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DEBATEDORES DISCUSSANTS

Lacunas da Pesquisa Nacional do Aborto e Agenda para o Futuro

Shortcomings in National Research on Abortion and the Agenda for the Future

Os comentários de Maria Andrea Loyola, Soraya Fleischer e Teresa Robichez de Carvalho Machado são muito bem-vindos. Eles indicam os limites da Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), sugerem temas que ainda precisam ser mais bem explorados e interpretam os resultados da PNA em termos de uma agenda política para que o aborto deixe de ser tratado exclusivamente como uma hipótese moral e passe a ser visto como um problema de saúde pública. Nós reconhecemos esses limites e concordamos com a importância dessa agenda.

Maria Andrea Loyola levanta pontos cruciais ao debate sobre aborto no Brasil e mostra uma série de lacunas que as duas fases da PNA não foram capazes de preencher. Entre elas, estão decisões maiores de natureza reprodutiva. O aborto é apenas um evento no itinerário de decisões reprodutivas das mulheres e ainda sabemos pouco sobre a rotina que o antecede. Também sabemos pouco sobre o que sucede aos abortos, como eles são incorporados nas histórias de vida das mulheres, como afetam as composições de família, ou mesmo o que eles, como qualquer outra decisão reprodutiva, permitem ou deixam de permitir.

O comentário de Loyola vai além de uma microssociologia do aborto. Seu argumento é que a questão do aborto não deve ser tratada sob a ótica das moralidades privadas, mas vista como uma questão política de grandes dimensões. É fácil concordar com esse argumento e até mesmo estendê-lo. Por trás do debate sobre aborto não estão apenas julgamentos pessoais, mas um confronto entre a imposição de valores de uma minoria e a diversidade de crenças do restante da população. Neste jogo entre moral privada e valores públicos, as religiões pressionam o Estado a reconhecer suas crenças como legítimas, adotando-as, por exemplo, no direito penal ao criminalizar o aborto. Portanto, não se trata apenas de se reconhecer o direito ao aborto como matéria de ética privada, mas de resistir à interferência da religião como ferramenta para o controle de políticas de saúde do Estado.

Soraya Fleischer também chama a atenção para pontos importantes. Primeiro, para o fato de que os resultados da PNA estão limitados às áreas urbanas do país. É provável que particularidades das áreas rurais façam com que os percursos percorridos pelas mulheres sejam muito diferentes do que se encontrou até o momento em estudos realizados em espaços urbanos. Para a formulação de políticas de saúde, essas diferenças podem ser muito relevantes, pois ao que tudo indica o acesso das mulheres rurais aos métodos mais seguros de abortamento, bem como ao tratamento de saúde pós-aborto, é menor e, portanto, o aborto entre elas é mais arriscado.

Além disso, Fleischer assinala uma lacuna: as diferenças entre discursos e práticas ou, mais exatamente, entre valores e práticas. Boa parte das técnicas de entrevista da PNA - em particular, a técnica utilizada na PNA-urna e a entrevista reservada intermediada por gatekeepers na PNA-entrevistas - busca meios de superar os tabus de falar sobre o aborto, ou seja, de superar barreiras do discurso para obter informações sobre práticas de segredo1. Mas o foco da PNA não foi sobre os valores e as motivações para abortar, ou sobre como apoiar uma mulher que deseja abortar, ou ainda sobre como melhor providenciar tratamento de saúde para as mulheres em abortamento. Não há dúvidas de que ainda é preciso saber mais sobre esses temas para assegurar o bem-estar e a saúde das mulheres, sejam quais forem suas escolhas reprodutivas.

Quando transferida para o debate sobre a formulação de políticas nacionais de saúde, a etnografia de Fleischer nos mostra que a relação entre valores e práticas é intermediada por uma ética da responsabilidade. Assim como há parteiras que assumem um discurso e professam valores contrários ao aborto, mas que ainda assim reconhecem deveres de auxílio às mulheres, não há justificativa moral razoável para que profissionais da saúde sobreponham seus valores pessoais às suas responsabilidades éticas de assistência a mulheres que desejam abortar. A aproximação entre a assistência ao aborto e a ética da responsabilidade provoca um dos temas urgentes à agenda de saúde pública em aborto no Brasil - a recusa de assistência às mulheres por profissionais de saúde que declaram objeção de consciência ao abortamento2.

Igualmente importantes são os pontos levantados nos comentários de Teresa Robichez de Carvalho Machado, entre eles o de que um desafio imediato é sobre como usar os resultados de pesquisa para informar medidas legislativas que reduzam o descompasso entre a norma legal vigente e a prática social. Se, ao longo da vida reprodutiva, um quinto das mulheres fez aborto, muitas com apoio de outras mulheres, companheiros ou familiares, o que legitima a criminalização? Há uma diferença entre reprovação moral no discurso, um fenômeno já identificado por pesquisas de opinião sobre aborto, crime e práticas sociais. O aborto é uma prática comum entre as mulheres, cujos saberes são compartilhados e mantidos como uma cultura reprodutiva feminina e sigilosa. Indiferentemente à lei penal, as mulheres abortam. Não sabemos como elas descrevem para si e para os outros a moralidade do aborto, mas a magnitude de que 1 em cada 5 mulheres já realizou ao menos um aborto nos mostra o quanto essa é uma prática comum na vida reprodutiva.

Seria possível levantar uma objeção a esse argumento defendendo que, na decisão pela legitimidade de uma lei, devem prevalecer princípios universais e absolutos. Essa seria uma saída no mínimo ingênua, porque a presunção de que em uma questão como essa haveria uma ética universal está longe de ser verdadeira. Além disso, não se pode ignorar que o debate legal deve também pautar-se por questões de reconhecimento da diversidade e proteção às necessidades em saúde. Combinando-se os resultados das duas etapas da PNA, não seria exagero dizer que entre um terço e metade da população brasileira já fez, participou diretamente ou esteve muito próxima de um aborto. Resta saber o que fazer com esse dado. Não parece razoável, nem sequer factível, julgar e punir todas as mulheres, amigas, companheiros e parentes que um dia tomaram parte ativamente na realização de um aborto. Mais do que isso, cabe saber como o Estado deve amparar as famílias de milhões de pessoas punidas se a criminalização for tomada ao pé da letra.

A criminalização não é apenas uma insensatez legal. Ela é um impedimento para o bom funcionamento das políticas de saúde, como Teresa Machado destaca. O descompasso entre lei e prática cria um problema objetivo de saúde no Brasil: o aborto é realizado com grande frequência, mas sob condições de risco, e o tratamento das complicações é protelado ao máximo, por receio da punição. O atendimento tardio é menos eficaz, mais caro e menos capaz de evitar sequelas do que ocorreria caso o medo da punição não fosse uma barreira para a busca de assistência. Ou seja, efetivamente o que a legislação atual faz é dificultar o funcionamento das políticas de saúde no Brasil.

Os comentários deixam claro que existe uma série de obstáculos para a pesquisa sobre aborto. Não só porque o tema é considerado um tabu moral e religioso, mas também porque, por trás do debate sobre ele, está um confronto muito maior sobre a laicidade do Estado e o uso da religião para propósitos exclusivamente políticos. Também há obstáculos para a incorporação dos resultados de pesquisa na elaboração de políticas públicas. Evidências sólidas são, muitas vezes, recusadas por motivos doutrinários, quando não contrapostas a um tipo de pseudociência cujo propósito é proselitismo moral. Assim como ocorreu com muitos temas controversos, a pesquisa sobre aborto tem um papel de longo prazo: o de distinguir o que pode ser considerado fato razoável do que parece crença infundada.

  • 1. Diniz D, Medeiros M. Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna. Cien Saude Colet 2012; 15(Supl. 1):959-966.
  • 2. Diniz D. Objeção de consciência e aborto: direitos e deveres dos médicos na saúde pública. Rev Saude Publica 2011; 45(5):981-985.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Ago 2012
    • Data do Fascículo
      Jul 2012
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