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RESENHAS REVIEWS

Marcelo Bessa de Freitas

Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio

Saúde e ambiente sustentável: estreitando nós. Organizado por Maria Cecília Minayo e Ary Carvalho de Miranda. Editora Fiocruz , Rio de Janeiro, 2002, 344pp.

A partir da década de 1970, motivados pelos riscos ecológicos globais e pelas crises energéticas do petróleo, diferentes movimentos sociais, que se ampliavam naquele momento, e setores organizados da economia e do comércio começaram a questionar, embora por diferentes vieses, os paradigmas e modelos de desenvolvimento, produção e consumo vigentes. Também no mesmo período, um informe produzido pelo governo canadense reincorpora as dimensões sociais, comportamentais, culturais, políticas e ambientais no entendimento do processo saúde-doença, que teve um peso fundamental no pensamento sanitário. Esses dois contextos representam os principais marcos históricos para o entendimento da intrínseca relação saúde e ambiente nas décadas seguintes. Saúde e ambiente sustentável: estreitando nós é uma das poucas literaturas da área da saúde coletiva a apresentar um rico debate teórico-conceitual em torno da relevância da questão ambiental para a saúde. O livro tem dois grandes méritos; o primeiro é contextualizar as condições e inter-relações socioambientais que promovem agravos à saúde pública; o segundo é apresentar de forma propositiva e reflexiva caminhos e alternativas para lidarmos com os diferentes processos produtivos e riscos ambientais que ameaçam a sustentabilidade ecossistêmica e sanitária. O conteúdo da obra é compilado em cinco capítulos, compostos por dois ensaios cada um, seguido de debates promovidos por especialistas que atuam junto ao tema.

A primeira parte da obra – Ambiente, Espaço, Território: o Olhar da Saúde – é iniciada com o texto de Pádua "Dois séculos de crítica ambiental no Brasil". Neste ensaio o autor apresenta uma brilhante historicidade em torno do discurso ambiental brasileiro nos séculos 18 e 19, fundamental para compreender o início do processo da destruição dos ecossistemas, e a apropriação dos vastos recursos naturais do território brasileiro pela colonização portuguesa, o que colaborou para o agravamento do quadro sanitário brasileiro nos séculos que se seguiram. O texto também revela como o discurso dos ambientalistas da época se distanciava dos reais interesses de ocupação territorial pelo Império português, de fato um projeto meramente espoliativo e ausente de propostas desenvolvimentistas, para os paradigmas socioeconômicos vigentes na época.

No segundo texto "Doenças emergentes e reemergentes, saúde e ambiente", Navarro et al. trazem contribuições valiosas a respeito do tema, apresentam e discutem alguns caminhos estratégicos para o enfrentamento dessas doenças e as tendências de abordagens para lidar com elas. O texto fundamenta a importância das dimensões espaciais e os determinantes econômicos, sociais, geográficos e culturais no entendimento das doenças emergentes e reemergentes, sob o ponto de vista da complexidade que rege as relações socioecológicas.

Os debates referentes a esta parte do livro lembram quão importante seria a investigação complementar, das raízes culturais, ideológicas, filosóficas e religiosas subjacentes aos modos de produção que degradam o ambiente no Brasil, traçando um quadro comparativo com a realidade dos demais países da América Latina. Como faz Leroy, ao discorrer sobre a história da ocupação territorial pela agricultura brasileira e sua relação como a emergência e reemergência de doenças e a degradação ambiental associada a essas práticas. O debate também levanta a importância de abordagens multidisciplinares e ecossistêmicas em substituição aos métodos da auto-ecologia das doenças para explicar as relações tróficas entre espécies, populações, comunidades biológicas e ecossistemas.

A segunda parte do livro – Dialogando com o Risco –é dedicada à conceituação de risco. A partir de uma perspectiva histórica, Lieber & Lieber, no texto "O conceito derisco: Janus reinventando",discutem a incerteza como um elemento fundamental nas análises de risco, e como ela foi negligenciada ao longo do pensamento científico ocidental, e agora é tomada como elemento inerente às abordagens complexas de avaliação e gerenciamento dos riscos ambientais sociotécnicos.

O segundo texto, "Dialogando com o risco na era midiática" de Castiel, aborda os aspectos subjetivos dos riscos, revelando a importância e a influência da mídia na percepção do risco e nas mudanças de comportamento e estilo de vida. O texto aborda, sob a perspectiva da governamentalidade foucaultiana, as ações de medidas individuais como a higiene, os estilos de vida e os comportamentos de risco.

Os debates referentes à segunda parte do livro procuram contribuir com elementos centrais para a discussão sobre riscos. O primeiro debate trata da percepção e da comunicação dos riscos associados ao uso de agrotóxicos, ilustrando de forma prática a importância de uma abordagem integrada e participativa para gerenciar risco na saúde ambiental. No segundo debate Spink classifica as tradições nos discursos sobre risco, sob a perspectiva da governamentalidade das ações coletivas e individuais sobre o risco, e do risco aventura.

A terceira parte do livro aborda a Qualidade de Vida e a Promoção da Saúde. No primeiro ensaio "Promoção da saúde e cidades/municípios saudáveis: propostas dearticulação entre saúde e ambiente", os autores Andrade & Barreto revisitam os marcos conceituais e históricos deste tema, e as mudanças de paradigmas associadas à trajetória das políticas públicas de saúde e ambiente, a partir do século 19 com o discurso da medicina social, passando pelo processo de construção do conceito canadense de Cidades Saudáveis, até os aspectos políticos e sociais que motivaram a reforma sanitária brasileira e o modelo de assistência, prevenção e promoção de saúde engendrados pelo SUS na década de 1980 e 1990, pontuando os eixos políticos/operativos, discursivo e paradigmático como elementos-chave para a discussão do campo da Promoção da Saúdee formulação do Sistema Único de Saúde.

No segundo texto desta parte "Enfoque ecossistêmico de saúde e qualidade devida", Minayo apresenta elementos para a construção teórico-prática desta abordagem, a partir da mudança da perspectiva antropocêntrica dos problemas de saúde e ambiente. A autora define o que vem se configurar no modelo ecossistêmico, representado pelo deslocamento de um modelo essencialmente economicista para uma reflexão que envolve eqüitativamente as dimensões ambientais, econômicas e sociais. Descreve os antecedentes históricos desta abordagem, ocorridos nas décadas de 1970 e 1980 no Canadá, e o movimento da reforma sanitária brasileira e sua concepção ampliada da saúde. Por fim, de forma instigante, aponta para a necessidade de se superar alguns desafios metodológicos e operacionais que permitam, na prática, a viabilidade da abordagem ecossistêmica em saúde.

Os debates realizados para esses dois ensaios refletem a avaliação da participação da comunidade e sua inclusão efetiva nas ações da promoção da saúde. São colocados também como desafio às ações de Promoção da Saúde a efetivação das metas de atenção universal e da eqüidade em saúde e não apenas a ampliação da cobertura de serviços e a descentralização. Em relação ao enfoque ecossistêmico, o debate ressalta a imprecisão da fundamentação conceitual e teórica e a dificuldade de operacionalizar a abordagem na prática, apontando para a dificuldade de se estimular gestores e a população a investir nesta proposta, em função de ainda persistirem uma inadequação teórica e metodológica neste enfoque.

A quarta parte do livro discute os Processos Produtivos, Consumo e Degradação da Saúde e do Ambiente. No primeiro texto, "Padrões de produção e consumo nas sociedades urbano-industriais e suas relações com a degradação da saúde e do meioambiente", Franco conduz sua narrativa de forma a problematizar inicialmente o tema trabalho e saúde numa perspectiva sociológica, da revolução industrial à tecnológica, pontuando sempre as questões de saúde e doença advindas da modernidade e do processo de produção e consumo, vinculadas aos diferentes tempos e momentos tecnológicos e contextos políticos sociais e econômicos. Na parte final do texto, a autora aborda as relações entre processo de trabalho e meio ambiente, e os riscos tecnológicos associados a estas duas dimensões, ressaltando os custos socioambientais embutidos no processo de globalização e de transferência de manufatura industrial dos países do Primeiro Mundo para os países periféricos. Por fim aponta para a necessidade de superar a visão antropocentrista pela construção de análises contextualizadas e críticas, incorporando os limites biológicos nas ciências sociais e as restrições ecológicas às análises do mundo do trabalho e da vida social.

No segundo texto "Produção e consumo, saúde e ambiente: em busca de fontes e caminhos", Rigotto aborda de forma progressiva e complexa os problemas ambientais e os riscos à saúde gerados nos processos produtivos e de consumo no contexto social atual. A autora procura enfocar a organização social e do trabalho na era moderna, a partir das transformações experimentadas pelas mudanças de paradigmas das ciências e pelas revoluções industrial e tecnológica e as suas inter-relações com os aspectos políticos, econômicos, sociais, culturais e simbólicos, e os impactos e riscos gerados ao ambiente e à saúde humana, num contexto de globalização. Por fim, pontua algumas dimensões úteis em alimentar novas utopias que gerem uma relação positiva entre o mundo da produção/consumo, o ambiente e a saúde. Tais como, mudanças nos sistemas de produção de bens e serviços e nas relações do processo de trabalho; o desenvolvimento de novas tecnologias; e ampliação dos espaços democráticos e de participação.

Os debates que se seguem a esta quarta parte do texto contribuem com aspectos fundamentais para se adicionar à discussão, tais como a questão do desemprego e a precarização do trabalho, a importância do modelo toyotista de produção, e a institucionalização da saúde do trabalhador no Sistema Único de Saúde e os desafios em lidar com assistência e vigilância dos fatores de riscos resultantes do processo de produção, consumo, trabalho e ambiente. Há ainda contribuições em torno de números e casos de estudos, como cenários e projeções políticos-econômicos na lógica neoliberal de mercado e o universo da produção e consumo de agrotóxicos e os problemas e agravos à saúde e meio ambiente no Brasil.

A quinta parte do livro – Indicadores em Saúde e Ambiente: Construção Conceitual– aborda a discussão em torno da construção conceitual de indicadores em saúde e ambiente. Começa com o texto de Augusto que resgata, num breve recorte histórico, as motivações iniciais que, sob a perspectiva da saúde do trabalhador e exposições ocupacionais, motivaram as primeiras discussões nacionais em torno de indicadores de saúde ambiental e ocupacional no processo de trabalho. Subjacente a esta introdução a autora conduz uma discussão de caráter epistemológico sobre a necessidade de uma abordagem integrada para a construção de dados e indicadores que reflitam as condições de complexidade e incerteza das inter-relações em saúde e ambiente.

No segundo ensaio "Constituição de um sistema de indicadores socioambientais", Barcellos traz elementos novos para a discussão de indicadores socioambientais, quando aponta para a importância dos índices como instrumentos importantes para facilitar a comunicação entre pesquisadores, gestores e sociedade a respeito dos riscos ambientais e da sustentabilidade. Infere também sobre a necessidade de uma construção não linear e não compartimentalizada de indicadores e índices, e de dimensões temporais e espaciais que se comuniquem mais facilmente, considerando a horizontalidade e verticalidade das discussões dos dados, indicadores e índices.

Nesta última parte do debate, há uma reflexão sobre a ampliação do conceito de espaço em saúde pública, além das dimensões cartográficas, ou seja, o entendimento de espaço não como um simples cenário para a realização de ações humanas, mas uma entidade dinâmica, base para a construção de indicadores socioambientais. Também são ressaltadas as limitações epistemológicas e territoriais presentes nas propostas de refinamento de indicadores socioambientais. Por fim ilustra-se, com um estudo de caso, a constituição de indicadores socioambientais utilizados no monitoramento das condições de saúde de idosos em Belo Horizonte.

De certo que as idéias contidas neste livro representam uma contribuição essencial ao entendimento das relações entre saúde e ambiente, através de uma rica contextualização dos problemas ambientais e de saúde e, da identificação profícua e pertinente de tendências conceituais e metodológicas necessárias à formatação de novas práticas que se colocam como desafios à saúde coletiva brasileira.

Maria Benigna Arraes de Alencar Gervaiseau

Universidade de Bordeaux III, França

Violência, saúde e trabalho (uma jornada de humilhações). Margarida Barreto. São Paulo, EDUC, 2003, 235pp.

Há livros instigantes, que nos obrigam a questionar práticas abrindo novos horizontes. Violência, saúde e trabalho (uma jornada de humilhações) faz parte deles. Resultado de pesquisa iniciada em 1996 junto a 2.072 trabalhadores de 97 empresas de grande e médio porte do ramo químico e plástico de São Paulo, foi originalmente apresentado como dissertação para obtenção do grau de Mestre em Psicologia Social, na PUC-SP. Em maio de 2000 transforma-se em livro, após ter sido selecionada pela Comissão Geral da Pós-Graduação da PUC e premiada para publicação na Coleção Hipóteses da EDUC-SP. A autora analisa as mudanças nas relações de trabalho no contexto da globalização do mercado, nos permitindo compreender o adoecer como resultante das formas de organizar e gerir o trabalho fundadas em relações assimétricas, práticas desumanas, abuso de poder. Essas relações são marcadas por desqualificações, humilhações, discriminações, sofrimento imposto, especialmente, aos doentes/acidentados do trabalho, aos críticos e questionadores, entre outros, destas formas de organização da produção. Os resultados podem ser variados: degradação do ambiente de trabalho, medo no coletivo, reprodução da violência entre os pares e em outros espaços sociais, transtornos à saúde mental e física, aumento do uso de drogas, desistência do emprego e pensamentos suicidas, devido à exposição cotidiana dos trabalhadores e trabalhadoras a "uma jornada de humilhações". Nas partes constituintes do livro, são analisadas as relações saúde-doença, emoções e trabalho, em que a autora enfatiza as práticas de saúde perfeita e a busca dos trabalhadores sadios. Ao discutir as questões metodológicas, a autora nos convida para uma viagem pela filosofia, sociologia do trabalho, psicologia e medicina, ressaltando a determinação social, a especificidade da biologia e historicidade da psicologia como critérios para compreender a causalidade da relação saúde-doença. Em destaque, a autora traz a contribuição do filósofo da ética, Espinosa, e de seu admirador, o psicólogo marxista russo, Vygotsky. A partir da concepção ética imanente às emoções, ambos refletem corpo e alma, pensamento e emoção como unidade coesa e indissociável, fornecendo o instrumental teórico conceitual que guiará a reflexão da autora e permeará toda a análise de saúde como potência de ser e agir. Para discutir tais questões, Margarida Barreto elegea humilhação como o microscópio da relação saúde-doença e dessa, com a sociedade.Propõee destaca o valor da "conversa clínica prolongada" na relação médico-paciente, ressaltando o valor das queixas subjetivas, sentimentos e emoções como forma de garantir a voz àqueles que estão excluídos da fala. A segunda parte do livro discute, em particular, o mundo do trabalho, espaço do agir médico em busca da "saúde perfeita", da omissão e subnotificações de doenças e acidentes, da produtividade a baixos custos, da insalubridade e exposição a múltiplos riscos, da doença e sofrimento imposto. Esta viagem pelas ciências humanas em seu diálogo com as práticas ainda vigentes nos revela uma concepção de saúde na mais bela tradição humanista. A autora destrincha diante dos nossos olhos a "jornada de humilhações" e suas conseqüências à saúde e à vida dos trabalhadores, revelando um mundo do trabalho que adoece, agrava padecimentos e destrói a vida. Um dos aspectos inovadores da sua análise é sua concepção de risco invisível, ao afirmar que a humilhação repetitiva e de longa duração constitui um risco invisível porém concreto, nas relações e condições de trabalho, que interfere na vida dos/das trabalhadores/as de modo direto, comprometendo a identidade, a dignidade e as relações afetivas e sociais, ocasionando graves danos à saúde física e mental, que podem evoluir para a incapacidade laborativa, desemprego ou mesmo a morte. Hoje, a violência moral é tema obrigatório em discussões e encontros sindicais. Ganhou o público e o coração de centenas de trabalhadoras e trabalhadores anônimos, humilhados e sem direito a voz. Antes mesmo da publicação do livro, a partir da divulgação dos resultados da dissertação de mestrado na grande imprensa, em novembro de 2000, o tema teve e continua tendo ampla repercussão nacional em diferentes espaços sociais, inclusive no campo do legislativo e do judiciário. O livro constitui, sem dúvida, uma contribuição inovadora às discussões de saúde, emoções e violência moral no trabalho. Estamos diante de um saber militante, em que a autora procura devolver a voz aos sem voz. Trata-se de um livro que nos convida a refletir profundamente sobre as causas da violência, ao mesmo tempo que nos interpela e convoca a somar forças e construir no cotidiano um mundo do trabalho e uma sociedade, na qual a afetividade ética constitua prioridade do tecido relacional humano.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Fev 2004
  • Data do Fascículo
    2003
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