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O enfermeiro-mor nas Santas Casas da província de Minas Gerais: entre a administração e a assistência

Resumo

Este artigo trata da percepção da enfermagem como uma ocupação de baixo prestígio no século XIX. A história da enfermagem produzida pelos profissionais da área reforçou essa concepção. No entanto, o perfil do cargo de enfermeiro-mor, presente nas Santas Casas, indica um espectro social mais amplo para a profissão de enfermagem. As autoras defendem a hipótese de que essa avaliação negativa se baseia apenas em atividades de cuidado ao paciente que eram mais visíveis. A presença do enfermeiro-mor exemplifica os limites de uma generalização da desvalorização social da enfermagem. A conclusão é que a suposição generalizada de que a enfermagem se limitava a cuidados básicos de saúde não se sustenta.

Palavras-chave:
História da enfermagem; História do século XIX; Santas Casas

Abstract

This article focuses on the perception of nursing as a low-prestige occupation in the 19th century. The history of nursing produced by professionals in the area supported this understanding. However, the profile of the enfermeiro-mor (head nurse), a position in the Santas Casas, demonstrates that the nursing profession was present throughout a broader social spectrum. The authors support the hypothesis that the typical negative assessment is based only on the more visible patient care activities. The presence of the enfermeiro-mor exemplifies the limits of a generalization of the social undervaluation of nursing. The conclusion is that the generalized assumption that nursing was only about basic health care is not acceptable.

Key words:
History of nursing; History 19th century; Almshouse

Introdução

Este artigo tem origem em um incômodo e uma curiosidade surgidos a partir de projetos de pesquisas focalizando a história da saúde em Minas Gerais no século XIX, resultando em amplo levantamento de fontes públicas e privadas. Dos atores que emergem dessa documentação, destacamos neste artigo o enfermeiro-mor. O cargo aparece nos estatutos de Santas Casas de Portugal11 Abreu L. O poder e os pobres: as dinâmicas políticas e sociais da pobreza e da assistência em Portugal (sec. XVI-XVIII). Lisboa: Gradiva; 2014.,22 Correia FS. Origens e formação das Misericórdias Portuguesas. Lisboa: Livros Horizonte; 1999. e de Minas Gerais como responsável pela assistência hospitalar, auxiliado pelos demais enfermeiros/as da instituição. Mais do que se ocupar da assistência ao enfermo - dar remédios, fazer curativos, zelar pela alimentação e outros misteres envolvidos no cuidado com os doentes -, cabia ao enfermeiro-mor o gerenciamento dessas atividades, ou a chamada administração hospitalar33 Leone J. O cargo de Enfermeiro-Mor e sua possível origem. Boletim Clínico dos Hospitais civis de Lisboa 1960; 24(2):233-238..

A curiosidade referida se ancora no interesse em entender quem era esse personagem no contexto da assistência no século XIX, visto que parte das funções a ele atribuídas gravitam fora do usualmente associado à atividade do enfermeiro. Já o estranhamento se traduz no fato de, em grande medida, a história referente aos enfermeiros traçar uma caracterização negativa tanto dos atores, classificados como despreparados, socialmente inferiores e pouco afeitos à boa moral, como de sua atuação44 Paixão W. História da enfermagem. Rio de Janeiro: Livraria Julio Reis; 1979.,55 Oguisso T, Campos PFS, Moreira A. Enfermagem pré-profissional no Brasil: questões e personagens. Enfermagem em Foco 2011; 2(Supl.):68-72.. O ofício da enfermagem era visto como pouco prestigioso, sobretudo quando não remetia ao universo doméstico ou religioso. Nestes, seus praticantes eram aclamados pela bondade, abnegação e caridade, especialmente quando envolvidos nos cuidados aos enfermos pobres55 Oguisso T, Campos PFS, Moreira A. Enfermagem pré-profissional no Brasil: questões e personagens. Enfermagem em Foco 2011; 2(Supl.):68-72., traduzindo-se no que Nelson define como a “construção de um roteiro de virtude”, no qual enquadramentos morais e éticos agregam mais valor que o conhecimento técnico esperado do enfermeiro66 Nelson S. A imagem da enfermeira - as origens históricas da invisibilidade na enfermagem. Texto Contexto Enferm 201; 20(2):223-224..

A literatura sobre a história da saúde, inclusive aquela feita no âmbito da própria enfermagem, é pródiga na avaliação pouco positiva dos enfermeiros até fins do século XIX. As críticas cobrem desde as práticas acionadas pelos enfermeiros até o conhecimento que as embasava, abarcando também sua conduta moral. O desprestígio associado à função implicava a atração de pessoas sem qualificação, indisciplinadas, pouco confiáveis, retroalimentando a desvalorização dos enfermeiros e de sua ocupação55 Oguisso T, Campos PFS, Moreira A. Enfermagem pré-profissional no Brasil: questões e personagens. Enfermagem em Foco 2011; 2(Supl.):68-72.,77 Santos Filho L. História geral da medicina no Brasil. São Paulo: Edusp/Hucitec; 1977.. Exemplo é o clássico História geral da medicina no Brasil, de Lycurgo Santos Filho, que dedica aos enfermeiros pouco mais de página e meia entre as 432 que integram seu primeiro volume. O termo se referia a “qualquer indivíduo que se ocupou de doentes e feridos, a domicílio ou nos hospitais - onde serviu em enfermarias...”. Sobre aqueles que desempenhavam a função, observa serem “de inferior posição social, geralmente analfabetos, ignorando os mais comezinhos rudimentos da Arte”. Quanto à qualificação, afirma: “uma vez contratada para assistir a um doente, qualquer pessoa - homem ou mulher - adquiria prática e daí por diante, por presunção, firmava reputação de entendida em enfermagem”, concluindo: “A experiencia foi a escola”77 Santos Filho L. História geral da medicina no Brasil. São Paulo: Edusp/Hucitec; 1977.. Russel-Wood88 Russell-Wood, AJR. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa de Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Brasília: Editora da Universidade de Brasília; 1981. afirma, sobre a Santa Casa de Misericórdia da Bahia, que, excetuando-se médicos e cirurgiões, “o restante da equipe do hospital não podia se orgulhar assim de conhecimentos de medicina” (p. 220). Para os enfermeiros, as únicas exigências eram de que fossem brancos e sem “mancha de sangue judeu” (p. 220)

Entre as atribuições do cargo de enfermeiro, observadas na colônia até findo o Império, Santos Filho enumera: ministrar remédios na hora certa, cuidar do asseio, fazer companhia, auxiliar o paciente em necessidades como banho e alimentação, limpar o quarto. Como exemplo, usa o regulamento da Santa Casa de Campos, listando como tarefas dos enfermeiros abrir e fechar as portas do estabelecimento, receber o defunto já com mortalha, varrer as enfermarias, fazer as camas aos domingos e lavar as enfermarias aos sábados, observando ao final: “eram mais serventes e quarteiros do que enfermeiros, como hoje se entende.”77 Santos Filho L. História geral da medicina no Brasil. São Paulo: Edusp/Hucitec; 1977.

Essa enfermagem “como hoje se entende” remete ao que a historiografia da profissão qualifica como enfermagem moderna, alicerçada em preceitos racionais, padronizados, rígidos, calcados na informação científica e na hierarquia. Tal concepção ao mesmo tempo fundamentou e se consolidou com a emergência das escolas de formação profissional, institucionalizadas e reconhecidas como padrão, associadas às figuras de Florence Nightingale, na historiografia internacional, e Anna Nery, no caso nacional. Mulheres de origem abastada, Nightingale e Nery emergem como personagens centrais na historiografia da profissão, imprimindo à enfermagem valor e prestígio99 Cardoso MMVN, Miranda CML. Anna Justina Ferreira Nery: um marco na história da enfermagem brasileira. Rev Bras Enferm 199; 2(3):339-348..

Retomando a caracterização dos enfermeiros e de sua práxis anteriores ao marco de institucionalização, destacamos duas questões. Primeira: o aprendizado prático, não demandando maiores qualidades, habilidades ou conhecimentos específicos, sendo portanto acessível a qualquer pessoa. Segunda: uma atividade com certa conotação de subserviência, especialmente quando o “cuidado” não estava mediado por uma relação de proximidade familiar ou fraternal com o doente, mas sim pelo mercado e a necessidade de sobrevivência.

A percepção sobre o enfermeiro sendo pouco mais do que um servente perdura na historiografia, até porque ela foi real em muitas situações. No ambiente doméstico, onde os laços de parentesco pressupõem uma relação mais afetuosa, o cuidado com o doente cabia preferencialmente ao universo feminino, muito identificado com a ideia de acolhimento e desvelo. Na esfera pública, excluindo-se a prática religiosa, o exercício da função envolvia a garantia da sobrevivência, sujeitando-se às ordens do médico e aos caprichos do doente.

Uma mirada sobre os praticantes da enfermagem no século XIX nos é oferecida nos anúncios publicados na imprensa, em particular nos jornais da capital do Império, o mercado de trabalho mais dinâmico e atrativo do período. As demandas mais comuns entre quem podia empregar um enfermeiro diziam respeito à prática e à qualidade moral e ao bom trato, além da disposição em acompanhar o doente para fora da Corte. Para quem se oferecia para a função, outros atributos eram destacados, como certa habilidade com letras e números, disposição em exercer, de forma concomitante ou não, outras funções afeitas ao universo da cura ou de natureza mais geral, doméstica, administrativa, como se vê no seguinte exemplo: “Um moço com muita prática, tanto de farmácia como de enfermeiro, sabendo ler, escrever perfeitamente e aritmética, deseja arranjar-se para fora da corte, mesmo para alguma fazenda fora da província...”1010 Ferreira LO. As guardiãs da saúde: representações e características socioculturais de enfermeiras domésticas do Rio de Janeiro, 1880-1910. RMT 2022; 12:1-17.2020.. Certamente houve quem construísse sobre si boa reputação no exercício da enfermagem, porém nem sempre esse trabalho foi uma escolha. Por outro lado, não são incomuns referências a arruaças e mau comportamento por parte de quem se esperava zelar pelo sossego e ordem. É o que se observa na dispensa do soldado Delfino Ribeiro de Freitas, “que se achava como infermeiro do lasarêto dos bexiguentos”, solicitada em 1862 à Câmara de Uberaba (MG), visto continuar este “a embriagar-se, fasendo desatinos na infermaria, [pelo que] julguei prudente faze-lo retirar d’aquelle emprego”.1111 Jornal do Commercio 1860; 15 out.

Tais exemplos são indício de quão amplo e diverso era o universo dos praticantes da enfermagem no decorrer do século XIX. Na língua portuguesa, a palavra passa a ser dicionarizada somente no final do século XIX, havendo apenas a menção aos termos enfermo, enfermidade, enfermaria e enfermeiro/a. A imprecisão persiste ainda hoje, sendo o termo enfermeiro definido de duas formas: 1) aquele que se formou ou exerce profissionalmente a enfermagem: 2) qualquer um que cuide de enfermos1212 Houaiss A, Vilar MS. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva; 2001. p. 1144., consistindo como oposição entre as duas definições a necessidade ou não de formação que autorize a prática.

Na história da medicina, como na da enfermagem, um cenário menos precário sobre o ofício só se desenharia em meados do século XIX, com a incorporação das religiosas na assistência hospitalar, ganhando consistência com o surgimento das primeiras escolas de formação profissional na virada para o século XX. Onde se encaixam os ocupantes do cargo de enfermeiro-mor nessa história? Por que essa categoria é pouco mobilizada na elaboração e difusão de uma memória sobre a profissão? Defendemos a hipótese de que na conformação da história da enfermagem a ênfase tem recaído na demarcação da “enfermagem moderna”, caracterizada pela oposição do saber de base científica calcado na formação institucionalizada em relação àquele adquirido na prática e revestido por um conjunto de habilidades e qualidades pouco mensuráveis pela perspectiva racional, como caridade, solicitude, abnegação.

Além disso, na elaboração de certo imaginário sobre o passado, a partir do qual se estabelece essa demarcação, sobressaem determinadas atribuições de cunho mais assistencial, ficando relegadas ao esquecimento as atividades associadas à administração hospitalar, tão caras à formação do enfermeiro atual66 Nelson S. A imagem da enfermeira - as origens históricas da invisibilidade na enfermagem. Texto Contexto Enferm 201; 20(2):223-224.. As questões aqui levantadas coadunam com problematizações apresentadas por uma bibliografia revisionista que focaliza mitos e chaves interpretativas então correntes e que ganham projeção nas décadas finais do século XX. Manejando argumentos que abarcam conceitos-chave, como modernização, profissionalização, autonomia, altruísmo, além de processos envolvendo as demandas surgidas com as transformações na terapêutica, as pressões impostas a um mercado de trabalho pré-industrial em transição, a proposição de sistemas diversos e anteriores àquele estabelecido por Nightingale, esses estudos têm colaborado para evidenciar importante movimento de mudanças e tensões no cenário da assistência ao enfermo no século XIX, do qual a Lady-Nurse britânica foi mais resultado do que origem1313 Helmstadter C, Godden J. Nursing before Nightingale, 1815-1899. Surrey UK/Burlington USA: Ashgate; 2011.,1414 Mortimer B, McGann S. New directions in the history of nursing: international perspectives. London: Routledge; 2005..

Metodologia e fontes

A pesquisa segue a metodologia histórica, buscando por meio de pesquisa e crítica documental dados que autorizem a alternativa interpretativa aqui sugerida. Neste exercício, lançamos mão de ampla literatura, consolidada em alguns anos de investigação no campo da história da saúde, da qual serão selecionados alguns títulos e autores. Entre as fontes, constam regimentos e estatutos de Santas Casas, relatórios, publicações e jornais do século XIX levantados no Arquivo Público Mineiro (APM), no Centro de Memória da Enfermagem (CEMENF/UFMG), no Centro de Memória da Medicina (CEMEMOR/UFMG) e na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional a partir dos termos enfermeiro/a e enfermagem.

Sobre enfermeiros e enfermagem

A enfermagem é uma categoria profissional marcada pela hierarquização. Em torno do/a personagem enfermeiro/a gravitam hoje o/a técnico/a de enfermagem - no século XX foi integrada por auxiliares e atendentes de enfermagem com escolaridade inferior. As narrativas clássicas da história da profissão destacam que a conformação do trabalho nos moldes atualmente conhecidos foi obra de Florence Nightingale (1820-1910), referência inconteste da enfermagem moderna e da historiografia sobre ela produzida1515 Costa R, Padilha MI, Amante LN, Costa E, Bock LF. O legado de Florence Nightingale: uma viagem no tempo. Texto Contexto Enferm 2009; 18(4):661-669.. Na segunda metade do século XIX, Nightingale estruturou o trabalho de atenção aos doentes em situação hospitalar em torno das figuras da Lady Nurse e Nurse. Tal dicotomia, além de organizar a convivência entre estratos, visto como chave para o exercício eficiente da profissão, também comportava uma divisão social, em que a Lady Nurse procedia e se inseria entre as camadas abastadas e escolarizadas, e as nurses geralmente entre as classes menos privilegiadas. Essa hierarquização persistiu no tempo, sendo frequente ainda hoje o topo da pirâmide da enfermagem se ocupar de funções administrativas, ficando as tarefas assistenciais básicas destinadas às enfermeiras menos graduadas/especializadas e outros subordinados1616 Soares A, Porto F. Nem Lady, nem nurse: a manager nurse no cenário hospitalar no Rio de Janeiro. Rev Pesq 2009; 1(2):124-131..

Das áreas de competência do/a enfermeiro/a definidas pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de graduação, constam: cuidado de enfermagem na atenção à saúde humana; educação em saúde; desenvolvimento profissional em enfermagem: investigação/pesquisa em enfermagem e saúde; docência na educação profissional técnica de nível médio em enfermagem; gestão/gerência do cuidado de enfermagem e dos serviços de enfermagem e saúde. Para este artigo, interessa a competência na gestão e gerência do cuidado, envolvida com o planejamento, a organização e o comando dos recursos humanos e das condições materiais da força de trabalho e da infraestrutura do trabalho em enfermagem1717 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Conselho Nacional de saúde. Resolução nº 573, de 31 de janeiro de 2018. Diário Oficial da União 2018; 6 jun.. Por certo que as funções se sofisticaram, mas gerenciar o cuidado é atribuição histórica da enfermagem. Entretanto, o enfermeiro administrador, modernamente chamado de gestor, é pouco contemplado nos estudos que focalizam a enfermagem pré-profissional, anterior à criação das escolas de enfermagem55 Oguisso T, Campos PFS, Moreira A. Enfermagem pré-profissional no Brasil: questões e personagens. Enfermagem em Foco 2011; 2(Supl.):68-72..

Considerando que o conceito de enfermagem profissional pressupõe um processo formal de aprendizado, baseado em ensino sistematizado, currículo estabelecido por ato normativo resultando em diplomação e titulação específica, no Brasil esse processo seria datado de fins do século XIX, quando o governo republicano provisório criou, por meio do Decreto nº 791, de 18901818 Brasil. Coleção Leis do Brasil. Decreto 791, de 27 de setembro de 1890 [Internet]. [acessado 2021 jan 19]. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-791-27-setembro- 1890-503459-publicacaooriginal-1-pe.html
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/dec...
, a Escola de Enfermeiros e Enfermeiras, vinculada ao Hospício Nacional de Alienados (antigo Hospício de Pedro II). A admissão era facultada a pessoas de ambos os sexos, com 18 anos ou mais, sabendo ler e escrever, que dominasse as quatro operações aritmética e com atestado de bons costumes. Estudantes em regime de internato frequentavam a escola por no mínimo dois anos, aprendendo noções básicas de medicina, higiene e administração hospitalar. Enfatizamos a presença da administração hospitalar entre os conteúdos privilegiados nessa escola, reforçando ser essa uma das funções básicas do enfermeiro no exercício da profissão1919 Escola Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras. Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832-1930) [Internet]. [acessado 2022 jan 7]. Disponível em: http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br/iah/pt/verbetes/escproenf.htm#ficha
http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz....
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Ao contrário das escolas que seguiram o padrão Anna Nery (1923), exclusivas para mulheres jovens e solteiras, com boa escolaridade, de preferência normalistas, elevando o nível socioeconômico da enfermagem2020 Santos FBO, Carregal FAS, Schreck RSC, Marques RC, Peres MAA. Padrão Anna Nery e perfis profissionais de enfermagem possíveis para enfermeiras e enfermeiros no Brasil. Hist Enferm 2020; 11(1): 10-21., aquela criada pelo decreto de 1890 aceitava homens e mulheres. Em 1942, a Escola de Enfermeiros e Enfermeiras passou a ser chamada de Escola Alfredo Pinto2121 Moreira A. Profissionalização de enfermagem brasileira: o pioneirismo da Escola de Enfermagem Alfredo Pinto (1890-1920) [tese]. São Paulo: USP; 2003., enquadrando-se no padrão Ana Nery. Apesar do caráter institucional da Escola Alfredo Pinto, a incipiente formação do final do século XIX não teria alterado os traços de precarização e ignorância associados à ocupação de enfermagem, conquista que será atribuída à enfermagem profissional e à sua patronesse Florence Nightingale, cujo reconhecimento e prestígio foram conquistados na Guerra da Criméia e consolidados com a criação de uma Escola de Enfermagem no Hospital Saint Thomas, em Londres1515 Costa R, Padilha MI, Amante LN, Costa E, Bock LF. O legado de Florence Nightingale: uma viagem no tempo. Texto Contexto Enferm 2009; 18(4):661-669.,2222 Mascarenhas NB, Melo CMM, Silva LA. Gênese do trabalho profissional da enfermeira no Brasil (1920-1925). Esc Anna Nery 2016; 20(2):220-227..

Nesse período, Nightingale elaborou Notes on nursing: what it is and what it is not (1860), estabelecendo os preceitos fundamentais para a nova enfermagem. Além das atividades básicas conhecidas no trato direto com o paciente, como administrar remédios, aplicar cataplasmas e o asseio das enfermarias e dos pacientes, listava outras de cunho mais geral, como o cuidado das instalações sanitárias, garantir o bem-estar, o silêncio, a qualidade e circulação do ar, a boa iluminação, o preparo e administração adequados das dietas, além de rondas periódicas nas enfermarias. Cabia à enfermeira mais do que a execução, a inspeção e supervisão dessas tarefas, incumbindo-se da administração e garantia das condições para o efetivo exercício do cuidado dos doentes. Esse esforço de centralização na gestão do cuidado ao paciente, põe em evidência a Lady Nurse, responsável pelo planejamento das ações, a coordenação dos empregados, a tomada de decisões2323 Nightingale F. Notes on nursing: what it is and what it is not. London: Harrison and sons, Brokseller to the Queen; 1860..

No Brasil, o papel de precursora dessa nova enfermagem foi reservado a Anna Nery. Como Nightingale, Nery também serviu na guerra (do Paraguai) e se destacou pela adoção de medidas eficientes no cuidado dos pacientes na organização e administração da rotina das enfermarias. A despeito de não ter promovido nenhuma mudança na enfermagem praticada no país, sua atuação foi suficiente para fazer dela o nome de batismo da primeira escola nascida sob a égide da enfermagem moderna no país99 Cardoso MMVN, Miranda CML. Anna Justina Ferreira Nery: um marco na história da enfermagem brasileira. Rev Bras Enferm 199; 2(3):339-348.,2424 Peres MAA, Aperibense PGGS, Bellaguarda MLR, Almeida DB, Santos FBO, Luchesi LB. Reconhecimento a Anna Justina Ferreira Nery: mulher e personalidade da história da enfermagem. Esc Anna Nery 2021; 25(2):e20200207..

Não são conhecidos expoentes similares no século XIX em Minas Gerais, que conta com produção escassa sobre a enfermagem durante o período imperial2525 Teixeira VMN, Silveira AJT, Marques RC. De práticos a enfermeiros: os caminhos da enfermagem em Belo Horizonte (1987-1933) [tese]. Belo Horizonte: UFMG; 2012.. Apesar disso, a ocupação é mencionada na imprensa, na documentação pública ou pertencente às instituições de saúde do período, que somaram dois hospitais militares, dois sanatórios, um hospício e 42 Santas Casas ou Casas de Caridade. Além desses, havia ainda as estruturas provisórias, hospitais e enfermarias administrados pelo poder público ou a iniciativa privada, criados em períodos de crise epidêmica2626 Silveira AJT, Marques RC. Panorama da interiorização da saúde no território provincial de Minas Gerais: as Santas Casas do século XIX. In: Ferreira LO, Sanglard G, Barreto MR, organizadores. A interiorização da Assistência: um estudo sobre a expansão e a diversificação da assistência à saúde no Brasil (1850-1945). Belo Horizonte: Fino Traço; 2019.. É nesse universo que se insere o enfermeiro-mor, objeto dessa reflexão.

O enfermeiro-mor em Minas Gerais

Alguns estatutos de Santas Casas mineiras no século XIX mencionam o cargo de enfermeiro-mor, atribuindo-lhe a responsabilidade pela assistência hospitalar. Sua atuação, voltada para a administração da assistência ao doente, é entendida como herança da organização hospitalar portuguesa, fruto de uma reestruturação que resultou na diminuição do poder dos prelados e no aumento do controle da Coroa, ou seja, um movimento de centralização hospitalar com administração leiga, iniciada com a criação do Hospital de Todos os Santos em 150411 Abreu L. O poder e os pobres: as dinâmicas políticas e sociais da pobreza e da assistência em Portugal (sec. XVI-XVIII). Lisboa: Gradiva; 2014..

O regimento desse hospital estabelecia uma direção sob responsabilidade do provedor, que seria auxiliado pelo vice-provedor, um vedor, um almoxarife, um escrivão e um dispenseiro. Ao provedor cabia a supervisão dos empregados e garantia de atenção às necessidades dos enfermos. Constava ainda no regimento o cargo do enfermeiro-mor, de quem se cobrava zelo e compaixão para com os doentes, devendo ser “homem caridoso e de boa condição e sem escândalo”2727 Queirós PJP, Almeida Filho AJ, Almeida MA, Santos TC, Pereira MB, Pereira PF. O cuidado e o bom serviço dos enfermeiros em 1821. Rev Enferm Ref 2018; 6(16):95-106.. Em meados do século XVI, sob a administração da Irmandade da Santa Casa de Lisboa, impôs-se a eleição para os cargos da mesa administradora e a substituição do provedor, sendo suas funções assumidas pelo eleito, “homem nobre, e honrado e de bem viver, que tivesse nome de Enfermeiro-mor”33 Leone J. O cargo de Enfermeiro-Mor e sua possível origem. Boletim Clínico dos Hospitais civis de Lisboa 1960; 24(2):233-238.,2828 Regimento do Esprital de Todo los Santos De El-Rey Nosso Senhor De Lisboa, Que Deu El-Rey D. Manuel no ano do senhor de 1504. Lisboa: Laboratório Sanitas; 1946.. Até a ascensão do enfermeiro-mor às funções administrativas, o termo “enfermeiro” aparecia de forma discreta nos regimentos, competindo aos “enfermeiros maiores” funções específicas, como a organização das atividades exercidas pelos “enfermeiros pequenos ou menores”, responsáveis pela execução das atividades de assistência e outras atribuídas por seu superior.2929 Bulcão E, Cantante AP, Almeida B, Peixoto MJ, Pereira O, Oliveira LA. Hospitais portugueses entre os séculos XVI e XVIII: de hospitaleiros a enfermeiros. Temperamentvm 2019; 15:e12666.

Sendo o enfermeiro-mor um “irmão”, deveria cumprir as exigências para ingresso na irmandade. Entre essas “qualidades”, os estatutos da Santa Casa de Ouro Preto estabeleciam a condição de ser livre e emancipado, idade de 21 anos, ter bons costumes, meios decentes de subsistência e que pudesse prestar à irmandade serviços pessoais e auxílios pecuniários3030 Governo Provincial. Lei 1.811, de 12 de outubro de 1871. Lei que approva os estatutos da santa Casa de Misericórdia da cidade de Ouro Preto. Noticiador de Minas 1871; 28 dez., edição 0372, p.1..

A primeira referência ao enfermeiro-mor encontrada foi no Compromisso de 18163131 Coelho RS. A organização da assistência médica na Santa Casa da Misericórdia de São Joao del Rei há 150 anos. In: Instituto Técnico em Saúde. Esboço Histórico do Hospital. Belo Horizonte: Fundação Belo Horizonte; 1972. p. 83-94, da Santa Casa de São João del Rey. Fundada pelo ermitão Manuel de Jesus Fortes como “Casa de Hospital e Caridade” em 1783, constituiu-se como Santa Casa de Misericórdia no século XIX, recebendo provisão e D. Joao VI, que a conferiu os privilégios da Santa Casa de Lisboa3131 Coelho RS. A organização da assistência médica na Santa Casa da Misericórdia de São Joao del Rei há 150 anos. In: Instituto Técnico em Saúde. Esboço Histórico do Hospital. Belo Horizonte: Fundação Belo Horizonte; 1972. p. 83-94,3232 Franco R. O modelo luso de assistência e a dinâmica das santas Casas de Misericórdia na América Portuguesa. Est Hist Rio de Janeiro 2014; 27(53):5-25.. Como de praxe, dispunha o regimento que a mesa administrativa seria composta por irmãos eleitos pelos membros da irmandade. O cargo principal cabia ao provedor, homem “fidalgo, de autoridade, prudência, virtude, representação, e idade [mais de 40 anos], de maneira que os outros Irmãos o possam reconhecer por cabeça, e lhe obedeção com mais facilidade”3333 Arquivo Nacional. Mesa de Consciência e Ordens, Compromisso pelo qual se rege a Santa Casa da Misericórdia da Cidade de São João d'El Rey, em virtude da Provisão Régia de 21 de outubro de 1816, Códice 638.. Além da assistência aos pobres e enfermos, a ele competia outras ações a cargo da irmandade: cultos, cuidados de órfãos, viúvas, recolhimentos de donzelas, pompas fúnebres e sepultamentos. No seu capítulo 40, o Compromisso assinala a conveniência de haver sempre um enfermeiro-mor, eleito pela mesa, que resida “nas Casas do Hospital, e faça no serviço e governo ordinário da Casa tudo o que toca à obrigação do Provedor, para que ele possa acudir melhor, e mais vezes as obrigações da Irmandade da Misericórdia, e o Hospital não esteja nunca sem nenhum superior”3333 Arquivo Nacional. Mesa de Consciência e Ordens, Compromisso pelo qual se rege a Santa Casa da Misericórdia da Cidade de São João d'El Rey, em virtude da Provisão Régia de 21 de outubro de 1816, Códice 638.. Poderia ainda servir na função de tesoureiro do hospital, como se lê no parágrafo cinco do mesmo capítulo, “[estando] obrigado a dar conta todas as quintas feiras na Mesa, que o Provedor, e mais Irmãos fazem no Hospital, do estado das cousas, que tem a seu cargo, para se lhe ordenar o que parecer que convêm”3333 Arquivo Nacional. Mesa de Consciência e Ordens, Compromisso pelo qual se rege a Santa Casa da Misericórdia da Cidade de São João d'El Rey, em virtude da Provisão Régia de 21 de outubro de 1816, Códice 638..

Dos 25 títulos e 152 artigos constantes do Regimento da Santa Casa de São João del Rey, de 1826, dez se referiam ao enfermeiro-mor. Na estrutura da mesa, composta por 13 membros, ele aparece em quarto lugar, abaixo do provedor, do escrivão de mesa e do tesoureiro. O lugar de destaque na mesa afasta a possibilidade de a função ser ocupada por um indivíduo desqualificado. O perfil de seus ocupantes pode ser divisado em nota publicada em 1887 em um jornal são-joanense, referente ao “cidadão Francisco de Salles Souza Vieira, inspetor do 7º quarteirão e proprietário do Hotel Salles, ex-administrador e enfermeiro da Santa Casa de Misericórdia desta cidade no lapso de 15 a 16 anos...”3434 O Arauto de Minas. Ao Público. São Joao del-Rei, 24 de abril de 1887, p.3..

Das competências do enfermeiro-mor, constavam: a visita diária às enfermarias; acompanhar as visitas médicas, vigiando para que ocorram nas horas marcadas; indagar os enfermos sobre a qualidade e asseio da comida; castigar serventes dos enfermos em caso de queixas de que servem mal; advertir “politicamente” aos empregados assalariados quanto ao cumprimento de seus deveres; “tudo que tiver mediata e imediata conexão com a saúde dos enfermos fica a cargo do enfermeiro-mor, e dele se espera zello e cuidado por amor a Humanidade”3131 Coelho RS. A organização da assistência médica na Santa Casa da Misericórdia de São Joao del Rei há 150 anos. In: Instituto Técnico em Saúde. Esboço Histórico do Hospital. Belo Horizonte: Fundação Belo Horizonte; 1972. p. 83-94.

Observa-se, mais uma vez, a ênfase na função de supervisão e fiscalização de outros trabalhadores ocupados na assistência aos doentes, cabendo ao enfermeiro-mor advertir e castigar outros trabalhadores, externos ou de “qualidade inferior”, evidenciando a hierarquização do ambiente do hospital. Cabia aos enfermeiros: submeter-se às ordens do superior, morar dentro do hospital, manter à mão um caderninho para anotar tudo, informar as ocorrências ao cirurgião, dar remédios nas horas marcadas, alternando como ajudante de cirurgia nos casos graves, sendo capaz de sangrar, sarjar, aplicar cáusticos, sanguessugas e ventosas, bem como cataplasmas, unguentos, linimentos e unções, além de receber papel, pensas e pavios. Mais do que atuar como auxiliar de cirurgia, o enfermeiro teria atribuições complementares: transportar doentes graves com a padiola, acionar o cirurgião ou médico para atender enfermos em perigo de morte, mandar soar dez badaladas na sineta da capela, replicando a sineta para chamar o capelão caso necessário administrar o sacramento, não deixar entrar comidas, bebidas e remédios, providenciando para que o almoço fosse servido às 9h e o jantar às 3h3333 Arquivo Nacional. Mesa de Consciência e Ordens, Compromisso pelo qual se rege a Santa Casa da Misericórdia da Cidade de São João d'El Rey, em virtude da Provisão Régia de 21 de outubro de 1816, Códice 638..

Mais uma vez, a imprensa elucida o que os regimentos esperavam do enfermeiro-mor, ou de um enfermeiro que também fosse administrador. Em edição do dia 12 de agosto de 1888, o jornal Diário de Minas publica um relatório da Santa Casa de Caridade de Pitangui que traz informações importantes ao descrever o pessoal do hospital, começando pelo diretor enfermeiro, seguido por um enfermeiro, um servente e uma cozinheira e lavadeira. O relatório também apresenta os nomes dos ocupantes dos cargos de provedor, vice-provedor, tesoureiro, procurador e mesários, mas torna evidente que quem fica no hospital e dirige os trabalhos é um enfermeiro3535 Diário de Minas. Publicação a pedido, Juiz de Fora, 12 de agosto de 1888, p.2..

No Estatuto da Santa Casa de Ouro Preto, publicado em 18713030 Governo Provincial. Lei 1.811, de 12 de outubro de 1871. Lei que approva os estatutos da santa Casa de Misericórdia da cidade de Ouro Preto. Noticiador de Minas 1871; 28 dez., edição 0372, p.1., o enfermeiro-mor é apresentado como “o mais graduado auxiliador dos Facultativos no serviço sanitário das enfermarias, e do Capellão no serviço religioso; e immediato dos procuradores no serviço econômico”3030 Governo Provincial. Lei 1.811, de 12 de outubro de 1871. Lei que approva os estatutos da santa Casa de Misericórdia da cidade de Ouro Preto. Noticiador de Minas 1871; 28 dez., edição 0372, p.1.. Estavam a ele “subordinados todos os empregados de nomeação do Provedor e dos Procuradores, e o ajudante de nomeação da Mesa”. Entre as atividades administrativas e assistenciais que lhe cabiam, o Estatuto da Santa Casa de Ouro Preto pouco diferia do que tem sido mencionado: zelar pelo cumprimento das funções afeitas ao asseio e à ordem das enfermarias e das determinações prescritas pelos facultativos; fiscalizar e hierarquizar de modo prático as atividades dos demais empregados, serventes ajudantes e enfermeiros/as; acompanhar a visita dos médicos, atentando-se para suas instruções; vigiar a evolução dos pacientes, informando ao médico todas as ocorrências relevantes, além de acioná-los quando necessário; administrar os remédios perigosos, cuidando dos curativos mais delicados nos homens, impondo a mesma obrigação à enfermeira no caso de mulheres enfermas; controlar todos os eventos no interior das enfermarias, evitando a circulação de pessoas e produtos externos, guardando “maior cautela e vigilância em que os enfermos, sem distinção de classe, sejão tratados pelos auxiliares das enfermarias com todo zelo e caridade”3030 Governo Provincial. Lei 1.811, de 12 de outubro de 1871. Lei que approva os estatutos da santa Casa de Misericórdia da cidade de Ouro Preto. Noticiador de Minas 1871; 28 dez., edição 0372, p.1..

Mais uma vez, temos as atividades administrativas se sobrepondo às assistenciais. Sendo as primeiras relativamente mais complexas, pois exigiam alguém com domínio de conhecimentos específicos e autoridade reconhecida. O encargo de instruir, distribuir e fiscalizar o serviço de ajudante, enfermeira e serventes nas enfermarias reafirma a ideia de um status superior gerindo uma rede de enfermagem subalterna.

Essa atuação administrativa também pode ser comprovada pela imprensa, que vez por outra trazia notícias envolvendo a atividades desempenhadas pelo enfermeiro-mor. Em 1870, o jornal Noticiador de Minas veiculou anúncio assinado pelo enfermeiro-mor da Santa Casa de Ouro Preto informando que este se encontrava encarregado pela mesa administrativa pelo recebimento de todas as quantias devidas, rogando a todos devedores o pagamento de suas contas contraídas em tratamentos nas enfermarias ou com remédios aviados na botica2929 Bulcão E, Cantante AP, Almeida B, Peixoto MJ, Pereira O, Oliveira LA. Hospitais portugueses entre os séculos XVI e XVIII: de hospitaleiros a enfermeiros. Temperamentvm 2019; 15:e12666.. Além das funções de tesoureiro, também competia a ele as tratativas com a justiça, no zelo necessário à garantia da ordem e à resolução dos conflitos no ambiente hospitalar. Coube assim ao enfermeiro-mor da mesma Santa Casa de Ouro Preto ajuizar as autoridades policiais sobre as ocorrências envolvendo um servente daquela instituição. Em setembro de 1871, Eziquiel Correia dos Santos foi acusado de asfixiar um enfermo no leito, do que foram testemunhas outros pacientes ali internados. Inquirido sobre o fato, o enfermeiro-mor Antônio Justiniano alegou ter o crime ocorrido na administração anterior, não tendo dele conhecimento. Acrescentou que, pelo que havia apurado sobre o ocorrido, a morte fora devida a forte diarreia, mesmo tendo sido o paciente medicado naquela ocasião.

A notícia se desdobrou pelas páginas do jornal nos dias seguintes, cabendo ao enfermeiro-mor a prestação de esclarecimentos junto à imprensa e às autoridades policiais3636 Santa Casa de Misericórdia de Ouro Preto, 6 de julho de 1870 - enfermeiro-mor Antônio Justiniano da Costa Cabral. Noticiador de Minas. Ouro Preto, edição 221 de 13 de agosto de 1870, p.4.. Outras referências se destacam em meio à documentação, evidenciando aqui e ali como a atuação do enfermeiro-mor extrapolava o universo da assistência, assumindo funções de natureza diversa, que abrangiam a administração dos serviços, do espaço e das pessoas, falando em nome da instituição na esfera pública e jurídica, gerenciando recursos e conflitos. Esse cargo certamente não teria sido ocupado pelos indivíduos desregrados, desprovidos de civilidade e inteligência que marcam o imaginário construído sobre o ofício e seus praticantes. Como aponta a bibliografia e sugerem as fontes, o universo da prática da enfermagem no que se convencionou chamar de período pré-profissional abrigou uma diversidade de funções e personagens, sendo interpretação redutora a ênfase em apenas uma delas.

Considerações finais

Como buscamos demonstrar, mesmo sem uma formação específica reconhecida, é possível divisar um cenário complexo de personagens e funções no âmbito das instituições hospitalares devotadas à cura no decorrer do século XIX, em Minas Gerais como no resto do Império. Além de médicos e enfermos, a vida nos hospitais envolvia provedores, enfermeiro-mor, farmacêuticos ou boticários, enfermeiros e enfermeiras, serventes/auxiliares. Aqueles que se ocupavam da enfermagem não estiveram limitados às atividades de assistir e curar os doentes, podendo também se ocupar das funções afeitas à boa administração dessas instituições. Como nos mostra a figura do enfermeiro-mor, a “arte” da enfermagem ia muito além da assistência aos doentes, penetrando em outros misteres do cotidiano hospitalar.

A história dos enfermeiros do século XIX, meros “serventes” ou não, continua demandando maior investigação, especialmente para o caso brasileiro. O cenário do ofício da enfermagem como uma atividade de segunda categoria, vale dizer, é um contraponto que valoriza personagens-símbolos da enfermagem moderna, alçados a um lugar de destaque pelo alegado pioneirismo na adoção de medidas racionalizadoras e eficientes no cuidado dos pacientes e na organização e administração da rotina das enfermarias.

Não se pretendeu aqui questionar os problemas sobejamente conhecidos e reconhecidos sobre a assistência aos enfermos no decorrer do século XIX, em específico daquela realizada no ambiente hospitalar. Problemas que envolviam dificuldades de ordem material, como recursos para manutenção do espaço e das atividades, escasso número de trabalhadores, e aqueles de ordem conceitual, como as percepções em torno do processo de adoecimento e as alternativas disponíveis de intervenção sobre o mesmo. Como enfatizam os estudos sobre os hospitais, até fins do século XIX esses não foram exatamente espaços de cura, servindo mais para acolher e mitigar o sofrimento de doentes que não tinham quem por eles velasse. O artigo não nega esse cenário, mas revela outros aspectos nem sempre enfatizados quando se discorre sobre os agentes em atuação nesses espaços.

Se agentes e atividades afeitos à assistência hospitalar daquele tempo guardam diferenças significativas em relação à nossa lógica de entendimento a respeito desses espaços e práticas, é possível divisar também certos elementos de permanência ou proximidade pouco abordados. Esse é o caso das atividades administrativas sob responsabilidade do cargo de enfermeiro-mor. A proposição explorada nessas páginas é que, ao mobilizar o passado com vistas a erigir uma história da profissão, as escolhas feitas pela historiografia da enfermagem acerca do que focalizar estiveram quase sempre relacionadas a apenas um dos conjuntos de competências esperados desses profissionais, em especial aquelas que ajudam a demarcar um ponto de viragem, a partir do qual uma nova realidade se institui. Como enfatizam os estudos revisionistas mencionados anteriormente, a história da enfermagem também foi escrita pelos vencedores.

Buscamos demonstrar aqui que, mesmo sem uma formação específica reconhecida, é possível divisar um cenário complexo de personagens e funções no âmbito das instituições hospitalares devotadas à cura no decorrer do século XIX, em Minas Gerais como no resto do Império. Além de médicos e enfermos, a vida nos hospitais envolvia provedores, enfermeiros-mor, farmacêuticos ou boticários, enfermeiros e enfermeiras, serventes/auxiliares. Aqueles que se ocupavam da enfermagem não estiveram limitados às atividades de assistir e curar os doentes, desempenhando funções afeitas à boa administração dessas instituições. Como nos mostra a figura do enfermeiro-mor, a “arte” da enfermagem ia muito além da assistência aos doentes, penetrando outros misteres do cotidiano hospitalar.

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  • Financiamento

    Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais.

Editado por

Editores-chefes:

Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Set 2022

Histórico

  • Recebido
    22 Fev 2022
  • Aceito
    23 Mar 2022
  • Publicado
    25 Mar 2022
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