Open-access Parcerias na saúde: as Organizações Sociais como limites e possibilidades na gerência da Estratégia Saúde da Família

Resumo

Estudo de caso realizado no município do Rio de Janeiro sobre o modelo de gestão por Organizações Sociais na Estratégia Saúde da Família. Os objetivos foram caracterizar e analisar aspectos do sistema de governança adotado pela Secretaria Municipal de Saúde e identificar limites e possibilidades desse modelo como uma alternativa de gestão no Sistema Único de Saúde. O estudo tem abordagem qualitativa, realizado por meio de revisão bibliográfica, análise documental e entrevistas com informantes-chave. A adoção desse modelo de gestão foi facilitadora da expansão do acesso à atenção primária por meio do aumento da cobertura potencial da ESF que passou de 7,2% da população, em 2008, para 45,5% em 2015. Os resultados sugerem que algumas práticas da lógica contratual necessitam ser aperfeiçoadas como a negociação e a responsabilização com autonomia dos prestadores. A avaliação e o controle têm como foco os processos e não os resultados e não houve incremento da transparência e do controle social. O sistema de incentivos ao desempenho foi apontado como indutor de melhorias no processo de trabalho das equipes de saúde. Conclui-se que a capacidade regulatória da gestão municipal necessitaria ser aperfeiçoada, entretanto há um importante aprendizado em curso.

Estratégia Saúde da Família; Organizações Sociais; Gestão em saúde; Parcerias Público-Privadas; Contratos

Abstract

This is a case study in the municipality of Rio de Janeiro about management in the Family Health Strategy based on the Social Organizations model. The aims were to characterize and analyze aspects of the governance system adopted by the Rio de Janeiro Municipal Health Department and identify limits and possibilities of this model as a management option in Brazil’s Unified Health System. A qualitative study was performed based on a literature review, document analysisand interviews with key informants. This management model facilitated the expansion of access to primary healthcare through the Family Health Strategy in Rio – where the population covered increased from 7.2% of the population in 2008 to 45.5% in 2015. The results showthat some practices in the contractual logic need to be improved, including negotiation and accountability with autonomywith the service suppliers. Evaluation and control has focus on processes, not results, and there has not been an increase in transparency and social control. The system of performance incentives has been reported as inducing improvements in the work process of the health teams. It is concluded that the regulatory capacity of the municipal management would need to be improved. On the other hand, there is an important and significant process of learning in progress.

Family health strategy; Social organizations; Health management; Public-private partnerships; Contracts

Introdução

As transformações que ocorreram como consequência da globalização econômica na relação Estado-sociedade-economia, impulsionaram a formulação e a implementação de Reformas Administrativas inspiradas na New Public Management desde meados da década de 1980, nos países centrais, e na América Latina na década seguinte. Na política de saúde, destaca-se a redefinição das formas de intervenção do Estado por meio da contratação de organizações privadas para a execução dos serviços1. O foco era a redução da atuação estatal na execução direta de atividades consideradas não exclusivas do Estado, por um lado, e o incremento da função reguladora e promotora, por outro2.

No Brasil, enquanto o Governo Federal redefinia a atuação do Estado na economia e na sociedade, em um ambiente de crise econômica e fiscal, o Sistema Único de Saúde (SUS) era implantado com ênfase na descentralização das ações para a esfera pública municipal e, na década seguinte, com a expansão acelerada e em grande escala dos serviços de atenção primária com a Estratégia Saúde da Família (ESF). Tudo isso ocorreu em um ambiente de restrição de gastos com pessoal, imposta pela Lei de Responsabilidade Fiscal3 que, ao fazer parte de uma tentativa de reforma mais ampla do Estado, desconsiderou as especificidades do setor saúde e da Atenção Primária à Saúde (APS).

A incoerência era explícita, pois limitar gastos frente à necessidade de incorporação de profissionais para atender às novas demandas inviabilizava o avanço do SUS. Isto induziu os gestores públicos a buscarem alternativas para garantir a expansão da atenção à saúde por meio de parcerias com instituições da sociedade civil e garantir um mínimo de governabilidade diante das pressões da sociedade voltadas para a ampliação do acessado aos serviços públicos de saúde, direito adquirido na Constituição de 1988. Um exemplo disso foi a multiplicidade de vínculos empregatícios, a maioria precários, sem proteção da Seguridade Social, utilizados na contratação de profissionais da ESF fora do aparelho de Estado e dentro de alguma organização da sociedade civil (associação de moradores, igreja, cooperativa ou fundação de apoio).

Soma-se a esse contexto, o entendimento de diversos gestores públicos de que a descentralização e a desconcentração da ação estatal, com o concomitante estabelecimento de um modelo contratual competitivo, aumentaria a capacidade de o Estado implementar, de forma eficiente, as políticas públicas.

Nesse cenário, vários municípios expandiram o acesso aos serviços de saúde por meio da parceria com as Organizações Sociais de Saúde (OSS), entidades do terceiro setor que prestam serviços mediante contratos de gestão realizados com a administração pública direta e que discriminam objetivos e metas a serem alcançados. Esse modelo teria duas características principais. A primeira seria a ampliação da autonomia decisória em termos financeiros e organizacionais em relação aos proprietários públicos, o que incentivaria a flexibilização administrativa para romper a rigidez da estrutura organizacional com compartilhamento na autoridade e na responsabilidade. A segunda, o incremento do controle público dessas entidades por meio do fortalecimento de práticas voltadas ao aumento da participação da sociedade na formulação e na avaliação do desempenho da OSS4.

No âmbito federal, as OSS foram regulamentadas na forma da Lei nº 9.637 de 15 de maio de 1998, mas sua implementação aconteceu principalmente nas esferas estadual e municipal que, utilizando-se das autonomias legislativas, instituíram versões locais. Estudo publicado por Silva5 encontrou Leis de Qualificação de OSS em 56 entes da federação em 16 estados e 40 municípios. Destes, 15 localizam-se no estado de São Paulo; 05 no Rio Grande do Sul; 04 no Paraná; 03 nos estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Mato Grosso; 02 no Ceará, além dos municípios de Goiânia (GO); Joinville (SC); Parnaíba (PI); Petrolina (PE) e Vitória (ES).

Tal movimento significou o estabelecimento de uma nova arena de atuação do governo e da sociedade denominada “espaço público não estatal”6. A proliferação de diferentes modelos jurídicos, a ampliação da presença do setor privado na execução de serviços públicos, e o consenso sobre a necessidade de melhorias no desempenho das políticas públicas produziu, a partir dos anos noventa, um importante debate sobre a governança pública. Ou seja, mudanças na forma da gestão do que é público levaram à ampliação do conceito de governança, como expressão dessas transformações.

De acordo com Rhodes7, o conceito de governança, originariamente adotado no ambiente das grandes corporações privadas, passa a ser utilizado também na esfera pública com a ideia de transferência para o setor público dos conhecimentos gerenciais desenvolvidos no setor privado. Relaciona-se com a delegação de poder, ou seja; qualquer empresa tem governança corporativa, qualquer entidade que apresenta compartilhamento de poder tem a sua governança estabelecida.

Dentre as diversas acepções, não necessariamente excludentes, este estudo utiliza a conceituação de Matias-Pereira8 para o qual o tema governança no setor público tem como referência as práticas do modelo da administração pública gerencial. A boa governança seria a ampliação da capacidade do governo em articular atores e forças sociais, com vistas ao desenvolvimento de formas de parceria público-privado.

Além disso, o “sistema de governança” seria composto de mecanismos e práticas de cooperação sustentados numa política de informação, consulta e participação, como garantia da oferta de bens e serviços de qualidade para a população. Ele se daria por meio de formas colaborativas e transparentes, em uma nova estruturação das relações entre a administração pública, o setor privado e as organizações do terceiro setor9.

Nessa perspectiva, a implementação do modelo de OSS na Atenção Primária à Saúde (APS) institui uma nova governança pública entre o Estado (financiador e regulador) e o terceiro setor (prestador de serviços de saúde). Entretanto, os limites dessas parcerias, a forma adequada de sua constituição e funcionamento, bem como seus resultados, continuam suscitando o debate. Assim, este estudo objetivou caracterizar e analisar aspectos do sistema de governança da APS adotado pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS) do município do Rio de Janeiro, como contribuição ao debate acerca das parcerias do Estado com o terceiro setor na execução das políticas públicas de saúde.

A complexidade das relações de causa e efeito inerentes aos processos organizacionais e interorganizacionais do setor público justificaria o permanente esforço de acompanhamento, interpretação e avaliação dos novos modelos gerenciais no SUS.

Estratégia metodológica

A investigação sobre os limites e as possibilidades do modelo de OSS na ESF foi realizada por meio de um estudo de caso, de abordagem qualitativa, que permitiu a confrontação de um modelo teórico estruturado com uma realidade empírica. Trata-se de um tema atual, ainda não consolidado, com diversos discursos em disputa. O que pretendeu-se foi apreciá-lo com “objetividade”, termo definido por Sousa10 como decorrente “da aplicação rigorosa e honesta dos métodos de investigação que nos permitem fazer análises que não se reduzem à reprodução antecipada das preferências ideológicas daqueles que a levam a cabo”.

Nesse sentido, elaborou-se um plano de análise do sistema de governança, a partir da revisão sobre estudos críticos ao modelo de parcerias público-privadas em saúde9. As dimensões e respectivas categorias adotadas para o plano de análise foram: (i) lógica contratual: processos de negociação; responsabilização com autonomia do prestador; e sistema de incentivos ao desempenho; (ii) regulação: normatização; monitoramento; avaliação e controle; (iii) transparência e controle social. Esse plano informou um modelo teórico de alcance da boa governança na relação entre Estado e OSS (Quadro 1). Verificou-se em que medida o caso estudado se aproxima ou se distancia do modelo teórico, não como plano rígido de análise dessa política, mas como ferramenta de auxílio na compreensão da realidade.

Quadro 1
Plano de análise de aspectos do Sistema de Governança da ESF do Rio de Janeiro, 2013.

Esse plano orientou: (i) a análise dos documentos oficiais da SMS, quais sejam: editais de convocação pública das OSS; contratos de gestão (CG); arcabouço jurídico de criação e regulamentação das OSS; relatórios de gestão e documentos do Conselho Municipal de Saúde (CMS); (ii) a construção do roteiro de entrevistas9; (iii) a escolha dos vinte e três informantes-chave. O Quadro 2 apresenta os perfis gerenciais e o lugar institucional dos entrevistados.

Quadro 2
Perfil gerencial dos entrevistados por lugar na hierarquia institucional e cargo.

As entrevistas e a análise documental foram realizadas em 2013. Esta última foi complementada em 2015.

A análise da implementação desse processo, de significativa dimensão e complexidade em curso há seis anos na SMS, requer conclusões prudentes que visam muito mais subsidiar os esforços de monitoramento do que realizar julgamentos de valor sobre os acertos e os erros de decisões e ações de governo. Há obstáculos e, sobretudo, um inequívoco processo de aprendizagem em curso.

Resultados e discussão

Reorganização da Atenção Primária à Saúde

O município do Rio de Janeiro iniciou a reestruturação da APS em 2009, em três dimensões complementares: (i) maior participação da saúde no orçamento municipal e maior participação da APS no orçamento da saúde, com aumento expressivo do recurso investido; (ii) mudança do modelo de atenção por meio da expansão da ESF e instituição dos Territórios Integrados de Atenção à Saúde – TEIAS; e (iii) adoção do modelo de gestão com OSS, que pela utilização das regras do direito privado agilizou a contratação de profissionais, a aquisição de insumos e equipamentos e a construção de novas unidades de saúde.

O percentual das receitas próprias do município aplicadas na saúde passou de 15,7% em 2008 para 20,81 % em 2014. Em 2008, o percentual do gasto em APS em relação às outras subfunções vinculadas (vigilâncias em saúde e assistência hospitalar e ambulatorial) foi de 13,5%, aproximadamente 240 milhões de reais; em 2014 o percentual investido na APS foi de 31,8% e aproximadamente 1.233 milhões de reais11.

Em relação à ampliação do acesso, a cobertura potencial da ESF passou de 7,2% da população (132 equipes) em 2008, para 45,5% (843 equipes) em agosto de 201512. Esses resultados são significativos, se considerarmos as dificuldades inerentes à expansão da ESF em grandes centros urbanos brasileiros13. Os entrevistados atribuíram essa agilidade ao modelo de OSS e enfatizaram a morosidade dos processos na administração direta como um importante obstáculo à expansão dos serviços, como pode ser observado na fala a seguir de um gerente do nível central da SMS.

Eu tenho absoluta convicção que sem a ferramenta administrativa das OSS a gente não conseguiria fazer esse grau de transformação na velocidade que foi feita. Obviamente que a ferramenta seria inócua se não fosse o aumento dos recursos (GSMS).

Os serviços de saúde do Rio de Janeiro estão organizados em dez áreas programáticas (AP) onde se localizam as respectivas instâncias gerenciais no âmbito da APS – as Coordenações de Atenção Primária (CAP). Essas coordenações são responsáveis pela fiscalização dos contratos de gestão estabelecidos com as OSS para cada uma das áreas programáticas. Tais contratos foram celebrados a partir de dezembro de 2009 (Lei Municipal n° 5.026 de 19 de maio de 2009 e do Decreto nº 30.780 de 02 de junho de 2009) e de forma gradativa nas diversas AP até 2011. A consequente expansão da ESF ocorreu tanto por meio da implantação de ESF em unidades básicas de saúde pré-existentes quanto pela inauguração de novas unidades de saúde, denominadas ‘clínicas da família’.

Atualmente existem cinco OSS contratadas pela SMS para operacionalizar a ESF: Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM), Viva Comunidade (Viva), Instituto de Atenção Básica e Avançada em Saúde (IABAS), Instituto Gnosis e Fundação para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico em Saúde (Fiotec). O Quadro 3 sintetiza a distribuição regional das OSS e o cronograma de implantação dos contratos de gestão. As cinco áreas programáticas com clínicas da família inauguradas até 2010 conformaram o cenário empírico desse estudo, quais sejam AP 1.0; 2.1; 3.1; 5.2 e 5.3.

Quadro 3
Distribuição das OSS nas AP e período de contratualização, Rio de Janeiro, 2015.

Apresenta-se a seguir, aspectos do sistema de governança adotado pela SMS na ESF. A discussão foi desenvolvida a partir da análise da percepção dos entrevistados e dos documentos oficiais da SMS e do CMS. De modo geral, as entrevistas trouxeram informações importantes para a descrição do processo. Cabe destacar que, independente do lugar institucional, vínculo (celetista ou estatutário), e tempo de atuação na SMS, as percepções dos entrevistados sobre as diversas questões abordadas foram bastante homogêneas, apesar de terem sido expressas com maior ou menor profundidade, dependendo da trajetória profissional e visão crítica de cada um.

Contratualização: processo de negociação, sistema de incentivos ao desempenho e responsabilização com autonomia

A contratualização caracteriza-se pelas seguintes etapas: identificação de necessidades; estabelecimento de prioridades; verificação da capacidade instalada; negociação e fixação de objetivos e metas; acompanhamento e avaliação; e aplicação de sistema de consequências (incentivos e penalizações). Tais etapas, para serem bem sucedidas, necessitam de sistemas de informação adequados e de uma reestruturação organizacional interna, tanto dos financiadores quanto dos prestadores de serviços15.

As três categorias adotadas para análise da lógica contratual, quais sejam, processo de negociação, sistema de incentivos ao desempenho e responsabilização com autonomia, são imbricadas e complementares. A negociação entre as partes e o sistema de incentivos contribui para uma maior responsabilização do prestador, que por sua vez necessita de alguma autonomia para adequação dos processos à necessidade dos serviços e alcance do desempenho esperado. Por uma questão didática, esses aspectos são discutidos separadamente.

A negociação entre financiador e prestador, seja ele público ou privado, é uma importante etapa, pois estimularia a parceria na busca pelo melhor desempenho dos serviços. Entretanto, a percepção dos entrevistados e a análise do contrato de gestão (CG) revelaram que o processo de negociação encontra-se pouco presente na relação entre a SMS e as OSS, pois apenas algumas metas são pactuadas com as equipes de saúde.

Os indicadores e metas são pré-definidos pela Subsecretaria de APS. Não tínhamos governabilidade sobre nenhuma meta, mas esse ano, as clínicas foram chamadas para conversar sobre a parte variável 2, pois nenhuma unidade tinha conseguido atingi-las em três anos de expansão da ESF (GCF).

No edital de convocação pública das OSS constam os indicadores e as metas de desempenho a serem cumpridos pela gestão da OSS (indicadores gerenciais) e pelos profissionais de saúde (indicadores assistenciais). Ou seja, quando uma OSS concorre à gerência da ESF sabe previamente quais metas de desempenho deverá alcançar.

No contexto da APS no Brasil, se por um lado a área da saúde apresenta indicadores de resultados já consolidados, o que não é frequente nas demais áreas da administração pública, por outro, o reconhecimento da dimensão subjetiva do cuidado e a existência de profundas iniquidades em saúde, tornam pouco tangíveis a mensuração de ‘necessidades em saúde’; ‘capacidade instalada adequada’, ‘fixação de objetivos’ e, principalmente, de ‘resultados’. Ney et al.16 consideram que no Brasil haveria “ausência de uma ‘cultura de avaliação’ e negociação entre profissionais e gestores”, bem como pouco investimento e experiência acumulada em relação à avaliação de desempenho profissional e de contratualização de metas de melhoria da qualidade.

Nessa perspectiva, algumas precauções deveriam ser tomadas para que a contratualização se configurasse como uma estratégia de negociação e cooperação e que não ficasse reduzida a um instrumento de cobrança do cumprimento de metas. Isso limitaria a capacidade de inovação e a criatividade das equipes locais no exercício do cuidado em saúde. Dentre as precauções destacam-se17:

  • a necessidade de ajustes permanentes nos indicadores e metas escolhidos para a avaliação. Metas pouco ambiciosas não premiariam o bom desempenho e se muito elevadas, com abrangência de uma pequena área do processo de trabalho, poderiam provocar desmotivação nos profissionais, ou, ao contrário, conduzir à focalização das práticas;

  • sua construção gradual, em um ambiente de aprendizagem permanente e com o protagonismo dos profissionais de saúde;

  • a garantia de transparência na implantação do sistema de incentivos e clareza quanto aos objetivos e critérios de avaliação dos profissionais/prestadores.

Nesse sentido, considera-se que a não participação dos profissionais de saúde na definição dos indicadores e das metas reduziria o potencial do sistema de incentivos como um dispositivo que pretende, por meio de um modelo de gestão negociado, alcançar melhores padrões de desempenho18.

Enquanto no âmbito hospitalar a relação entre o financiamento e os resultados compõe o foco da lógica contratual, na APS o exercício da pactuação entre gerentes e profissionais de saúde deveria ser central, pois a proximidade com os usuários seria essencial na escolha de indicadores e metas que consigam medir, com alguma sensibilidade, a evolução e a efetividade de práticas de promoção, prevenção e assistência. A negociação contribuiria para substituir a relação hierárquica tradicional pela pactuação bilateral.

O sistema de incentivos ao desempenho das OSS adotado pela SMS é composto por indicadores e metas e se vinculam ao repasse trimestral de uma parte variável do recurso previsto no CG. Compreende três níveis de incentivo, também chamados de parte variável 1, 2 e 3: (1) à gestão da OSS: tem como objetivo induzir boas práticas na gestão e alinhá-las às prioridades definidas pela SMS; (2) às equipes de saúde da família: relacionado ao alcance das metas de acesso, desempenho assistencial, satisfação dos usuários e eficiência; (3) aos profissionais de saúde: relacionados à adequação e qualidade do acompanhamento de usuários com determinados agravos ou patologia, corresponde a até 10% do salário base de cada membro da equipe de saúde da família e saúde bucal.

Na perspectiva da Teoria da Agencia, o sistema de incentivos evitaria o comportamento oportunista das OSS e estimularia padrões de cooperação e de racionalidade coletiva em detrimento de padrões de comportamento que privilegiam interesses setoriais e individuais19. No entanto, Melo20 alerta para a grande complexidade do desenho de uma estrutura de incentivos.

O sistema de incentivos previsto na contratualização foi apontado pelos entrevistados como indutor: (i) de melhorias na qualidade do planejamento da equipe e estímulo à reflexão sobre o processo de trabalho; (ii) do melhor alinhamento das práticas entre os serviços; (iii) de competição positiva e troca de experiências entre equipes que alcançaram ou não as metas; (iv) da reorientação do cuidado na lógica da ESF; (v) e da melhor utilização do prontuário eletrônico do usuário.De acordo com a Teoria da Agencia esse é o objetivo do sistema de incentivos: induzir os profissionais (agentes) a alcançarem os resultados desejados pela SMS (principal).

Os entrevistados referiram também que o pagamento de uma parte variável promoveu mais motivação nos profissionais na medida em que o incentivo é considerado como reconhecimento do seu trabalho. As falas a seguir expressam essa percepção:

Sim, modificou, deu direcionalidade. Antes cada área da cidade conduzia de uma forma. Hoje que temos os indicadores da variável 2 e 3 a discussão saiu do nível gerencial e chegou nas equipes. A partir do momento que eles alcançaram a variável 3, surtiu um efeito muito bom na área, porque outras equipes que não tinham alcançado começaram a se movimentar, “o que eles estão fazendo para conseguir?”. Então foram vendo que o problema estava na organização do processo de trabalho. Então houve uma competição positiva e foram ajustando os processos (GSMS).

Sim, na variável 2 os indicadores se referem ao trabalho da equipe como um todo, se eu sou médico e trabalho de acordo com os protocolos, mas se o agente comunitário não fizer o trabalho dele a nossa equipe não vai alcançar a meta. Então ela traz esse senso de equipe forte que a Estratégia pede. E a variável 3 trata da qualidade do cuidado de cada profissional com aquele usuário, então reorienta as práticas, estimula a noção do território (GOSS).

Entre os entrevistados, a percepção sobre os processos de trabalho que mais avançaram variou, seja em função da formação e grau de maturidade das equipes na ESF, seja em função da capacidade de liderança e comunicação dos gerentes locais das clínicas de saúde. A categoria profissional na qual mais se observou melhoria no desempenho foi a dos agentes comunitários de saúde.

Muda sim, mudou muito o processo de trabalho. Eu vejo os agentes de saúde mais preocupados. Os agentes de saúde, apesar de estarem aqui desde 2009, não acompanhavam os cartões de vacina [...]. Mas como faz parte da variável 2, eles começaram a ter um contato com o cartão de vacina. No começo eles não davam muita bola, mas quando começaram a receber um dinheirinho a mais na conta, eles ‘opa!’ (GCF2).

Além dos pontos positivos, os entrevistados apontaram limitações no processo: deficiências nos relatórios produzidos a partir do prontuário eletrônico do usuário; dificuldade de entendimento de algumas equipes de que o alcance ou não das metas é diretamente relacionado à melhor organização do processo de trabalho; e a imposição dos indicadores e metas pela SMS, dificultando o trabalho dos gerentes em mobilizar os profissionais.

Os resultados sugerem que a remuneração de profissionais de saúde vinculado a indicadores de desempenho é mais um dispositivo de melhoria da qualidade nos serviços de saúde, mas só funcionaria adequadamente como parte de um conjunto de estratégias organizacionais que vão desde a formação adequada do profissional, seu compromisso ético e a instituição de espaços de educação permanente até a capacidade de comunicação e liderança dos gerentes locais e a existência de outros incentivos, não financeiros21.

Outro aspecto da lógica contratual é a delegação de autoridade, concessão de autonomia e controle posterior de resultados, o que aumentaria o grau de responsabilização das partes. No entanto, a autonomia concedida às OSS limita-se àquela decorrente do seu regime jurídico privado: contratação de pessoal e aquisição de insumos, equipamentos e serviços de acordo com as regras próprias do terceiro setor.

Se por um lado, esta é a principal motivação do gestor municipal para adoção do modelo de OSS no Rio de Janeiro, por outro, ao limitar a autonomia do prestador somente à esfera administrativa, afasta-se da lógica contratual, reduz a potencialidade da parceria na adoção de práticas inovadoras e dificulta o exercício da responsabilização.

Os gerentes da SMS e das OSS entrevistados apontaram essa reduzida autonomia, aqueles concordam com tal prática por considerar que o recurso público precisa ser controlado e não existiria uma relação de confiança entre as partes que justificasse a concessão de autonomias.

Somos fiscais do contrato, somos ordenadores de despesa do contrato, somos quem fiscaliza os indicadores, a gente autoriza o repasse do dinheiro, então não dá para deixar correr na mão deles. No final das contas, se der alguma coisa errada na área o responsável é o coordenador e sua equipe. Entendeu? É o nosso telefone que toca de manhã, de tarde, de noite e de madrugada (GSMS).

As Coordenações da APS checam tudo, a conta de luz, de telefone, quanto que gastou. Esse foi mandado embora, porque recebeu isso? Tem até esse miudinho. A OSS não tem nenhuma autonomia. Nossa relação é de subordinação. A parceria implica numa relação de confiança, e não há isso. Os coordenadores de CAP são preocupados, “se o Ministério Público vier aqui, eu que estou assinando” (GOSS).

Nesse sentido, estudo realizado por Martins22 sobre experiências contratuais na administração pública federal aponta como “má condição” a relação tutelar na qual a supervisão segue um padrão de subordinação baseado na atribuição de ações específicas e demandas paralelas ao pactuado e como “boa condição” a relação agente-principal baseada na cobrança dos resultados pactuados no contrato.

Regulação das OSS: normatização, monitoramento, avaliação e controle

A regulação é atribuição essencial e estratégica do Estado quando da separação entre financiamento e execução dos serviços. Quer porque uma forte capacidade regulatória poderia prevenir comportamentos indesejados dos entes contratados, quer porque o Estado precisa garantir a adequada execução das políticas públicas. Na contratualização com OSS, ter capacidade regulatória significa que o Estado necessita normatizar, ou seja, definir as regras para execução das atividades; conceder autonomia dos processos; controlar os resultados por meio de avaliação permanente e responsabilizar as OSS pelos resultados alcançados.

Nessa perspectiva, o município do Rio de Janeiro adota três etapas de normatização da relação entre a SMS e a OSS: qualificação das entidades do terceiro setor como OSS; convocação pública e formalização do contrato de gestão. Além dessas regras formais e de outras contidas na legislação pertinente que normatizam a relação entre o contratante e os contratados, outro conjunto de orientações específicas do processo de trabalho na ESF são repassadas rotineiramente pela SMS aos gerentes das clínicas de saúde da família em reuniões e visitas periódicas, como por exemplo, a organização da recepção ao usuário e manejo nas linhas de cuidado e agravos específicos, além dos protocolos de regulação para exames, procedimentos e internações.

De acordo com os entrevistados, as OSS prestam contas periodicamente sobre a execução financeira; e o desempenho é medido pelo grau de alcance das metas definidas na contratualização e que compõem o sistema de incentivos. Entretanto, a SMS não realiza auditoria para verificar a fidedignidade das informações assistenciais enviadas pelas OSS, e o sistema de informações, alimentado em grande parte pelo prontuário eletrônico do usuário, necessitaria ser aperfeiçoado. O Tribunal de Contas do Município (TCM) realiza auditorias periódicas relacionadas à adequação das instalações, sistemas de controle, insumos, serviços contratados e ofertados, estrutura física e pessoal e disponibiliza em seu site institucional os relatórios elaborados.

Segundo o discurso oficial da SMS, a governança por OSS tem foco no resultado. A forma tradicional de se avaliar os contratos e a prestação dos serviços pela correta utilização dos recursos seria substituída pela verificação quanto ao atingimento das metas previstas para os indicadores de desempenho. Entretanto, as falas dos entrevistados mostraram uma situação diferente, ou seja; predomina o acompanhamento do processo e a conformidade legal dos atos e procedimentos.

No Rio de Janeiro é o município quem dita as regras, quem controla, quem vê como está funcionando, cobra. Se tem alguma coisa que está errada ele vai lá e determina, “tem que ser feito dessa forma” e não como a OSS quer que se faça. Em São Paulo e outros municípios onde atuamos, nós fazemos tudo, o município não se envolve, ele quer os resultados, ele quer os indicadores, ele não se envolve. No Rio de Janeiro não, aqui é diferente realmente (GOSS).

Se o controle dos resultados é um avanço na gestão da política pública, pois são eles que interessam à população; o controle de processos, por outro lado, não deveria ser excessivo, mas é importante porque aumenta a segurança daqueles envolvidos na contratualização em relação ao uso do recurso público. Além disso, no caso da ESF de uma cidade do porte do Rio de Janeiro, o monitoramento que a SMS realiza sobre o processo de trabalho das equipes conjuga dois fatores essenciais no provimento de políticas públicas de caráter social: permite que o modelo de atenção adotado pela SMS tenha direcionalidade; e evita comportamentos oportunistas ou inadequados das OSS para o alcance de metas ‘a qualquer custo’. Outro argumento favorável ao controle dos processos é a dificuldade de mensuração do impacto das ações empreendidas no domínio da APS.

Cabe destacar que os fiscais dos contratos de gestão são servidores públicos que sempre atuaram no controle procedimental típico da administração direta, e para a mudança de cultura requerida no processo de contratualização é importante o acúmulo de experiência e a capacitação permanente desses profissionais. O desejável seria que a SMS não confundisse suas responsabilidades com as das OSS para que a relação de parceria pudesse, de fato, ser estabelecida.

Outro aspecto a ser considerado nas parcerias do Estado com o terceiro setor é que seria importante a diferenciação entre a função de regulação e a própria gestão das atividades finalísticas, de forma que a regulação não se confunda com os interesses do setor contratante e permita um juízo de valor isento do desempenho das parcerias23. No Rio de Janeiro a regulação é exercida pela própria SMS por meio das Comissões Técnicas de Avaliação – CTA, estrutura colegiada formada por profissionais da Subsecretaria de Gestão, da Subsecretaria de Atenção Primária, Vigilância e Promoção da Saúde e pelos Coordenadores das CAP. Existe uma CTA para cada CG.

Quando a CTA verifica a necessidade de punição da OSS, essa demanda é encaminhada ao Gabinete do Secretário para as devidas providências que podem ser advertência, notificação, interrupção do contrato ou desqualificação (cassação do título de OSS) da entidade. Na ESF, até o momento duas entidades foram desqualificadas e substituídas pelas atuais. Quando isto acontece, os profissionais de saúde das equipes permanecem nas unidades e são recontratados pela nova OSS que assume. Essa pode ser considerada uma boa prática para evitar rotatividade de profissionais e perda de vínculo com a comunidade.

A partir dos resultados desse estudo, considera-se que a capacidade regulatória poderia ser mais bem desenvolvida por uma instância externa ao ente contratante, com independência e autonomia para fiscalizar e verificar a conformidade da execução do contrato de gestão e formada por servidores públicos de alta competência nas áreas administrativa, jurídica, de auditoria contábil e clínica.

Transparência Pública e Controle Social

A transparência pública consiste na divulgação de dados e informações pelos órgãos e entidades da administração pública como parte da responsabilidade de prestar contas de seus atos aos cidadãos de forma voluntária. É uma importante dimensão da boa governança, pois incrementa a accountability, além de ser condição necessária para que os cidadãos possam exercer efetivamente o controle social. A promoção da transparência pública pode evitar atos indevidos e arbitrários por parte dos governantes e dos administradores públicos.

Nesse sentido, a transparência deveria estar presente em todas as etapas do processo de contratualização entre a SMS e as OSS com a divulgação de informações básicas sobre os contratos de gestão e seus resultados. Essas informações deveriam ser apropriadas, minimamente, pela instância legítima de controle social no SUS que é o Conselho Municipal de Saúde.

Os achados desta pesquisa apontam para a dificuldade de acessado às informações. Apenas o edital de convocação pública para as parcerias com as OSS é publicado no Diário Oficial do Município e a página da SMS destinada à publicação dos CG esteve desatualizada entre 2011 e outubro de 2015, quando o trabalho de campo deste estudo tinha se encerrado. Em relação ao monitoramento e avaliação do CG, os mesmos não são divulgados pela SMS, apenas encaminhados para ciência aos órgãos de controle interno (Controladoria Geral) e externo (Tribunal de Contas - TCM). Tal constatação pode ser exemplificada pela resposta de um gerente à pergunta ‘Em relação à sociedade, qual instrumento de transparência que a SMS utiliza sobre a contratualização com as OSS?’.

Os relatórios trimestrais de prestação de contas, a parte do desempenho, não são publicados em lugar nenhum, nem o Conselho Municipal de Saúde tem acessado (GSMS).

Em relação ao controle social, a lei municipal de instituição das OSS é tímida, constando apenas que “Qualquer cidadão, partido político, associação ou entidade sindical é parte legítima para denunciar irregularidades cometidas pelas Organizações Sociais à Administração Municipal, ao Tribunal de Contas ou à Câmara Municipal”24. De acordo com os conselheiros municipais de saúde entrevistados, as OSS não atendem às solicitações do CMS para prestação de contas. Esta é feita pela SMS e com pouca discussão.

Não temos acessado a coisa nenhuma, eu participo das reuniões do Conselho, brigo, solicito informações. Os contratos de gestão? Nunca vi. (CMS)

Uma boa prática seria a participação de usuários na composição das câmaras técnicas de avaliação do CG, prevista em algumas legislações municipais, mas ausente no município do Rio de Janeiro.

Nesse cenário, verificou-se que o grau de transparência e controle social existente na relação entre a SMS e as OSS é baixo e não se diferencia daquele existente nos ritos da administração direta do SUS25. Isto contraria as prescrições da administração pública gerencial de que esse modelo de parceria induziria a mais transparência e participação social.

Considerações finais

A análise da implementação desse processo, de significativa dimensão e complexidade em curso há seis anos na SMS, tempo que pode ser considerado curto para o amadurecimento de uma nova abordagem organizacional dessa complexidade, requer análises prudentes que visem à subsidiar os esforços de monitoramento. Estudos de casos sobre intervenções ainda não consolidadas permitem explorar as dificuldades de aplicação prática de determinados conceitos e as relações existentes entre os pressupostos de uma intervenção e o contexto no qual se situa.

A SMS adota um modelo de contratualização no qual as OSS são consideradas uma ferramenta administrativa para facilitar a aquisição de bens e serviços e a provisão de profissionais de saúde. Nesse sentido, estabelece uma relação com essas entidades mais próxima da subordinação e mais afastada da parceria e da cooperação, o que limitaria o desenvolvimento de inovações gerenciais a serem introduzidas pela adoção da lógica contratual e da institucionalização da avaliação de resultados.

Essa dinâmica necessita de avaliações permanentes para ajustes e correção de rumos, quer em relação às dificuldades inerentes à implementação da ESF em grandes centros urbanos, quer em relação ao processo de contratualização com as OSS que estabelece uma nova interação dos atores. Entretanto, identificaram-se esforços organizados na SMS destinados ao aprimoramento da parceria com as OSS, verificado pelas sucessivas adequações à sua estrutura organizacional. Há um importante aprendizado em curso.

Entende-se que não há um modelo único de parceria com OSS, mas sim diferentes modalidades originadas da combinação entre as normas institucionais, as singularidades socioeconômicas, o grau de desenvolvimento institucional e as determinações do jogo político local.

Em síntese, e à luz do estudo realizado, conclui-se que o modelo de OSS ainda necessitaria ser aprimorado como alternativa de gestão no âmbito da APS no SUS, porque o Estado não possui a capacidade regulatória necessária, o que inclui debilidades nas tecnologias de monitoramento das atividades prestadas que dificultam a avaliação do desempenho dos serviços contratados.

Nesta perspectiva, os sucessos e os fracassos das parcerias do Estado com o terceiro setor dependem da capacidade estatal nas distintas fases de organização dessas parcerias, o que incluiria um grupo de trabalho de alto nível; clareza de objetivos; análise de alternativas – as parcerias teriam que apresentar vantagens em relação à opção pública; capacidade técnica e jurídica; definição de linhas de base de avaliação; gestão da mudança e comunicação clara com os profissionais e a população; e o adequado monitoramento dos processos e o controle dos resultados.

A gestão dos serviços de saúde é uma prática complexa em função da amplitude do campo e da necessidade de conciliar interesses individuais, corporativos e coletivos, nem sempre convergentes. A análise sistemática dos modelos de gestão pode contribuir para a melhoria das respostas às necessidades do setor saúde e ampliação da capacidade dos governos na implementação das políticas públicas como estratégia de promoção da justiça social.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Maio 2016

Histórico

  • Recebido
    10 Nov 2015
  • Revisado
    11 Jan 2016
  • Aceito
    13 Jan 2016
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