Open-access Terapias com células de medula óssea para cardiopatia chagásica e hepatopatias crônicas: do modelo animal para o paciente

Bone marrow stem cell therapies for Chagas' disease cardiopathy and chronic hepatopathies: from the animal model to the patient

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Terapias com células de medula óssea para cardiopatia chagásica e hepatopatias crônicas: do modelo animal para o paciente

Bone marrow stem cell therapies for Chagas' disease cardiopathy and chronic hepatopathies: from the animal model to the patient

Milena Botelho Pereira SoaresI; Ricardo Ribeiro dos SantosII

ILaboratório de Engenharia Tecidual e Imunofarmacologia, CPqGM-FIOCRUZ. milena@bahia.fiocruz.br

IILaboratório de Engenharia Tecidual e Imunofarmacologia, CPqGM-FIOCRUZ. ricardoribeiro@bahia.fiocruz.br

Terapias com células-tronco

O aumento progressivo da idade média das populações humanas, e em particular das populações urbanas, gera a necessidade de garantir cada vez mais a qualidade da vida, compatível com um custo e uma carga social aceitáveis. As doenças degenerativas são a causa principal e crescente do aumento da carga social, levando à deterioração da qualidade de vida e ao aumento dos custos da assistência médica. Neste contexto, destaca-se a medicina regenerativa, que visa à estimulação e ampliação da capacidade natural de regeneração de tecidos lesados.

A busca de métodos para o reparo de problemas biológicos causados por lesões, doenças ou pelo envelhecimento tem sido impulsionada pela descoberta de células-tronco com capacidade de auto-replicação e de diferenciação em diversos tipos celulares, que abriram caminhos para a sua utilização no reparo de tecidos e órgãos lesados. Em vez de substituir um órgão lesado de um indivíduo por outro de um doador, que traz complicações e limitações, vislumbra-se a possibilidade de se reparar este órgão através de terapias celulares ou até mesmo pela estimulação com fatores estimuladores de proliferação, diferenciação e migração.

Como exposto no artigo de Lygia da Veiga Pereira, enquanto a utilização das células-tronco embrionárias para fins terapêuticos depende da superação de vários obstáculos, não somente de natureza ética e religiosa, mas principalmente de questões técnicas quanto à segurança de sua utilização, as células-tronco adultas aparecem como uma solução em potencial. A medula óssea é uma fonte de células-tronco de aplicação imediata em estudos clínicos, não só pela facilidade de obtenção, mas principalmente pela experiência acumulada com a sua utilização clínica nas últimas décadas para fins hematológicos e oncológicos1.

A utilização de células-tronco de medula óssea em medicina regenerativa tem sido intensamente estudada. Responsáveis pela reposição constante das células do sistema hematopoiético ao longo da vida do indivíduo, estas células aparentemente possuem também uma capacidade de se diferenciar em células de vários outros órgãos e tecidos2,3. Esta teórica pluripotencialidade, juntamente com a facilidade de obtenção destas células e a experiência de décadas de utilização terapêutica destas em clínica, permite a sua utilização em terapias regenerativas para um amplo espectro de doenças.

Células-tronco no tratamento da doença de Chagas

A área de terapias com células de medula óssea para doenças cardiovasculares é certamente a que vem sendo mais intensamente investigada, tanto em modelos experimentais quanto em estudos clínicos1. Os estudos em cardiopatia isquêmica demonstraram que células-tronco oriundas da medula óssea (transplante autólogo) são eficazes no tratamento de insuficiência cardíaca de origem isquêmica, e indicaram um potencial da utilização desta terapia com células-tronco em outras cardiopatias. Neste contexto, a forma crônica sintomática da doença de Chagas, na qual a maioria dos indivíduos apresenta a cardiopatia chagásica, é ainda nos dias de hoje uma doença sem possibilidades terapêuticas além do transplante cardíaco. Como a baixa taxa de captação de órgãos, a maioria dos pacientes chagásicos em fila de transplante evolui para óbito antes de receber um coração novo, sendo que, em estados como o da Bahia, este procedimento nem é realizado.

A cardiopatia chagásica crônica, uma doença que afeta milhões de indivíduos na América Latina, é uma doença para a qual não há nenhum tratamento eficaz. Cerca de seis milhões de indivíduos estão ainda infectados pelo Trypanosoma cruzi, agente causador da doença de Chagas, sendo que destes, aproximadamente 25% apresentam ou desenvolverão a cardiopatia chagásica crônica4. Esta doença é caracterizada por uma destruição progressiva do miocárdio por uma resposta inflamatória que leva à cardiomegalia e mau funcionamento do coração, levando à morte dos indivíduos acometidos. Embora os mecanismos de patogênese da doença ainda não estejam esclarecidos, a melhora da função cardíaca, como ocorre no reduzido número de pacientes que recebem transplante cardíaco, previne a acelerada evolução para o óbito5,4. Portanto, uma terapia capaz de causar uma melhora da função cardíaca, e que seja mais accessível à população de cardiopatas chagásicos, em sua grande maioria de baixa renda, é de grande interesse.

Nosso grupo realizou um estudo clínico pioneiro, no Hospital Santa Izabel da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, em cooperação coma FIOCRUZ/BA, incluindo trinta pacientes com insuficiência cardíaca grave de etiologia chagásica4. Não foram observados efeitos adversos decorrentes da terapia em nenhum destes pacientes, indicando que o procedimento é seguro e exeqüível, podendo ser realizado em um período de duas a três horas desde a coleta até a infusão das células. Devido ao seu estado clínico, estes indivíduos apresentavam antes do tratamento cansaço a pequenos esforços, e relatavam uma baixa qualidade de vida. Após o tratamento, observou-se uma melhora significativa de diversos parâmetros, incluindo qualidade de vida, fração de ejeção e tempo de caminhada no teste de corredor. Além disso, os níveis de sódio sérico, um parâmetro bioquímico, foram normalizados após algumas semanas de tratamento, indicando fortemente um efeito real da terapia com células da medula óssea na cardiopatia chagásica. Para comprovar a eficácia do tratamento, este tipo de cardiopatia foi incluído no estudo multicêntrico randomizado de terapias celulares para cardiopatias, financiado pelo Ministério da Saúde.

Células-tronco no tratamento da cirrose hepática

Outro órgão alvo de estudos intensos em terapias com células-tronco é o fígado lesado. Sabe-se que o fígado apresenta uma grande capacidade regenerativa. Todavia, existem lesões provocadas por agentes etiológicos distintos, como as hepatites e a esquistossomose, que não são passíveis de regeneração em estágios avançados. Além disso, o alcoolismo representa uma grande ameaça ao bom funcionamento do órgão e é o maior responsável pelo desenvolvimento de lesões hepáticas crônicas no Brasil. As patologias crônicas podem levar ao desenvolvimento de quadros fibróticos, cirróticos e, por último, de insuficiência hepática. Quando o paciente atinge esse estágio, a única alternativa é o transplante, cuja viabilidade depende de uma política sistemática e eficiente de doação e captação de órgãos no país.

A cirrose hepática está associada a diferentes etiologias, a principal delas sendo a infecção pelo vírus da hepatite C. Estima-se que aproximadamente 40% dos pacientes com cirrose são assintomáticos. Uma vez sintomático, o estado geral do paciente é debilitado com repercussões negativas na sua vida cotidiana, muitas vezes incapacitando-o para o trabalho, além de representar elevados custos financeiros.

A indicação para o transplante hepático, nos pacientes com cirrose, ocorre na fase de descompensação da doença. Nesta condição, a mortalidade é elevada nos primeiros dois anos, muitas vezes não havendo tempo hábil para esperar por tratamento adequado como o transplante hepático, de eficácia já bem estabelecida para estes pacientes com doença hepática avançada6. Entretanto, um grande número destes pacientes não consegue sobreviver ao longo período de espera nas listas. Torna-se necessária e urgente a realização de melhores programas de captação de órgãos, ou o desenvolvimento de alternativas terapêuticas que atenuem o grau de disfunção hepática e contribuam para aumentar o tempo de sobrevida dos pacientes em listas para a realização do transplante.

Neste sentido, avaliamos o uso de células-tronco da medula óssea no tratamento de cirrose hepática induzida em modelos animais. Após o tratamento com células de medula óssea, os animais apresentaram significativa redução da fibrose, em relação ao grupo controle. Esta redução ocorreu tanto quando as células foram administradas no lóbulo hepático, quanto através da administração por via endovenosa. Estes resultados justificaram o início de testes clínicos em pacientes com doença hepática crônica, onde a infusão de células-tronco da medula óssea do próprio paciente se mostrou segura7. O desenvolvimento de testes clínicos mais amplos revelará a real eficácia deste tratamento, uma promissora alternativa mais simples e de menor custo do que os transplantes de fígado.

Referências bibliográficas

  • 1. Mota ACA, Soares MBP, Ribeiro-dos-Santos R. Regenerative therapy using bone marrow stem cells in cardiovascular diseases - The perspective of the hematologist. Rev Bras Hematol Hemoter 2005; 27(2):127-133.
  • 2. Jiang Y, Jahagirdar BN, Reinhardt RL, Schwartz RE, Keene CD , Ortiz-Gonzalez XR, Reyes M, Lenvik T, Lund T, Blackstad M, Du J, Aldrich S, Lisberg A, Low WC, Largaespada DA, Verfaillie CM. Pluripotency of mesenchymal stem cells derived from adult marrow. Nature 2002; 418:41-49.
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  • 6. Brown KA. Liver transplantation. Curr Opin Gastroenterol 2005; 21(3):331-6.
  • 7. Lyra AC, Soares MBP, da Silva LFM, Fortes M, Goyanna A, Mota ACA, Oliveira SA, Braga EL, Carvalho W, Genser B, Santos RR, Lyra LGC. Feasibility and safety of autologous bone marrow mononuclear cell transplantation in patients with advanced chronic liver disease. World J Gastroenterol 2007; 13(7):1067-1073.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2008
  • Data do Fascículo
    Fev 2008
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