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Liberdade obrigatória como pharmakon do humano demasiado humano

Mandatory freedom as pharmakon of the excessively human human

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Liberdade obrigatória como pharmakon do humano demasiado humano

Mandatory freedom as pharmakon of the excessively human human

Fermin Roland Schramm

ENSP/Fiocruz. roland@ensp.fiocruz.br

O rico, instigante, polêmico e bem-vindo artigo de Ana Maria Aleksandrowicz e Maria Cecília Minayo se presta a uma série de comentários críticos seja no âmbito discursivo da saúde pública seja naquele, mais geral e, provavelmente, mais abstrato, da filosofia; mais especificamente, naquele da interface entre filosofia e ciências. Em minha contribuição pretendo abordar aquele que considero o problema central do artigo e que é ao mesmo tempo de tipo cognitivo e ético. Cognitivo porque referido ao tipo de relação, existente na cultura ocidental contemporânea em geral e na cultura sanitária em particular – consideradas prevalentemente "humanistas" e "kantianas" pela autora – entre a causação natural ou determinismo, que originaria e estruturaria qualquer sistema vivo – inclusive o humano entendido como ente bioecológico –, por um lado, e a autonomia simbólica e imaginária do humano entendido como ser possuidor de liberdade e uma crescente autonomia com respeito a seu substrato bioecológico e suas "necessidades", por outro. E, por isso mesmo, teria algo como um poder de transformar sua biologia que, com Nietzsche, poderíamos chamar de "demasiado humana", visto que o Homem é "o animal não fixado", um "semiproduto" que deve completar-se por si mesmo compensando suas faltas naturais pela sua inteligência e cultura, inclusive pela sua competência biotecnocientífica. Em outros termos – e nisso o problema se torna também propriamente ético –, as autoras se perguntam qual é o tipo de vínculo que hoje existe na conceituação que temos (sobretudo no campo da saúde em que, segundo elas, apareceria uma referência à humanização em boa parte inconsciente de seus fundamentos epistemológicos) sobre a relação entre as assim chamadas "primeira" e "segunda" natureza humana, ou seja – referindo-nos agora a uma distinção kantiana, autor criticado pelas autoras –, entre o ser vivo provido de "entendimento" (que qualquer animal suficientemente complexo em princípio teria por ser, acredita-se, capaz de adotar os meios necessários para satisfazer os instintos que garantem a sua sobrevivência) e a "razão" (que, até onde hoje se saiba, só pertence ao animal neotérico humano por ser capaz também de compensar sua falta de instintos pela escolha dos fins de seu agir, mesmo contra suas necessidades de "primeira" natureza). Em suma, o principal problema posto, neste caso, é, a meu ver, a relação entre imanência e transcendência no agir do ser humano, entendendo a primeira, de maneira espinozista, como algo que pertence à condição humana enquanto tal; e a segunda como um outro algo que, indo mais além da condição "demasiado humana", seja capaz de "transcender-se" rumo a um outro e à alteridade que pode, eventualmente, ser também o Outro, numa autêntica relação "fora de si", inclusive fora de sua natureza primeira rumo à cultura e à técnica, constitutivos de uma "natureza" segunda ou, se preferirmos, de uma anti-natureza. O problema é muito complexo e sério por muitas razões e nos remete à possibilidade, ou não, de integrar o eventual hiato entre as assim chamadas duas naturezas no humano numa eventual síntese capaz de dar conta, tanto no pensamento como na ação, de uma provável ruptura entre o que supostamente é (antiga questão levantada, como pertinente, por Kant e recusada pela fenomenologia husserliana como não pertinente para o ser de experiência que somos) e o que se dá a nós em nosso estar num mundo de entes e seres que se relacionam com coisas e outros seres, vivenciados como "objetos" e nunca como coisas e seres em si (ou númenos), independente da relação que nós estabelecemos com eles (e eventualmente eles com nós).

A solução proposta pelas autoras – na tradição espinozista que considerava, contrariando Descartes, que só existe uma única substância extensa e não duas (como pretendia Descartes ao separar res cogitans e res extensa) – e adotada também por Henri Atlan é a de que a eventual autonomia humana e sua vertente humanista sartriana da "terrível liberdade" estariam (de facto? De jure?) numa relação não disjuntiva, não dicotômica, mas, sim complexa ou, se preferirmos, que elas deveriam ser pensadas num tipo de relação na qual a eventual autonomia simbólica e imaginária humana (ou "segunda natureza") pudesse ser considerada como qualidade emergente da "primeira natureza" no humano em suas relações consigo e com a Lebenswelt, feita de fenômenos, pessoas, coletividades e programas de saúde, quer dizer: "objetos"! Em suma, o livre-arbítrio, tão caro a uma longa tradição iluminista "humanizadora", não seria algo externo, e em oposição, ao domínio da necessidade, mas sim, um elemento integrável num todo, certamente tenso e contraditório, mas, também, considerado uma unidade de nível hierárquico superior (ou mais complexo) capaz de dar conta, tanto cognitiva como eticamente, da experiência que vivenciamos individual e coletivamente no tempo que é o nosso.

Assim sendo, pode-se inferir que o fundamento (se é que algo assim existe) da forma de imanentismo, ao mesmo tempo "real" e "racional", que começa com Spinoza, passa por Atlan e chega a Aleksandrowicz-Minayo aplicado à ética, acaba sendo uma espécie de naturalismo ético, de fato uma tentação (que também me atraiu em minha tese de doutorado defendida na ENSP em 1993) supostamente capaz de "superar preservando" (que traduz o hegeliano aufheben) as contradições e angústias do vivenciar sozinhos, juntos, com "coisas" ou "objetos", e com teorias sobre estar sozinhos, juntos e com coisas e/ou objetos.

A questão levantada pelas autoras é séria, merecedora de reflexão e debate, não só para poder pautar publicamente ações efetivas, inclusive no âmbito da saúde individual e coletiva, decorrentes de uma possível inteligência naquilo com que é pertinente e legítimo nos preocupar como seres (ainda?) finitos, vulneráveis e mortais. Afinal, o problema da Aufhebung das duas culturas (a científica e a humanista), levantado desde os anos 50 do século 20 num célebre ensaio de CP Snow, foi também uma preocupação que fez surgir, no final dos anos 60, a proposta interdisciplinar do oncologista norte-americano VR Potter de uma bioética entendida como nova aliança entre saber cientifico e saber humanístico, "aliança" entendida tanto cognitiva como eticamente visto que Potter estava à busca de um objeto que fosse ao mesmo tempo de reflexão renovada e de atuação legítima, considerando-a indispensável para a sobrevivência do "humano demasiado humano" tanto individual como coletivamente e em seu contexto formado pelas duas "naturezas", rapidamente lembradas anteriormente.

Mas, dito isso, com o necessário rigor filosófico e carinhoso apreço pelo trabalho das autoras, sobra uma pergunta (por elas destacada citando o filósofo Zizek): como conciliar numa mesma Aufhebung não totalizante nem totalitária uma concepção da Lebenswelt capaz de aliar o natural e o artificial, a primeira e a segunda natureza, sem que isso deixe transparecer uma vontade de potência (em si legítima porque provavelmente característica do próprio ser que não se deixa reduzir a mero ente) que pretenda ser, também, uma vontade de poder, inconformada com o não-saber e o aleatório, inclusive no sentido "catastrófico" da pulsão de morte e de suas relativas destruições necessárias à "sobrevida" da própria vida, que parecem transformar qualquer tentativa de dar conta das contradições e da falta de sentido, e que podem, eventualmente, fazer parte também das "verdadeiras" causas, amplamente desconhecidas. Em outros termos, a "terrível liberdade" de Sartre e que, para Kant, foi uma mera hipótese ad hoc em seu sistema cognitivo, é uma hipótese que o ser humano parece preferir ao determinismo absoluto e que não pode ser reduzido ao corriqueiro "ser-para-a-morte heideggeriano" porque nós, "humanos demasiados humanos", queremos também (embora talvez nem todos) ser responsabilizados por aquilo que escolhemos, independentemente disso ser determinado naturalmente ou escolhido livre e teleologicamente.

Concluindo, ao pretender aliar necessidade e liberdade, primeira e segunda natureza (mas nada impede que surgia uma "terceira", filha gerada e "emergente" de algum tipo de relação estabelecida entre as duas primeiras e que é indicada, por exemplo, pela programação indutiva lógica que permite a máquinas computacionais aprender em situações de incerteza), fica em aberto a questão de saber o que fazer para assumirmos, individual e/ou coletivamente, como seres ao mesmo tempo necessitados, livres e responsáveis, a tarefa de construirmos nosso futuro, inclusive assumindo nossos desejos "prometéicos" mais profundos, que podem também indicar que queremos acabar com nossas determinações para tornarmos, por que não, "livres como o ar!" É uma pergunta aparentemente contra-intuitiva, mas não ociosa, considerando que vivemos em uma realidade cada vez também mais virtual, na qual estamos incluídos como "objetos" de uma provável manipulação universal, numa "hiperrealidade" (como pensa Baudrillard) mais real que o próprio real e que poderia, eventualmente, nos tornar objetos virtuais totalmente descartáveis numa tela de computador. Trata-se, evidentemente, de um Gedankenexperiment provocador, mas que quer indicar que um pensamento que pretende pensar a aliança entre pensamento e vida deve, provavelmente também, pensar um novo tipo de objeto, feito a partir da impossibilidade de antigas alianças e da procura de alianças novas, quaisquer elas sejam. Afinal, não somos diretamente responsáveis por aquilo que "somos" (seria eticamente cruel), mas por aquilo que fazemos a partir daquilo que, provisoriamente, somos e que podemos, eventualmente, vir a ser dependendo do que entendemos e raciocinamos sobre nossa atual condição "demasiado humana", mas que nada impede que tentemos superar rumo ao "ultra-humano". O determinismo absoluto e o naturalismo ético podem ser questionados, a meu ver, também a partir deste tipo de perguntar, ao qual não tenho, evidentemente, resposta nenhuma. Resumindo, penso que seja correto pensar, como fazem as autoras, que a moral humanista, de origem kantiana é, de fato, demasiado formal e, portanto, de alguma maneira cruel – visto que se desprende da Lebenswelt e da carne e do sofrimento deste Mundo, feito de sujeitos concretos (ainda) mortais, mas não devemos esquecer que a principal preocupação do mestre de Königsberg não era cognitiva mas sim ética, embora tenha para isso lançado mão de uma hipótese ad hoc em sua epistemologia, antecipando um problema que estamos ainda discutindo aqui, para tentar "superar conservando" as várias "naturezas" que certamente nos determinam, mas das quais podemos também nos desprender num absoluto ato de liberdade ou de revolta contra a condição demasiado humana, como já fizeram, ao longo da história, muitos sujeitos inconformados com o estado de coisas presente.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    Set 2005
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