Acessibilidade / Reportar erro

O autor responde

The author replies

DEBATEDORES DISCUSSANTS

O autor responde

The author replies

Agradeço a oportunidade de refletir com pesquisadores experientes sobre o tema das relações entre o público e o privado no sistema de saúde. Carlos Octávio Ocké-Reis, Silvio Fernandes e Telma Menicucci abrem novas janelas para o exame das práticas sociais atuais, incidentes sobre a estrutura e a dinâmica de estabelecimentos e empresas privadas de planos e seguros de saúde e as respostas acadêmicas às mudanças nas interfaces público-privadas do sistema de saúde brasileiro.

Ocké-Reis relembra que as relações sinérgicas entre o complexo produtivo (em especial as estabelecidas entre as indústrias de medicamentos e equipamentos médico-hospitalares e os sistemas universais de saúde que viabilizaram e impulsionam os sistemas universais europeus) não se reproduzem no Brasil contemporâneo. O autor utiliza o espaço do debate para reafirmar suas proposições de reformar (no sentido forte do termo, isto é, o de transformação) as relações entre os órgãos reguladores do mercado de planos e seguros de saúde com parte das instituições que o compõem. A mudança de estatuto de algumas das atuais empresas do mercado permitiria aprimorar a regulação de preços e conteúdos assistenciais. A natureza normativa de tal postulação a afasta daquela consubstanciada pela apresentação de pontos para um debate sobre as redes de sustentação da privatização da assistência médico-hospitalar proposto por Arouca (formulação da qual participei e compartilho). Essa última não propõe uma solução a priori e nem o acionamento de estratégias para o desatamento dos nós que libertariam o Estado do dilema da estatização/privatização, por dentro do mercado de planos e seguros de saúde. Arouca, considerando o fluxo político-financeiro que se estabelece pelas relações entre empresários, trabalhadores e empresas de planos e seguros privados de saúde e seus efeitos sobre as condições de saúde, tão- somente - o que nunca foi pouco - provocou e convocou o debate. As perguntas formuladas por Arouca, então Secretário de Gestão Participativa do Ministério da Saúde, para a abertura de um amplo debate com a sociedade, que desaguaria na 12ª Conferência Nacional de Saúde, foram publicadas enviesadamente pelo jornal Estado de São Paulo, no início do primeiro mandato do Presidente Lula.

Da leitura atenta de Silva do artigo-debate derivam duas ordens de reflexões. A primeira concerne ao aprimoramento das hipóteses expressas no artigo original. A retirada da essência dos argumentos e evidências, que em meu texto nem sempre estão expostos com a devida concisão, sintetiza os termos para o atual debate e sua continuidade. A seguir, embasado na conjugação do rigor acadêmico de seus estudos sobre a descentralização do SUS, avança hipóteses sobre as conseqüências das relações de dependência/autonomia dos dirigentes dos órgãos executivos das políticas de saúde com os prestadores de serviços. Perante o subfinanciamento do SUS, ampliação das atribuições assistenciais a esferas subnacionais e incremento do repasse de recursos do Ministério da Saúde para estados e municípios e não crescimento/retração da oferta pública, as secretarias de saúde construíram, ao longo dos vinte anos de implementação do SUS, modelos diferenciados de compra de serviços e investimentos na capacidade instalada pública. A partir dessas constatações, descortinam-se horizontes de intervenção e investigações pouco explorados pelas instituições executoras de políticas de saúde e pelas de ensino e pesquisa, respectivamente.

Temos notícias esparsas sobre alguns dos itinerários da destinação de recursos públicos para prestadores de serviços de saúde particulares e privados. O uso corrente de múltiplos da "tabela SUS" adotados por secretarias de saúde para atender "demandas" dos prestadores particulares de serviços de saúde (apesar de vedado por normas ministeriais), o funcionamento pleno das duplas portas de entrada (ainda que não recomendado por portarias ministeriais e contratos de gestão com hospitais estatais); repasse de recursos públicos para obras, reformas e aquisição de equipamentos de estabelecimentos filantrópicos que atendem clientes de planos e seguros privados de saúde e a reedição e aprovação de novas leis de isenção ou dedução fiscal para hospitais, clínicas e laboratórios privados e atividades de prestação de serviços de cooperativas de trabalho médico são mecanismos que compõem um conjunto concreto, mas quase invisível, de operações financeiras e políticas cotidianas.

Considero, tal como Silva, que o repasse direto e indireto de recursos públicos para prestadores de serviços e empresas de planos e seguros privados de saúde revestiu-se, mais recentemente, de uma roupagem sofisticada. Um dos exemplos mais conspícuos emerge com a defesa da preservação do estatuto de filantropia de determinados hospitais que atendem clientes de planos e seguros tipo executivo - hospitais de primeira linha. O que se alega para fundamentar a não integração do estabelecimento na rede SUS é o suposto reconhecimento devido pela sociedade brasileira aos "sacrifícios voluntários e não lucrativos" decorrentes dos esforços para preservar ícones da modernização da medicina brasileira da sanha da propalada ineficiência das instituições públicas, com o apoio de recursos públicos. Note-se que a incongruência de tais argumentos não os derroga. Antes pelo contrário, a carência de lógica requinta-os, exige não apenas que seus defensores ocupem espaços político-administrativos estratégicos, mas que estabeleçam e renovem os circuitos de intermediação de interesses, pautados pelo exercício da subordinação do bem comum ao particular.

Telma Menicucci, criteriosamente, leva adiante a problematização das análises sobre as relações entre o público e o privado ao desvelar o ciclo conformado pelas justificativas post factum de preferências pela assistência privada. O julgamento prévio da eficácia do sistema público, apoiado em imagens negativas de sua eficácia, completa-se com a "naturalização das escolhas do passado". Ao assinalar as lacunas no texto-debate sobre a relevância dos valores e representações que edificam as bases cognitivas da ação política e da elaboração das políticas públicas, a autora convoca referenciais das ciências sociais, dispondo-os às análises sobre a segmentação do sistema de saúde brasileiro. Temos preocupações comuns com a necessidade de alargar as fronteiras disciplinares e aprofundar o conhecimento sobre as interfaces público-privadas. Mas, estamos atentas aos riscos dos traslados automáticos de categorias e conceitos, cujos conteúdos, destituídos do tempero das especificidades do sistema e da situação de saúde no Brasil, tornam-se esvaziados e, portanto, meramente retóricos.

Gostaria de dividir com Menicucci as inquietações sobre os limites e possibilidades da utilização do conceito de dualidade (tão decantado pelas ciências sociais brasileiras) para descrever ou mesmo interpretar as características da segmentação do sistema de saúde brasileiro. Além das críticas originadas por cientistas econômicos e políticos ao modo de integração perverso e excludente, que marcam as relações econômicas e sociais no Brasil, o termo dual - em suas diversas denotações e conotações - não guarda correspondência com as ambivalências público-privadas e privado-públicas gravadas no genótipo e fenótipo do sistema nacional de saúde. Por outro lado, reconheço que as teses esboçadas a partir de categorias eminentemente descritivas perdem o sabor interpretativo, que lhes emprestaria maior potência explicativa.

A releitura simultânea dos comentários e o artigo-debate, gestado no início de 2007, suscita em primeiro lugar o reconhecimento dos avanços do conhecimento sobre um tema árduo e, que até pouco atrás, era pouco popular. De minha parte, ou melhor, na condição de "intérprete solo" de um conjunto de pesquisadores do tema - que se reúne com maior ou menor assiduidade desde o final dos anos 1990 - registro, em nome desse coletivo, os avanços conseqüentes à adoção no texto-debate de um eixo temporal adequado. Temos enfrentado dificuldades para lidar com problemas que definitivamente não existem há quinhentos anos, mas derivam do padrão estamental, mantido por alocações sociais voltadas a reproduzir imobilismos e confinamentos que impregnam fortemente nossas práticas sociais. Trata-se então de incorporar às análises um intervalo de tempo compatível com a necessidade de enfocar os modos de refletir sobre os problemas e apreensão de mudanças, mobilidades sociais, mesmo aquelas processadas lentamente.

Ousamos explicitar e vincular tendências de mudanças nas relações entre o público e o privado com as percepções desses processos pelas instituições de ensino e pesquisa. Mas sabendo que haveria um hiato temporal entre a entrega do artigo-debate e sua publicação, as dúvidas sobre a "durabilidade" de uma análise conjuntural ainda que dilatada foram cruciantes. Hoje, 8 de março de 2008, Dia da Mulher, nem todos os temores estão aplacados. Mas, o transcurso de quase um ano sugere que os acertos da análise proposta superam seus erros. Diga-se de passagem que, nesse meio tempo, em dezembro de 2006, a imprensa divulgou que a dívida do Plano Firjan Saúde com hospitais privados atingiu o valor de 10 milhões de reais e, em fevereiro de 2008, a queda dos lucros do Banco do Brasil em 2007 foram atribuídas aos gastos de cerca de 604 milhões com o Plano de Afastamento Antecipado e 325 milhões com a Cassi. A subscrição das tendências assinaladas pelos fatos valida opção do trajeto de ida e volta da "vida para os livros".

A principal inspiração para debater as relações entre o público e o privado no sistema de saúde brasileiro, à luz de um enfoque mais conjuntural, foi a necessidade de fazer jus ao honroso convite de Alicia Ugá e Eleonor Connil. As duas editoras do número temático da revista Ciência e Saúde Coletiva souberam defender os parâmetros da produção acadêmica, em contextos ainda atribulados por intromissões, nem sempre legítimas, na definição dos rumos do conhecer. A elas rendo minha admiração pela coragem e integridade. Para retribuir, ao menos parcialmente, a confiança depositada pela revista Ciência e Saúde Coletiva, comprometo-me, desde agora, com a continuidade do debate.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Ago 2008
  • Data do Fascículo
    Out 2008
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cienciasaudecoletiva@fiocruz.br