Acessibilidade / Reportar erro

Sobre a classificação de indivíduos em estágios de acordo com a teoria de desenvolvimento moral de Lawrence Kohlberg

On the classification of individuals in stages according to Kohlberg's theory of moral development

CARTA LETTER

Sobre a classificação de indivíduos em estágios de acordo com a teoria de desenvolvimento moral de Lawrence Kohlberg

On the classification of individuals in stages according to Kohlberg's theory of moral development

Sergio Rego

Ensp/Fiocruz

O artigo "Desenvolvimento moral em formandos de um curso de odontologia: uma avaliação construtivista", publicado no volume 10 número 2, páginas 453 a 462, evidencia a legítima preocupação dos autores em realizar uma aproximação teórica e prática com a discussão sobre a formação moral dos indivíduos e, de uma maneira especial, dos profissionais de saúde. Entretanto, possivelmente por basear sua fundamentação teórica em apenas um trabalho (Aguado e Medrano, 1999), os autores não foram fiéis aos pressupostos desta teoria, desenvolvida inicialmente por Jean Piaget e Lawrence Kohlberg, incorrendo em previsíveis equívocos em sua aplicação. Com o propósito de promover a discussão teórica e contribuir para seu melhor entendimento, aponto alguns dos equívocos identificados no artigo em questão e uma bibliografia básica, disponível no Brasil, sobre o tema.

O primeiro equívoco reside na utilização de apenas um dilema moral e assim tentar classificar em um dos estágios kohlbergianos aqueles que responderam ao dilema. Não há registros publicados que indiquem que os principais teóricos desse campo de saber tivessem pretendido fazer uma classificação que identifica um grupo social ou profissional acerca de aspectos tão relevantes para o agir como o desenvolvimento moral cognitivo de um indivíduo através de apenas uma situação dilemática, e muito menos que isso tenha sido validado. Os testes utilizados são de razoável complexidade e sua interpretação requer domínio da complexidade crescente na avaliação entre conseqüência e intenção. Para uma aproximação criteriosa sobre a utilização dos testes de avaliação do desenvolvimento moral, consultar Lind (2000).

Destaque-se que Lawrence Kohlberg desenvolveu sua teoria utilizando-se, a exemplo de Jean Piaget, do método clínico com entrevistas psicológicas e não de testes psicológicos. Inicialmente Kohlberg utilizava três histórias, sendo que até hoje a mais famosa delas é conhecida como o Dilema de Heinz. O Dilema de Heinz é exatamente o dilema apresentado como dilema de Henrique no texto em questão. Se por um lado a contextualização com a mudança de nome do personagem é justificada e correta, isso não isenta a necessidade de se apresentar a devida referência para que o leitor seja informado sobre a fonte do dilema, nem que fosse o livro de Aguado e Medrano (1999). Da leitura do artigo dos autores fica a impressão de que qualquer dilema pode ser usado para a classificação dos estágios de julgamento moral dos sujeitos participantes e que o de Heinz é apenas um entre os disponíveis. Não é. Os dilemas estão inscritos em testes específicos validados cientificamente e as próprias autoras (Aguado e Medrano, 1999), nessa obra utilizada como referência pelos autores, deixaram um claro alerta em seu prólogo: "Na quarta parte (do livro) e como anexo, apresenta-se o método de evolução moral e os nove dilemas hipotéticos utilizados por Kohlberg. Para a aplicação deste método, existe um manual de correção, no qual se explica detalhadamente seu complexo procedimento. Temos tentado aqui apresentar uma introdução a tal procedimento. Em qualquer caso, o objetivo não é "pontuar" os educandos quanto ao seu raciocínio moral, senão compreender seus argumentos e conhecer as estratégias adequadas para favorecer um maior progresso moral" (Aguado e Medrano, 1999:16). Na verdade, as pessoas quando respondem aos diferentes dilemas o fazem muitas vezes utilizando-se de padrões de respostas diferentes, o que fez com que Kohlberg considerasse a classificação conforme um padrão modal. Assim, a tabela numerada com o número 1 no artigo aqui comentado é equivocada e sem sustentação teórica, por imputar aos entrevistados um estágio de desenvolvimento moral que provavelmente é errado, por não obedecer aos fundamentos teóricos e de método da teoria na qual ele tenta se basear. Os autores poderiam (e deveriam) ter afirmado que o padrão de respostas encontrado é compatível com o padrão do estágio "x", sem que isso signifique que eles lá estejam classificados de fato.

Um segundo problema reside na possível confusão entre capacidade cognitiva de julgamento moral e ação moral. O artigo apresenta ao leitor este tema de forma a possibilitar uma compreensão inapropriada da teoria kohlbergiana: "não há como resolver questões de caráter coletivo ou individual quando a conduta moral do profissional é guiada por interesses particulares e visões unilaterais" (Freitas et al., 2005: 459). Esta frase citada demonstra como os autores confundem uma opção feita em um dilema fictício com a futura conduta profissional dos alunos. A teoria de Lawrence Kohlberg trata da capacidade cognitiva de julgamento moral e não, necessariamente, de ação moral. Embora tenha sido demonstrado que exista correlação entre capacidade cognitiva e ação moral autônoma, o nível de desenvolvimento moral é condição necessária, mas não suficiente, para a tomada de decisões, já que diversos outros fatores ou dimensões interferem no processo, como o afetivo e o emocional. Assim, a conclusão dos autores sobre o nível de desenvolvimento moral dos entrevistados e todas as considerações decorrentes desta são inapropriadas por falta de sustentação na teoria que deveria respaldar a análise.

Existe uma razoável bibliografia sobre o tema disponível no Brasil, resultado de pesquisas desenvolvidas por pesquisadores brasileiros, especialmente sobre o desenvolvimento moral de crianças e adolescentes, embora já exista material bibliográfico de referência inclusive aplicado especificamente ao estudo da formação profissional na área da saúde.

Bibliografia

Biaggio A 2000. Psicologia do desenvolvimento. 14ª ed. Petrópolis: Ed. Vozes.

Biaggio A 1998. Introdução à teoria de julgamento moral de Kohlberg. In Nunes MLT (org.). Moral & TV. Porto Alegre: Evangraf.

Costa CRBSF & Siqueira-Batista R 2004. As teorias do desenvolvimento moral e o ensino médico: uma reflexão pedagógica centrada na autonomia do educando. Rev. Bras. Ed. Med. 28(3):242-250. Disponível em <

http://www.abemeducmed.org.br/rbem/pdf/volume_28_3/

ensaio_desenvolvimento_moral.pdf

Diaz-Aguado MJ & Medrano C 1999. Construção moral e educação. Bauru: EDUSC.

Duska R & Whelan M 1994. O desenvolvimento moral na idade evolutiva – um guia a Piaget e Kohlberg. São Paulo: Ed. Loyola.

Kottow M, Schramm FR 2001. Desarrollo moral em bioética ¿Etapas, esquemas o âmbitos morales? Rev. Bras. Educ. Med. 25(2):25-31. Disponível em

<http://www.abem-educmed.org.br/rbem/ pdf/volume_25_2/desarrollo.pdf >

Lind G 2000. Moral regression in medical students and their learning enviroment. Rev. Bras. Educ. Med. 24(2):24-33. Disponível em <

http://www.abem-educmed.org.br/

rbem/rbem/ rebem_24_numero2_2000.htm

Lind G 2000. O significado e medida da competência moral revisitada – um modelo do duplo aspecto da competência moral. Psicologia: Reflexão e Crítica 13(3):399-416.

Macedo L (org.) 2000. Cinco estudos de Educação Moral. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Milnitsky-Sapiro C 1996. Desenvolvimento sócio-moral na escola: o papel da afetividade no desenvolvimento de estratégias cognitivas. Coletâneas da Anppep 1(6):93-107.

Milnitsky-Sapiro C 2000. Teorias em desenvolvimento sócio-moral: Piaget, Kohlberg e Turiel – possíveis implicações para a educação médica. Rev. Bras. Ed. Med. 24(3):7-15. Disponível em <

http://www.abem-educmed.org.br/rbem/

rbem/rebem_24_numero2_2000.htm

Piaget J 1994. O juízo moral na criança. São Paulo: Summus Editorial.

Rappaport CR, Fiori WR & Davis C 1981. Teorias do desenvolvimento – conceitos fundamentais. vol. 1. São Paulo: EPU.

Rego S 2003. A formação ética dos médicos – saindo da adolescência com a vida [dos outros] nas mãos. Rio de Janeiro: Fiocruz.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 2005
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cienciasaudecoletiva@fiocruz.br