Resumos
Os conceitos de Atenção Farmacêutica foram analisados desde a sua origem, nos Estados Unidos, e as contribuições posteriores provenientes da Espanha e do esforço de sistematização pela Organização Mundial da Saúde para compreender o processo que vem ocorrendo no Brasil. Após o abandono das farmácias comunitárias, os farmacêuticos brasileiros esperam que esse novo modelo de prática seja um caminho para o resgate do seu papel social. A filosofia que orienta a Atenção Farmacêutica, o enfoque centrado no paciente, em nosso entendimento, deve suportar filosófica e conceitualmente a reconstrução da prática farmacêutica no Brasil a fim de resgatar a relação farmacêutico-paciente nas farmácias comunitárias.
Atenção Farmacêutica; Farmácia comunitária; Relação farmacêutico-paciente
The Pharmaceutical Care concepts were analyzed from their origins in the United States and the later contributions which came from Spain and from the effort of sistematization by the World Health Organization to understand the processs that has been happening in Brasil. After the abandon of the communitarian pharmacy, the Brazilian pharmacists hope that this new model of practicing is the way to get back his/her social role. The philosophy which directs the Pharmaceutical Care, having the focus on patient, in our understanding, must support philosophical and conceptually the rebuilding of pharmaceutical practicing in Brazil in order to get back the lost relation between the pharmacist and patient at communitarian pharmacy.
Pharmaceutical care; Community pharmacy; Pharmacist-patient relationship
TEMAS LIVRES FREE THEMES
Atenção Farmacêutica: fundamentação conceitual e crítica para um modelo brasileiro
Pharmaceutical Care: conceptual and critical basis to a Brazilian model
Daniela AngonesiI; Gil SevalhoII
ICentro Universitário Newton Paiva. Av. Silva Lobo 1730, escaninho 312, Nova Granada. 30460-000 Belo Horizonte MG. daniangonesi@hotmail.com
IIFaculdade de Farmácia, Universidade Federal de Minas Gerais
RESUMO
Os conceitos de Atenção Farmacêutica foram analisados desde a sua origem, nos Estados Unidos, e as contribuições posteriores provenientes da Espanha e do esforço de sistematização pela Organização Mundial da Saúde para compreender o processo que vem ocorrendo no Brasil. Após o abandono das farmácias comunitárias, os farmacêuticos brasileiros esperam que esse novo modelo de prática seja um caminho para o resgate do seu papel social. A filosofia que orienta a Atenção Farmacêutica, o enfoque centrado no paciente, em nosso entendimento, deve suportar filosófica e conceitualmente a reconstrução da prática farmacêutica no Brasil a fim de resgatar a relação farmacêutico-paciente nas farmácias comunitárias.
Palavras-chave: Atenção Farmacêutica, Farmácia comunitária, Relação farmacêutico-paciente
ABSTRACT
The Pharmaceutical Care concepts were analyzed from their origins in the United States and the later contributions which came from Spain and from the effort of sistematization by the World Health Organization to understand the processs that has been happening in Brasil. After the abandon of the communitarian pharmacy, the Brazilian pharmacists hope that this new model of practicing is the way to get back his/her social role. The philosophy which directs the Pharmaceutical Care, having the focus on patient, in our understanding, must support philosophical and conceptually the rebuilding of pharmaceutical practicing in Brazil in order to get back the lost relation between the pharmacist and patient at communitarian pharmacy.
Key words: Pharmaceutical care, Community pharmacy, Pharmacist-patient relationship
Introdução
Este artigo se propõe a analisar a evolução do papel do farmacêutico na atenção à saúde e como, no Brasil, o desenvolvimento da Atenção Farmacêutica pode contribuir para a melhoria da atuação do profissional nas farmácias comunitárias, valorizando, consequentemente, o seu papel social.
Desde a sua proposição, muitas contribuições têm sido feitas no sentido de buscar o melhor entendimento e aplicação prática do conceito de Atenção Farmacêutica. Entre os conceitos e práticas da Atenção Farmacêutica desenvolvidos internacionalmente, devemos buscar as contribuições daqueles que são relevantes para o caso brasileiro. Neste sentido, a análise da origem do conceito nos Estados Unidos e das contribuições posteriores provenientes da Espanha e, por fim, do esforço de sistematização posto em marcha pela Organização Mundial da Saúde (OMS) são importantes para compreender o processo que vem ocorrendo no Brasil. Por meio de uma análise histórica e crítica dessas contribuições, contextualizando com o desenvolvimento da profissão farmacêutica no Brasil, este trabalho pretende participar da construção de uma Atenção Farmacêutica voltada para a nossa realidade e necessidades.
Uma breve história da farmácia no Brasil
Desde o princípio, a profissão farmacêutica desenvolveu-se em um contexto de disputa com outros profissionais não diplomados, os práticos licenciados que atuavam nas boticas, os curandeiros, raizeiros e benzedores que prometiam a cura e tinham a confiança da população. Os boticários diplomados não podiam vir para a colônia, e a prática da farmácia continuaria baseada na experiência prática até a implantação da primeira escola de farmácia no Brasil, em 1832. As boticas possuíam uma importância social muito grande nas cidades brasileiras 1-3, tendo se desenvolvido graças ao seu potencial comercial, embora o farmacêutico estabelecesse com seus clientes uma relação que ia além da comercial. Mas a industrialização do medicamento moderno iria influenciar a tomada de um novo rumo na profissão.
No início do século XX, os medicamentos eram produzidos de forma artesanal nas boticas e nas pequenas indústrias e possuíam valor terapêutico duvidoso dependente da percepção e do envolvimento ritual do usuário4. Mas descobertas terapêuticas importantes das décadas de 1930 e 1940, relacionadas aos antimicrobianos, impulsionaram a comunidade científica na busca por novas metodologias, iniciando o processo de crescimento do setor industrial5.
Nasceu, assim, o medicamento moderno, racional e cientificamente explicado, conforme afirmam Perini e Acúrcio4, sendo seus efeitos demonstrados através de metodologias modernas de pesquisa. A produção artesanal de medicamentos foi gradualmente desaparecendo, sendo substituída pela industrial, feita em larga escala, e os produtos químico-sintéticos passaram a predominar nas indicações, modificando o papel do farmacêutico e da farmácia, que se transformava em pouco tempo em simples estabelecimento comercial.
Cabe lembrar que junto com o desenvolvimento da indústria farmacêutica emerge uma característica da sociedade moderna: o estímulo ao consumo de mercadorias. Pois, como afirma Sevalho5, "a produção crescente de tecnologias necessita de um mercado capaz de absorver a demanda de consumo que lhe é incessantemente imposta e que, por isso, deve ser permanentemente ajustado ao poder da mídia e do instrumental simbólico da propaganda".
Esse novo medicamento surgido das transformações tecnológicas incorpora um sentido simbólico e, como afirma Sevalho5, pode ser considerado um "objeto híbrido, uma mistura de bem de consumo e instrumento terapêutico". Em meio ao processo de medicalização da sociedade, o "negócio farmacêutico" tornou-se um disputado mercado em crescimento. As drogarias tornaram-se grandes parceiras das indústrias que se instalavam e dominavam o mercado farmacêutico brasileiro, distribuindo os seus produtos e estimulando o consumo dos medicamentos.
Não apenas no Brasil o farmacêutico manipulador perdeu espaço; as farmácias de manipulação não eram mais necessárias, pois os medicamentos já vinham prontos na forma de especialidades farmacêuticas. Os farmacêuticos não conseguiam inserção nas grandes indústrias e não tinham o que fazer nas drogarias, pois a comercialização dessas especialidades exigia menos conhecimento técnico. Além do mais, já em 1930, como aponta Giovanni6, com a alegação de que não existiam farmacêuticos suficientes para atender às necessidades do crescente número de farmácias no país, "a legislação passa a proporcionar a possibilidade" de seu funcionamento "sem a presença de farmacêuticos diplomados". Tinha início, assim, uma grande crise na profissão. No Brasil, houve uma migração de profissionais para campos como as análises clínicas, bromatológicas e toxicológicas, que não têm a ver com o contexto do medicamento1.
A farmácia transforma-se num estabelecimento de comércio de medicamentos. A regulamentação da atividade farmacêutica nas farmácias vigente desde 1931 foi substituída pela Lei nº 5.991, de 17 de dezembro de 1973, o que, na verdade, apenas reforçou o caráter comercial que o setor já vinha demonstrando, denominando, por exemplo, as atividades farmacêuticas de comércio farmacêutico7.
O profissional não consegue se inserir nessa prática e prefere outras áreas em que terá maior reconhecimento e prestígio. Mas a responsabilidade técnica é uma exigência legal, e para cumpri-la os donos de drogarias contratam o farmacêutico apenas para "assinar" a responsabilidade técnica. O farmacêutico aceita essa situação, e a atividade estritamente farmacêutica é desmoralizada.
A indústria contribuiu para essa situação na medida em que passou a fornecer aos médicos, aos proprietários de farmácia e ao consumidor informações sobre as propriedades e indicações de uso dos produtos, na forma de bulas. O conhecimento do farmacêutico em relação aos medicamentos é substituído pelas bulas, não havendo mais a necessidade do profissional para explicar os fatores envolvidos com a manutenção e a recuperação da saúde1. E numa época que exige temporalidades curtas porque "tempo é dinheiro", o atendimento tem que ser rápido e ágil para que se venda mais. Na medida em que a perspectiva social da compreensão da doença está ausente, ou depreciada, a antiga relação terapêutica farmacêutico-paciente não tem razão de ser5.
Hoje, o que encontramos na maioria das drogarias é a ausência ou inércia do farmacêutico e os balconistas e donos de drogarias atuando como prescritores, orientadores e conselheiros terapêuticos da população com o objetivo de vender mais medicamentos.
O jovem Sistema Único de Saúde (SUS) ainda vem sendo construído e, no seu contexto, no campo dos medicamentos e da assistência farmacêutica, os principais avanços ocorreram, principalmente, após a aprovação da Política Nacional de Medicamentos (PNM), em outubro de 1998. Dentre as diretrizes e prioridades estabelecidas pela PNM, destacam-se a reorientação da assistência farmacêutica, a promoção do uso racional de medicamentos e a organização das atividades de vigilância sanitária de medicamentos8,9.
No campo da vigilância sanitária, além das diretrizes estabelecidas pela PNM, várias medidas de caráter normativo de medicamentos foram adotadas na década de 1990 e influenciaram a função do farmacêutico na farmácia comunitária. No final da década de 1990, ocorrências de falsificação e adulteração de medicamentos preocupavam a sociedade em relação à qualidade dos medicamentos comercializados, e isso contribuiu para a implantação de normas e exigências mais rigorosas por parte da vigilância sanitária no que diz respeito à produção, transporte e distribuição dos medicamentos no Brasil10.
A regulamentação dos medicamentos genéricos instituiu normas para a prescrição e dispensação11. Ao farmacêutico coube a responsabilidade de fazer a troca, ou seja, substituir um medicamento de referência pelo genérico, para o que ele deve estar presente na farmácia, e o usuário mais consciente dos seus direitos tem exigido o profissional capacitado para orientá-lo sobre a substituição e o uso do medicamento.
No Brasil, como já foi dito, a rápida expansão da industrialização do medicamento e a perda do papel tradicional dos farmacêuticos fizeram com que estes se afastassem do contato direto com o paciente. Em outros países, a história foi diferente. Os farmacêuticos estavam em busca da consolidação da sua importância como profissionais de saúde, e sua movimentação foi importante para a construção teórica e prática da Atenção Farmacêutica.
A Atenção Farmacêutica
Nos Estados Unidos, a perda do papel do farmacêutico nas farmácias após a industrialização foi solucionada no âmbito hospitalar através de uma nova disciplina que pretendia resgatar a participação do farmacêutico na equipe de saúde, a Farmácia Clínica.
O código de ética da American Pharmacists Association (AphA) de 1952 estabelecia que os farmacêuticos não podiam discutir os efeitos terapêuticos dos medicamentos com os pacientes e que deveriam encaminhá-los ao médico ou dentista, caso houvesse alguma dúvida, acabando de vez com o poder que os farmacêuticos detinham sobre o uso dos medicamentos. Assim, os farmacêuticos comunitários se limitaram a comprar e vender medicamentos sem poder interferir na terapêutica. Mas os farmacêuticos hospitalares realizavam outras atividades variadas, como a distribuição dentro da instituição e a participação na Comissão de Farmácia e Terapêutica. Dessa forma, eles resistiram à influência da indústria e dos médicos sobre o uso dos medicamentos e garantiram à farmácia uma voz na decisão terapêutica12.
Então começaram a surgir questionamentos sobre a função social da farmácia. Francke et al.13 realizaram um estudo sobre a prática farmacêutica em hospitais e afirmaram que a função de dispensação do farmacêutico é essencialmente uma prática superficial da profissão que não utiliza conhecimento ou habilidades suficientemente básicas para merecer o reconhecimento profissional.
Esses e outros questionamentos levaram Brodie e Benson14 a afirmar na década de 1960 que os farmacêuticos deveriam ser responsáveis pelo controle do uso de medicamentos. Surge, então, o movimento que resultou num modelo de prática farmacêutica, aplicado especialmente em hospitais, denominado Farmácia Clínica.
Hepler15 analisou a prática e a educação farmacêutica fazendo uma correlação com as três ondas socioeconômicas na história mundial (era agrária, industrial e da informação). Para ele, as três "ondas" da educação farmacêutica são a era do empirismo, da ciência e do cuidado ao paciente. O modelo que prevalecia até 1970 (era da ciência) formava cientistas e não profissionais. A ênfase nos processos mecânicos dos medicamentos acabou afastando o profissional da prática. A sociedade não necessitava de cientistas. Como nas farmácias não havia mais a atividade de manipulação, o farmacêutico passou a ocupar-se com atividades gerenciais, e as farmácias tornaram-se canais de distribuição da indústria. Para esse autor, o movimento clínico marca o início de uma nova era na educação e prática farmacêutica, a era do cuidado com o paciente. E foi importante para o resgate da função social da farmácia e profissionalização da prática nos hospitais e nas farmácias comunitárias.
A partir de então o conceito de Farmácia Clínica tem evoluído até incluir todas as atividades relacionadas ao uso racional e seguro do medicamento. Exemplo disso foi a modificação do código de ética profissional em 1969, quando os farmacêuticos foram encorajados a fornecer a cada paciente todas as suas habilidades e conhecimentos como um profissional de saúde essencial.
Porém, em 1990, Hepler e Strand16 publicaram um trabalho que influenciaria toda a profissão farmacêutica nos próximos anos. Embora reconhecessem a importância da farmácia clínica para a profissionalização da farmácia, esses autores consideram que algumas de suas definições situavam o medicamento em primeiro plano em detrimento do paciente. Então eles defendem que os farmacêuticos, além de apoiar a concepção funcional da farmácia clínica, devem estar preparados para assumir a responsabilidade sanitária de prevenir a morbimortalidade relacionada com os medicamentos. Para isso, deverão modificar a sua prática. A profissão farmacêutica deve ser baseada em uma filosofia apropriada de prática e uma estrutura organizada que oriente a prática.
Hepler e Strand16 defenderam a adoção de um enfoque centrado no paciente e o desenvolvimento de uma relação terapêutica na qual o paciente e o profissional trabalhem juntos para resolver os problemas relacionados aos medicamentos. Estes autores propuseram uma definição para a Atenção Farmacêutica que foi amplamente aceita pelos profissionais no mundo inteiro como ideia fundamental da profissão de farmácia: Provisão responsável do tratamento farmacológico com o propósito de alcançar resultados concretos que melhorem a qualidade de vida do paciente. Estes resultados são: 1) a cura da doença, 2) a redução ou eliminação dos sintomas, 3) a interrupção ou retardamento do processo patológico, e 4) a prevenção de uma doença ou dos sintomas.
Em 1992, Cipolle et al.17 iniciaram um projeto de três anos para examinar de maneira crítica a relação existente entre a teoria emergente da Atenção Farmacêutica e a prática real, o Minnesota Pharmaceutical Care Project. Esses autores desenvolveram um processo de resolução de problemas que incorpora as responsabilidades do farmacêutico e tentaram determinar se o conceito de Atenção Farmacêutica podia ser introduzido e desenvolvido na farmácia comunitária.
A partir dos resultados desse projeto, a definição original passou a ser considerada incompleta, e esses autores propuseram outra: prática na qual o profissional assume a responsabilidade pelas necessidades do paciente em relação aos medicamentos e um compromisso a respeito. Esta definição não foca os resultados como a anterior, mas reforça a necessidade de o profissional assumir a responsabilidade de resolver problemas farmacológicos complexos para que o exercício dessa nova prática profissional seja uma realidade.
Em uma publicação mais recente desses mesmos autores, o conceito de Atenção Farmacêutica foi novamente revisto. Reforçando o seu grande diferencial de propor uma prática centrada no paciente, os autores complementam a definição acrescentando: uma prática centrada no paciente na qual o profissional assume a responsabilidade pelas necessidades do paciente em relação aos medicamentos e um compromisso a respeito18.
Cipolle et al.17 consideram que a Atenção Farmacêutica é uma prática como as demais da área de saúde. Possui uma filosofia, um processo de cuidado ao paciente e um sistema de gestão.
Uma filosofia do exercício profissional é uma série de valores que define as regras, funções, relações e responsabilidades do profissional. Por conseguinte, todos os profissionais que pretendem atuar consequentemente em um determinado exercício profissional devem refletir criticamente sobre a sua prática. A filosofia do exercício profissional é um componente prescritivo de uma prática e define o que se deve fazer. É um conjunto de ideais, princípios, conceitos, valores e axiomas compartilhados por todos os profissionais e que serve como referência para definir a natureza do seu exercício17.
Dessa forma, Cipolle et al.17 afirmam: A filosofia da atenção farmacêutica inclui diversos elementos. Começa com a "afirmação de uma necessidade social"; continua com um "enfoque centrado no paciente" para satisfazer esta necessidade; tem como elemento central a assistência a outra pessoa mediante o "desenvolvimento e manutenção de uma relação terapêutica", e finaliza com uma "descrição das responsabilidades concretas do profissional".
Para justificar sua posição e seus privilégios numa sociedade, todas as profissões devem satisfazer uma necessidade social específica. Na Atenção Farmacêutica, o profissional se encarrega de reduzir a morbidade e a mortalidade relacionadas com os medicamentos. O profissional satisfaz essa necessidade social atendendo às necessidades dos pacientes um a um. O farmacêutico é responsável por satisfazer a necessidade que tem a sociedade de receber um tratamento apropriado, efetivo, seguro e cômodo17.
Para isso, é necessário que o profissional da Atenção Farmacêutica utilize em seu exercício um enfoque centrado no paciente. Isto significa que o paciente deve ser considerado como pessoa em seu conjunto, com algumas necessidades de assistência gerais e outras específicas relacionadas com a medicação que constituem a principal preocupação do profissional17. Segundo esses autores, o centro de interesse da Atenção Farmacêutica passa do produto (medicamento) para a pessoa (paciente). Eles partem do conceito de que "os fármacos não tem doses, são as pessoas que recebem doses"19.
Como discutido por Ramalho de Oliveira20, o enfoque centrado no paciente é a experiência de atender ao chamado do "outro", o "outro" sendo o paciente que é vulnerável e demanda atenção e responsabilidade profissional. Como discutido pela autora, para exercer a Atenção Farmacêutica como prática centrada no paciente, além de competência técnica, o profissional deve deixar de ocupar o centro do seu universo cedendo este lugar ao paciente. O profissional deve estar sintonizado com o chamado do "outro", manter o interesse na subjetividade do paciente e contemplá-lo como uma pessoa única. Apesar de aparentemente básicas, as ideias de consideração do indivíduo e responsabilização por decisões terapêuticas são conceitos complexos e ainda não vivenciados pela maioria dos farmacêuticos no seu dia a dia de prática profissional. Principalmente quando consideramos o caso brasileiro, em que o farmacêutico historicamente afastou-se do público que utiliza medicamentos.
O cuidado ou assistência ao paciente no contexto da atenção farmacêutica requer uma relação que promova a participação do paciente no processo terapêutico. Conforme dito por Hepler e Strand16, a atenção farmacêutica se baseia em um acordo entre o paciente, que aceita conceder autoridade ao profissional, e o profissional, que garante ao paciente competência e compromisso. Nesta perspectiva, estabelece-se uma relação de reciprocidade de responsabilidades do profissional e do paciente baseada no diálogo, na confiança, respeito, sinceridade e autenticidade, com a finalidade específica de satisfazer as necessidades de uma assistência sanitária devidamente contextualizada na complexidade social.
Além da filosofia que orienta a prática, um dos grandes diferenciais da Atenção Farmacêutica proposta por esses autores é o processo de cuidado ao paciente. Eles defendem que só deve existir um único processo de cuidado que deve ser padrão em qualquer lugar para qualquer farmacêutico, assim como são os processos para a atenção médica, para a atenção odontológica e para os cuidados de enfermagem. Trata-se de um processo de solução de problemas lógico, sistemático e global que permite ao profissional prestar um serviço de qualidade, completo e uniforme ao paciente. São várias as vantagens citadas para se adotar um processo comum de assistência, dentre elas a capacidade de comunicação com os outros profissionais de saúde e outros farmacêuticos utilizando um vocabulário uniforme e, principalmente, a garantia de continuidade do serviço farmacêutico em todos os contextos de assistência sanitária: ambulatório, hospital e no domicílio17.
Conforme salientam os autores citados, filosofia, processo de cuidado e gestão da prática são três componentes essenciais de qualquer prática profissional. Porém, eles não são considerados para as práticas farmacêuticas atuais nas farmácias comunitárias. O farmacêutico, como já dito, perdeu seu espaço e reconhecimento nas farmácias comunitárias quando estas se tornaram simples estabelecimentos comerciais. Sua função como cuidador da saúde dos usuários de medicamentos não tinha mais valor, e a dispensação de medicamentos tornou-se um ato comercial. Na verdade, o farmacêutico ficou sem saber o que fazer nas drogarias, pois a sua filosofia não é adequada à característica do estabelecimento, e o processo de cuidado foi modificado a partir do advento das especialidades farmacêuticas com bulas.
Por isso, Cipolle et al.17 consideram que as funções tradicionais de dispensação não serão mais a razão de ser do farmacêutico, pois essa é uma atividade essencialmente técnica que pode ser realizada por auxiliares bem treinados. O farmacêutico deve assumir novas funções e responsabilidades centradas totalmente no paciente com a finalidade de resolver problemas farmacológicos complexos. Eles, então, defendem a preparação de um novo profissional que se encarregará de uma nova prática profissional na qual oferecerá um novo serviço, a Atenção Farmacêutica17.
Esse novo modelo de prática ganhou campo nas discussões internacionais sobre o papel do farmacêutico. Então surgiram questionamentos sobre os fundamentos da Atenção Farmacêutica. Seria esse o único modelo de prática profissional? E as outras atividades do farmacêutico, como a dispensação, a informação sobre medicamentos, a indicação, educação em saúde?
Os próprios autores desse modelo, na segunda edição do seu livro18, reafirmam que a Atenção Farmacêutica é uma nova prática profissional. Porém, agora eles assumem que esta prática não pretende substituir o farmacêutico dispensador.
Muitos trabalhos foram desenvolvidos em diferentes localidades tentando propor uma solução a esses anseios. Um exemplo disso são os trabalhos de Holland e Nimmo21-25, pesquisadores australianos que defendem o não esquecimento das atividades clínicas dos farmacêuticos, propondo um novo modelo de Atenção Farmacêutica Integral que inclui cinco outras atividades farmacêuticas como submodelos.
As contribuições da Espanha
Na Espanha foi produzido um consenso em 2001, que incluiu as outras atividades voltadas para o paciente no conceito de Atenção Farmacêutica: A participação ativa do farmacêutico na assistência ao paciente na dispensação e seguimento do tratamento farmacoterapêutico, cooperando com o médico e outros profissionais de saúde, a fim de conseguir resultados que melhorem a qualidade de vida dos pacientes. Também prevê a participação do farmacêutico em atividades de promoção à saúde e prevenção de doenças26.
Na perspectiva espanhola, as atividades farmacêuticas orientadas para o paciente, como a dispensação, a indicação de medicamentos que não necessitam de receita médica, educação sanitária, farmacovigilância, o seguimento farmacoterapêutico e todas aquelas que se relacionam com o uso racional de medicamentos foram incluídas no modelo de prática profissional denominado Atenção Farmacêutica. Com isto pretende-se potencializar as atividades assistenciais do farmacêutico como profissional de saúde26.
O que a perspectiva espanhola define como Seguimento Farmacoterapêutico assemelha-se ao conceito de Atenção Farmacêutica elaborado pelo grupo de Minnesota. O Consenso Espanhol expressa que: Seguimento farmacoterapêutico individualizado é a prática profissional na qual o farmacêutico se responsabiliza pelas necessidades do paciente relacionadas com os medicamentos mediante a detecção, prevenção e resolução de problemas relacionados com a medicação (PRM), de forma continuada, sistematizada e documentada, em colaboração com o próprio paciente e com os demais profissionais do sistema de saúde, com o fim de alcançar resultados concretos que melhorem a qualidade de vida do paciente26.
Assim, a perspectiva espanhola é diferente do grupo de Minnesota. Enquanto os americanos consideram a Atenção Farmacêutica uma prática única e diferente das demais atividades realizadas pelo farmacêutico e com um processo racional de tomada de decisão, os espanhóis reconhecem as atividades farmacêuticas tradicionais como a dispensação como parte deste novo modelo de prática, pois em todas elas o farmacêutico está assumindo a responsabilidade pela redução da morbimortalidade relacionada aos medicamentos. No entanto, os mesmos pilares filosóficos sustentam as duas perspectivas.
As contribuições da Organização Mundial da Saúde
A Organização Mundial da Saúde (OMS) vem produzindo uma série de recomendações internacionais relacionadas aos medicamentos e ao papel do farmacêutico no sistema de atenção à saúde e, dessa forma, tem contribuído para a construção conceitual da Atenção Farmacêutica. Deve-se destacar dois documentos muito importantes para o contexto dessa discussão: os informes produzidos pelas reuniões de Nova Délhi, em 1988, e Tóquio, em 1993.
Em Nova Délhi, ressaltou-se a importância do farmacêutico no sistema de atenção à saúde, descrevendo as suas funções na equipe de saúde, especialmente em relação aos seus conhecimentos sobre o manejo e as propriedades dos medicamentos. O farmacêutico, segundo o grupo reunido, deve atuar como fonte de informação sobre os medicamentos para a equipe e os pacientes, sendo o responsável pelo controle do uso racional e seguro do medicamento. Ou seja, a OMS adota as ideias da farmácia clínica como diretrizes para a profissão farmacêutica27.
Após a divulgação do trabalho de Hepler e Strand16 sobre a Atenção Farmacêutica, a OMS promove um novo encontro para rever o papel do farmacêutico em 1993. O documento produzido nessa reunião é conhecido como Declaração de Tóquio e adota um conceito de Atenção Farmacêutica reforçando a reorientação do produto para o paciente: Um conceito de prática profissional na qual o paciente é o principal beneficiário das ações do farmacêutico. A Atenção Farmacêutica é o compêndio das atitudes, dos comportamentos, dos compromissos, das inquietudes, dos valores éticos, das funções, dos conhecimentos, das responsabilidades e das destrezas do farmacêutico na prestação da farmacoterapia, com o objetivo de alcançar resultados terapêuticos definidos na saúde e na qualidade de vida do paciente28.
Além disso, a OMS reconhece o farmacêutico como dispensador de atenção sanitária, ressaltando que os benefícios da Atenção Farmacêutica devem ser direcionados ao paciente e à comunidade através de ações de promoção da saúde e prevenção de doenças. O grupo reunido em Tóquio, ao destacar os elementos da atenção farmacêutica ao paciente, inclui diversas outras atividades farmacêuticas ao processo de cuidado do paciente, como a dispensação e a indicação farmacêutica. Complementando, a OMS recomenda que a Atenção Farmacêutica seja uma atitude profissional a que todo farmacêutico deve visar28.
A Organização Mundial da Saúde, juntamente com organizações profissionais farmacêuticas, vem exercendo uma influência muito importante na definição do papel do farmacêutico e de políticas farmacêuticas em vários países. Esta influência está baseada, principalmente, na recomendação de que todo o farmacêutico deve adotar o conceito de atenção farmacêutica na sua prática profissional. Como as outras recomendações levam em conta as atividades tradicionais do farmacêutico relacionadas ao paciente e à comunidade, a adoção do conceito de Atenção Farmacêutica estaria no plano das ideias, do comportamento e das atitudes dos farmacêuticos na sua prática atual para melhorar a assistência ao paciente e à comunidade no que se refere à utilização de medicamentos.
Assim, a perspectiva da OMS é diferente da posição do grupo de Minnesota, pelo menos no que diz respeito à incorporação de outras atividades farmacêuticas no âmbito da Atenção. Aparentemente, a proposta da OMS aproxima-se mais da concepção espanhola e é assim que tem influenciado a posição brasileira.
O caso do Brasil
No Brasil, as atividades do farmacêutico estão inseridas na Assistência Farmacêutica, um conceito cuja construção teve início no final dos anos 1980 envolvendo todas as atividades relacionadas ao medicamento desde a pesquisa e produção até a dispensação de forma cíclica e integrada.
Dez anos depois é instituída a Política Nacional de Medicamentos (PNM), que reorienta o conceito de assistência farmacêutica com o propósito de garantir a segurança, a eficácia e a qualidade dos medicamentos, bem como a promoção do uso racional e o acesso da população aos medicamentos considerados essenciais, respondendo à necessidade, discutida internacionalmente há anos, de racionalizar o uso de medicamentos e aumentar o acesso e reafirmando que os farmacêuticos deveriam assumir essa responsabilidade. Assim, a Assistência Farmacêutica é conceituada como um grupo de atividades relacionadas com o medicamento, destinadas a apoiar as ações de saúde demandadas por uma comunidade. Envolve o abastecimento de medicamentos em todas e em cada uma de suas etapas constitutivas, a conservação e controle de qualidade, a segurança e a eficácia terapêutica dos medicamentos, o acompanhamento e avaliação da utilização, a obtenção e a difusão de informação sobre medicamentos e a educação permanente dos profissionais de saúde, do paciente e da comunidade para assegurar o uso racional de medicamentos8.
Porém, as atividades continuavam centradas no medicamento, o que era evidenciado especialmente pela não adoção do novo modelo de prática, a Atenção Farmacêutica, que já havia sido recomendado pela OMS em 1993, na Declaração de Tóquio.
Em relação ao conceito de dispensação também se observa um avanço, pois diferentemente do conceito proposto pela legislação sanitária, o aspecto comercial da atividade é excluído. Ao deixar claro que o farmacêutico é responsável não só pelo fornecimento do medicamento como também pela orientação para o seu uso adequado, o conceito de dispensação adquire um caráter mais técnico. Dispensação é o ato profissional farmacêutico de proporcionar um ou mais medicamentos a um paciente, geralmente como resposta à apresentação de uma receita elaborada por um profissional autorizado. Neste ato o farmacêutico informa e orienta o paciente sobre o uso adequado do medicamento8.
Mesmo com a definição de conceitos relacionados à prática farmacêutica na PNM, o Conselho Federal de Farmácia (CFF) publica uma resolução, em 2001, que estabelece as Boas Práticas em Farmácia propondo outro conceito de assistência farmacêutica, que inclui a preocupação demonstrada nos informes da OMS sobre a assistência integral à saúde, mas não especifica as atividades farmacêuticas29. Da mesma forma como na PNM, ainda não há a adoção do conceito de Atenção Farmacêutica, embora seja possível notar alguns avanços operacionais no estabelecimento de requisitos para a prática farmacêutica, especialmente em farmácias comunitárias, que se assemelham aos procedimentos da farmácia clínica e da Atenção Farmacêutica.
Já em relação ao conceito de dispensação não há avanço na resolução do CFF, e em relação à PNM há um retrocesso, mantendo o caráter comercial da atividade: ato do farmacêutico de orientação e fornecimento ao usuário de medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, a título remunerado ou não29.
A Farmácia Clínica chegou ao Brasil muito timidamente, e apenas alguns hospitais chegaram a colocar em prática esse modelo. O primeiro serviço foi implantado em Natal, no Rio Grande do Norte, em 197930.
Em relação à Atenção Farmacêutica, o processo brasileiro também se iniciou tardiamente e com confusão conceitual. O próprio CFF, em publicações nos anos de 1996 e 1997, apresenta o conceito de Atenção Farmacêutica como sendo o de assistência farmacêutica31,32.
Produziram-se, então, no Brasil, diferentes interpretações sobre os conceitos de Atenção e Assistência Farmacêutica, sobre a operacionalização e inter-relação deles e sobre os diferentes entendimentos do papel do farmacêutico e do objeto de sua prática no país.
Então, em 2002, um grupo de profissionais coordenado pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) reuniu-se com o objetivo de discutir a uniformização de termos e conceitos e para a promoção da Atenção Farmacêutica no país. Os resultados desses trabalhos foram publicados em um relatório que posteriormente deu origem a uma Proposta de Consenso Brasileiro de Atenção Farmacêutica. O conceito de Assistência Farmacêutica foi revisado, e no entendimento dos participantes é diferente de Atenção Farmacêutica, tem características multiprofissionais e engloba todas as atividades relacionadas ao abastecimento e utilização de medicamentos33,34.
A Atenção Farmacêutica refere-se às atividades específicas do farmacêutico no cuidado do paciente ou usuário do medicamento: É um modelo de prática farmacêutica, desenvolvida no contexto da Assistência Farmacêutica. Compreende atitudes, valores éticos, comportamentos, habilidades, compromissos e co-responsabilidades na prevenção de doenças, promoção e recuperação da saúde, de forma integrada à equipe de saúde. É a interação direta do farmacêutico com o usuário, visando uma farmacoterapia racional e a obtenção de resultados definidos e mensuráveis, voltados para a melhoria da qualidade de vida. Esta interação também deve envolver as concepções dos seus sujeitos, respeitadas as suas especificidades biopsicossociais, sob a ótica da integralidade das ações de saúde34.
Este conceito de Atenção Farmacêutica é muito mais amplo do que os citados anteriormente neste trabalho; envolve termos que necessitam de outras definições ou explicações e não é objetivo nem preciso na definição de responsabilidades específicas do farmacêutico.
O conceito não avança em relação ao original de Hepler e Strand16, complementado por Cipolle et al.16, que é mais objetivo e estabelece de forma clara a responsabilidade específica do farmacêutico que pratica Atenção Farmacêutica: "definição das necessidades farmacoterápicas do paciente e o compromisso de resolvê-las"; pois "atitudes, valores éticos, comportamentos, habilidades, compromissos e co-responsabilidades" são qualidades inespecíficas e que estão presentes em qualquer prática profissional. Segundo esse conceito, elas estão relacionadas a atividades que são realizadas por outros profissionais de saúde em conjunto com o farmacêutico: "ações de prevenção de doenças, promoção e recuperação da saúde, de forma integrada à equipe de saúde". No entanto, ao incluir essas atividades como responsabilidade do farmacêutico, o conceito está seguindo a tendência ideológica do sistema de saúde brasileiro e seus princípios doutrinários de universalidade, equidade e integralidade. A perspectiva da integralidade das ações de saúde também pode ser traduzida na necessidade de as atividades profissionais envolverem "as concepções dos seus sujeitos, respeitadas as suas especificidades biopsicossociais", considerando o indivíduo como um ser único.
Como ocorreu no consenso espanhol, as atividades farmacêuticas relacionadas ao cuidado do paciente foram consideradas componentes da prática profissional para o exercício da Atenção Farmacêutica. Os denominados macrocomponentes da prática da Atenção Farmacêutica são: educação em saúde, incluindo promoção do uso racional de medicamentos; orientação farmacêutica; dispensação; atendimento farmacêutico; acompanhamento/seguimento farmacoterapêutico; registro sistemático das atividades, mensuração e avaliação dos resultados34. Ou seja, além de incluir atividades estritamente farmacêuticas, ela adiciona atividades multiprofissionais e procedimentos relacionados a várias atividades. A confusão torna-se maior ao utilizar termos pouco conhecidos pelos profissionais, como atendimento farmacêutico, cujo conceito não explica claramente do que se trata, podendo ser interpretado de diversas formas. Além disso, alguns termos como orientação farmacêutica não são conceituados. Pode-se considerar tanto um serviço farmacêutico (indicação de medicamentos que não necessitam de prescrição médica ou condutas não farmacológicas para tratamento de problemas simples) quanto qualquer intervenção realizada pelo farmacêutico baseada em fornecimento de informações e/ou esclarecimento de dúvidas proveniente de diversas situações na farmácia.
No entanto, considerando a missão da prática farmacêutica definida pela OMS, as atividades de educação em saúde, especialmente relacionadas ao uso correto de medicamentos, a dispensação e a orientação (entendida como indicação farmacêutica) podem interferir de maneira significativa no uso adequado de medicamentos pelas pessoas e pela sociedade e, por conseqüência, na prevenção e resolução de problemas relacionados aos medicamentos.
Essa realidade é ilustrada pelos resultados de um estudo de avaliação de um serviço de Atenção Farmacêutica em Belo Horizonte (MG), realizado por Nascimento35. O estudo demonstrou que grande número de problemas identificados durante o acompanhamento farmacoterapêutico é relativo à efetividade dos medicamentos. Segundo a autora, tais problemas podem ser resolvidos, em princípio, pela introdução de medidas não farmacológicas, implantação de estratégias para aumentar a adesão aos tratamentos farmacológicos ou não, educação sobre o uso correto do medicamento, educação em saúde, indicação de medicamentos de venda livre, além do encaminhamento para outro profissional de saúde.
O fato de o Consenso Brasileiro de Atenção Farmacêutica propor um conceito amplo de Atenção Farmacêutica caracteriza-o como um documento teórico redirecionador das práticas farmacêuticas. Ao englobar as ações de saúde concordantes com os princípios do SUS e incluir outras atividades do farmacêutico relacionadas ao paciente, o documento está considerando a realidade brasileira da profissão farmacêutica e das farmácias comunitárias no país. No Brasil, como já discutido, há uma necessidade histórica de resgate da relação farmacêutico-paciente nas farmácias e de valorização profissional.
Mesmo elas sendo consideradas estabelecimentos comerciais, acreditamos que as farmácias comunitárias devem manter alguns serviços farmacêuticos essenciais para garantir que o usuário de medicamentos receba medicamentos de qualidade e sejam orientados adequadamente a respeito do uso correto de medicamentos e cuidados com a saúde.
Desde a elaboração da Proposta de Consenso Brasileiro de Atenção Farmacêutica, vários eventos já foram realizados com o intuito de continuar a divulgação desse novo modelo de prática no Brasil. Nos últimos anos, o tema vem sendo discutido em vários congressos e listas de discussão, tanto no âmbito nacional como no internacional. Muitos profissionais brasileiros estão envolvidos nesse movimento em busca da consolidação dessa prática farmacêutica.
Mesmo com todas as diferenças em conceitos e definições discutidas por vários autores e em vários países, a filosofia da Atenção Farmacêutica permanece consensual, principalmente o enfoque centrado no paciente. Esta é a diferença fundamental em relação aos modelos de prática profissional em que o foco era o produto, o medicamento.
Acreditamos que a adoção da filosofia de prática proposta pela Atenção Farmacêutica pode ser um caminho para o resgate da dignidade profissional, da relação farmacêutico-paciente e da reinserção do farmacêutico na equipe de saúde. Os farmacêuticos devem, portanto, entender, adotar e praticar a filosofia da Atenção Farmacêutica na sua prática diária abandonando a posição de meros entregadores de medicamentos, contribuindo assim, de fato, para a melhoria da saúde e da qualidade de vida dos usuários de medicamentos, bem como para sua utilização mais racional no Brasil.
Considerações finais
Finalmente, após essa análise, podemos verificar que a Atenção Farmacêutica, segundo o grupo de Minnesota, é uma nova prática profissional, que exige um novo profissional, e somente dessa forma é que os farmacêuticos poderão exercer a sua função social traduzida na responsabilidade e no compromisso com a resolução de problemas farmacológicos complexos.
Na Espanha, o entendimento é de que as práticas antigas devem ser reestruturadas de acordo com a nova filosofia da Atenção Farmacêutica, para que a responsabilidade do farmacêutico com a assistência ao paciente e com a promoção do uso racional de medicamentos seja resgatada.
A OMS, em seus documentos sobre a função do farmacêutico, também segue essa tendência, ampliando o conceito de Atenção Farmacêutica e estabelecendo que essa é a missão da prática farmacêutica.
No Brasil, o histórico da profissão farmacêutica evidencia a influência de interesses comerciais no abandono da farmácia por parte do profissional e na perda da relação farmacêutico-paciente. A Atenção Farmacêutica como proposta no Consenso Brasileiro, embora defina conceitos pouco específicos e ainda confusos, incorpora elementos característicos do sistema de saúde brasileiro que contribuem para o redirecionamento da prática farmacêutica brasileira.
Mas, em nosso entendimento, é a filosofia da Atenção Farmacêutica, aplicada em todas as atividades dos farmacêuticos relacionadas ao paciente, que dará suporte para a recuperação da função do farmacêutico nas farmácias comunitárias e reconstrução da relação farmacêutico-paciente. Quando o farmacêutico assume a responsabilidade pelo cuidado do paciente, direcionando as suas ações pelo estabelecimento de uma relação terapêutica de respeito e confiança, reafirma o seu papel na equipe de saúde e revela o seu valor social.
Em nosso entendimento, o farmacêutico deve ser de fato um dos responsáveis pela terapêutica e não um mero subordinado à autoridade médica, e somente nessa posição ativa poderá atuar na promoção do uso racional do medicamento e transformar a farmácia em estabelecimento de saúde.
Porém, algumas deficiências precisam ser corrigidas, por exemplo, em relação à formação e capacitação do farmacêutico, que deve ser criticamente voltada para um novo perfil profissional. O farmacêutico precisa ser formado para ser um profissional da saúde que pense criticamente a sua prática, e não mais um técnico em medicamentos.
Finalmente, acreditamos que é necessário continuar o trabalho iniciado na elaboração do Consenso Brasileiro para divulgar e promover esse novo conceito de prática, de forma que os farmacêuticos brasileiros possam compreender os seus princípios filosóficos e aplicar na sua prática diária. E mais ainda, precisamos rever conceitos e práticas farmacêuticas incorporando essa nova filosofia em todas as atividades farmacêuticas direcionadas aos pacientes, pois todas contribuem para a melhoria das condições de saúde e de utilização dos medicamentos pela população brasileira.
Porém, incorporar essa nova filosofia e mudar de atitude não garante uma mudança na realidade dos serviços farmacêuticos prestados em farmácias comunitárias se não vier acompanhada de uma reorganização do processo de cada um dos serviços. Somente assim o farmacêutico saberá como aplicar essa filosofia em benefício do paciente.
Colaboradores
D Angonesi foi responsável pela concepção, pesquisa e redação final do artigo; G Sevalho foi o orientador da pesquisa e também responsável pela elaboração do artigo.
Artigo apresentado em 07/07/2008
Aprovado em 10/09/2008
Versão final apresentada em 30/10/2008
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
19 Nov 2010 -
Data do Fascículo
Nov 2010
Histórico
-
Aceito
30 Out 2008 -
Revisado
10 Set 2008 -
Recebido
07 Jul 2008