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Intersecção entre dificuldades de acesso e violência obstétrica em itinerários abortivos

Resumo

No Brasil, diversas limitações são impostas ao acesso de mulheres em situação de abortamento à rede de atenção à saúde, sob influência de valores morais, religiosos e iniquidades de gênero. Objetivou-se analisar a experiência de mulheres que realizaram abortamento quanto à atenção pelos serviços de saúde, como parte do itinerário abortivo. Trata-se de pesquisa de abordagem qualitativa, realizada com 18 mulheres em três municípios de pequeno, médio e grande porte, no estado da Bahia. Os dados foram produzidos por meio de entrevista presencial ou virtual. O material empírico foi analisado por meio da técnica de análise de discurso. Os resultados mostram, nos três municípios, itinerários abortivos sob iniquidades sociais e de gênero, com maiores dificuldades de acesso para mulheres de baixa renda. Melhores condições financeiras permitiram acesso a clínicas particulares clandestinas, mas sem garantia de atenção humanizada. Nos três municípios, mulheres desfavorecidas economicamente autoinduziram o aborto e retardaram a busca por serviços, tendo enfrentado atitudes profissionais constrangedoras e preconceituosas. Os resultados apontam a premência de se implementar políticas públicas em que os direitos reprodutivos se efetivem como direitos humanos.

Palavras-chave:
Aborto; Itinerários; Violência obstétrica; Direitos reprodutivos

Abstract

In Brazil, several limitations are imposed upon the access of women undergoing abortion to the healthcare network, primarily caused by the influence of moral and religious values and gender iniquities. In this light, the present study aimed to analyze the experience of women who had an abortion regarding the care provided by healthcare services as part of the abortion itinerary. This is a qualitative study, carried out with 18 women in three cities - one small city, one mid-sized, and one big - in the state of Bahia. Data were produced by face-to-face or online interviews. The empirical material was analyzed using the discourse analysis technique. The results show, in the three municipalities, abortion itineraries under social and gender iniquities, with greater access difficulties for low-income women. Better financial conditions allow access to clandestine private clinics but without guaranteeing humanized care. In the three municipalities, economically disadvantaged women self-induced abortions and delayed seeking services, having faced embarrassing and prejudicial professional attitudes. The results point to the urgency of implementing public policies in which reproductive rights are as effective as human rights.

Key words:
Abortion; Itineraries; Obstetric violence; Reproductive rights

Introdução

Em todo o mundo, boa parte das gestações são indesejadas e uma parcela significativa desse total termina em aborto induzido11 Bearak J, Popinchalk A, Alkema L, Sedgh G. Global, regional, and subregional trends in unintended pregnancy and its outcomes from 1990 to 2014: estimates from a Bayesian hierarchical model. Lancet Glob Health 2018; 6(4):e380-e389.. Em países mais ricos, essas taxas caíram proporcionalmente com a elevação do uso de métodos contraceptivos, ao contrário dos países mais pobres que têm altas taxas de aborto e desde os anos 1990 do século XX não se percebem alterações significativas desses números11 Bearak J, Popinchalk A, Alkema L, Sedgh G. Global, regional, and subregional trends in unintended pregnancy and its outcomes from 1990 to 2014: estimates from a Bayesian hierarchical model. Lancet Glob Health 2018; 6(4):e380-e389..

O acesso aos esclarecimentos, à variedade de métodos contraceptivos eficazes constitui estratégia menos onerosa se comparada às possíveis consequências de uma gravidez indesejada. Diante de situações de abortamento, o cuidado adequado pode assegurar melhor desfecho emocional, social e clínico para a mulher22 Sant'Anna NSS, Cezati MPD, Pimentel SCR. O papel do enfermeiro como protagonista no cenário da prevenção do aborto clandestino. Cad Camilliani 2019; 16(4):1577-1592..

Os abortos inseguros causam de 8% a 11% das mortes maternas globais e são predominantes em países de renda baixa e média. Nesses locais, as políticas de acesso são mais restritivas e conta-se, ainda, com fatores socioeconômicos desfavoráveis que influenciam o alcance11 Bearak J, Popinchalk A, Alkema L, Sedgh G. Global, regional, and subregional trends in unintended pregnancy and its outcomes from 1990 to 2014: estimates from a Bayesian hierarchical model. Lancet Glob Health 2018; 6(4):e380-e389..

O aborto é considerado crime no Brasil, sendo permitido legalmente pelo Código Penal Brasileiro, Artigo 128, em casos de risco de vida materna, gravidez em consequência de estupro ou anencefalia fetal33 Brasil. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União 1940; 31 dez.. Apesar da legislação brasileira permitir o aborto seguro sob essas condições, mulheres continuam a enfrentar dificuldades no acesso aos serviços que realizam o aborto legal. Entre os entraves mais significativos estão o acesso desigual, a falta de profissionais qualificados/as e a estigmatização da mulher que aborta44 Giugliani C, Ruschel AE, Silva MCB, Maia MN, Oliveira DOPS. O direito ao aborto no Brasil e a implicação da Atenção Primária à Saúde. Rev Bras Med Fam Comunidade 2019; 14(41):1791.. Isso favorece a busca por abortos inseguros, definidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como sendo meios para interrupção da gestação por pessoas sem as habilidades básicas ou em locais inapropriados para a execução do procedimento55 World Health Organization (WHO). Safe abortion: technical and policy guidance for health systems Second edition. Geneva: WHO; 2012..

As limitações de acesso aos serviços impostas às mulheres com abortamento em curso ou logo após o aborto são diversas. Há coexistência de fatores sociais, religiosos e iniquidades de gênero que influenciam e delineiam as práticas de profissionais e, nos serviços de saúde, culminam em atitudes abusivas ou desrespeitosas, fundadas em relações de poder entre profissionais e usuárias, o que constitui violência institucional.

Embora o cenário de assistência às mulheres tenha progredido na prevenção da violência obstétrica nos últimos anos, um quarto das mulheres vivencia alguma forma de violência durante o parto e, cerca da metade das mulheres que relataram abortos também a experimentou, especialmente em caso de aborto provocado66 Queiroz FS, Rodrigues JS, Silva CS, Betcel NL, Carvalho Junior AM, Azavedo JRO, Valente ARPD. Violência obstétrica: um problema de saúde pública e uma violação dos direitos humanos. Braz J Hea Rev 2020; 3(5):14435-14445..

Profissionais de saúde, muitas vezes, não estão suficientemente preparadas/os para lidar com questões delicadas como as relacionadas ao abortamento, à violência sexual e doméstica e às relações de gênero. O fato de ser o aborto associado a um evento criminoso faz muitos/as profissionais julgarem as mulheres que abortam, agindo de modo desrespeitoso e antiético77 Borges LCV, Clemente NR, Netto L. (In)congruência na assistência às mulheres em situação de abortamento: o que dizem os acadêmicos sobre seus processos formativos. REME 2020; 24:e-1297..

O acesso ao serviço de saúde em casos de abortamento pode ser considerado uma trilha de múltiplos caminhos que levam em conta barreiras para alcance do serviço, atraso para o atendimento, entre outras resistências. Todavia, as mulheres sempre conseguem um modo de interromper a gestação, seja saindo da sua localidade para buscar acesso, seja promovendo a autoindução ou com a ajuda de terceiros e, ainda, utilizando o aborto medicamentoso. Seus itinerários abortivos são percorridos sob dificuldades para tomada de decisão, e para ter acesso aos meios seguros e a pessoas com quem podem compartilhar conflitos e soluções88 Diniz D, Medeiros M. Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna. Cien Saude Colet 2010; 15(Supl. 1):959-966..

Entende-se por itinerários abortivos as trajetórias de mulheres desde a identificação do atraso menstrual, a descoberta da gestação, a decisão de abortar, a realização do aborto e os cuidados pós-aborto, o que depende do contexto peculiar de cada mulher88 Diniz D, Medeiros M. Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna. Cien Saude Colet 2010; 15(Supl. 1):959-966.. Itinerários abortivos também podem ser compreendidos como um conjunto interativo de ações e decisões que se consolidam no desfecho do aborto, considerando todas as barreiras e limitações para alcançar os meios de realizá-los99 Lima NDF, Cordeiro RLM. "A minha vida não pode parar": itinerários abortivos de mulheres jovens. Rev Estud Fem 2020; 28(1):e58290..

Pouco se conhece sobre os itinerários de mulheres que buscam o aborto no Brasil, sobretudo nos interiores do Nordeste, e sobre questões de gênero, de classe e geração relacionadas à temática, havendo necessidade de pesquisas nesse âmbito. A lacuna da literatura no Brasil, no que concerne a estudos sobre itinerários abortivos, em especial na região Nordeste do país, implica em ineditismo e originalidade de pesquisas nessa área.

Nesta pesquisa foram estudados itinerários abortivos de mulheres de três municípios de pequeno, médio e grande porte no estado da Bahia, Brasil, mostrando em seus resultados a interseção entre dificuldades de acesso e violência obstétrica na atenção à saúde de mulheres em situação de abortamento, tema que constitui objeto deste artigo. O artigo tem como objetivo analisar a experiência de mulheres que realizaram abortamento, quanto à atenção pelos serviços de saúde, como parte do itinerário abortivo.

Método

Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa que utilizou o gênero como categoria analítica. Gênero é um constructo que organiza a vida social de modo concreto e simbólico e estabelece relações de poder, hierarquias e desigualdades a partir de concepções sobre homens e mulheres1010 Scott J. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Recife: SOS Corpo; 1995.. As relações de gênero são configuradas e reconfiguradas sob construções sociais, influenciadas por traços da cultura de cada sociedade. Assim, os corpos, a psique, a sexualidade e a reprodução humana precisam ser compreendidos como construções socioculturais1111 Moore E. Compreendendo sexo e gênero. Biologia e Cultura. In: Ingold T, editor. Companion Encyclopedia of Anthropology. Londres: Routledge; 1997. p. 813-830..

A pesquisa empírica foi realizada em três cidades de pequeno, médio e grande porte, localizadas no estado da Bahia, Brasil. A escolha das participantes permitiu o contato com diferentes realidades de mulheres que decidiram pela interrupção, em situações de gravidez não planejada.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a classificação dos municípios segue os seguintes parâmetros: pequeno porte - cidades com população de até 100.000 habitantes. Em geral sobrevivem do comércio local e da economia rural; médio porte - cidades com população entre 100.000 e 500.000 habitantes, atuam como centros regionais, oferecendo suporte a municípios vizinhos como referência para serviços de atenção especializada; grande porte - cidades com mais de 500.000 habitantes, consideradas como grandes e possuindo maiores recursos estruturais1212 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa de Infomações Básicas Municipais. Perfil dos municípios brasileiros 2012. Rio de Janeiro: IBGE; 2013..

As participantes do estudo foram mulheres em idade reprodutiva, que já vivenciaram a experiência do aborto provocado, independentemente do número de procedimentos, em um período inferior ou igual a 10 anos. Foram adotados como critérios de inclusão: ser maior de 18 anos e ter naturalidade e residência fixa na cidade escolhida. Constituiu critério de exclusão: ter informado abortamento espontâneo e/ou abortamento legal.

Para a identificação de possíveis participantes foi utilizada a técnica de bola de neve ou de amostragem em rede não probabilística, que consiste em a primeira informante indicar outras informantes para participar da pesquisa, atendendo a critérios de elegibilidade1313 Polit DF, Beck CT. Fundamentos de Pesquisa em Enfermagem: Avaliação de evidências para a prática da enfermagem. 9ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2019..

O primeiro contato com as mulheres se deu a partir da identificação de potenciais informantes, em espaços de convívio da pesquisadora que incluiu encontros de organizações não governamentais (ONGs) feministas e rodas de conversa sobre aborto, nas quais, algumas mulheres falaram abertamente sobre a sua experiência. A partir dessas informantes iniciais foram alcançadas outras mulheres que pertenciam a sua rede de convívio social e que atendiam aos critérios de participação na pesquisa.

Tendo em vista pertencerem à mesma rede de convivência, a inserção social teve convergência, com predominância de jovens universitárias nos três municípios, que se conectaram com pelo menos mais uma jovem por terem o aborto como parte de sua história de vida. Essa conexão foi ponto de partida, e também garantiu a continuidade da aplicação da técnica bola de neve no processo de identificação das participantes.

A produção dos dados foi realizada no período de junho a dezembro de 2017, por meio da aplicação da técnica de entrevista com utilização de roteiro semi-estruturado e se deu pessoalmente, por meio de ligações ou por conversas de áudio via WhatsApp e uma por carta eletrônica. As diferentes estratégias adotadas para realização da entrevista atenderam à sugestão das entrevistadas, diante de questões como tempo e receio de alguém ouvir.

A identificação da fala de cada mulher encontra-se registrada com a letra E (Entrevistada) e um número identificador, que diz respeito à ordem de realização da entrevista, seguidos da letra M (Município) e dos números 1 - pequeno porte, 2 - médio porte e 3 - grande porte, assim apresentados: E1M1 até E4M1; E1M2 até E4M2; E1M3 até E12M3.

As entrevistas presenciais ou por telefone foram gravadas, com autorização prévia das participantes, transcritas na íntegra e, em seguida, analisadas por meio da técnica de Análise de Discurso1414 Fiorin JL. Linguagem e ideologia. 8ª ed. São Paulo: Ática; 2004.. Essa técnica permite obter explicações sobre o que está escrito em determinado texto, esclarecendo as normativas que constituem os sentidos, bem como a ordem de necessidades que foram respondidas pelo texto, portanto, não há apenas uma análise, e sim análises de discurso1414 Fiorin JL. Linguagem e ideologia. 8ª ed. São Paulo: Ática; 2004..

Por conseguinte, embasadas na técnica de Análise de Discurso1414 Fiorin JL. Linguagem e ideologia. 8ª ed. São Paulo: Ática; 2004., foram realizadas as seguintes etapas para análise do material empírico: leitura do texto em busca de elementos concretos (figuras) e abstratos (temas), partes do constructo da significação; agrupamento dos dados de acordo com seus elementos, concretos e abstratos; apreensão de temas centrais com elaboração de categorias e subcategorias. Por fim, foi realizada análise e discussão das categorias empíricas em articulação com a literatura e com o referencial teórico de gênero.

Os aspectos éticos que regem pesquisas envolvendo seres humanos foram considerados durante toda a realização da pesquisa. As participantes receberam, pessoalmente ou por via eletrônica, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e, do mesmo modo, fizeram a devolutiva de sua ciência e sua concordância. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia.

Resultados

Participaram da pesquisa 18 mulheres, sendo quatro no município de pequeno porte (M1), quatro no município de médio porte (M2) e dez no município de grande porte (M3). As idades das participantes do estudo variaram entre 25 e 39 anos. Com relação à raça, no município de pequeno porte, a maioria se autodeclarou negra, e nos municípios de médio e grande porte a maioria se autodeclarou branca. Com relação ao número de gestações, nos municípios de pequeno e grande porte, variou de uma a quatro gestações, e no município de médio porte apenas uma gestação. A escolaridade variou nos municípios sendo que, nas localidades de pequeno e médio porte, a maioria tinha ensino superior completo e incompleto, e no município de grande porte, entre as mulheres entrevistadas, destacaram-se as que tinham ensino médio e superior incompleto. Em relação à religião, houve predominância de participantes da religião católica nos municípios de médio e grande porte e de participantes sem religião no município de pequeno porte. A renda pessoal variou de ½ a 4 salários mínimos e a renda familiar variou de ½ a 10 salários mínimos.

A realidade na busca de atenção por mulheres com história de abortamento e que participaram deste estudo é apresentada a seguir, por meio de três categorias empíricas, que mostram a interseção entre dificuldades de acesso e violência obstétrica como parte de itinerários abortivos.

Sobreposição de valores pessoais à ética profissional na atenção à mulher em situação de abortamento

Para algumas mulheres que participaram da pesquisa foi necessária a finalização do aborto em unidade hospitalar, havendo relatos de desrespeito e constrangimento atribuídos ao fato de estarem em abortamento:

Depois que eu tinha feito o aborto, eu tive que fazer três curetagens [...] em relação ao próprio atendimento médico, eles tratam a gente com muito descaso, como se fosse a pior coisa do mundo provocar um aborto, [...] a gente fica com vergonha de chegar no médico e dizer: “ah tomei remédio pra perder” [...] A gente sofre uma rejeição pelos próprios médicos que nos atende, ainda mais quando eles perguntam se o aborto foi provocado (E1M3).

Logo fui a um hospital que lá até então fui atendida normalmente, esperando minha vez e tal, mas logo que falou que foi aborto, fui tratada com descaso [...]. Começou com a demora a me internar para a curetagem, e logo que fui internada levei umas horas ainda sentindo dor [...]. Lembro como se fosse hoje, gritei, berrei, até que uma senhora que trabalhava no local falou: “minha filha, fica quietinha aí, se não, vão te pirraçar”, foi aí que pude perceber que, nesse caso, eles tratam com descaso (E4M3).

Uma das participantes, E4M2, sofreu outra modalidade de violência institucional com ameaça de denúncia pelo profissional médico. Registra-se que essa mulher já havia sofrido violência pelo parceiro. Em seu relato, após sofrer violência, ela afirma:

O serviço de saúde que eu fui foi a própria emergência do local da boate [...] em seguida fui pra outra emergência encaminhada, mesmo assim escutando desaforo do médico que ameaçou me denunciar [...]. Não souberam o que eu fiz, fiquei com medo de ser presa na hora, foi uma confusão grande (E4M2).

Nessas situações, valores pessoais incorporados do imaginário social se institucionalizam pela ação profissional na atenção à mulher em situação de abortamento, desrespeitando direitos, criminalizando-a e negando a ética profissional.

Mediações para acesso aos serviços de saúde sob as regras da clandestinidade

As mediações para acesso aos serviços de saúde, sob as regras da clandestinidade, são essenciais para garantir que as mulheres em situação de abortamento tenham acesso aos cuidados adequados e seguros, mesmo em um contexto em que a prática seja criminalizada. Essas mediações podem envolver redes de apoio como grupos de defesa dos direitos reprodutivos, linhas telefônicas de orientação, serviços de aconselhamento e encaminhamento para clínicas seguras e capacitadas.

Conforme os resultados da pesquisa, mulheres que antecipadamente conheciam a resistência dos serviços em relação ao aborto, se valem de amigas ou de pessoas conhecidas do serviço de saúde que se disponibilizaram a ser uma ponte entre o hospital e a usuária conforme se lê nos relatos abaixo:

A minha amiga foi quem conseguiu tudo, foi hospital público de outro local, outro município no caso, ela conseguiu, marcou e eu fui com ela [...]chegou lá fizeram a medicação e não precisou de curetagem nem nada foi bem tranquilo assim (E3M2).

Não foi tão fácil assim, mas consegui logo atendimento [...] uma amiga tinha amigos no hospital e isso ajudou a questão ser resolvida no hospital público[...] fui atendida, minha prima foi comigo e quando vi já tinha ocorrido a curetagem (E2M2).

Fiz curetagem no serviço de saúde daqui mesmo, eu conheço as pessoas do lugar e quando foi na hora que começou a sair fui logo para o hospital buscar atendimento (E3M1).

A seguir, vê-se que a clandestinidade do aborto e o receio dos julgamentos são parte de uma realidade em que a resistência de profissionais gera uma sequência de encaminhamentos com base no quadro clínico sugestivo de aborto em curso. Constitui entrave no acesso à atenção à saúde e culmina em peregrinação:

A gente foi pra um hospital, eu tinha plano particular e lá eles não me atenderam, disseram que sem nenhum exame que comprovasse que eu não estava grávida, eles não me atenderiam [...]. No outro dia, eu fui para outro hospital, mas [...] precisava de um exame que confirmasse que eu não estava grávida, [...] indicaram outro hospital, eu fiz a ficha não falei diretamente que estava tendo um aborto, [...] e aí a vergonha, o medo sem saber o que iria me acontecer [...]. Eu cheguei a fazer um exame de imagem [...] retornei, ele olhou e então passou a medicação e o sangramento suspendeu (E5M3).

Situações em que o acolhimento e o respeito à dignidade da mulher são negados, ampliam a insegurança, o desconforto e o medo em relação ao que pode acontecer, aos riscos à própria vida, o que constitui violência obstétrica.

Acesso às clínicas particulares sem garantia do acolhimento às mulheres

O acesso às clínicas particulares foi viabilizado mediante condições socioeconômicas favoráveis, o que permitiu agilidade para realização do aborto. Nesse ambiente, as participantes conseguiram resolutividade, mas a clandestinidade distancia as relações e prejudica o acolhimento, conforme se lê abaixo:

É bem complicado o acesso às clínicas, é algo bem sigiloso [...] nada é muito falado, muito verbalizado, tudo é muito oculto, camuflado, você não verbaliza o que você quer [...] passei por uma triagem, onde me foi questionado questões socioeconômicas e sobre a certeza de realizar o procedimento [...] você não tem acesso fácil ao médico, só mesmo depois que você passa por essa triagem, [...] foi realizada uma ultrassom para confirmar a idade gestacional [...] você fica na sala em repouso sozinha, toma os medicamentos, meio que anestésicos, e não pode ter a presença de nenhuma outra pessoa (E9M3).

Foi tudo muito rápido, quarta eu descobri, sexta à tarde eu consegui ligar pra uma clínica e já marquei uma consulta pra segunda-feira e na terça-feira eu já fiz o procedimento [...] eu queria resolver tudo muito rápido [...]. O médico [...] me prescreveu alguns remédios e ressaltou que [...] em caso de emergência, eu deveria falar com ele antes, me passou os contatos, dele e das funcionárias [...] duas mulheres trabalham com ele, uma delas ficou comigo na sala, durante e depois (E10M3).

Ele pediu pra fazer uma ultra, quando chegou na ultra, a médica falou: “tá ouvindo o coração?” foi uma merda [...]. E no dia da cirurgia eu fui, subi com medo, lembro de ter entrado na sala, eles me injetaram o negócio [...] acordei numa sala e acho que no mesmo dia, colocou um tampão e voltei pra casa, tchau, e beijo [...]. Vi as pessoas fazendo assim, saindo de boas, era muito prático [...]. Eu vi as pessoas [...] entrando e saindo como se nada tivesse acontecendo (E2M3).

Em ambiente com relações eminentemente técnicas, onde todas as pessoas se protegem do risco de serem julgadas pelo Estado e pela sociedade, condutas impessoais são a regra. Executam ações rápidas e pouco explícitas, expressando o não envolvimento por meio de atitudes que garantam o sigilo sobre o que ali acontece.

Discussão

O acesso aos hospitais para finalização do aborto ou à clínica particular para sua realização é parte do itinerário abortivo e dependente do contexto social e econômico em que mulheres estão inseridas. Neste estudo, as estratégias foram diferenciadas e, na presença de melhores condições financeiras, sobretudo no município de maior porte, mulheres buscaram clínicas particulares clandestinas que lhes pareceram mais seguras para realizar o abortamento, sem garantias, porém de atendimento humanizado. No lado oposto, nos três municípios, se encontram as mulheres desfavorecidas economicamente, que buscaram autoinduzir o aborto e retardaram a busca por cuidados à saúde.

Parte significativa das mulheres que realizam aborto no Brasil necessita de internação hospitalar em decorrência de procedimento inseguro99 Lima NDF, Cordeiro RLM. "A minha vida não pode parar": itinerários abortivos de mulheres jovens. Rev Estud Fem 2020; 28(1):e58290.. Essa realidade atinge grande número da população feminina, tendo em vista que uma em cada cinco mulheres, de até quarenta anos, já realizou um aborto de modo inseguro e clandestino1515 Diniz D, Medeiros M, Madeiro A. Pesquisa nacional de aborto 2016. Cien Saude Colet 2017; 22(2):653-660..

O perfil de mulheres que mais apresentam complicações no pós-aborto é de pessoas em situação econômica desfavorável que buscam a realização do procedimento de modo clandestino. Isso reflete uma série de desvantagens no acesso aos cuidados salutares, um quadro de vulnerabilidade individual e social do aborto inseguro e repercussões para a saúde1616 Silva DF, Bedone AJ, Faúndes A, Fernandes AMS, Lima e Moura VGA. Aborto provocado: redução da frequência e gravidade das complicações. Conse quência do uso de misoprostol? Rev Bras Saude Mater Infant 2010; 10(4):441-447..

Os itinerários abortivos percorridos envolvem estratégias, tempo gasto no percurso e a busca por cuidados de saúde que variam de acordo com o contexto de vida de cada mulher. A usuária deverá buscar um serviço formal de saúde ou recorrer aos sistemas informais conjecturados por erveiros, comerciantes de métodos abortivos, farmacêuticos e clínicas particulares1717 Coast E, Norris AH, Moore AM, Freeman E. Trajectories of women's abortion-related care: A conceptual framework. Soc Sci Med 2018; 200(1):199-210..

Nessa direção, os resultados deste estudo reafirmam que as disparidades sociais são importante obstáculo na busca pelo aborto, o que obriga mulheres a utilizar métodos mais inseguros e, às vezes insalubres, pondo em risco a própria vida. Sobretudo, as mulheres de municípios de médio e pequeno porte, com maiores limitações socioeconômicas, estiveram mais expostas aos riscos da clandestinidade.

Sabe-se que existem diferentes tipos de clínicas clandestinas e de atendimento, mas apesar do procedimento ser custeado diretamente pela usuária, não existe nenhuma garantia que ocorra em ambiente seguro e humanizado, havendo relatos de abusos e violências institucionais1818 Silveira P, McCallum C, Menezes G. Experiências de abortos provocados em clínicas privadas no Nordeste brasileiro. Cad Saude Publica 2016; 32(2):e00004815..

Por não ter a regulamentação do Estado para realizar o aborto, as clínicas particulares costumam guiar seus atendimentos com suas próprias normas e sem fiscalização. Nesses locais, as mulheres ficam subordinadas a profissionais que se presume ter a disposição para atendê-las e serem aptos/as e qualificados/as para tal demanda1919 Diniz D, Medeiros M. Itinerários e métodos do aborto ilegal em cinco capitais brasileiras. Cien Saude Colet 2012; 17(7):1671-1681..

Na escolha de clínicas particulares para a realização do aborto, as mulheres participantes do estudo buscaram assegurar o acesso aos serviços que lhes garantissem atenção sob sigilo em ambiente seguro e livre de julgamentos. Todavia, as condições relatadas expõem relações assépticas que geram sentimento de isolamento, desconforto e falta de apoio emocional durante um momento delicado de sua trajetória de vida.

No tocante ao acesso para atenção ao abortamento, as disparidades estão atreladas a diversos aspectos: individuais, institucionais, e condições sociais e de saúde da mulher influenciadas, sobretudo, pelas legislações vigentes em cada país1717 Coast E, Norris AH, Moore AM, Freeman E. Trajectories of women's abortion-related care: A conceptual framework. Soc Sci Med 2018; 200(1):199-210.. Durante essa busca, as mulheres experimentam desigualdades de múltiplas faces relacionadas ao estigma do aborto, implicando em dificuldades no acesso aos cuidados à saúde2020 DePiñeres T, Raifman S, Mora M, Villarreal C, Foster DG, Gerdts C. 'I felt the world crash down on me': Women's experiences being denied legal abortion in Colombia. Reprod Health 2017; 14(1):133-143..

O estigma que se instala por se praticar um aborto dificulta o acesso aos serviços de saúde, inclusive em locais onde a prática é legalizada. Nesse contexto, os prejuízos são diversos: desrespeito à privacidade da mulher, objeção de consciência sem encaminhamentos, desencorajamento imputado à mulher para que ela não aborte, levando-a, em alguns casos, à forçosa busca pelo setor jurídico2121 Harries J, Gerdts C, Momberg M, Greene Foster D. An exploratory study of what happens to women who are denied abortions in Cape Town, South Africa. Reprod Health 2015; 12:21..

As mulheres que buscam serviços de saúde em processo de abortamento já costumam esperar certas atitudes de caráter punitivo e discriminatório, o que pode estar associado à demora em procurar o serviço, inclusive nos casos em que ocorrem complicações. Nesta pesquisa, as mulheres protelaram até o limite a resolução de modo isolado evitando exposição ao serviço de saúde, com sofrimento, apreensão, medo da morte e da divulgação da sua condição de mulher que realizou um aborto.

O ambiente institucional legitima a violação de direitos quando profissionais de saúde impõem seus próprios valores, colocando-se acima do direito da mulher de tomar decisões sobre seu corpo e sobre a sua vida. Foi dessa realidade que as mulheres participantes deste estudo buscaram se defender, mas o desfecho de cada processo de abortamento exigiu que algumas buscassem a rede oficial de saúde ou clínicas particulares, inscrevendo em suas histórias as marcas da atenção recebida.

Sendo assim, os cuidados que se relacionam à atenção à mulher no abortamento são delineados por profissionais que atuam nesses serviços, cujas atitudes influenciam o contexto do acesso à saúde2222 Birdsey G, Crankshaw TL, Mould S, Ramklass SS. Unmet counselling need amongst women accessing an induced abortion service in KwaZulu-Natal, South Africa. Contraception 2016; 94(5):473-477.. A atenção ao abortamento baseada nos conceitos de humanização, requer uma prática ética que norteie os direitos de dignidade da pessoa humana, livre da discriminação ou dificuldade no acesso ao serviço de saúde2323 Brasil. Presidência da República. Casa civil. Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 2011. Regulamenta a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Diário Oficial da União; 2011..

A qualificação da atenção é requerida pela integralidade, um dos princípios do SUS e que norteia a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM). Na atenção à saúde da mulher implica garantir o acesso às ações resolutivas, valorizando-se o contexto em que mulheres vivenciam suas experiências com “acolhimento e escuta sensível de suas demandas, valorizando-se a influência das relações de gênero, raça/cor, classe e geração no processo de saúde e de adoecimento das mulheres”2424 Coelho EAC, Andrade MLS, Vitoriano LVT, Souza JJ, Silva DO, Gusmão MEN, Nascimento ER, Almeida MS. Associação entre gravidez não planejada e o contexto socioeconômico de mulheres em área da Estratégia Saúde da Família. Acta Paul Enferm 2012; 25(3):415-422..

Entre os tipos de violência, a caracterizada por ações de negligência, discriminação, agressão verbal, violência física e até violência sexual conformam a moldura da violência institucional2525 D'Oliveira AFPL, Diniz SG, Schraiber LB. Violence against women in health-care institutions: an emerging problem. Lancet 2002; 359(9318):1681-1685.. Essa pode ser considerada como fenômeno complexo, uma vez que envolve inter-relações sociais, alicerçadas sob parâmetros da consciência e da subjetividade2626 Minayo MCS. Violência e Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2010..

Tais afirmações se coadunam com os resultados desta pesquisa que confirmam distanciamento e aridez das relações entre profissionais e mulheres em situação de abortamento sendo que, estas precisam de cuidados, independentemente se estão em municípios de pequeno, médio ou grande porte. Inclui-se a não facilitação, por meio de indicação e/ou encaminhamento a serviços de referência, para viabilizar ultrassonografia ou outros procedimentos médicos, conforme se constata no discurso das participantes.

A violência pode ser caracterizada como abuso de poder presente na relação profissional/usuária, e se manifesta a partir da omissão de informações, do atraso em respostas solicitadas e na não realização de terapias requeridas para aquele momento2727 Santos LJRP, Barbosa KGN. Conceituações do termo "violência obstétrica" na área da saúde. Concilium 2022; 22(7):451-465.. Inserem-se, nesse rol, negligências, discriminação, agressões, uso inadequado de tecnologias, uso de intervenções desnecessárias com forte potencial de risco à saúde da mulher2828 Guimarães LBE, Jonas E, Amaral LROG. Violência obstétrica em maternidades públicas do estado do Tocantins. Rev Estud Fem 2018; 26(1):e43278..

A violência obstétrica adquire contornos específicos nas diferentes realidades enfrentadas por mulheres e, em situação de abortamento, ocorre nas pessoas que carregam consigo demandas de ordem física, emocional e psicológica. Tal violência se dá sob a negação do acolhimento e do respeito à dignidade da mulher, fundamentais para mitigar os riscos à sua vida, promover um ambiente de confiança e garantir o acesso aos cuidados de saúde adequados. Na realidade estudada, a atenção à saúde das mulheres que realizaram aborto dá, no sistema público, a garantia de proteção, mas lhes são impressos estigmas que as acompanharão.

Em todo o mundo, a estigmatização do aborto interfere nas práticas dos serviços, em especial no que se refere à incorporação de aconselhamento sobre contracepção pós-abortamento. É possível citar como exemplos, os Estados Unidos, em que essas barreiras ainda limitam o acesso na prática do aconselhamento; a Escócia, em que o aborto é oferecido pelo Serviço Nacional de Saúde, todavia, quase sempre com suas demandas excedidas, dificulta os diálogos sobre contracepção; e o Quênia em que a população tem um difícil acesso aos serviços e métodos para o planejamento reprodutivo, bem como há uma escassez no que se refere a insumos que produzam educação sexual resultando, assim, em um reduzido uso de método contraceptivo entre as mulheres desse país2929 Thompson KMJ, Speidel JJ, Saporta V, Waxman NJ, Harper CC. Contraceptive policies affect post-abortion provision of long acting reversible contraception. Contraception 2011; 83(1):41-47..

No tocante ao acesso da mulher em processo de abortamento ou pós-aborto aos cuidados em serviços do SUS, no Brasil, há avanços, sobretudo a partir da PNAISM. A atenção é melhor delineada com a publicação da Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento e suas reedições3030 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Atenção Humanizada ao Abortamento: norma técnica. Brasília: MS; 2005..

Desse modo, no campo das políticas públicas, há proposições para reorganização dos serviços no âmbito do SUS e para atuação de profissionais em situações de abortamento, com garantia de acesso, acolhimento, escuta sensível e resolutiva, congruente com as necessidades das mulheres, o que se traduz em integralidade do cuidado. Tais ações se refletem na redução de complicações do abortamento, com proteção às mulheres contra danos físicos e psicológicos e dão a direção para o planejamento reprodutivo.

Portanto, o modo como se dá a atenção obstétrica impacta na saúde e na vida da mulher em situação de abortamento e que busca pelo serviço de saúde. Além disso, atitudes de caráter desrespeitoso e abusivo caracterizam-se como violência obstétrica perpetrada por relações de poder entre profissionais e usuárias em processo de abortamento. Dessa maneira, práticas são orientadas por referências que se sobrepõem à ética necessária a atenção em saúde, subestimando a defesa da vida de mulheres que precisam do cuidado na rede de atenção e, assim, as distanciam do cuidado necessário para assegurar-lhes proteção à saúde e à vida.

A experiência com o aborto no Brasil, em razão da clandestinidade, cria nas mulheres o receio da exposição, o que constitui limites para o estudo, restringindo também o número de participantes, mas a técnica utilizada para se ter acesso às mulheres e a liberdade de escolha da estratégia para narrar seus itinerários abortivos garantiram o êxito desta pesquisa. Esse aspecto poderia constituir uma limitação também para comparações entre acesso e experiência nos serviços de saúde, por mulheres de três municípios de portes diferentes. Todavia, a experiência das participantes permitiu visualizar um contexto comum de vulnerabilidade de gênero, social e programática.

Conclusão

Os resultados deste estudo evidenciam que disparidades sociais e de gênero continuam a influenciar os itinerários abortivos, desfavorecendo, sobretudo, as mulheres dos estratos sociais mais baixos, que não conseguem ter acesso aos serviços particulares clandestinos, considerados de menor risco, recorrendo a métodos inseguros. Salientam também que a atenção às mulheres em processo de abortamento como parte do itinerário abortivo é demarcada por violência obstétrica perpetrada por profissionais dos serviços, por atitudes que negligenciam suas demandas e causam constrangimentos. Logo, há uma apreensão das mulheres de que serão desrespeitadas, o que se concretiza de diferentes modos e as leva a postergar a busca pelo serviço de saúde.

Sob a lente de gênero, entende-se que muitos entraves ainda ocorridos na atenção à saúde de mulheres em situação de abortamento estão atrelados mais a valores morais, religiosos e de gênero do que às restrições legais para o procedimento, tendo em vista que mulheres chegam aos serviços de saúde, comumente em finalização do abortamento.

Portanto, os resultados da pesquisa revelam que as políticas públicas, embora construídas sob os princípios dos direitos reprodutivos, não têm conseguido transformar a atenção às mulheres em situação de abortamento nas realidades estudadas. Estas se mantêm sob a influência de sistemas estruturantes de mentalidades e de práticas em saúde que reproduzem violência obstétrica e de gênero. A estigmatização de mulheres submetidas ao abortamento desvela uma de suas faces e converge para similaridades com a realidade de outros países, conforme se constata na literatura científica.

A erradicação da violência obstétrica é um passo fundamental para garantir que as mulheres tenham acesso aos serviços de saúde seguros, à informação adequada sobre métodos contraceptivos e educação sexual, além de assegurar o respeito à autonomia e à dignidade das mulheres.em todas as circunstâncias. Para tal, é necessário o fortalecimento de políticas públicas e marcos legais que promovam essas práticas.

Garantir o acesso e ampliar a rede de serviços, investir em formação de profissionais, introduzir o telecuidado, realizar o aconselhamento para o uso de contraceptivos e fazer o seguimento clínico com escuta sensível e diálogos sem juízos de valor, criar e fazer cumprir diretrizes oficiais para a atenção à mulher em situação de abortamento são algumas das condições para qualificar a atenção.

O nó crítico está em como intervir na rede de atenção, no intuito de desconstruir visões discriminatórias de profissionais de saúde sobre as mulheres que abortam. É preciso que assumam atitudes éticas, acolhedoras e resolutivas, compatíveis com a integralidade da atenção de modo a proteger a vida das mulheres e minimizar danos físicos e emocionais, quando uma gravidez não planejada tem o aborto como desfecho.

Este estudo tem como diferencial, ter sido realizado em municípios cujas características de acesso à atenção à saúde se alteram em função do porte (pequeno, médio e grande). Em seus serviços, mulheres que percorreram itinerários abortivos no sigilo e na clandestinidade, buscaram proteção à vida, mas essa garantia deu-se sob o ônus de serem submetidas a um sistema simbólico e de valores que, a despeito de políticas públicas, contrariam a ética profissional e negam os direitos reprodutivos como direitos humanos.

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  • Financiamento

    Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Editores-chefes:

Maria Cecília de Souza Minayo, Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Set 2024

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2023
  • Aceito
    16 Out 2023
  • Publicado
    18 Out 2023
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