscar, 2011.
  • MATSUE, Regina Y.; PEREIRA, Pedro Paulo. “Quem se diferencia apanha” (deru kui ha watareru): experiência etnográfica, afeto e antropologia no Japão. Mana, 23 (2), Rio de Janeiro, Museu Nacional, 2017, pp.427-454.
  • MATSUE, Regina Y. Religiosidade e Rede de Apoio Social na Vida das Mulheres Brasileiras e suas Famílias no Japão. Saúde e Sociedade, 22 (2), São Paulo, USP, 2013, pp.298-309.
  • MAUSS, Marcel. As Técnicas Corporais. Sociologia e Antropologia. São Paulo, EPU/Edusp, 1984, pp.211-233.
  • NAKANE, Chie. Japanese Society. Harmondsworth, Penguin Books, 1977.
  • NATIONAL Institute of Population and Social Security Research 国立社会保障・人口問題研究所 [Kokuritsu Shakai Hoshō Jinkō Mondai Kenkyūjo], 2020. Portal do site do Instituto Nacional de Pesquisa sobre População e Segurança Social [http://www.ipss.go.jp/syoushika/tohkei/Popular/Popular2020.asp?chap=0 - acesso em: julho de 2020].
    » http://www.ipss.go.jp/syoushika/tohkei/Popular/Popular2020.asp?chap=0
  • NEMOTO. Kumiko. Postponed marriage: Exploring women’s views of matrimony and work in Japan. Gender and Society, 22 (2), Newbury Park, Sage, 2008, pp.219-237.
  • OGASAVARA, Mario H. The experience of a foreigner student at the University of Tsukuba. Tsukuba Forum booklets, (74), Tsukuba, Tsukuba University, 2007, pp.27-31.
  • ONO, Hiroshi; ONO, Hiromi. Race and Ethnic Relations in Contemporary Japan. In: SÁENZ, Rogelio; EMBRICK, David; RODRÍGUEZ, Néstor (ed.). The International Handbook of the Demography of Race and Ethnicity. New York; London, Springer, 2015.
  • PARRY, Richard. People Who Eat Darkness. New York, Farrar Straus Giroux, 2012.
  • PEIRANO, Mariza. Etnografia não é método. Horizontes Antropológicos, 20 (42), Porto Alegre, UFRGS, 2014, pp.377-391.
  • PEIRANO, Mariza. Etnografia, ou a teoria vivida. Ponto Urbe, (2), São Paulo, USP, 2008, pp.2-9.
  • ROTH, Joshua H. Political and Cultural Perspectives on “Insider” Minorities. In: ROBERTSON, Jennifer (ed.). A Companion to the Anthropology of Japan. Malden, Wiley-Blackwell, 2005.
  • ROTH, Joshua H. Brokered Homeland: Japanese Brazilian Migrants in Japan. New York, Cornel University Press, 2002.
  • RYANG, Sonia. Koreans in Japan: Critical Voices from the Margin. New York, Routledge, 2005.
  • RYANG, Sonia. Japan and National Anthropology: A Critique. New York, Routledge Curzon, 2004.
  • SASAKI, Elisa. A imigração para o Japão. Estudos Avançados, 20 (57), São Paulo, USP, 2006, pp.99-117.
  • SEKIGUCHI, Sumiko. Confucian Morals and the Making of a “Good Wife and Wise Mother”: from “Between Husband and Wife There Is Distinction” to as “Husbands and Wives Be Harmonious”. Social Science Japan Journal, 13 (1), Oxford, Oxford University Press, 2010, pp.95-113.
  • SHIPPER, Apichai. Fighting for foreigners: Immigration and its impact on Japanese democracy. Ithaca and London, Cornell University Press, 2011.
  • SHUTO, Wakana. Occupational Sex Segregation and the Japanese Employment Model: Case Studies of the Railway and Automobile Industries. Japan Labor Review, 6 (1), Tokyo, The Japan Institute for Labour Policy and Training , 2009, pp.21-35.
  • SUZUKI, Nobue. Transgressing "Victims" Reading Narratives of "Filipina Brides" in Japan. Critical Asian Studies, v. 35, Routledge, Taylor & Francis. 2003, pp.399-420.
  • TAKEYAMA, Akiko. Commodified romance in a Tokyo host club. In: MCLELLAND, Mark; DASGUPTA, Romit (ed.). Genders, Transgenders and Sexualities in Japan. Cornell, Routledge Studies in Asia’s Transformations, 2005, pp.01-08.
  • TANAKA, Yuki. Japan’s Comfort Women: Sexual Slavery and Prostitution during World War II and the Us Occupation. Cornell, Routledge, 2001.
  • TIAN, Yunchen; CHUNG, Erin. Is Japan Becoming a Country of Immigration? Why More Foreign Labor Doesn't Imply Liberalization. Foreign Affairs, n. 2, New York, Council on Foreign Relations. 2018.
  • TSUDA, Takeyuki. Local Citizenship in Recent Countries of Immigration. New York, Lexington, 2006.
  • TURNER, Bryan S. Religion and Modern Society: Citizenship, Secularisation and the State. Cambridge, Cambridge University Press, 2011.
  • WEINER, Myron (ed.). Japan’s Minorities: Illusion of Homogeneity. London, Routledge, 2004.
  • WILLIAMS, Phil. Illegal Immigration and Commercial Sex: The New Slave Trade. Abingdon, Routledge, 2012.
  • 1
    Utilizo o termo “brasileiras” para não incorrer ao modelo de etnicidades-hifenizadas muito bem descritas por Lesser (2003)LESSER, Jeffrey. Searching for Home Abroad: Japanese Brazilians and Transnationalism. Durham, Duke University Press, 2003., mas que limita e coloca distinções estanques entre descendentes e não descendentes de japoneses. Neste sentido, a escolha do termo “brasileiras” aponta para uma ruptura com a noção de margens, indo de encontro com uma noção de “japonesidades múltiplas” proposta de Machado (2011)MACHADO, Igor. Japonesidades multiplicadas: novos estudos sobre a presença japonesa no Brasil. São Carlos, EdUfscar, 2011.. A japonesidade vista como múltipla é mais inclusiva e permite que não analisemos as condições desses sujeitos como “menos ou mais” japonesas, mas com suas identificações múltiplas à sua maneira. Da mesma forma que há também uma identidade múltipla entre os brasileiros(as) no Japão que compartilham experiências e se identificam com moralidades, sentidos e símbolos de forma idiossincrática e fluída, mas que no final são todos(as) (“burajirujin”) brasileiros(as).
  • 2
    Alguns autores contemporâneos, baseados em dados etnográficos, criticam a reificação de um “modelo invariável de família japonesa”, apontando nuances regionais de “formas de organização familiar” e que também sofreram transformações ao longo do tempo (ver Ryang, 2004RYANG, Sonia. Japan and National Anthropology: A Critique. New York, Routledge Curzon, 2004.). Contudo, o modelo patriarcal de família é ainda predominante.
  • 3
    O termo nikkei doravante será utilizado para designar os descendentes de japoneses de gerações variadas que nasceram no exterior e que, em sua maioria, não possuem a nacionalidade japonesa.
  • 4
    Apesar de o modelo teórico sobre a família tradicional no Japão ter sido questionado por estudos posteriores, ele ainda serve de base para se pensar vários aspectos da organização social do Japão (Ryang, 2004RYANG, Sonia. Japan and National Anthropology: A Critique. New York, Routledge Curzon, 2004.).
  • 5
    Há ainda uma pressão para que as mulheres japonesas se casem e tenham filhos jovens. Atualmente, muitas mulheres têm questionado essa norma, adiando o casamento ou mesmo permanecendo solteiras, mas são criticadas e denominadas pejorativamente de “parasite singles” (Ver Nemoto, 2008).
  • 6
    O termo foi usado originalmente para designar os imigrantes japoneses das regiões menos industrializadas no nordeste da ilha de Honshu e de outras regiões que foram trabalhar nas regiões industrializadas do Japão. Desde os meados da década de 1980, contudo, o termo passou a ser usado para denominar os nikkeis, ou seja, pessoas descendentes de japoneses oriundos de diferentes países que vão trabalhar temporariamente no Japão (Beltrão; Sugahara, 2006BELTRÃO, Kaizô Iwakami; SUGAHARA, Sonoe. Permanente Temporário: Decasséguis Brasileiros no Japão. Revista Brasileira de Estudos de População (1), Rio de janeiro, Associação Brasileira de Estudos Populacionais. 2006, pp.61-85.).
  • 7
    Apesar de ser a minha primeira viagem ao Japão, naquele momento eu tinha um sentimento idílico de retorno introjetado a partir da influência de um ideal político. Mais adiante, iremos problematizar as implicações desse conceito (Ver Sasaki, 2006SASAKI, Elisa. A imigração para o Japão. Estudos Avançados, 20 (57), São Paulo, USP, 2006, pp.99-117.).
  • 8
    A cidade de Tsukuba, diferentemente da maioria das cidades japonesas, é relativamente jovem, foi planejada e construída na década de 1970, possui ruas largas e bem planejadas. Além disso, a Universidade de Tsukuba era considerada uma das universidades mais internacionais do país, particularmente pelo grande número de estudantes estrangeiros (mais de 1.500), professores estrangeiros e japoneses formados no exterior (Ver Ogasavara, 2007OGASAVARA, Mario H. The experience of a foreigner student at the University of Tsukuba. Tsukuba Forum booklets, (74), Tsukuba, Tsukuba University, 2007, pp.27-31.).
  • 9
    De acordo com as teorias sobre a niponicidade (nihonjinron), “ser japonês” é definido por três critérios: raça/sangue, cultura/língua e território (Ver Befu, 2001BEFU, Harumi. Hegemony of Homogeneity: An Anthropological Analysis of Nihonjinron. Melbourne, Trans Pacific, 2001.). Com base nessa concepção, ser racialmente japonesa implicava também dominar a língua e comportar-se de determinada maneira. Assim, minhas ações “inadequadas” e meus erros linguísticos provocavam reações de perplexidade e de repulsa (Ver Matsue; Pereira, 2017MATSUE, Regina Y.; PEREIRA, Pedro Paulo. “Quem se diferencia apanha” (deru kui ha watareru): experiência etnográfica, afeto e antropologia no Japão. Mana, 23 (2), Rio de Janeiro, Museu Nacional, 2017, pp.427-454.).
  • 10
    A antropóloga Dorinne Kondo, filha da diáspora japonesa nos Estados Unidos, relata situação semelhante em um texto da década de 1980 que versa sobre sua dramática experiência de desintegração do self na realização de seu trabalho de campo (Ver Kondo, 1986KONDO, Dorinne. Dissolution and Reconstitution of Self: Implications for Anthropological Epistemology. Cultural Anthropology, 1(1), Arlington, American Anthropological Association, 1986, pp.74-88.).
  • 11
    Aproximadamente dez por cento da população de ambas as cidades era composta por brasileiros.
  • 12
    Utilizo a expressão “migração de retorno” em alusão à ideologia adotada pelo governo japonês para lograr seus valores ideológicos conservadores. Nesta perspectiva, os decasséguis atenderiam as necessidades raciais e ideológicas do governo japonês e, ao mesmo tempo, supririam as demandas do mercado de trabalho por mão-de-obra barata e não-qualificada. Porém, como já ressaltou Sasaki, a expressão faz sentido somente nestes termos, pois a experiência migratória dos brasileiros que estão indo para o Japão nas últimas décadas é totalmente diferente da dos japoneses que imigraram para o Brasil no início do mesmo século XX. O contexto é bastante distinto para os decasséguis, talvez o termo correto seria "a volta dos que não foram", pois a grande maioria nunca estiveram antes no Japão (Ver Sasaki, 2006).
  • 13
    Foi responsável, no final da década de 1920, pelo desenvolvimento de um estilo de antropologia original, cujo enfoque estava centrado nos estudos sobre o folclore japonês, diferentemente dos outros escritores da época, que recebiam grande influência da antropologia europeia.
  • 14
    A maioria dos migrantes brasileiros é oriunda da classe média, profissionais liberais ou donos de pequenos negócios no Brasil. Entretanto, no Japão, eles se tornam invariavelmente trabalhadores braçais, operários da linha de produção, desempenhando um tipo de trabalho totalmente impessoal, mecânico e repetitivo, estigmatizado por três palavras começadas por k: kiken (perigoso), kitsui (árduo) kitanai (sujo) (Matsue; Pereira, 2017)MATSUE, Regina Y.; PEREIRA, Pedro Paulo. “Quem se diferencia apanha” (deru kui ha watareru): experiência etnográfica, afeto e antropologia no Japão. Mana, 23 (2), Rio de Janeiro, Museu Nacional, 2017, pp.427-454..
  • 15
    Ainda no século XVII, surgiu o movimento Kokugaku [Estudo dos Clássicos Nacionais] ou estudos exegéticos, de caráter fortemente nacionalista. Tais estudos buscavam definir e afirmar a identidade e o caráter único da cultura e do povo japonês, tendo como representante máximo o pensador Motoori Norinaga (1730-1801). A partir do estudo da obra clássica Kojiki [Crônica das Coisas Antigas], o autor buscava os elementos autóctones e “puros” da cultura japonesa que, segundo ele, ainda não tinham sido desvirtuados pela influência posterior do Budismo e do confucionismo chinês. Esse pensamento influenciou fortemente os intelectuais japoneses do pré-guerra.
  • 16
    O sistema de registro no Japão “koseki” é baseado no princípio de jus sanguinis, no qual uma criança só pode receber a cidadania se um dos pais for cidadão japonês com um registro de família no país (Ver Krogness, 2014)KROGNESS, Karl. Jus Koseki: Household registration and Japanese citizenship. Asia-Pacific Journal, 12 (35) 1, Cambridge, Harvard University, 2014, pp.01-24..
  • 17
    Com exceção de algumas mulheres tailandesas, filipinas, dentre outras, que se tornaram esposas de homens que, em sua maioria, viviam no meio rural e eram responsáveis pelos serviços domésticos e pelos cuidados com os filhos e a família (Suzuki, 2003)SUZUKI, Nobue. Transgressing "Victims" Reading Narratives of "Filipina Brides" in Japan. Critical Asian Studies, v. 35, Routledge, Taylor & Francis. 2003, pp.399-420..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    05 Set 2019
  • Aceito
    21 Jan 2022
Núcleo de Estudos de Gênero - Pagu Universidade Estadual de Campinas, PAGU Cidade Universitária "Zeferino Vaz", Rua Cora Coralina, 100, 13083-896, Campinas - São Paulo - Brasil, Tel.: (55 19) 3521 7873, (55 19) 3521 1704 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: cadpagu@unicamp.br