Resumo
O conceito de Racismo Institucional (RI) ganha ênfase ao final dos anos 1990 e nos anos 2000, tornando-se assim um dos termos centrais na discussão sobre o racismo e a Saúde da População Negra. No Brasil, esta categoria influencia hegemonicamente a compreensão do racismo nos estudos e debates na saúde. O objetivo deste artigo é analisar a incorporação do conceito de RI no Brasil, no âmbito de implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. O presente estudo caracterizou-se por uma abordagem qualitativa e como um estudo de caso. Foram analisados documentos governamentais do Ministério da Saúde e do Instituto de Pesquisa Econômica. Embora o ingresso formal da discussão sobre o RI na agenda de políticas públicas no início do século XXI represente uma grande conquista, apreender isoladamente este fato leva à desconsideração da interação dialética entre as formas individuais, institucionais e estruturais no desumanizante processo de racialização. Assim, o combate ao RI depende da capacidade de enfrentamento aos motivos que levam as instituições a reproduzirem o racismo e suas consequências no acesso à moradia, ao trabalho, à educação e consequentemente, a serviços e ações de saúde.
Palavras-chave: Racismo; Política Pública; Política de Saúde
Abstract
The concept of Institutional Racism (IR) gained emphasis in the late 1990s and the 2000s. It became one of the central terms in the discussion on racism and the Black Population Health. In Brazil, this category hegemonically influences the understanding of racism in health studies and debates. This qualitative case study paper analyzes the incorporation of the IR concept in Brazil in implementing the National Comprehensive Health Policy for the Black Population. Government documents from the Ministry of Health and the Institute of Applied Economic Research were analyzed. Although the formal inclusion of the discussion about IR in the public policy agenda in the early 21st century is a great achievement, apprehending this fact in isolation disregards the dialectical interaction between individual, institutional, and structural forms in the racialization dehumanizing process. Thus, combating IR depends on facing the reasons that lead institutions to reproduce racism and its consequences on access to housing, work, education, and health services and actions.
Key words: Racism; Public Policy; Health Policy
Introdução
O conceito de Racismo Institucional (RI) ganha ênfase ao final dos anos 1990 e nos anos 2000, tornando-se assim um dos termos centrais na discussão sobre o racismo e a Saúde da População Negra1. No Brasil, a categoria RI influencia hegemonicamente a compreensão do racismo nos estudos e debates na saúde1-4. Um reflexo disto é a sua presença no conteúdo da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN).
Realizar uma análise crítica dos conceitos torna-se algo fundamental ao se compreender que estes são a representação e tradução do real, e, que ambos estão em constante transformações5. No campo da análise de políticas públicas, o conteúdo é delimitado em torno dos problemas que pretende modificar, assim, diz respeito aos seus programas, projetos, ações, objetivos, às metas, sua coerência interna e externa, além de suas perspectivas políticas e sociais6.
Entendendo tal importância, levanta-se o questionamento sobre a capacidade de apreender a realidade existente nos conceitos utilizados para direcionar o conteúdo das Políticas de Saúde no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS). Nos textos governamentais, no Brasil, o RI é compreendido como a produção sistemática da segregação étnico-racial no âmbito das instituições7 ou, em uma versão mais recente da PNSIPN, essa concepção é reiterada e equiparada a de Racismo Estrutural, mas sem aprofundamento entre as particularidades deste conceito e o conteúdo expresso na versão anterior8.
Os textos que apresentam a PNSIPN indicam como principais estratégias de combate ao RI a criação de programas para a identificação de práticas discriminatórias e a sensibilização dos profissionais7,8.
Referente aos marcos que fundamentam o processo de implementação da política, em 2004, o documento “Política Nacional de Saúde da População Negra: uma questão de equidade” é referendado pela assinatura de um termo de compromisso por parte da SEPPIR (Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial) e do Ministério da Saúde, durante o I Seminário Nacional de Saúde da População Negra. Nos anos de 2005 e 2006 diversos seminários e reuniões técnicas culminaram na aprovação da “Política Nacional de Saúde Integral da População Negra” pelo Conselho Nacional de Saúde em 2006, contudo, apenas em 2009 ocorre a instituição da política pela Portaria nº 992, de 13 de maio de 20099,10.
O combate ao RI é um dos objetivos da PNSIPN. Ela possui como marca o reconhecimento do racismo, das desigualdades raciais e do RI como determinantes sociais das condições de vida e do processo saúde-doença, além disso, baseia-se na eliminação das desigualdades e na promoção da equidade em saúde.
No decurso de legitimação da política na esfera do sistema de saúde, apesar de avanços, constata-se11 que as propostas efetuadas não foram suficientes para garantir à população negra, equitativamente, o direito universal à saúde: sua condição de saúde e adoecimento não foram sequer equiparadas com a da população não-negra, mesmo em um período posterior à criação do SUS e de uma década de promulgação da política.
Os dados sobre morbidade e mortalidade disponíveis nos Sistemas de Informação em Saúde e relatórios produzidos pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) apontam para uma não diminuição das desigualdades raciais no promissor período econômico vivido no país entre a primeira e a segunda década do século XXI11-13.
Ao deparar-nos com a situação de vida, saúde e adoecimento no qual a população negra está inserida, mesmo após a promulgação de uma política de saúde específica para suas necessidades, surge o questionamento sobre o potencial do conteúdo escolhido para o direcionamento das ações da política, mais especificamente sobre o RI, enquanto orientador de transformações do cenário existente. Embora seja um termo bastante utilizado na literatura no Brasil é escassa - ou mesmo inédita - uma crítica a respeito de sua origem, desenvolvimento e limitações para a erradicação das desigualdades raciais.
O objetivo deste artigo é analisar a incorporação do conceito de RI no Brasil, no âmbito de implementação da PNSIPN. Inicialmente, faremos um breve histórico da concepção do RI e sua apreensão no Brasil no contexto da PNSIPN; em seguida, apresentaremos algumas críticas já formuladas ao conceito; por fim, analisaremos a relação entre as particularidades existentes no RI frente à dinâmica mais ampla de racialização no Modo de Produção Capitalista.
Metodologia
O presente estudo deriva-se de uma dissertação de mestrado14 que se caracterizou por uma abordagem qualitativa e como um estudo de caso. O modelo Abrangente de Análise de Políticas6,15 foi utilizado na construção deste trabalho e da pesquisa a respeito da PNSIPN. Este modelo de análise, voltado para a investigação das políticas públicas, debruça-se essencialmente no conteúdo, contexto, processo e atores da implementação da política.
Como método para a pesquisa e análise dos resultados utilizou-se o Materialismo Histórico e Dialético. Conquanto derive de um estudo estruturado a partir do Modelo Abrangente de Análise de Políticas6,15, este artigo lançará foco sobre a categoria conteúdo, essencialmente sobre o conceito de RI nos documentos e estudos relacionados a PNSIPN.
O projeto de pesquisa também foi submetido à análise e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães/Fiocruz Pernambuco - Número do Parecer: 3.559.717.
O conteúdo da PNISPN: a ênfase no combate ao racismo institucional
No Modelo Abrangente de Análise de Políticas6, analisar o conteúdo de uma política diz respeito à sua situação inicial, aos programas, projetos, ações, objetivos, às metas, sua situação desejada, seus recursos e, por fim, a sua coerência interna e externa, além de suas perspectivas políticas e sociais.
Formulada como uma política que tem por objetivo a promoção da saúde integral da população negra, por meio da redução das desigualdades étnico-raciais, do embate ao racismo e à discriminação nas instituições, a PNISPN tem o enfrentamento ao RI como primeira estratégia de gestão7. O termo RI é encontrado na maioria dos documentos e nos instrumentos de planejamento que tratam da PNSIPN.
As origens do termo “RI” remetem ao livro Black Power: the politics of liberation in America, escrito por Kwame Ture - anteriormente denominado por Stokely Carmichael - e Charles Hamilton16. No cerne da luta contra a segregação racial nos Estados Unidos (EUA), o movimento Black Power tem na materialização deste livro a denúncia sobre a utilização das instituições na segregação, perseguição e assassinato da população negra norte-americana. Para os autores, o RI diferencia-se do racismo individual ao operacionalizar, de forma menos evidente, a opressão das elites brancas americanas por meio das instituições do Estado, que fadam ao negro condições de vida semelhantes à das pessoas subjugadas no âmbito dos países colonizados.
De sua origem na luta antirracista nos EUA, o RI também foi amplamente debatido na Inglaterra em espaços como a universidade, o judiciário e a imprensa, sobretudo em eventos de ação policial arbitrária contra a população diaspórica advinda de África, do sul da Ásia e do Caribe17,18.
Um fato emblemático influenciou a compreensão de racismo no desenvolvimento de políticas públicas no Brasil. O juiz William Macpherson utilizou o conceito de RI para embasar o relatório jurídico apresentado em 1999, no caso do assassinato de Stephen Lawrence, que junto de outro jovem negro, Duwayne Brooks, foi atacado por cinco jovens brancos em 199317-19.
Neste relatório, a concepção de RI já não possuía a mesma semântica que foi aplicada no contexto norte-americano da década de 1960. No exemplo citado, o termo incorpora a responsabilização das instituições, permeadas pelo racismo, mas aparentemente alheia à sua relação com o Estado e com a ação dos indivíduos.
Em conformidade, Sampaio19 relata que apesar de o termo ter se desenvolvido na Inglaterra desde a década de 1960, a partir de 1993 essa concepção vem sendo entendida por instituições que confrontam o racismo como “um fracasso coletivo de uma organização” - tal qual enunciado pela Comissão para Igualdade Racial (Comission for Racial Equality - CRE).
De acordo com Stuart Hall18, a presença do termo RI no inquérito judicial, apesar do avanço - inclusive na compreensão do racismo cotidiano perpetuado na Inglaterra -, dada sua generalização, gera nos críticos dos relatórios o sentimento de impunidade frente aos indivíduos praticantes de ações racistas e ou discriminatórias.
Durante a transição do século XX ao século XXI, ganha espaço nos estudos em saúde o conceito de RI como possibilidade interpretativa para os efeitos do racismo. Esta aplicação conceitual é amplamente inspirada nas tentativas de enfrentamento ao racismo em instituições realizadas nos EUA20, no Canadá21, na Austrália22 e na Inglaterra23.
No Brasil, no decurso entre as décadas de 1980, 1990 e 2000, adquire novos contornos a atuação dos movimentos negros frente ao Estado. Além da reivindicação direta, ocorre a atuação institucional por meio da ocupação, por parte de alguns de seus integrantes, de secretarias de governo e conselhos nos âmbitos municipais, estaduais e federal24,25.
Na esfera das políticas de saúde, durante o momento que precede a construção e formulação da PNSIPN, merece destaque a atuação protagonista do Movimento de Mulheres Negras26 no decurso da Reforma Sanitária brasileira, luta por direitos reprodutivos, criação do SUS27.
Posteriormente, este movimento atuará junto a SEPPIR, aos Conselhos de Saúde e ao Ministério da Saúde, algo determinante para o surgimento da PNSIPN, sendo possível citar como exemplos Luiza Barros - que chegou a ser Ministra da SEPPIR -, Jurema Werneck, Maria Inês Barbosa, Fernanda Lopes - as duas últimas possuidoras de teses de doutorado de grande importância para a temática -, entre outras28.
Destarte, o combate institucional ao racismo ganha materialidade na promulgação das políticas afirmativas no decorrer dos anos 200029. No início desta década, a luta contra o RI se tornou a grande aposta para direcionar o enfrentamento ao racismo, sendo forte a sua utilização no debate sobre as políticas afirmativas em geral e especificamente na política de saúde1,19,30, nomeadamente, em alguns artigos, são celebrados como trunfos a viabilidade de crítica às normativas, leis e instituições19, igualmente, a possibilidade de trabalhar esta perspectiva de forma setorial no campo da saúde31.
Além do direcionamento das ações para o próprio setor - materializada em grande parte na realização de treinamentos, rodas de conversa e capacitações voltada para os profissionais de saúde -, um ponto complementar para uma análise crítica em torno da centralidade do conceito de RI na formulação de políticas antirracistas no Brasil é sua limitação sobre a compreensão da conduta do Estado na manutenção e no embate ao racismo: a aposta estaria realizada no âmbito das próprias instituições, ou mais especificamente na tentativa de correção ou melhoria do funcionamento do próprio Estado.
A propósito, o deslocamento do conceito de RI entre “a utilização do Estado por uma parcela da sociedade para opressão de outra parte” para “um desvio institucional” pode ser ilustrado quando diversos escritos atribuem ao livro Black Power16 a noção de que o RI representaria uma “falha coletiva” de uma organização ao “prover um serviço apropriado e profissional”2,31-35. Decerto, esta definição voltada para a atuação organizacional está presente no “Relatório Macpherson”, realizado durante o inquérito sobre o assassinato de Stephen Lawrence36.
Enquanto no livro Black Power, escrito na metade do século XX, o RI é compreendido como a ação opressora das elites brancas americanas, sendo inclusive entendido de forma similar ao colonialismo16, no relatório Macpherson36, escrito no final do século XX, tal conceito já não possuía a denúncia da intencionalidade de sua utilização para a opressão - entendido agora como algo provocado por uma falha do funcionamento do Estado e não como um de seus intentos.
Assim, o entendimento do conceito de RI circunscrito à falha do Estado é bastante contestável: embora contribua na necessária discussão sobre os efeitos deletérios do racismo, do preconceito e da discriminação racial nas instituições de saúde, associado a isto, o investimento em ações setoriais não evidencia as contradições históricas e contextuais existentes no Estado brasileiro - tensionado entre as reivindicações sociais por transformação de desigualdades estruturais e a manutenção da necessária desigualdade no capitalismo.
Ademais, outro ponto que merece destaque na elaboração do RI em nosso país, é a influência das experiências das instituições inglesas no enfrentamento ao racismo, com a constatação do financiamento e contribuição na elaboração por parte do Departamento Britânico para o Desenvolvimento Internacional e Redução da Pobreza (DFID) e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) na confecção do Programa de Combate ao Racismo Institucional e para o desenvolvimento da PNISPN1,37,38.
Apesar de diversos artigos1,37,38 mencionarem a participação de órgãos das Nações Unidas e do governo britânico no financiamento e formulação das políticas e dos programas de enfrentamento ao racismo, nenhum deles questiona ou vê por uma perspectiva crítica tal atuação.
A cooperação do PNUD e do DFID na elaboração dos programas de confronto ao racismo no Brasil dificilmente pode ser entendida de maneira incólume: dado que o interesse geopolítico do Reino Unido, por meio do DFID, nos conflitos raciais em países como Brasil não pode ser apartado do ambivalente discurso adotado por esse departamento em outros cenários, quando intentaram o confronto à pobreza e a promoção de políticas de desenvolvimento em países rotulados como atrasados39.
A crítica à compreensão do RI enquanto conceito balizador na construção de políticas públicas contra o racismo vem sendo realizada por autores de diferentes países, elas contribuem para um aprofundamento do entendimento desta concepção. Algumas delas serão descritas a seguir.
As críticas realizadas ao RI
No contexto internacional, diferentes autores realizaram críticas sobre a utilização do RI. Conforme o Dicionário das Relações Étnicas e Raciais40, em seu sentido institucional, o racismo pode se referir a operações anônimas de discriminação em organizações, profissões ou até mesmo sociedades inteiras. Desmedidamente, esse conceito apontaria para o racismo como algo onipresente que permeia toda a sociedade tanto no nível individual quanto no institucional, aberta e subliminarmente. Posteriormente, alguns autores tentaram restringir o conceito, aplicando-o a normas e atos institucionais específicos.
De acordo com Philips17 já na década de 1980, o sociólogo David Mason havia alertado que o RI estaria fadado a um slogan político carente de análise e rigor. A argumentação era referente ao seu enraizamento em convenções estabelecidas na sociedade americana, carecendo de uma comprovação empírica.
Por sua vez, para Dhume41, a noção de RI possui potência ao denotar a responsabilidade das instituições na manutenção das relações sociais raciais desiguais. Porém, ao mesmo tempo, o conceito apresenta limites ao tornar impreciso e redundante o papel das instituições ao não articular o RI ao racismo individual e, simultaneamente, invisibilizar seus causadores e principais beneficiados. Para o autor, não se pode ignorar a função do Estado na estruturação do racismo e na formação de identidades.
De igual modo, Dunezat e Gourdeau42 percorrem distintas aplicações para este conceito e apontam a imprescindibilidade de articular as diferentes escalas do racismo bem como a peculiaridade dos papéis exercidos por indivíduos e pelas instituições.
Para Dunezat e Gourdeau42, há centralidade nas disputas existentes no campo antirracista para a elaboração de conceitos contra hegemônicos que possam expor a ocorrência do racismo de suas maneiras mais sistêmicas e estruturais. Por conseguinte, no que trata do cenário na França, consideram substancial a produção de uma definição contra hegemônica que permita desconstruir a narrativa republicana e revelar o caráter indissociavelmente racista e colonial/imperialista/escravista do Estado francês, o que leva a uma forma de assimilação do RI ao racismo de Estado.
Wieviorka43 considera como força do RI a possibilidade de evidenciar o racismo em sociedades onde o discurso do racismo científico está em declínio ou mesmo onde há leis que o criminalizam, para ele, caso não haja ações para ir de encontro ao funcionamento das instituições esta prática é perpetuada. Como fraqueza, estaria o paradoxo ao eximir a culpabilidade dos beneficiados pelo racismo e superestimar o papel das instituições no processo, fato que generaliza a responsabilidade do fenômeno.
Ao tratar do assunto, Silvio de Almeida44 defronta o conceito de Racismo Estrutural ao RI e indica que as relações ocorridas no âmago das instituições estariam na reprodução da vida social, dessa forma elas não criariam o racismo, mas o reproduziriam. Essa compreensão evidencia a vinculação entre o racismo e a estrutura social, assim as instituições são racistas por constituir parte de uma sociedade racista.
Embora haja o risco da compreensão de Racismo Estrutural44,45 também recair em uma elucubração abstrata, este termo pode contribuir para o entendimento de que o funcionamento das instituições está concatenado com o Modo de Produção Capitalista (MPC) e com as formas de organização da produção e reprodução social da vida.
Desse modo, em sua elucidação, Coretta Philips17 trata como primordial entender o papel da racialização também nas esferas micro e macroestruturais, pois isoladamente a conceituação de RI seria insuficiente como a explicação das desigualdades raciais. Assim, destaca como contrapontos os papéis das relações interpessoais, culturais e familiares no nível do micro; e, o modo de produção econômico, sua configuração no Neoliberalismo e as políticas transnacionais como fundantes no racismo em nível macro.
As iniciativas de enfrentamento ao racismo não podem deixar de considerar a atuação do Estado na manutenção de piores condições de vida e saúde da população negra, como estratégia de reprodução do MPC.
O Racismo como parte integrante do Capitalismo
O racismo como vivenciamos na atualidade, não é uma constante na história humana46, constitui-se em uma opressão construída historicamente e iniciada, sobretudo, na gênese do capitalismo, sem ele este modo de produção não se concretizaria47, com ele, é possível resignar a maioria da população de um país a circunstâncias deploráveis de vida e existência48.
Para Fanon46 o racismo configura-se em uma gangrena dialética, seu enfrentamento demandaria a procura incansável de suas repercussões em todos os níveis de sociabilidade. De maneira articulada, o racismo afetaria não apenas a vida dos indivíduos, mas também suas relações interpessoais e a organização social como um todo.
A compreensão das desigualdades empreendidas pelo RI necessita, portanto, da análise tanto da atuação das instituições na vida dos indivíduos, quanto da análise da dinâmica social mais ampla. Neste ponto, a elaboração inicial de Ture e Hamilton16 é de grande valia. Embora seja necessário atentar ao risco de incorrer em uma transposição anacrônica do significado que o RI possuía na realidade dos EUA no final dos anos 1960, considera-se importante compreender o sentido existente na gênese deste conceito e a diferenciação para a forma que ocorre no conteúdo da PNSIPN.
No livro Black Power, o termo RI aparece como um tipo específico de racismo, diferente do racismo individual praticado de forma direta e perceptível, o RI ocorreria de forma sutil e velada, possuiria como função a manutenção das comunidades negras em situação de pobreza e discriminação, além de mutilar e destruir de forma física, intelectual e emocional milhares de pessoas. O RI seria executado através da negligência ou mesmo de ações repressivas diretas do Estado por meio de práticas anti-negras16.
Dada a disparidade nas condições de vida entre negros e brancos, Kwame Ture e Charles Hamilton compreendem que os primeiros viviam em uma situação semelhante à dos países colonizados. O próprio termo RI é entendido como sinônimo de colonialismo, operando de forma política, econômica e social.
Ainda que existentes em espaços políticos e geográficos bastante distintos, há similaridades entre a elaboração dos autores com o panorama colonial da Argélia que fora delineado por Frantz Fanon no livro Os Condenados da Terra49, nominalmente citado na obra. No contexto americano, o RI, além de atingir física e emocionalmente às pessoas, também seria responsável pela divisão espacial das cidades ao segregar a comunidade negra em guetos, tal qual fora descrito sobre os colonizados no livro do autor martinicano. Assim, a relação de dominação e exploração fundamentada pelo racismo, na formulação original do conceito de RI, é explicitada na equiparação deste ao colonialismo.
A categoria “colonialismo” - também elaborada de distintas maneiras por diferentes autores, mas aqui em consonância com as elaborações de Fanon49, Ture e Hamilton16 - possibilita a compreensão das disparidades impostas na dinâmica de racialização no interior de um país, mas igualmente, permite seu entendimento no amplo contexto internacional. É necessário ressaltar que não só no presente, mas, historicamente, foi o processo de racialização, divisão da humanidade em diferentes raças, que justificou e possibilitou a colonização50, e esta, por meio do saque, da escravização e do extermínio permitiu que pudesse se estabelecer a aurora da era da produção capitalista51.
A particularidade presente no debate a respeito do efeito que o RI provoca na sociedade possui diferenças em nada sutis quando comparadas com o sentido formulado no EUA, na Inglaterra e no Brasil. Enquanto no livro Black Power, o RI estaria a serviço da dinâmica de segregação e exploração imposta aos negros no interior da maior potência capitalista, nos exemplos posteriores, significaria a falha da atuação do Estado em prover condições adequadas de funcionamento de suas instituições, seja em um país central do capitalismo com extenso histórico como colonizador seja em sua incorporação em um país da periferia do capitalismo com histórico de séculos de colonização.
A denúncia da atuação discriminatória das instituições, dentre elas o SUS, efetuada por meio da análise do RI surge como uma estratégia substancial. Contudo, apreender isoladamente este fato leva à desconsideração da interação dialética entre as formas individuais, institucionais e estruturais no desumanizante processo de racialização. Tal qual nos casos de racismo interpessoal, o RI é uma manifestação do racismo enquanto algo necessário para a manutenção histórica das desigualdades na sociedade brasileira.
O combate ao RI depende da capacidade de ir de encontro tanto aos motivos que levam as instituições a reproduzirem o racismo quanto às consequências no acesso à moradia, ao trabalho, à educação e consequentemente, a serviços e ações de saúde.
Considerações finais
A escolha de uma concepção teórica específica para fundamentar uma política não necessariamente garante que a realização de ações estará determinada por esta perspectiva, contanto, no caso da PNSIPN a perspectiva teórica adotada demostra ter tido forte influência.
A assimilação da concepção do RI no Brasil, a ênfase da atuação no âmbito restrito à esfera das organizações, é similar ao ocorrido em outros países, particularmente na Inglaterra: onde a atuação racista de departamentos da polícia foi atribuída a alguns profissionais ou às instituições, sem a devida correlação com a estrutura da social e a atuação do próprio Estado.
Constituem-se de extrema importância os objetivos propostos na elaboração da política ao visar-se promover a SPN, reduzir as desigualdades raciais, e enfrentar o racismo e à discriminação no SUS. O ingresso formal da discussão sobre o RI na agenda de políticas públicas no início do século XXI representa uma grande conquista, visto o reconhecimento do papel que as organizações possuem na reprodução do racismo.
Estes apontamentos suscitam a realização de outros estudos que: evidenciem, além do debate conceitual, a efetividade da proposta de planejamento e execução de ações e serviços de saúde para a população negra; aprofundem o contraste entre os objetivos, a base conceitual e a execução da política; investiguem a atuação dos diferentes autores como organismos internacionais, pesquisadores, usuários do SUS, movimentos sociais organizados, gestores e trabalhadores na implementação das PNISPN.
Apesar do progresso representado na inserção do conteúdo na agenda estatal, percebe-se que a efetivação das propostas contidas como objetivos da política e a transformação das desfavoráveis condições de saúde vivenciadas pela população negra demandam a superação da concepção e da ação focada no caráter institucional do racismo, por meio da consideração das repercussões individuais e sociais do processo de racialização.
Mesmo diante das limitações pertinentes a atuação no interior do Estado sob a égide do MPC, o confronto aos efeitos deletérios do racismo no cotidiano das pessoas requer incidir em pontos nodais de sua reprodução. É imprescindível considerar o racismo enquanto estratégia de subjugação de pessoas e manutenção da presente realidade, tal fato figura como essencial na dinâmica particular da população negra e de forma universal na conformação social brasileira, cuja reprodução compele um Estado onde a racialização não é uma falha, mas uma lógica sistemática.
Longe de pretender a elaboração de uma nova categoria que substitua o conceito de RI, entende-se que efetivar essa proposta e consequentemente o próprio SUS nos impõe a tarefa de apreender as principais determinações referentes à saúde da população negra, entender e contribuir na transformação do papel que a população negra exerce na sociedade brasileira - o lugar que este ocupa no universo do trabalho, sua situação de renda, escolaridade e de moradia.
A viabilidade do combate ao racismo por intermédio do SUS necessita seguir apontando para as consequências deletérias das desigualdades raciais na saúde das pessoas, identificar e confrontar sua manifestação no imediato, contudo não deve esquecer-se da transformação de suas causas fundantes.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
04 Set 2023 -
Data do Fascículo
Set 2023
Histórico
-
Recebido
17 Set 2022 -
Aceito
11 Mar 2023 -
Publicado
13 Mar 2023