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Dificuldades da relação médico-paciente diante das pressões do "mercado da saúde"

Difficulties of the relationship doctor-patient before the pressures of the "market of the health"

OPNIÃO OPINION

Dificuldades da relação médico-paciente diante das pressões do "mercado da saúde"

Difficulties of the relationship doctor-patient before the pressures of the "market of the health"

Otávio Cruz Neto

(in memoriam)

Departamento de Ciências Sociais da Escola Nacional de Saúde Pública/ Fiocruz

Otávio Cruz Neto foi, até outubro deste ano, pesquisador titular da ENSP/Fundação Oswaldo Cruz. A morte por Aids o ceifou em plena maturidade pessoal e intelectual, quando seu espírito crítico estava no auge de seu aguçamento. Otávio poderia ser caracterizado como um observador pragmático e implacável que reagia, instantaneamente, ao que considerava violência institucional do sistema de saúde. Foi um paciente atípico que, por vivenciar as dificuldades de acesso, de precisão de diagnóstico e das relações com os profissionais médicos, nunca poupou críticas ao setor e nem deixou de questionar tudo o que dizia respeito ao seu tratamento. Para ouvir sua opinião sobre a relação médico-paciente é preciso fazer uma pausa frente a qualquer discurso acadêmico ou burocrático e aproveitar as nuances e distinções de seu pensamento, que é, antes de tudo, uma lição de vida.

A revisão crítica das relações entre pacientes e médicos, além de necessária, deve ser constante, uma vez que esse é o espaço mais importante das relações humanas. Aí estão contidas dinâmicas de enfrentamento e de restabelecimento do equilíbrio do processo saúde-doença. Vamos focalizar dois aspectos.

1) Formação/Especialização: os profissionais médicos, em sua maioria, integram e participam da funcionalidade do "mercado da saúde". Os novos profissionais, na busca por esse acesso, enfrentam problemas já solidificados. Ávidos por conquistar seu espaço nesse "mercado", os jovens não poupam esforços, desde a graduação, para adentrar o campo e participar da competição. Sem tempo de amadurecer seus conhecimentos treinando-se com profissionais experientes, encaram como caminho lógico cursos de especialização que, muitas vezes, são mal-estruturados e só aumentam o círculo de "especialistas" que dividem entre si o corpo humano, o que vem gerando o distanciamento da "boa clínica geral". O processo de interação dos profissionais é gradualmente substituído pelo domínio exclusivo de seu próprio "minifúndio". Na condução do tratamento, freqüentemente, após consecutivos desacertos e transtornos na "busca de vida" enfrentada pelo paciente, há uma opção de abandono/separação entre ambos ou o médico percebe suas incoerências e tenta construir um processo interativo para melhor entender e atender aos anseios do ser humano que se encontra sob seus cuidados. A vida com saúde é algo que só pode ser possível se for constantemente reinventada, num agir compartilhado entre os diferentes saberes. Por isso, ao mesmo tempo que reconhecemos o "saber médico" na estrutura social como algo importante, imprescindível, entendemos que deva ser bem conduzido e apropriado por todos. No mesmo sentido, questionamos seu uso indevido, pois, freqüentemente, atendendo a um "mercado da saúde" frenético por lucros, a doença é vista como um potencial gerador de rendimentos. Igualmente, a demanda do mercado reforça o tão debatido "poder do médico", que se realiza não pelo compartilhamento dos saberes e de excelentes pesquisas básicas e aplicadas, mas por meio de disputas pessoais previamente definidas nos espaços públicos e privados, do empoderamento das "vaidades pessoais". Em conseqüência, o resultado é o descaso com o paciente, o menosprezo pelo seu sofrimento e as escassas buscas de alternativas que promovam sua saúde e garantam a assistência necessária. O certo é que, no campo da saúde/doença, o saber e o agir médicos são cada vez mais apropriados como meros produtos de mercado e geradores de lucros. Em alguns casos, o "estoque de conhecimento e de experiência" é desvalorizado em detrimento do número e do tempo das consultas contabilizadas. O rodízio de médicos para se descobrir uma conduta mais apropriada e o predomínio dos procedimentos laboratoriais no desenho e na definição do diagnóstico vêm banalizando o papel e o lugar do paciente neste processo através: (a) da limitação da capacidade de escuta, que ficou exclusivamente para psicólogos, analistas e terapeutas; (b) da redução do tempo de consulta; (c) da limitação ou interdição de escuta de informações subjetivas; (d) da dificuldade no exercício interpretativo dos achados; e (e) da perda da referência como ponto essencial. Vai-se um paciente, surge outro cliente? Quem pode e vai querer ficar com quem?

2) A relação pessoal dos médicos com os laboratórios das indústrias farmacêuticas, hoje, não pode ser descartada nem para o avanço do conhecimento das doenças e nem para avaliação da eficácia dos medicamentos. É uma prática que traz benefícios. O que a sociedade, em seus diferentes segmentos, tem de questionar é a forma, os objetivos e a alta capacidade manipulatória dos profissionais desses laboratórios. Em muitos casos, são eles que definem a postura/receita médica em um espaço de tempo que agride os pacientes, "furando", de maneira desrespeitosa, suas filas de marcação e de espera. Há sempre novos produtos gerados em tão curto espaço de tempo, que o profissional médico, com sua diversificada rotina de trabalho visando a melhores salários, mal tem como alimentar seu contínuo processo de ampliação, revisão e atualização de conhecimento. Em contrapartida, assistimos a vários profissionais enquadrando-se, exemplarmente, às exigências do "marketing farmacêutico". Esse campo de relações é diferencialmente disputado pela (a) indústria privada, num setor que mais fatura no mundo e tem o olhar totalmente fechado para o significado e a importância social dos medicamentos e pelo (b) setor público, que só recentemente vem crescendo e, mesmo assim, timidamente. Por anos a fio, os gestores de políticas públicas e especialmente os do setor saúde não consideraram essencial a existência de uma eficaz rede pública de produção e de distribuição de produtos essenciais à prevenção e à manutenção da saúde de todos. A efetivação dessa proposta demanda: valorização profissional, infra-estrutura compatível, equipe profissional diversificada, planejamento adequado da produção, controle de qualidade do produto em suas distintas etapas de criação/produção, pesquisa continuada e distribuição garantida. Este é o momento de se retomar o esforço da conquista da saúde como tarefa do Estado e direito de todos, reforçando o espaço público de produção. É também para isso que o cidadão paga seus impostos, visando ter acesso a uma rede pública de qualidade e respeitosa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    2003
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