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A avaliação como instrumento de mudança

Assessment as a tool for change

DEBATEDORES DISCUSSANTS

A avaliação como instrumento de mudança

Assessment as a tool for change

Luis Augusto Pisco

Ministério da Saúde de Portugal. luispisco@mail.telepac.pt

Actuar sem dispor de informação é perigoso;

Dispor de informação e não actuar é trágico.

David Cottle

O artigo "Da teoria à formulação de uma Política Nacional de Avaliação em Saúde: reabrindo o debate", de Eronildo Felisberto, é uma excelente oportunidade para refletir sobre o extraordinário desenvolvimento do SUS no Brasil assim como o papel do Departamento de Atenção Básica da Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde, na conceptualização das questões ligadas à avaliação na Atenção Básica.

A proposta de institucionalizar a avaliação e de induzir uma cultura de avaliação, na rotina da atenção básica, merece toda a minha simpatia e são questões com que é de todo impossível não concordar.

Penso ser consensual a necessidade de criar uma cultura de avaliação, criar o hábito de medir, substituir uma gestão baseada em opiniões por uma gestão baseada em fatos. É necessário estimular o hábito de identificar o que pode ser melhorado, promovendo e cultivando uma cultura de responsabilidade, não culpabilizante.

Os meus comentários têm de ser vistos à luz de duas circunstâncias particulares:

1) Ser um observador europeu, de algum modo distante, mas muito atento à realidade do que se passa no Brasil na área de saúde, e um entusiasta confesso dos sucessos obtidos com o programa de saúde da família.

2) Sendo Médico de Família, há cerca de 20 anos o meu trabalho se desenvolve na área da qualidade em saúde.

No contexto da qualidade em saúde, avaliar é diagnosticar uma realidade a fim de nela intervir. Não se trata apenas de conhecer os diversos aspectos de uma determinada situação. Diagnosticar é fundamental, mas é só o primeiro passo, o mais importante vem depois, com base no que foi avaliado, mudar a realidade, procurando o seu aperfeiçoamento. Um dos principais problemas é que os maiores esforços vão habitualmente para a medição e não para a ação.

A avaliação é, pois, um poderoso instrumento de mudança que não deve ser visto como uma ameaça mas sim como um incentivo, para que os diferentes serviços de saúde cumpram padrões mínimos de qualidade. A finalidade de políticas de avaliação e de melhoria da qualidade não pode ser apenas demonstrar os problemas nem propor soluções para os problemas detectados, mas produzir mudanças apropriadas que conduzam à melhoria de qualidade dos cuidados prestados. O objetivo não é outro senão a identificação, avaliação e correção de situações potencialmente melhoráveis.

Como facilmente se compreenderá esta metodologia é de uma importância extraordinária para se obterem melhorias efetivas na prestação de cuidados1.

Os conceitos da qualidade deixaram já de ser do uso exclusivo de setores econômicos e fazem parte, cada vez mais, do conjunto de idéias de base que norteiam a administração pública e a vida dos cidadãos.

Os organismos públicos não estão condenados ao estigma da não qualidade. Nos organismos em que se desenvolveram esforços consistentes para melhorar os serviços prestados obtiveram-se resultados palpáveis e encorajadores. A qualidade em serviços públicos, e mais concretamente nos serviços de saúde, é um desafio aos seus gestores, técnicos e todos os outros profissionais que têm capacidades que, se bem geridas, podem originar produtos aptos a satisfazer as necessidades dos seus utilizadores, superando as dificuldades com criatividade, empenhamento e participação.

A finalidade de uma política de melhoria contínua da qualidade será, pois, a de conjugar todos os esforços no sentido de a tornar integrante e permanente de todas as atividades profissionais a todos os níveis dos serviços de saúde. Devem ser preferencialmente voluntárias, contínuas e sistemáticas, e levadas a cabo pelos profissionais, individualmente ou em grupo, no seu dia-a-dia e nos seus locais de trabalho procurando desse modo transformar as diferentes organizações prestadoras de cuidados de saúde, em organizações que planeiam, avaliam e funcionam de uma forma efectiva e integrada.

A questão central hoje em dia não é tanto a questão técnica de como é que se fazem atividades de avaliação e melhoria, mas de como se estabelecem e se mantêm de forma sustentada estas atividades como parte do trabalho de uma organização ou mesmo de um sistema de saúde. Ou seja, como é que se estabelece um plano estruturado para institucionalizar estas atividades, como é que se cria com sucesso um sistema que, de forma coerente e integrada, englobe os múltiplos esforços qualitativos que os profissionais ou as instituições estão a desenvolver de forma a potenciar os benefícios para os doentes2, 3.

A comunidade tem, em geral, a legítima expectativa de que existam mecanismos rigorosos e sistemáticos de avaliar os cuidados prestados de forma a saber se os recursos são usados adequadamente e se é obtida a melhor qualidade possível.

O desafio é muito claro: aumentar o rendimento e a qualidade dos serviços de saúde diminuindo a sua fragmentação e integrando as atividades de saúde individual e comunitária e uma ação concertada dos principais intervenientes nomeadamente os decisores políticos, os gestores da saúde, os profissionais, as instituições acadêmicas e as comunidades4.

A motivação para prestar melhores cuidados de saúde é habitualmente elevada mas, como notou Deming5, entusiasmo sem as técnicas e metodologias adequadas rapidamente conduz ao desencanto.

Uma dificuldade adicional é que os profissionais de saúde têm tendência para perceber a avaliação e a melhoria da qualidade como atividades de gestão e como tal impostas. Um desafio importante é pôr à disposição dos profissionais as metodologias e as técnicas adequadas para melhorar de forma efetiva os cuidados prestados aos cidadãos, aproveitando a sua natural motivação para melhorar a prestação de cuidados.

O desenvolvimento da qualidade deve ser levada a cabo de forma descentralizada, deixando, aos profissionais no terreno, a tarefa de iniciar e continuar atividades de melhoria da qualidade. Existem várias razões para isso e uma das mais importantes tem a ver com o fato de ser produzida informação mais fidedigna e com mais qualidade quando os profissionais recolhem e tratam eles próprios essa informação. Por outro lado, a divulgação da informação e a tomada de medidas corretoras fazem-se mais rapidamente em nível local por meio de diálogo e de avaliação inter-pares. Pressupõem uma vontade expressa de auto-avaliação e de melhorar a qualidade do serviço prestado à população.

Em uma situação em que não pareçam perspectivar-se condições que permitam o desenvolvimento de programas externos de avaliação a possibilidade alternativa é introduzir atividades de avaliação e de auto-correção nas próprias equipes incentivando a avaliação inter-pares. Este tipo de abordagem, que começa por tentar compreender e praticar a avaliação como algo inerente ao próprio funcionamento habitual das equipes de saúde, vem estimular o interesse e a responsabilidade dos profissionais.

Devem contudo facilitar e colaborar em avaliações externas e institucionais, na criação de bases de dados integradas com fins de avaliação e comparação, no desenvolvimento de sistemas de informação adequados e no estabelecimento de troca de informação informal sobre os resultados de instituições e equipas similares.

O modelo de cuidados de saúde para o século 21 preconizado pela Organização Mundial de Saúde6, 7 em recentes relatórios fundamenta-se na integração da equipe prestadora de cuidados de saúde, visando à sua organização em torno do doente, à prevenção, à vigilância e gestão da doença crônica e ao desenvolvimento de práticas que garantam a segurança e a qualidade dos cuidados numa perspectiva de saúde pública.

São descritas cinco competências centrais que todos os membros da equipe devem possuir e entre eles a medição/avaliação da prestação de cuidados e dos resultados.

A avaliação de qualidade pressupõe uma metodologia e uma atividade novas e por isso deve evitar-se cair em projetos teóricos muito ambiciosos mas de difícil ou mesmo impossível realização prática. Deve tentar-se conseguir um equilíbrio entre os objetivos teóricos e as possibilidades reais de os alcançar delineando uma estratégia conseqüente. Devem ser evitados estudos muito extensos, com muitos indicadores e procurar que os profissionais assumam a recolha de dados dentro da sua atividade normal e não como um trabalho suplementar.

Quanto maior for a possibilidade de as levar à prática e mais operativas se revelarem na solução de problemas mais nos aproximaremos do objetivo que se pretende.

No final do seu artigo, Eronildo Felisberto é muito claro acerca da sua visão para o futuro da avaliação na atenção primária no Brasil ao colocar em perspectiva a visão de Trochim. Por tudo aquilo que disse anteriormente, partilho integralmente a idéia de uma cultura avaliativa "orientada para a ação" [...] encorajando abordagens inovadoras com a busca ativa de soluções; acessível e "orientada para o ensino" [...] enfatizando a avaliação formal e o pensamento oriundo do fazer cotidiano, encorajando todos na organização a avaliar sua prática diária, assim como os experts a ensinarem sobre os aspectos teórico-metodológicos de suas reflexões e estudos; "diversa, inclusiva, participativa, responsiva e fundamentalmente não hierárquica" [...] enfatizando além das habilidades técnicas, as de negociação e de construção de consensos; "humilde e autocrítica" [...] prevendo o reconhecimento das limitações e do aprendizado permanente; "interdisciplinar" [...] enxergando os limites das disciplinas específicas na busca de fomentar uma visão mais ampla do fenômeno estudado; honesta, "procurando a verdade" [...] enfatizando a responsabilidade e credibilidade científica; prospectiva e com o "olhar à frente" [...] na perspectiva da construção de avaliações simples, de baixo custo com a consciência dos tempos possíveis e necessários, sem esperar as condições ideais para sua realização; uma cultura de avaliação que enfatizará processos justos, abertos, "éticos e democráticos" [...] afastando as visões de uso exclusivo de dados, proporcionando acesso a todos os grupos interessados permitindo análises secundárias independentes mais extensivas e oportunidades para replicação ou refutação dos resultados originais.

A única discordância com Trochim tem a ver com o conceito de esta ser uma avaliação "ideal" a ser perseguida no século 21. Como estamos em pleno século 21 e o Brasil é um país de progresso e inovação, espero poder ver este tipo de avaliação no terreno, a ser utilizada quer no Ministério da Saúde, quer nos municípios mas sobretudo pelas equipas de Saúde da Família.

Para finalizar, espero poder ter o prazer de ver um dia destes, publicado na conceituada revista Ciência & Saúde um artigo com o título "Por uma Política Nacional de Qualidade em Saúde na Atenção Básica: iniciando o debate".

Referências

1. Berwick DM. Developing and testing changes in delivery of care. Ann Intern Med 1998; 128:651-6.

2. Grol R. Beliefs and evidence in changing clinical practice. BMJ 1997; 315:418-21.

3. Grol R. Comprehensive systems for quality improvement: a challenge for general practice. Eur J Gen Pract 1997; 3:123-4.

4. Enhancing interdisciplinary collaboration in primary health care (EICP) initiative. Barriers and facilitators to enhancing interdisciplinary collaboration in primary health care [acesso em 10 abril 2006]. Disponível em: URL: http://www.eicp-acis.ca/en/resources/pdfs/Barriers-and-Facilitators-to- Enhancing-Interdisciplinary-Collaboration-in-Primary-Health-Care.pdf

5. Deming WE. Out of the crisis. Cambridge: Massachusetts Institute of R. Technology, Centre for Advanced Engineering; 1986.

6. World Health Organization. What are the advantages and disadvantages of restructuring a health care system to be more focused on primary care services?WHO Regional Office for Europe's Health Evidence Network (HEN) January 2004.

7. World Health Organization. Preparing a health care workforce for the 21st century: The challenge of chronic conditions [acesso em 10 abril 2006]. Disponível em: URL: http://www.who.int/chronic_conditions/workforce_report/en/

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    Set 2006
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