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As Interfaces e as “Balas de Prata”: Tecnologias e Políticas

Resumo

O texto discute modos de compreensão de ocorrências sanitárias complexas, como a pandemia envolvendo o SARS-CoV-2. Entende que a simplificação do problema ao ponto de valorizar exclusivamente os desfechos dessas ocorrências à existência de um patógeno e um humano suscetível diminui em muito a efetividade das estratégias de mitigação. Sustenta a necessidade de enfatizar as interfaces que estão presentes na construção da complexidade pandêmica e as compreende como elementos centrais no seu enfrentamento. Compreende essas interfaces como elementos estruturais do processo e relativiza as estratégias simplificadoras expressas em “balas de prata”, mormente produtos industriais. Finalmente, circunscreve esse ponto de vista ao exame da interface entre as tecnologias industriais de saúde e as variáveis políticas que modulam o acesso da população àqueles produtos.

Palavras-chave
Políticas; Planejamento e Administração em Saúde; Ciência Tecnologia e Sociedade; Epidemiologia; Saúde Coletiva

Abstract

This paper discusses the understanding of complex health events, such as the pandemics involving SARS-CoV-2. It supports that simplifying the issue to the point of considering it just a consequence of contact between a pathogen and a susceptible human being overly weakens the effectiveness of the mitigation strategies. It sustains the need to emphasize the interfaces underpinning the construction of the pandemic complexity and considers them as central elements in its coping. It understands these interfaces as structuring elements of the process and relativizes the simplification strategies expressed in “silver bullets” – usually an industrial health product. Finally, it circumscribes this viewpoint by examining the interface between industrial health technologies and political variables that modulate people’s access to them.

Key words
Policies; Health Planning and Management; Science Technology and Society; Epidemiology; Collective Health

Em 1970, como parte do currículo da escola médica, frequentei a disciplina que tratava das doenças respiratórias. Seu nome era “Tisiologia e Pneumologia”. Apesar de estar homenageada no nome da disciplina, numa das primeiras aulas foi declarado com solenidade que ‘a Tuberculose estava deixando de ser um problema de saúde pública’, e que a ênfase do curso seria o câncer de pulmão. A ‘superação’ da tuberculose sustentava-se na descoberta de medicamentos eficazes contra ela e na implantação no Brasil, na década de 1950, do esquema duplo (estreptomicina e PAS) e depois triplo, sendo acrescentada a isoniazida. Eram as “balas de prata” que derrotariam a doença. Quanto ao câncer de pulmão, o crescimento do interesse derivava dos resultados espetaculares dos estudos epidemiológicos britânicos pioneiros (Doll e Bradford-Hill), também do início dos anos 1950, que associavam o hábito de fumar a esse tipo de câncer. Identificado o ‘fator de risco’, o caminho do controle estava aberto. Mais uma “bala de prata”.

O engano dos meus professores foi total. No caso da Tuberculose, o aparecimento de cepas multirresistentes aos medicamentos derivada do abandono precoce do tratamento, seguida da eclosão da epidemia de HIV/AIDS nos anos 1980 levaram a uma nova explosão da doença. A isso, somou-se a deterioração das condições de vida em vários lugares do planeta e o desastre ambiental. Quanto ao câncer, não foi levada em conta a sobredeterminação dos interesses econômicos da grande indústria do tabaco e das redes globais de comunicação (TV). Esses foram os grandes aliados da doença que fizeram com que seus indicadores somente tivessem alguma melhora neste século e, mesmo assim, deixando boa parte do mundo da pobreza de fora dela.

O engano dos meus mestres residiu na subestimação da complexidade na dinâmica das duas doenças e isso deve ser expandido para todas as doenças de massa, especialmente as que se disseminam por todo o planeta. Trazendo o assunto para tempos mais recentes, essa complexidade nos reservou a ocorrência, neste início de século, de cinco epidemias (SARS/corona, MERS corona, EBOLA, influenza H1N1 e COVID-19), sendo as duas últimas consideradas pandemias. Além dessas, ainda uma ameaça que não se concretizou inteiramente, da “gripe aviária” (influenza H5N1). Entre nós, devem ser citados ainda os surtos periódicos das arboviroses transmitidas pelo Aedes aegypti (que havia sido erradicado do país em 1955) e o mal explicado recente surto de Febre Amarela silvestre invadindo populações urbanas.

Entendo que se considerarmos que a dinâmica da pandemia de COVID-19 possa ser subsumida à interação entre um patógeno e um humano suscetível, não só não conseguiremos ter um resultado favorável em sua mitigação como também estaremos sujeitos a outras “surpresas” em futuro próximo. Em verdade, esses episódios se revestem de grande complexidade e o exame das interfaces entre as inúmeras variáveis envolvidas na determinação desses episódios é essencial para um enfrentamento adequado da COVID-19.

A esse respeito, metonimicamente, imaginei a pandemia como uma bola de futebol, esfera na qual os “gomos” que a constituem são unidos por costuras que, além de uni-los, também os tensionam. Bem mais do que uma justaposição, o desvelamento das interfaces e a intervenção sobre elas são partes constitutivas da organização da compreensão de um problema sanitário e da formulação das estratégias para a sua superação. Em outros termos, as interfaces são espaços de tensão e interação entre as diversas dimensões do problema, elementos essenciais em sua dinâmica e nos resultados do seu enfrentamento. Voltando à bola, suas costuras-interfaces são elementos estruturais, tão importantes quanto os gomos. Sem eles, a bola seria impossível. Sem a intervenção sobre as interfaces, o enfrentamento da COVID-19 está condenado ao fracasso, pelo menos no sentido de sofrimento e mortes evitadas. Um desenvolvimento teórico generalizante do caso particular que exponho aqui tem sido objeto de estudo de Naomar de Almeida Filho que, em artigo recente, faz uma explanação de conceitos relacionados à complexidade, à hierarquia de variáveis e às interfaces no campo epidemiológico11 Almeida Filho N. Modelagem da Pandemia COVID-19 Como Objeto Complexo (notas samajianas). Estud Av 2020; 34(99):97-117..

Neste texto, a minha tarefa é discutir a interface tecnológico-política na dinâmica da COVID-19. São várias as suas manifestações e gostaria de iniciar com a primeira e, talvez, mais disseminada, que diz respeito às escolhas tecnológico-produtivas nas empresas globais de medicamentos, vacinas, equipamentos e testes necessários no campo sanitário. Quase nunca essas escolhas respondem a critérios científico-epidemiológicos de magnitude, gravidade e relevância social. Na verdade, na grande maioria das vezes, respondem exclusivamente a critérios de rentabilidade financeira. Esse tipo de cálculo é o que governa a grande maioria das decisões da indústria global de produtos de saúde em relação ao que pesquisar, desenvolver e produzir. Em alguns casos, essa rentabilidade não se expressa diretamente em retornos comerciais diretos (vendas), mas a operações de marketing que projetam a empresa no cenário global. Exemplo marcante e atual dessa última modalidade está sendo operado por várias empresas que, durante a COVID-19, anunciam produtos que ainda não existem e que, em muitos casos, por motivos variados não chegarão ao mercado. A escassez de novos lançamentos de antibióticos necessários a eliminar cepas bacterianas cada vez mais resistentes aos atualmente disponíveis é um exemplo. Uma situação parecida com essa é a que faz com que linhas tradicionais de produção muito importantes em certos medicamentos de baixo custo sejam descontinuadas em virtude de sua baixa rentabilidade. Esse foi o caso da recente escassez global de penicilina benzatina, essencial para o tratamento da sífilis, que vem aumentando sua prevalência em todo o mundo. Mais recentemente (06/2019), vem outro exemplo: o Enbrel é o nome comercial do Etanercepte, uma droga comercializada pela multinacional americana Pfizer bastante eficaz para controlar a artrite reumatoide. Não está mais protegido por patente, havendo genéricos na praça. Há alguns anos, a empresa teve algumas evidências de que o medicamento poderia ajudar a controlar a evolução da doença de Alzheimer, mas desistiu de seguir com os testes clínicos e escondeu as evidências. O argumento foi que eles custariam muito. Na verdade, não quiseram continuar porque como o Enbrel não está mais protegido por patentes, caso as evidências fossem confirmadas ela teria que dividir o mercado com os genéricos já existentes22 Rowland C. Pfizer had clues its blockbuster drug could prevent Alzheimer's. Why didn't it tell the world? [Internet]. The Washington Post 2019. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/business/economy/pfizer-had-clues-its-blockbuster-drug-could-prevent-alzheimers-why-didnt-it-tell-the-world/2019/06/04/9092e08a-7a61-11e9-8bb7-0fc796cf2ec0_story.html
https://www.washingtonpost.com/business/...
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Esse tipo de tensão na interface tecnológico-política é resultado da própria forma de estruturação das empresas nessa longa conjuntura de financeirização global. Como regra, são empresas de capital aberto com ações negociadas em bolsas de valores e seus acionistas são investidores de tipo variado cujo comando das decisões da empresa não tem qualquer vínculo com o campo sanitário. São esses investidores que escolhem as direções executivas das empresas e no caso dessas direções não atingirem resultados financeiros esperados, serão substituídas.

Importante salientar que no espaço dessa interface costuma estar embutido um grave problema ético, que é o de abandonar o conceito fundamental de que todas as vidas valem igualmente. Isso porque sua produção é dirigida prioritariamente a mercados nacionais ou regionais cujas populações tenham renda suficiente para o consumo desses produtos, habitualmente nos países que abrigam as empresas – lembremos que a indústria global da saúde é totalmente oligopolizada. No caso das farmacêuticas as 10 maiores empresas controlam 40% do mercado mundial. Atualmente, são seis norte-americanas, duas suíças, uma britânica e uma francesa. E lembremos ainda que atualmente a maior parte das empresas que fabricam vacinas foram compradas pelas grandes farmacêuticas, absorvendo sua cultura. Isso foi o que levou o então CEO da empresa Novartis, Daniel Vasella em 2009, a recusar-se a fazer doações da vacina contra a gripe H1N1 a países muito pobres, pedido feito pela então diretora-geral da OMS, Margaret Chan, sob a alegação que que era preciso garantir receitas financeiras para cobrir os investimentos realizados no desenvolvimento e produção da vacina33 Revista Época. Novartis diz que não doará vacinas contra a nova gripe a países pobres [Internet]. 2009. [acessado 2020 Jun 05]. Disponível em: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI77164-15518,00.html
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Ep...
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Na atual conjuntura pandêmica, em algum momento haverá o lançamento de medicamentos e vacinas contra a COVID-19 e é bastante provável que as tensões dessa interface sejam exacerbadas. A despeito dos esforços da OMS em prol de uma política de construção de pools de patentes e de licenciamentos voluntários de medicamentos e vacinas contra o COVID-19 para países pobres, é provável que países de renda média como o Brasil tenham dificuldade em ser incluídos nesse rol. A empresa Gilead Sciences, fabricante do medicamento Remdesivir, licenciou voluntariamente as patentes do medicamento para seis empresas de genéricos indianas e paquistanesas para que produzam e comercializem seu produto a preços mais acessíveis para um conjunto de 127 países. Infelizmente o Brasil não consta dessa lista44 Estigarribia J, Riveira C. Covid-19: fabricante do Remdesivir abre mão de patente, mas exclui Brasil [Internet]. Revista Exame 2020. [acessado 2020 Jun 05]. Disponível em: https://exame.com/negocios/covid-19-fabricante-do-remde-sivir-abre-mao-de-patente-mas-exclui-brasil/
https://exame.com/negocios/covid-19-fabr...
. No terreno das vacinas, além das dificuldades postas por patentes, haverá uma dificuldade relacionada à capacidade de produção de uma ou mais vacinas, para uma população-alvo global gigantesca. Haverá escolhas em termos de prioridades de países que receberão as vacinas e, dentro de cada país, populações-alvo segmentadas segundo o risco epidemiológico.

Outra modalidade de tensão nessa interface tecnológico-política no campo sanitário será mais bem caracterizada como tecnológico-geopolítica e também tem ligações diretas com a atual pandemia. Ela diz respeito à ruptura daquilo que os economistas chamam de cadeias produtivas globais. Esse termo, desenvolvido ao longo do processo de globalização econômico-financeira-comercial significa que os componentes de um produto industrial podem ter origem em qualquer lugar do mundo e são integrados (montados e acabados) na empresa do país que é a autora do projeto, que é quem aufere as maiores receitas. Ao longo dos últimos 40 anos, os produtos de base tecnológica crescentemente integram essas redes globais de fornecedores de componentes. Ocorre que com o acirramento da situação geopolítica mundial (China-USA) somado à eclosão da pandemia, fronteiras comerciais foram fechadas ou, ainda quando permaneceram abertas, deram preferência aos seus nacionais em um ambiente de explosão de demanda – respiradores, EPI’s, farmoquímicos para a produção local de medicamentos, etc. Essa situação foi observada, por exemplo, em medicamentos fabricados no Brasil, essenciais para o tratamento de casos graves em UTIs (p. ex. Midazolan, Fentanil), pela dificuldade de importação de princípios ativos para a sua formulação. Não é certo que essa situação retorne à situação prévia à pandemia em função das tensões comerciais e isso deverá modificar nossas compreensão e políticas relativas ao conceito de soberania nacional.

Finalmente, abordo outra tensão na interface tecnológico-política, nesse caso vinculada a uma política pública que cumpre um papel muito importante no acesso das pessoas a produtos industriais de base tecnológica. Refiro-me à política de propriedade intelectual (PI), executada no Brasil pelo Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI). Em 1994, a então recém criada Organização Mundial do Comércio promoveu uma harmonização global das regras de PI (acordos TRIPS) amplamente favorável aos interesses dos países detentores de patentes – EUA, UE e Japão – que, em resumo, reorientou o sentido original da PI como indutora de inovação transformando-a em ferramenta de política comercial dos detentores de patentes, restringindo o acesso a esses produtos – medicamentos e vacinas em particular – nos países em desenvolvimento. Apesar dessa harmonização conceder aos países um longo período de adaptação às novas regras (até 10 anos) Brasil, apenas dois anos depois aprovou uma lei de patentes que abraçou todas as determinações do TRIPS e foi ainda além em alguns aspectos. A Índia, por exemplo, utilizou todo aquele período antes de aderir. No âmbito da COVID-19 aquela reorientação ameaça enormemente o acesso da nossa população a futuros medicamentos e vacinas desenvolvidos para combatê-la.

Esses quatro tópicos relacionados à interface tecnológico-política envolvidos no enfrentamento da COVID-19 nem de longe esgotam as interações entre tecnologias e políticas, sejam elas políticas partidárias, políticas públicas e políticas empresariais. Apenas para exemplificar, ficou de fora do texto todo o capítulo da interface relacionado às interações derivadas das tecnologias sociais, intrínseca e intimamente vinculadas às políticas de saúde. Tomo como exemplos a tecnologia da Estratégia de Saúde da Família e as estratégias tecnológicas vinculadas às campanhas nacionais de imunização, ambas complexas e permanentemente expostas a interações com políticas externas a elas.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    Set 2020

Histórico

  • Recebido
    25 Jun 2020
  • Aceito
    26 Jun 2020
  • Publicado
    28 Jun 2020
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