Acessibilidade / Reportar erro

DEBATEDORES

DISCUSSANTS

Moisés Goldbaum 1

Qualidade de vida e saúde: além das condições de vida e saúde

Quality of life and health: beyond living and health conditions

1 Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade do Estado de São Paulo

O artigo "Qualidade de vida e saúde: um debate necessário", de Minayo, Hartz e Buss, discute um assunto relevante e que compõe a agenda atual dos profissionais da saúde. Os autores fazem uma oportuna revisão da literatura e apresentam uma adequada análise crítica sobre as diferentes perspectivas que têm orientado a produção científica sobre o tema. A condução geral do trabalho, com a qual concordo, mostra a necessidade de rever os conceitos e noções e trabalhá-los à luz de um profícuo diálogo interdisciplinar, para aprimorá-los visando subsidiar os necessários avanços na teoria e prática da Saúde Coletiva.

Apesar da concordância, a leitura e análise do texto provocaram-me algumas indagações, que compartilharei, neste debate, com autores e leitores. Procurarei apresentá-las de forma pontual e discorrer sobre as dúvidas que me suscitaram.

A primeira diz respeito às dimensões da qualidade de vida postas em uma perspectiva individual e a sua correspondência na perspectiva coletiva. Assim, a posição assumida em relação ao mal-estar com reducionismo biomédico ou mesmo à persistente visão medicalizada do tema poderia ser melhor trabalhada, considerando o seu caráter operacional (na análise detalhada dos anais dos congressos gerais e temáticos da Abrasco, observou-se que falta o esforço de fazer da noção um conceito e torná-lo operativo). Entendo que a forma como a área médica expressa o tema encontra-se justificada pelo seu próprio referencial e/ou objeto que é o indivíduo portador de doença, sobre o qual se debruça para restabelecer as suas melhores condições físicas, mentais e sociais, obedecidos os seus limites de atuação. Sem entrar no mérito do debate e significado das novas tendências da clínica (que se faz necessário) entre as quais se situa a citada medicina baseada em evidências, está bastante claro o caráter individual do trabalho clínico que lhe permite trabalhar no sentido que se propõe. A crítica que se pode tecer de forma marcada, no caso, pode estar na sua intenção de explicar os problemas de natureza coletiva que estão requerendo todo o esforço de recomposição interdisciplinar. Dentro de seus limites, a construção que se vem operando na clínica (buscando o seu status científico) tem a sua lógica e coerência. Reitero que esse fato merece também um amplo debate, especialmente das formas como vem a clínica sendo oferecida e de sua localização no setor saúde.

A afirmação de que na maioria dos estudos o termo de referência não é qualidade de vida, mas condições de vida, estilo de vida; situação de vida é bastante pertinente, revelando a insuficiência da abordagem sobre o tema e reforça a idéia de que a discussão sobre o mesmo tem a sua estratégia central na promoção da saúde. Neste ponto, os autores, a despeito de citarem a existência de um artigo sobre o assunto neste número da Revista, deixam de explorar mais detidamente como este conceito (promoção) constitui-se na estratégia-chave para a discussão da qualidade de vida pelo setor saúde. Isso poderia responder, ao menos em parte, ao esforço necessário para torná-lo um instrumento operativo.

Essa discussão se impõe, pois as modernas concepções de promoção, tais como citadas pelos autores, encontram suas lógicas em formações sociais nas quais foram concebidas e que estão a merecer o debate em nosso meio. A isto deve-se agregar ou detalhar quais seriam os possíveis elementos que essa nova concepção traz por referência às formulações abrangentes de qualidade de vida. Entendo que o aprofundamento da questão poderia orientar estudos que superassem as insuficiências apontadas na revisão promovida, respondendo às novas formas de identificar variáveis que pudessem trazer, para o campo da saúde, a riqueza do debate travado em outros setores e áreas do conhecimento. Esta questão específica sugere uma articulação com o debate sobre a crise da Saúde Pública, que tem sido objeto de várias publicações. Venho me perguntando se esta crise não está radicada na identificação mais precisa de seu objeto, que vem se modificando no decorrer da história, e nós, profissionais da Saúde Coletiva, não estamos alcançando a sua plenitude ou não estamos promovendo o seu aggiornamento, o que poderia explicar, em parte e ao lado do reducionismo biomédico, o estreitamento do conceito de qualidade de vida.

A proposta de síntese da noção de qualidade de vida em um campo semântico polissêmico é abrangente, incluindo as idéias de desenvolvimento sustentável e ecologia. Aqui caberia rever ou lembrar as teorias sobre as concepções dos mecanismos de adaptação, em seus sentidos amplos e restritos, como elemento de identificação de qualidade de vida e, por extensão, naquilo que se refere à saúde, superando o pragmaticismo e/ou a racionalidade que se procura imprimir a partir da construção dos QALYs ou DALYs.

O trabalho identifica com precisão a idéia de que a qualidade de vida, em certas circunstâncias, é estratificada e está relacionada ao sentido de bem-estar das camadas superiores, ou seja, determinado pela noções (ou possibilidades) de consumo. Na apreciação dos instrumentos propostos e utilizados mais recentemente, fica a indagação de quanto os indicadores compostos, a despeito de sua menor ou maior sofisticação, fogem a este padrão de compreensão ou explicação. Em outros termos, não se observa, nesta análise, uma identificação do grau de incorporação das novas dimensões definidoras de qualidade de vida, que cada um dos novos modelos promove.

Uma última ponderação poderia ser feita a partir da observação de que a qualidade de vida não é definível exclusivamente por critérios científicos ou técnicos, remetendo a questão, também, para o âmbito político. Impõe-se perguntar se a incorporação de debates sociais amplos não são passíveis de tratamento científico, ficando a questão política voltada para identificar a adequada aplicação ou formulação de intervenção baseada nos conhecimentos produzidos.

Várias outras questões podem ser suscitadas pelo trabalho, o que revela a sua riqueza em termos de revisão do assunto e da sua relevância. Estas são algumas que apresento para estimular o debate e que penso poderiam ser aprofundadas. Lembro, todavia, que podem ser motivação para novos trabalhos e, é claro, não espero que sejam exploradas exaustivamente neste curto espaço.

Edson Mamoru Tamaki 1

Qualidade de vida: individual ou coletiva?

Quality of life: individual or collective?

1 Departamento de Tecnologia de Alimentos e Saúde Pública, Centro de Ciências Biológicas e da Saúde, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

Nada mais apropriado do que abordar o tema da qualidade de vida na edição de abertura do início do terceiro milênio. Assim como a ética em saúde, este assunto certamente se constituirá em uma das grandes questões do século XXI.

A busca da qualidade de vida por meio da estratégia da promoção da saúde defendida pelos autores alarga o horizonte, amplia o universo das ações possíveis, recompõe a característica multifatorial e multidisciplinar nos fenômenos da saúde e ressalta a importância da ação intersetorial, da participação ativa dos indivíduos e da comunidade ao nível local (Terris, 1996).

Ao mesmo tempo em que alarga os horizontes, o texto sugere linhas de desenvolvimento possíveis (promoção da saúde) e nos lança para uma reflexão profunda sobre a qualidade de vida; nos traz à realidade no momento em que prega a busca de conceitos operativos, ou seja, aqueles que poderão ser integrados à prática política dos serviços de saúde.

Para contribuir com esta reflexão, o artigo traz um repertório de indicadores de qualidade de vida que constituem um primeiro esforço de operacionalização. São apresentados os principais indicadores (IDH, ICV, IQV, QVLS, HRQL, WHOQOL, QALY, GBD, DALY, HeaLY), onde críticas do tipo das citadas a seguir se alternam e se combinam: não levar em consideração a relatividade histórica ou social da qualidade de vida; os pesos dados a cada fator não contemplam ou não são representativos da diversidade existente na sociedade; privilegia os bens materiais; não considera valores subjetivos, sentimentais ou emocionais; não leva em consideração a intensidade ou a incapacidade provocada pelas doenças; os parâmetros utilizados são arbitrários, subjetivos ou não representativos; não leva em consideração as desigualdades sociais existentes; privilegia os aspectos econômicos; não considera a perspectiva do indivíduo; não leva em consideração as questões ambientais; entre outras. Todos esses indicadores, inegavelmente, medem aspectos da qualidade de vida. Todos têm méritos e limitações e são questionáveis uns em relação aos outros.

Qualquer método aplicado à avaliação da qualidade de vida sempre vai ser reducionista, pois é um objeto permeado por múltiplas facetas, em que não existe ou não é possível criar um modelo agregador que as reúna, todas, em uma construção coerente, lógica, consensual e com uma capacidade explicativa do fenômeno da vida, da qualidade de vida.

Essa dificuldade faz com que a questão da qualidade de vida seja deslocada para condições de vida, estilo de vida ou situação de vida, uma vez que estas são, em essência, descritivas, não trazem obrigatoriamente dentro de si conotações ideológicas ou de concepção de vida, prioridades, hierarquias ou julgamentos de valor.

Qualidade de vida poderia ser definida como a satisfação das necessidades individuais. O bem-estar provocado pela satisfação das suas necessidades definiria a qualidade de vida do indivíduo e a soma do bem-estar de todos os indivíduos constituiria a qualidade de vida da população. Esta definição, bastante aceitável por sinal, permitiria a existência de situações em que um indivíduo que, pelas mais variadas razões, não teve acesso à educação, ao conhecimento e à informação, poderia considerar-se extremamente feliz dentro da sua incomensurável pobreza.

Operacionalizar tal conceituação traria a reprodução das desigualdades sociais. Apesar de ser, aos olhos da sociedade, uma situação inaceitável, alguém poderia argumentar, e não sem razão: mas não é isso que procura o ser humano - a felicidade?

No plano particular da saúde, a operacionalização desse conceito implicaria adotar uma definição como a de Illich (1974), em que saúde não seria um estado, mas uma capacidade: a capacidade de se adaptar a um meio que se modifica, a capacidade de crescer, de envelhecer e de curar se necessário, de sofrer e de esperar a morte em paz.

A aplicação dessa definição nos levaria a intervir ou agir sobre os indivíduos somente no momento em que eles expressassem suas necessidades. Será que tal conduta seria aceita por uma 'sociedade' que, à luz do conhecimento existente, é capaz de identificar uma infinidade de situações não percebidas pelos indivíduos, mas que comprovadamente contribuem para a melhoria do seu estado de saúde, das suas condições de vida?

Neste momento, surge uma questão crucial: com que direito se pode impor a um indivíduo situações que ele não julga necessárias e que, por essa razão, não lhe trazem aumento no seu bem-estar? Muito pelo contrário, por se ver contrariado, poderia haver redução no seu bem-estar, na sua qualidade de vida. Os valores individuais (autonomia, liberdade, individualidade) se confrontam com os coletivos (igualdade, eqüidade, justiça social).

O artigo, apesar de ressaltar a importância de ambos, deixa, cuidadosamente, essa questão em aberto no momento em que utiliza termos como individual e coletivo, ou quando adota como pressuposto a existência de uma síntese cultural de todos os elementos que determinada sociedade considera o seu padrão de conforto e bem-estar. O que se depreende desta afirmação é que existiria uma síntese entre o individual e o coletivo em que todos se sentissem satisfeitos.

A economia, ao tratar da preferência dos indivíduos por um produto, bem ou serviço, traz elementos de resposta para essa questão quando afirma que é impossível construir uma curva de preferências agregada (coletiva) que seja representativa das curvas de preferências individuais. Isto quer dizer que com uma decisão coletiva é impossível agradar ao máximo a todos. Neste caso, alguns terão de impor suas preferências como ditadores invisíveis, como afirmam Maynard e Bloom, citados pelos autores.

Não é possível satisfazer a todos. Logo, para avançar no sentido da operacionalização, será necessário estabelecer o ponto - entre a satisfação das necessidades individuais e a satisfação das necessidades coletivas - a ser adotado como referência para desenvolver ações visando à melhoria da qualidade de vida. Ou, em outras palavras, definir o grau de imposição destas ações sobre os indivíduos, para atingir o nível de qualidade de vida estabelecido para cada sociedade.

Dallari (1987), ao se referir à mesma problemática em relação ao direito à saúde, coloca a questão: é justo que, em nome do direito à saúde, se restrinja o direito à liberdade do indivíduo? Conclui que os próprios membros da sociedade devem ditar as regras que garantirão o direito à saúde, dispondo por exemplo, que em benefício de todo o grupo cada indivíduo terá cerceada a sua liberdade de não ser vacinado contra a paralisia infantil, para que se acabe por fim com a doença. A forma como serão ditadas essas regras, ou como serão obtidos os necessários consensos na sociedade, ainda é questão não satisfatoriamente resolvida e que também necessitará de profundos desenvolvimentos.

A estratégia da promoção da saúde, que se baseia no conceito de campo de saúde, retomado por Dever (1988) nas suas estratégias para a prevenção (prevenção aqui entendida no sentido de prevenção de um mal maior), superaria essa questão, uma vez que propõe desenvolver todas as ações que contribuem para resolver um problema de saúde em uma perspectiva integral. Isto significaria ações de prevenção primária, secundária e terciária sobre o estilo de vida, ambiente, biologia humana e sistema de prestação de serviços de saúde sem hierarquizá-las, sem priorizar ou atribuir precedências. Essa perspectiva de ação seria válida e operacional se não vivêssemos em um mundo onde há escassez, onde há limitações de recursos.

Como os recursos são limitados, não basta saber se uma ação contribui ou não para a saúde ou bem-estar do indivíduo e/ou população. É necessário saber o quanto contribui, afinal, em um campo multifacetado, em que as necessidades são ilimitadas, inúmeras outras ações podem ser desenvolvidas com impactos positivos na saúde. É imprescindível, neste momento, se colocar a questão: que ação(ões) traria(m) maior benefício à saúde do indivíduo e/ou população com o mesmo esforço empreendido pela sociedade? Por esta perspectiva, é possível compreender a influência crescente dos fatores econômicos na tomada de decisão e na condução do setor saúde.

Tudo o que já foi exposto até então, neste artigo, só corrobora a necessidade de aprofundar o conhecimento, de criar condições e de implementar ações capazes de promover a saúde e a qualidade de vida e, nesse processo, a Saúde Coletiva, entendida como um campo fundamentalmente multidisciplinar, e [que] admite no seu território uma diversidade de objetos e de discursos teóricos, sem reconhecer em relação a eles qualquer perspectiva hierárquica e valorativa (Birman, 1991), constitui um espaço privilegiado para esse desenvolvimento.

A Saúde Coletiva, além de constituir um campo de conhecimento, é um campo de práticas. Uma relação em que o compromisso com mudanças efetivas na saúde da população constitui o elo que os tornam indissociáveis. É dentro deste contexto que os novos questionamentos foram lançados aqui, fazendo coro ao desafio lançado pelos autores: fazer da noção [qualidade de vida] um conceito e torná-lo operativo.

Referências bibliográficas

Birman J 1991. A physis da saúde coletiva. Physis 1(1): 7-11.

Dallari SG 1987. A Saúde do Brasileiro. Ed. Moderna, São Paulo.

Dever GEA 1988. A Epidemiologia na Administração de Serviços de Saúde. Ed. Pioneira, São Paulo.

Illich I 1974. L'expropriation de la santé. Esprit, juin: 931-940.

Terris M 1996. Conceptos de la promoción de la salud: dualidades de la teoría de la salud pública, pp.37-44. In OPS. Promoción de la Salud Pública: Una Antología. OPS, Washington DC.

Eduardo Faerstein 1

O debate qualidade de vida e saúde: outros aspectos a considerar

Quality of life and health debate: additional aspects to be considered

1 Departamento de Epidemiologia, Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro

O artigo de Minayo, Hartz e Buss, entre vários méritos, nos atualiza sobre tema de extrema relevância para o desenvolvimento conceitual e metodológico de nosso campo disciplinar, a Saúde Coletiva. Os autores sistematizaram boa parte da literatura recente sobre qualidade de vida, combinando informações sobre as diversas abordagens desenvolvidas dentro e fora da área da saúde e divulgando enfoques críticos de várias limitações existentes. Nossos comentários se concentram em alguns temas selecionados, com a intenção de trazer informações adicionais e de ampliar o debate.

Fora da área da saúde, como mencionam os autores, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), - e, portanto, outros nele inspirados - tem como base conceitos de capacidade e potencialidade humanas. Para a avaliação de sua riqueza analítica, pode ser útil conhecer as origens intelectuais de tais noções.

Um bom ponto de partida é a obra de Amartya Sen, economista indiano radicado nos EUA, professor de economia e filosofia na Harvard University e Prêmio Nobel de Economia. A obra de Sen - destacadamente o seu reexame do tema da desigualdade (Sen, 1992) - inclui-se, de modo especial, entre os esforços intelectuais contemporâneos que se opõem ao economicismo de várias filiações.

A natureza da pesquisa sobre qualidade de vida na área da saúde em geral, e mesmo na área médica em particular, abarca múltiplas tendências em cada sociedade. Essa multiplicidade torna imprecisa a generalização de que a reflexão e a prática do campo da saúde pública estejam dominadas pelo sistema médico, e mesmo que a incorporação do tema da qualidade de vida traga apenas uma visão medicalizada ou dominada pela lógica de custo-benefício, da forma como sugerem alguns críticos citados pelos autores.

Ao nosso ver, ainda que motivações primordiais de contenção de custos estejam sabidamente presentes, é inegável a presença simultânea de outros determinantes, sejam estes 'objetivos', como o aumento da esperança de vida ao nascer (com a exceção de países africanos devastados pela Aids, e de ex-repúblicas soviéticas devastadas pelo choque de capitalismo), ou 'subjetivos', como o crescente questionamento social sobre a efetividade de procedimentos médico-cirúrgicos. É preciso, antes de mais nada, saudar o fato de que a qualidade de vida das pessoas ganhe espaço como um critério de avaliação desses procedimentos, depois de muitos anos em que tais critérios se limitavam aos aspectos fisiopatológicos ou anatomopatológicos, ou à duração da vida.

Claramente, em suas formulações atuais, trata-se de um tema florescente na década de 1990. O periódico Quality of Life Research começou a ser publicado em 1992. Cerca de trezentos artigos indexados na base de dados Medline, entre julho e setembro de 1999, incluíam a expressão qualidade de vida em seu título, em periódicos cobrindo ampla gama de especialidades médicas, com aplicação em situações tão variadas como doenças crônicas e mentais, deficiências físicas, procedimentos mutilantes ou debilitantes, idosos etc.

Merece atenção o esforço desenvolvido pelo Grupo de Qualidade de Vida da Organização Mundial de Saúde. É bastante provável que, nos próximos anos, assistamos ao uso crescente desses questionários na pesquisa médica e na saúde pública. As versões longa (WHOQOL-100) e abreviada (WHOQOL-Bref) do questionário estão disponíveis no site da OMS (www.who.int). Nessa homepage, encontram-se, também, as listas dos quinze centros em todos os continentes que participaram do desenvolvimento do instrumento, em vinte idiomas, e das referências dos artigos já publicados e em preparação pelos grupos de trabalhos, como o The WHOQOL Group (1998). Módulos adicionais, para aplicação em subgrupos específicos (e.g. portadores de HIV, refugiados) estão sendo desenvolvidos. O grupo brasileiro (UFRGS) divulgou recentemente resultados de seu trabalho (Fleck et al., 1999).

Entretanto, como ressaltam Minayo et al., esses instrumentos privilegiam o componente subjetivo da qualidade de vida. Portanto, a combinação de indicadores que mensurem componentes objetivos e subjetivos da qualidade de vida constitui uma área estratégica de desenvolvimento metodológico. Não se trata, obviamente, de tarefa trivial. Nem sempre é nítida a demarcação entre o que é 'objetivo' ou 'subjetivo', e tampouco são sempre evidentes as dimensões da qualidade de vida em que cada componente, ou ambos seriam fundamentais para a sua mensuração. A comparação entre resultados empíricos de componentes objetivos e subjetivos, interrelacionados, revela, por vezes, inconsistências. No Canadá, conforme descrição que nos foi feita por G. Catlin, por essa razão, optou-se por eliminar dos inquéritos nacionais de saúde a mensuração do tamanho da rede social e freqüência de contato com a rede (componente objetivo); bem como por enfatizar dimensões do suporte social - que indicariam a percepção subjetiva do funcionamento efetivo da rede social -, visto que estas, ao contrário daquelas, foram as que se mostraram consistentemente associadas a desfechos relacionados à saúde naquele país.

É interessante relatar outras experiências. Em 1972, o Estudo Escandinavo Comparativo de Bem-Estar (Allardt, 1993) investigou necessidades básicas em relação a ter, amar e ser (Having, Loving, Being), com indicadores objetivos e subjetivos para uma dessas dimensões:

1) ter - condições materiais incluindo renda, educação, emprego, condições de trabalho, habitação, saneamento, nutrição e saúde;

2) amar - aspectos da vida de relação e formação da identidade social, inclusive vida familiar, amor e sociabilidade;

3) ser - oportunidades de realização profissional, crescimento pessoal, contato com a natureza e lazer; alienação.

Allardt (1993) comenta que, apesar de os indicadores de percepções subjetivas carregarem a aura de mais democráticos, podem levar a conclusões conservadoras quando, por motivos variados, alguns problemas (por exemplo, a qualidade do ar) têm sua importância subestimada por determinadas sociedades ou estratos populacionais. Com o uso exclusivo de indicadores objetivos, no entanto, pode-se incorrer em dogmatismo técnico. Vale ressaltar que análises dessas relações empíricas entre indicadores objetivos e subjetivos - especialmente de suas inconsistências - podem fornecer informações valiosas dos pontos de vista científico e das políticas públicas.

Referências bibliográficas

Allardt E 1993. Having, Loving, Being: an Alternative to the Swedish Model of Welfare Research, pp.88-94. In M Nussbaum M. & A Sen (eds.). The Quality of Life. Oxford University Press, Nova York.

Fleck MPA et al. 1999. Aplicação em português do instrumento de qualidade de vida da Organização Mundial de Saúde (WHOQOL-100). Revista de Saúde Pública São Paulo 33(2):198-205.

Sen A 1992. Inequality Reexamined. Harvard University Press, Cambridge.

The WHOQOL Group. The World Health Organization quality of life assessment (WHOQOL): development and general psychometric properties. Social Science and Medicine 46:1.569-1.585.

Ana Maria Fernandes Pitta 1

Qualidade de vida: uma utopia oportuna

Quality of life: an opportune utopia

1 Departamento de Gestão de Políticas Estratégicas da Secretaria de Políticas de Saúde do Ministério da Saúde

A discussão sobre qualidade de vida, a panacéia da década, desenvolvida de modo proativo e crítico a um só tempo, por Minayo, Hartz & Buss, é um exercício generoso e oportuno. Em artigo instigante, os autores nos brindam com uma sistematização criteriosa das diferentes abordagens sobre o tema que tem suscitado um número expressivo de publicações nas duas últimas décadas.

O artigo traz uma tríade de possibilidades reflexivas. Qualidade de vida entendida como: 1) estilo de vida, modo de vida, condições de vida; 2) desenvolvimento sustentável, sem pecados ecológicos; e ainda 3) pragmatismo utópico relacionado com o respeito a direitos humanos e sociais, em um exercício de cidadania ativa, incursionando no campo da democratização da saúde.

Sinto-me tentada a fazer alguns comentários paralelos no sentido de incluir aspectos subjetivos, presentes no texto, mas seguramente não desenvolvidos por serem muito específicos, como a inclusão da subjetividade de pessoas que sofrem com transtornos mentais nesse movimento de ruptura da noção tradicional de cura.

Por ser um conceito equívoco, que se modifica na dependência de cada sujeito, qualidade de vida, quando relacionada à doença, pode problematizar, de modo diferente, a noção de cura como avatar uma procura frenética da medicina de eliminar sinais e sintomas reveladores de debilidades do corpo ou da mente.

Cura como remissão de sintomas, substituída por cura no seu sentido latino mais puro de tomar a si a responsabilidade de cuidar, pressupõe uma visão de promoção à saúde que considera as pessoas nos estados em que elas podem se apresentar, sem exigir-lhes qualquer sacrifício eugênico de tornarem-se sadias a qualquer preço para enfeitar estatísticas de sucesso terapêutico ou de bem-estar. É certo que os sintomas incomodam e que faz parte de um melhor padrão de qualidade de vida reduzi-los, ou até mesmo eliminá-los, quando possível. Não se deve, entretanto, desistir de melhorar o padrão de vida dos sintomáticos se tal superação de sintomas não se faz possível.

O impacto sobre a qualidade de vida de pessoas vitimadas de diferentes formas de limitações físicas e/ou psíquicas tem sido objeto de escutas e avaliações. Isso tem influenciado a intencionalidade ética de governos e prestadores que passam a considerar a efetividade dos tratamentos do ponto de vista dos seus usuários, e a eficácia (tecnológica) e eficiência (custos) das respostas que estão sendo proporcionadas por técnicos e sociedade, habitualmente resistentes às dimensões muito subjetivas do que se concebe como necessidades e pontos de vista da clientela.

Mergulhando e até defendendo esse caráter subjetivo que concede humanidade e singularidade aos processos avaliativos, valorizei no artigo, sobremodo, a fuga dos racismos quali-quantitativos para estudar uma abordagem tão delicada e imprecisa, qual seja o quanto medidas e tratamentos podem favorecer a vida das pessoas. Nestes últimos anos tenho acompanhado o interesse de parte da comunidade científica em estudar, entre os portadores de transtornos mentais severos, como as esquizofrenias, depressões graves e outras psicoses, as repercussões que o peso da doença, dos tratamentos e institucionalizações costumam imprimir em um cotidiano, que pode sempre ser melhorado se considerarmos seus universos de valores.

São grupos humanos evitados quando se examina a bizarrice dos seus estilos de vida, os modos como desenvolvem o ambiente e sobrevivem na sociedade e, ainda, sua característica própria de um cidadão que é diferente. Problematiza-se, a um só tempo, a razão avaliativa, a objetividade dos métodos e técnicas e a intencionalidade ética dos que se pretendem democráticos na consulta aos interesses dos que demandam, em última instância, fraternidade e solidariedade para fazer valer seus direitos à saúde e a melhor qualidade de vida possível, segundo seus próprios critérios.

O estudo The Global Burden Disease (OMS/ Banco Mundial/Harvard), a despeito de críticas que se façam às suas limitações, inova ao deixar de lado clássicos indicadores de mortalidade, para considerar perda de anos de sobrevida saudável e as suas incapacidades decorrentes como mais adequados para avaliar a saúde de populações. Realçam o enfoque de promoção e qualidade de vida, enfatizando amplos programas de reabilitação psicossocial com garantia de renda, moradia, trabalho e lazer para pessoas em desvantagem. É preocupante, ainda, o achado que tal estudo revela: das dez doenças mais incapacitantes no mundo, cinco são de natureza psiquiátrica. Além disso, a primeira delas, a depressão maior, acomete cinqüenta milhões de pessoas, seguida do alcoolismo, doenças afetivas bipolares, esquizofrenias e transtornos obsessivos compulsivos.

Introduz-se a possibilidade de um novo paradigma de cura, não centrado na díade doença/saúde, com o que ela encerra no seu projeto de reparação do órgão lesado nas oficinas especializadas em devolver normais e sadios à sociedade. Abandona-se, assim, a noção de isolar o doente em uma quarentena curativa capaz de torná-lo saudável e apto para o convívio na sua coletividade. O tempo e as tecnologias disponíveis nos dizem que não é bem assim quando se trata de transtornos mentais. Os arranjos que tornam possível a vida dessas pessoas são singulares e muitas vezes incompreensíveis e desconcertantes a olhos incautos.

Mais discretas em número de publicações, mas não menos ricas e reveladoras da vida e do mundo de pessoas que sofrem com transtornos mentais severos, têm sido as contribuições etnopsicológicas e antropológicas de Corin (1979) ao acompanhar a vida de esquizofrênicos em Montreal, Canadá. Com base em uma série de entrevistas de pessoas que receberam um diagnóstico de esquizofrenia, tem sido possível reconstituir uma espécie de etnografia do cotidiano e, mais particularmente, examinar a maneira como se organiza a vida concreta dessas pessoas na relação com a sociedade. Estudos antropológicos desenvolvidos por Corin, no Canadá, e Goldberg (1998), no Brasil, investigando a vida e o mundo de esquizofrênicos, revelam arranjos muito particulares que pervertem noções que o senso comum considera como modelos de vida passíveis de serem vividos. A persistência de um delírio, de um ritmo sono/vigília invertido, da ausência ou presença de familiares, suscita respostas singulares, não previstas, e arranjos personalizados que fazem essas pessoas avaliarem positiva ou negativamente situações de vida inusitadas.

O comportamento psicótico é identificado como desviante em qualquer cultura. Entretanto, não existe um consenso universal quando se traduzem tais comportamentos nos sistemas classificatórios vigentes ou mesmo nas escalas avaliativas consagradas. Existe o esforço de alguns autores de incluir o manejo do sofrimento, das experiências institucionais, das vivências familiares (costumam percorrer uma via de sociabilidade muito própria), valores e ajuizamentos sobre os diferentes domínios da vida psicótica que podem se incorporar ao acervo de estudos elencados no artigo aqui discutido para outros grupos de patologias.

Se agrego comentários específicos sobre a qualidade de vida de pessoas que sofrem com transtornos mentais a este debate, que deve estar centrado no artigo em foco, é apenas para realçar o quão oportuna é, para esse grupo de pessoas, a discussão quando se abandona o eixo exclusivo da emissão de sintomas ou qualquer outra concepção de cura idealizada na clínica e se passa a operar sob uma lógica de promoção à saúde e à vida mesmo daquelas que padecem com transtornos mentais severos e, com freqüência, persistentes. Cabe-nos, sem preconceitos, buscar escutá-los e imaginar com eles que existem possibilidades mais saudáveis de arranjar suas vidas, tendo garantidas satisfação de necessidades objetivas (morar, comer, trabalhar) e subjetivas (desejos, fantasias, amores, felicidade) conforme a cultura e os valores que lhes sejam próprios, balizados, é certo, por convenções universais, ou significado planetário que também os influenciam na arte ou ciência de viver, embora não seja isso uma regra quando a 'desrazão' é a razão.

Nesses últimos 15 anos, observamos uma busca intensa de instrumentos multidimensionais para medir os diferentes domínios da vida das pessoas que se encontram: 1) desenvolvendo programas de tratamento na comunidade; 2) acompanhadas em ensaios clínicos com novas drogas; 3) participando de outras iniciativas de cuidados passíveis de estudos comparativos entre dois ou mais grupos, submetidos a tipologias diferentes de intervenções; 4) necessitadas de mudar a orientação de tratamento visando potencializar aspectos ou domínios de vida minimizados e 5) definindo políticas de cuidados e/ou responsáveis pela atenção a essas dificuldades.

Não é fácil consultar pessoas que trazem como traço marcante rupturas radicais com as formas habituais de linguagem, valores, necessidades. Os trabalhos mais bem-sucedidos se iniciam quantitativos, utilizando escalas como: QOL Scale (Heirichs, Hanlon, & Carpenter 1984), QOL Interviews (Lehman, 1997), W-QLI (Becker & Diamond, 1997). E também as contribuições da Organização Mundial de Saúde - WHOQOL e WHO-Satis, esta última traduzida, adaptada e validada no país pela equipe do Núcleo de Ensino e Pesquisa em Saúde Mental da Universidade de São Paulo.

Não há um instrumento universal que possa comparar a vida de esquizofrênicos no Brasil, no Canadá, no Sri Lanka, na Inglaterra, sem aproximações grosseiras. Entretanto, com base nos estudos sobre o tema, podem-se observar alguns pontos importantes: 1) o interesse em avaliar o impacto na qualidade de vida das pessoas que freqüentam serviços de saúde mental, mesmo em se tratando de pessoas com transtornos mentais severos, para além de avaliar qualquer coisa, introduzem igualmente uma mentalidade de promoção de saúde em programas com essa vocação. Perseguir melhores padrões de satisfação em diferentes domínios do viver cotidiano parece contribuir para a potencialização da condição de cidadão em uma sociedade excludente; 2) ordem de prioridades diferentes para pacientes, familiares e profissionais de saúde, quando se consideram projetos de vida, finanças, afetos, liberdade, trabalho, moradia, acenam com projetos distintos no planejamento de ações que promovam os diferentes grupos. Tendo a eqüidade como referência para grupos humanos diferentes, caberá maiores investimentos aos que precisam mais, para garantir igualdade de tratamento; 3) a boa adesão dos clientes aos estudos de impacto sobre qualidade de vida como uma percepção de cuidado e respeito aos seus interesses, mesmo com instrumentos nem sempre ajustados culturalmente aos seus valores e interesses, revela um potencial democrático desses estudos; 4) qualidade de afetos em países subdesenvolvidos substitui, com vantagens, qualidade de recursos materiais em países desenvolvidos na evolução de pacientes com transtornos mentais severos.

A simpatia com que advogo as pesquisas avaliativas, que levam em conta o impacto sobre a qualidade de vida dos usuários dos sistemas de saúde, se dissipa quando observo o alerta dos autores quanto à intenção de a saúde pública querer hierarquizar os custos de seus atos com instrumentos como o QALY, DALY, ou qualquer outro semelhante. A utilização desses indicadores para decidir investimentos desconsiderando grupos populacionais marginais, loucos, miseráveis, desafiliados, me faz agregar às preocupações dos autores duas outras questões. Primeira: a ditadura invisível de valores de qualidade de vida atribuídos pelo senso comum dos normais - hegemônicos na sociedade - poderá eliminar o potencial de eqüidade dessas iniciativas? Segunda: a construção de novos indicadores centrados no impacto sobre a qualidade de vida dos beneficiários do sistema e níveis de satisfação com serviços e ações têm chances de competir com indicadores clássicos de avaliação de programas e políticas de saúde? Qual a saturação necessária para isso acontecer?

Para finalizar, resta-me apenas agradecer a chance de agregar inquietações a uma já muito corajosa iniciativa.

Referências bibliográficas

Becker M & Diamond R 1997. New developments in quality of life measurement in schizophrenia, pp.119-133. In H Kaltschnig, H Freeman & N Sartorius (eds.). Quality of Life in Mental Disorders. John Wiley and Sons, Chichester, Inglaterra.

Corin E 1979. Contraintes et stratégies: la pertinence de la notion de communauté dans le cas de patients schizofrènes, 179:195.

Goldberg J 1998. Cotidiano e instituição: revendo o tratamento de pessoas com transtorno mental em instituições públicas. Tese de doutorado. Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo. 325 pp.

Heirichs DW, Hanlon TE & Carpenter Jr. WT 1984. The quality of life scale: an instrument for rating the schizophrenia deficit syndrome. Schizophrenia Bull 10(3):389-398.

Lehman AF 1997. Instruments for measuring quality of life in mental illness, pp.80-84. In H Kaltschnig, H Freeman & N Sartorius (eds.). Quality of Life in Mental Disorders. John Wiley and Sons, Chichester, Inglaterra.

Lia Giraldo da Silva Augusto 1

Qualidade de vida: necessidade reflexiva da sociedade contemporânea

Quality of life: reflexive needs of contemporary society

1 Centro de Pesquisa Ageu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz

O tema indicadores de qualidade de vida vem sendo alvo de interesse da saúde coletiva e tem sido uma necessidade permanente, para todos que se interessam pelo assunto. Trata-se de um verdadeiro desafio construir indicadores que sejam capazes de qualificar a qualidade de vida. Os autores, do artigo em debate, partem do relativismo cultural, que limita as tentativas de alcançar um indicador de qualidade de vida, fazendo crítica ao reducionismo dos indicadores de um modo geral. Situam esta discussão no momento histórico da sociedade pós-fordista, do despertar ambientalista e das proposições do desenvolvimento sustentável.

A natureza crítica da problemática que envolve esta questão nos remete aos desafios teóricos de encontrar soluções práticas para o desenvolvimento de indicadores que sirvam para distintas relações socioecológicas, em toda sua complexidade e que, atualmente, vivem o processo de globalização. Ao aceitar o convite para debater o presente artigo, fui buscar alguns poucos pensadores que tratam o tema, apenas como um complemento à excelente revisão feita aqui por seus autores. Um ponto, que pode balizar o debate proposto, pode ser o relativo ao entendimento de que os indicadores de qualidade de vida são uma necessidade reflexiva das instituições desse período da história da humanidade, e que busca uma recombinação das distâncias temporais e espaciais existentes, pois que necessitam usar, cada vez mais, os sistemas de informação para organizar e reorganizar os ambientes de intervenção político-econômica, na nova ordem mundial. Possivelmente, os indicadores são muito mais para dar respostas às demandas das agências financiadoras mundiais do que, de fato, serem instrumentos voltados para demonstrar e ver resolvidas as iniqüidades que se observam nas realidades locais. Estas questões, ao meu ver, estão carregadas de dúvidas metodológicas e isso também constitui-se uma característica do momento em que vivemos.

Hoje, a todos parece ridículo o uso do crescimento econômico, como foi na década de 1960, para medir a qualidade de vida dos povos. Também, como se refere Giddens (1994), está claro que o estilo de vida relacionado aos padrões de consumo da vida material foi o responsável pela poluição e deterioração ambiental, pois que, como modelo de desenvolvimento, comprometeu todo o globo terrestre. Pode-se dizer que os indicadores de qualidade de vida social, propostos na atualidade, são descendentes do bem-estar econômico e da grande tecnologia e são incapazes, ainda, de incorporar os efeitos do modelo de desenvolvimento sobre o ambiente natural e social, uma vez que, para isto, seria necessário uma teoria de sociedade que fosse internacionalmente aceita, como resultado de deliberações políticas. Por este motivo, a noção de qualidade de vida perde força nesse processo (Ammassari, 1994). Assim, o Produto Interno Bruto (PIB), que refletia uma deliberação política, foi utilizado como um termômetro do desenvolvimento econômico, tornando-se um conceito inadequado para medir a qualidade de vida social. Aos poucos tornou imperativo reconhecer outros aspectos da qualidade de vida, tais como os relacionados com a cultura, valores e dimensões das necessidades e perspectivas de bem-estar. Dunlap (1980) e Catton (1992) propuseram que os indicadores de qualidade de vida deveriam ser abordados em três categorias: indicadores físicos (por exemplo, os relacionados com habitação, saneamento); indicadores de direito (os relacionados com as condições sociais e políticas) e os indicadores subjetivos, que seriam obtidos diretamente das pessoas (os relacionados com os aspectos específicos de satisfação pessoal). Mas, estes autores alertam que, a justaposição dos indicadores físicos e legais com os da percepção subjetiva das pessoas só são congruentes se, em cada país, tiverem sentido político. Na medida que a perspectiva ambiental passou a ganhar notoriedade para a crítica do desenvolvimentismo, um novo paradigma se instituiu, no qual a perspectiva ecológica surge como uma alternativa para modernização. Nesse sentido, Oommen (1990) refere que os elementos necessários para construir um índice de qualidade de vida inclui a mudança na abordagem do Estado e do Movimento Social. Esta condição é necessária, para que o indicador se torne um instrumento social de transformação e de evolução político-social, deixando seu caráter de manutenção do status quo, para adquirir um caráter de indução de mudanças. Outro aspecto epistemológico é entender o discurso do indicador e saber que sempre está subordinado a uma variável de nível superior, que lhe dá o contexto (Samaja, 1999). O conceito de qualidade de vida como dimensão de um sistema de indicadores sociais, materiais e psicológicos, de bem-estar social, obriga a uma operação de ordenação destituída de relações. No entanto, a vida é fruto de relações sociais e sua qualidade depende da qualidade do resultado dessas relações. Nesta direção, Slzai (1980) afirma que uma relação social tem qualidade quando há conhecimento, aprendizado e internalização de regras, as quais estão lingüisticamente estruturadas e comunicadas para construir um padrão de valores éticos. Diversas tentativas de pesquisas empíricas têm sido feitas para medir a qualidade de vida coletiva e individual, levando-se em consideração o modo de vida, nível de vida, a satisfação na vida e qualidade ambiental. Nesse sentido, tem-se dado ênfase para os sentimentos subjetivos das condições de vida. Mas a felicidade ou satisfação com a vida, como variável dependente, é uma caixa preta, pois a dimensão coletiva não pode ser descrita pela agregação das felicidades individuais.

Oommen (1990) propõe ainda que a qualidade de vida possa ser entendida dentro de uma política social concernente a dois pontos: liberdade e eqüidade, aqui entendida como acesso a bens materiais e de oportunidades. Podemos concluir que os indicadores de qualidade de vida são muito mais complexos do que podemos imaginar. O tema assim está aberto, tornando o presente artigo precioso e de grande importância para o campo da Saúde Coletiva e para todos aqueles que dedicam-se a sua reflexão.

Referências bibliográficas

Ammassari P 1994. Ecology and the Quality of Social Life, cap. 4, pp. 43-49. In William V. D'Antonio, Masamuchi Sasaki & Yoshio Yonea Yashi. Ecology, Society & The Quality of Social Life. Ed. Transaction Publishers, Londres.

Catton WR 1992. Separation versus Unification in Sociological Human Ecology. Advances in Human Ecology, Vol. 1, ed. Lee Freese. Greenwich. TAI Press, pp. 65-99.

Dunlap RE 1980. Paradigmatic Change in Social Science: from Human Exemptionalism to an Ecological Paradigm. American Behavior Scientist, 24: 5-12.

Giddens A 1994. Industrialization, Ecology and the Development of Life Politics, cap. 2, pp. 11-31. In William V. D'Antonio, Masamuchi Sasaki & Yoshio Yonea Yashi. Ecology, Society & The Quality of Social Life. Ed. Transaction Publishers, Londres.

Oommen TK 1990. Protest and Change: Studies in Social Movements. Ed. Sage Publications Nova Deli, Londres, Newbury Park.

Samaja J 1999. La Semantica del Discurso Científico y el Analisis de Matrices de Datos (Mimeo).

Slzai A 1980. The Quality of Life: Comparative Studies. Ed. Alexander Szlai & Frank M. Andrews, Sage Publications. Londres.

Os autores respondem

The authors reply

Na discussão do nosso artigo "Qualidade de vida: um debate necessário", tivemos a generosa contribuição de cinco companheiros que leram o nosso texto sob diversos ângulos, muito contribuindo para a ampliação da reflexão sobre o tema. Houve alguns pontos comuns assinalados por todos, entre os quais destacamos a forma ainda pouco aprofundada com que o tema é tratado; as dificuldades de criação de indicadores quantitativos e qualitativos articulados e o risco de ideologização da noção de qualidade de vida. Mais do que os pontos de concordância, porém, é relevante assinalar as contribuições singulares trazidas por esses nossos leitores críticos.

Em seu texto "Qualidade de vida e saúde: além das condições de vida e saúde", o questionamento central de Goldbaum é sobre as relações entre clínica e saúde pública, e sobre as imprecisões do conceito de promoção da saúde. Concordamos com Moisés, e sua reflexão apenas reforça nossas preocupações, pois se é verdade que a clínica, ao criar indicadores de qualidade de vida, é estritamente fiel ao seu próprio paradigma, essa mesma área, nos últimos tempos, tem expandido sua atuação para abranger o conceito de promoção, num sentido mais coletivo. Podemos dar alguns exemplos a partir de atividades promovidas por sociedades médicas. Os congressos de cardiologia hoje organizam eventos populares simultâneos, buscando informar a população sobre o papel dos estilos de vida na produção das cardiopatias. A Sociedade de Pediatria assumiu a prevenção da violência doméstica como objeto de campanhas e orientação a seus associados, por causa da relação desse problema social com o crescimento e o desenvolvimento. A Sociedade de Emergência e Trauma resolveu tomar como sua a prevenção dos acidentes de trânsito e do consumo abusivo de álcool, fatores reconhecidos de risco para as lesões, traumas e mortes por causas externas. Daí que, ao concordarmos com o nosso debatedor, transferimos aos leitores nossas preocupações: na verdade, existe hoje um "núcleo duro" de cada área, campo ou disciplina, como é o caso dos nichos específicos da saúde pública e da clínica. Porém, é mais evidente ainda o fato de existir um certo apagamento das fronteiras disciplinares nesse novo momento da ciência. A recíproca apropriação dos saberes proporcionada pelas trocas inter e transdisciplinares, contraditoriamente às práticas desse tempo de radicalização das reservas de mercado, não pode ser considerada um problema, e sim uma bênção. Porém, o que tem acontecido no caso das relações entre clínica e saúde pública é que a "extensão" do conceito de promoção mexe no próprio coração do paradigma da saúde pública que, por sua vez, não está suficientemente claro, definido, nem muito menos praticado. E, no entanto, ele é o nosso vínculo essencial com o conceito de qualidade de vida.

Edson Tamaki, em "Qualidade de vida: individual ou coletiva?", aprofunda a reflexão sobre as dificuldades práticas trazidas pela tensão entre os anseios individuais e o estabelecimento de padrões coletivos de qualidade de vida que, por tratarem de uma média, desconhecem os diferentes níveis de aspiração. É verdade que nunca haverá um indicador capaz de sintetizar as expectativas de todos. Porém, na sociedade, hoje temos algumas questões que já se tornaram padrões universais, através dos chamados Direitos Humanos, Sociais, Políticos e de Terceira Geração. E sobre esses, transformados em leis da própria humanidade (embora construídos culturalmente), o coletivo se impõe sobre o individual. Por exemplo, o analfabetismo, os espancamentos, as mutilações, a mortalidade infantil, a falta de acesso à sobrevivência são inaceitáveis, mesmo e apesar de qualquer justificativa religiosa ou subjetiva que se possa apresentar. O problema maior se observa, ao contrário, no patamar social economicamente mais elevado, onde as classes dominantes tendem a colocar os padrões de acordo com seus gostos, suas aspirações e suas posses, chamando qualidade de vida privilégios insustentáveis coletivamente. Na verdade, concordamos com o nosso debatedor sobre as grandes dificuldades existentes no estabelecimento de indicadores universais. Nosso leitor crítico retoma a questão da promoção da saúde como o tema central que deveria galvanizar nossa força de pensamento e ação. Nesse sentido, sintoniza-se com as mesmas preocupações de Goldbaum, acrescentando a necessidade de estabelecer e exercitar escolhas de ações que contribuam para resolver problemas de saúde numa perspectiva integral. Nossa pergunta ao caro debatedor é se não valeria a pena pensar o conceito de promoção não limitado à resolução de problemas de saúde, mas sobretudo como um campo promotor dos padrões que consideramos coletivamente equânimes de saúde.

Em "O debate qualidade de vida e saúde - outros aspectos a considerar", Eduardo Faerstein, mesmo numa leitura generosa, não deixa de assinalar nossa tendência generalizadora, ao acolhermos autores que consideram o campo da saúde pública dominado pela lógica biomédica. Aceitamos a crítica, porque nos incluímos entre os que corroboram essa visão. Talvez tenha sido exagerada essa ênfase, mas queríamos deixar claro o nosso pensamento de que, apesar de todo o discurso, continua muito tênue, no campo da saúde pública, o esforço para levar às últimas conseqüências o conceito e a prática de promoção da saúde. Goldbaum e Tamaki também assinalaram junto conosco esse problema que, ao nosso ver, deveria ser pauta relevante de aprofundamento do campo da saúde coletiva. Apreciamos também o otimismo do nosso leitor ao chamar a atenção para o fato positivo que significa a preocupação da clínica com a qualidade de vida dos pacientes, o que, sem dúvida, revela um salto qualitativo da reflexão médica e da Organização Mundial da Saúde nos anos 90. Nosso debatedor enriqueceu sobremaneira a reflexão com novos dados, trazendo outros estudos, inclusive um do início da década de 1970. Foi muito importante a lembrança da obra de Amartya Sen, o Prêmio Nobel de Economia, a qual estava subjacente à nossa reflexão. Esse autor não só modificou o indicador de progresso que vigorou até o final dos anos 70, então fundamentado na visão economicista do tamanho do PIB dos países, como foi o principal responsável pela construção do IDH. Devemos lembrar também que as modificações, realizadas em 1999, dos critérios para a construção do ranking de desenvolvimento, no qual o Brasil retrocedeu (por causa das extremas desigualdades sociais), causando grande mal-estar nas esferas do poder, também são de sua responsabilidade. Concordamos com o nosso debatedor sobre a necessidade de exercitar a visão crítica sobre os indicadores, sejam eles objetivos ou subjetivos, pois podem eles se transformar em instrumentos ideológicos dos grupos dominantes, tendendo, portanto, a magnificar alguns problemas e a ocultar outros, de acordo com interesses subjacentes de várias ordens.

Ana Maria Pitta nos brindou com uma excelente contribuição, a que denomina "Qualidade de vida: uma utopia oportuna", sobretudo porque sanou uma grande lacuna em nossa reflexão. Pela sua intensa militância na área da saúde mental, nossa debatedora entra numa seara relativamente (porém não suficientemente) discutida na área da saúde, mas muito menos assumida pela sociedade em geral, qual seja, a qualidade de vida das pessoas que sofrem transtornos mentais. Na verdade, Pitta provoca nossa cômoda idéia de qualidade de vida por excluir, na sua definição, os diferentes. Por outro lado, assume um papel propositivo, ao revelar que, no caso das doenças mentais, é fundamental abandonar o eixo exclusivo da remissão de sintomas, ou qualquer outra concepção de cura idealizada na clínica, para operar sob uma lógica de promoção da saúde e da vida mesma daqueles que padecem de transtornos mentais severos e, com freqüência, persistentes. Os pontos que a nossa leitora advoga como centrais para a qualidade de vida dos que sofrem de doenças mentais são, de fato, questões que retratam os lapsos da nossa sociedade com tudo e com todos que são diferentes ou "ofendem" a nossa sensibilidade acomodada. As metas de qualidade de vida que incluam esses sujeitos sociais, segundo a debatedora, pressupõem uma visão de promoção da saúde que considera as pessoas no estado em que podem se apresentar, sem exigir delas qualquer sacrifício eugênico de tornarem-se sadias a qualquer preço, para enfeitar estatísticas de sucesso terapêutico ou de bem-estar. As perguntas que coloca no final do texto, nós as encampamos e as universalizamos como questões de grande pertinência para o avanço do debate que ora iniciamos.

Por último, o texto de Lia Giraldo, "Qualidade de vida: necessidade reflexiva da sociedade contemporânea", coloca o tema em debate no âmbito do relativismo cultural e das tensões uniformizadoras que a globalização da cultura tende a exacerbar. Nossa leitora aprofunda a crítica sobre essa necessidade histórica de qualificar a qualidade de vida, freqüentemente fazendo tábula rasa dos problemas socioeconômicos fundados na acumulação de capital e nas condições reais de existência das classes sociais. Porém, sua ênfase maior se dá no reconhecimento das mudanças de pauta política trazidas pelo movimento ambientalista. Essas mudanças vêm qualificar de forma diferenciada esta reflexão, sobretudo em dois aspectos. Primeiramente, no sentido de que o tema do ambiente tem dois pressupostos básicos: a essencialidade da relação entre ser humano-natureza e o pressuposto, derivado deste primeiro, de que o conceito de ambiente é construído pela ação humana e, assim, pode ser repensado e modificado, tendo em vista nossas responsabilidades presente e futura com a qualidade de vida, não só dos seres humanos como a da biosfera. Num segundo sentido está a discussão sobre o conceito de desenvolvimento. Este termo deixou de ser a palavra mágica que durante quase meio século embalou os planos dos países desenvolvidos e os sonhos dos subdesenvolvidos, numa visão evolucionista do progresso, numa corrida sem limites pelo domínio da natureza, das matérias-primas, de forma desenfreada e predatória. Hoje, a palavra desenvolvimento parece inspirar mais problemas que soluções, indicando que a conquista de melhores padrões de qualidade de vida não pode ser um projeto excludente. O texto de Lia chama, então, a atenção para o fato de não podermos esperar apenas do extraordinário avanço tecnológico a solução dos problemas de maior eqüidade e bem-estar. A debatedora assinala que a qualidade de vida deve ser entendida dentro de uma política social que enfatize dois pontos: eqüidade e liberdade. Ou, como lembrava Eduardo Faerstein, rememorando o Estudo Escandinavo Comparativo de Bem-Estar, essa qualidade está no equilíbrio entre ter, amar e ser. Como nada disso é uma tarefa simples, temos que continuar a buscar formas de transformar em ação todas as propostas que nos permitam não apenas pensar, mas sobretudo usufruir melhor padrão coletivo do que entendemos como qualidade de vida.

No final desta réplica, cabe-nos mais uma vez agradecer aos debatedores, que nos permitiram ampliar e dar mais asas a reflexões e expectativas, para que nós, atores da saúde coletiva, criemos referenciais cada vez mais adequados à promoção da qualidade de vida da população brasileira.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jul 2007
  • Data do Fascículo
    2000
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cienciasaudecoletiva@fiocruz.br