Open-access Expansão da cobertura de Atenção Primária à Saúde em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil (2013-2023)

Resumo

Objetivou-se analisar os fatores relacionados à expansão do número de equipes de saúde da família, de saúde bucal e de equipes multiprofissionais no município de Campo Grande-MS, no período 2013-2023; bem como identificar o efeito da expansão dessa cobertura com a criação de Residência em Medicina de Família e Comunidade a Residência Multiprofissional de Saúde da Família e verificar se as equipes foram implantadas em áreas com maior índice de exclusão social. Trata-se de um estudo quantitativo, analítico e longitudinal e se utilizou dados secundários. Evidenciou-se que houve aumento significativo no número de equipes de Saúde da Família, saúde bucal e de equipes multiprofissionais em Campo Grande ao longo do período estudado. Percebeu-se que em 2018 houve uma ampla transformação de unidades tradicionais para unidades de saúde da família e, em 2020, houve a criação das residências em saúde da família, no qual originou ao segundo ano com maior expansão de equipes. Em 2023, constatou-se cobertura de saúde da família em 100% das áreas com maior índice de exclusão social.

Palavras-chave: Saúde da Família; Atenção Primária à Saúde; Política Pública

Abstract

This paper aimed to analyze the factors related to the expansion of family health teams, oral health teams, and multidisciplinary teams in Campo Grande-MS, from 2013 to 2023, and identify the effect of this activity with the establishment of a Family and Community Medicine Residency and a Multidisciplinary Family Health Residency, verifying whether the teams were deployed in areas with a higher social exclusion rate. This quantitative, analytical, and longitudinal study employed secondary data, and we observed a significant increase in Family Health, Oral Health, and Multidisciplinary teams in Campo Grande throughout the period studied. In 2018, we identified a broad transformation from traditional units to family health units, and family health residencies were established in 2020, which led to the second year with a more significant expansion of the teams. In 2023, we noted that family health coverage achieved 100% of the areas with the highest social exclusion rate.

Key words: Family Health; Primary Health Care; Public Policy

Resumen

El objetivo de este estudio fue analizar los factores relacionados con la ampliación del número de equipos de salud de la familia, equipos de salud bucodental y equipos multiprofesionales en el municipio de Campo Grande-MS, entre 2013 y 2023, así como identificar el efecto de la ampliación de esta cobertura con la creación de la Residencia de Medicina de Familia y Comunidad y la Residencia Multiprofesional de Salud de la Familia, y comprobar si los equipos se implantaron en zonas con mayor índice de exclusión social. Se trata de un estudio cuantitativo, analítico y longitudinal a partir de datos secundarios. Se observó un aumento significativo del número de equipos de salud familiar, equipos de salud bucodental y equipos multiprofesionales en Campo Grande durante el periodo estudiado. Se observó que en 2018 hubo una transformación generalizada de las unidades tradicionales en unidades de salud familiar, y en 2020 se produjo la creación de residencias de salud de la familia, el segundo año con mayor expansión de equipos. En 2023, la cobertura de salud de la familia se encontraba en el 100% de las zonas con mayores niveles de exclusión social.

Palabras clave: Salud de la Familia; Atención Primaria de Salud; Políticas Públicas

Introdução

Os conceitos e os benefícios da Atenção Primária à Saúde (APS) são reconhecidos mundialmente por serem considerados porta de entrada (responsabilidade pelo acesso), por oferecerem atenção centrada na pessoa, por abordarem os problemas mais comuns na comunidade, disponibilizando serviços de prevenção, tratamento e reabilitação, por meio do trabalho em equipe, favorecendo a equidade e a melhoria da saúde1, por estabelecer com o indivíduo e sua família vínculo, comunicação eficaz, continuidade e longitudinalidade dos cuidados, abordagem holística dos problemas de saúde, orientação comunitária, tomada de decisão definida pela prevalência e incidência da doença na comunidade, por conduzir agravos agudos e crônicos, assim como realizar ações de promoção e prevenção de agravos à saúde da população2.

A APS tem sido empregada em diferentes países, porém com organizações diversificadas, obedecendo a forma como está estruturado o sistema de saúde nestes locais, impactando de formas diferentes no acesso e resultados.

No Brasil, a APS vem sendo estruturada desde a década de 1990, tendo o Programa de Saúde da Família (PSF) como plano precursor, de acesso e primeiro contato, implantado em 1994, posteriormente substituído, na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) em 2006, pela Estratégia Saúde da Família (ESF), como plano de consolidação do novo modelo assistencial, que foi revisada em 2011 e em 20173-6.

A implantação da ESF com a expansão de cobertura da APS vem aumentando o acesso da população às unidades de saúde, no entanto para um cuidado resolutivo e integral é preciso, dentre outros fatores, que os profissionais tenham competências para atuar nesta área. Nesse sentido, os programas de educação permanente e os programas de residência são estratégicos para qualificar a atuação desses profissionais na APS. Destaca-se ainda, que em territórios com maior acesso à atenção primária, houve redução da mortalidade infantil, aumento da cobertura vacinal e redução de internações por condições sensíveis à atenção primária7.

A expansão da ESF não ocorreu uniformemente no país, e apesar da massiva presença da APS nos municípios brasileiros, as diferentes coberturas, podem ter direcionado para adequações nos modelos de APS, interferindo na estrutura e principalmente nos resultados obtidos em cada cidade8. Dessa maneira, Campo Grande-MS, seguindo as normativas ministeriais, implantou as primeiras equipes de PSF em 1999, somente 5 anos após a publicação nacional. Desde então, vem evoluindo sua cobertura de forma lenta, pois em 2016, passados 17 anos de ESF, a cobertura ainda permanecia em 38%.

Vários são os fatores que interferem conjuntamente na evolução dos indicadores de saúde, entre eles, a manutenção de políticas sociais como o Programa Bolsa Família (PBF) e a expansão da cobertura de ESF, que promovem efeitos na redução não só da pobreza, mas nos acompanhamentos das condicionalidades do Programa pela saúde9.

Diante desta necessidade evidente de ampliação da cobertura, já que o Plano de Expansão da ESF, delineado em 2010 para o município, não obteve o êxito esperado até início de 2019, onde a cobertura ainda estava em 40%, novas estratégias foram programadas. Entretanto, o desenho do Projeto de expansão teve que adotar várias correções de rumo, de forma a ajustar a débil cobertura na prestação de serviços essenciais da APS. Nesse sentido, o planejamento da expansão deveria ser orientado pelo grau de vulnerabilidade dos bairros, situação mensurada pelo Índice de Exclusão Social (IES), conforme a classificação de Sauer et al.10, pois de acordo com os autores a otimização na distribuição de recursos para o atendimento das necessidades socioeconômicas da parcela mais vulnerável da população exige um conhecimento do mapeamento municipal destas necessidades. Ao identificar as demandas sociais existentes nos diferentes setores, as ações da administração municipal poderão atender de forma mais eficiente essas necessidades, se antecipando de forma preventiva à criação de situações de exclusão e evitando assim que as políticas sociais continuem sendo compensatórias.

Este estudo teve o objetivo de analisar os fatores relacionados à expansão do número de equipes de saúde da família (eSF), de saúde bucal (eSB) e de equipes multiprofissionais (eMULTI), anteriormente denominadas Núcleo Ampliado de Saúde da Família (NASF) no município de Campo Grande-MS, no período de 2013 a 2023; bem como identificar o efeito da expansão dessa cobertura com a criação de Residência em Medicina de Família e Comunidade (RMFC) a Residência Multiprofissional de Saúde da Família (RMSF) e verificar se as equipes foram implantadas em áreas com maior Índice de Exclusão Social (IES).

Métodos

Desenho e contexto do estudo

Trata-se de um estudo quantitativo, analítico e longitudinal da expansão da cobertura de atenção primária em saúde (APS) no município de Campo Grande-MS, utilizando dados secundários da plataforma WEB e-Gestor AB, através do endereço eletrônico: https://egestorab.saude.gov.br, de informação de acesso público e restrito, Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde (CNES) (https://cnes.datasus.gov.br/) e instrumentos como o Relatório Anual de Gestão do Município de Campo Grande-MS.

O dado referente à população de Campo Grande-MS foi extraído do e-Gestor em dezembro de 2023 e era de 916.001 habitantes, segundo dados do IBGE (2022) a população de Campo Grande é de 898.100 habitantes, entretanto não houve atualização destes dados no e-Gestor.

Aspectos éticos

Trata-se de pesquisa que se utilizou de sistemas de informações, no qual o projeto incluiu um Termo de Compromisso para Utilização de Informações de Banco de Dados e uma Carta de Solicitação de Dispensa do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal Universidade de Mato Grosso do Sul (UFMS), sob número CAAE: 75540023.6.0000.0021, atendendo aos requisitos da Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.

Análise dos dados

Inicialmente foram realizadas análises descritivas e exploratórias de todos os dados demonstrados em forma de tabelas. Adicionalmente, foram ajustados modelos aditivos generalizados (GAM), que indicam tendências nos conjuntos de dados. O ajuste dos modelos foi interpretado pela significância estatística e pelo coeficiente de determinação (R²). Todas as análises foram conduzidas usando o software R11 e com nível de significância de 5%.

A fim de verificar se as eSF, eSB e eMULTI, foram implantadas em áreas de maior IES, foi utilizado o estudo publicado por Sauer et al.10, que apresentou através de mapas o retrato social da cidade de Campo Grande por bairros. O autor definiu três grandes temas que configuram os componentes da exclusão social ou de risco de exclusão social, segundo o Atlas da Exclusão Social no Brasil. Essa categorização auxilia a gestão na definição de áreas prioritárias para investimento municipal a fim de melhorar as condições de vida das pessoas. Os temas eleitos foram: Padrão de vida digno e Conhecimento e Risco Juvenil, com vários componentes, dentre eles indicador de pobreza, indicador de desigualdade, razão de dependência demográfica, alfabetização, anos de estudos, indicadores de direitos suprimidos na juventude. Todos estes indicadores foram transformados em índices, representando a situação relativa de cada bairro, em relação aos demais. Como resultado foi apresentado o mapeamento do IES com os seguintes parâmetros de intervalo: 0,05-0,21, 0,21-0,45, 0,45-0,61, 0,61-0,74, 0,74-0,9610, sendo que quanto maior o valor do índice pior a situação do bairro.

Resultados

Na Tabela 1 e Figura 1 são apresentados os resultados das análises dos números de eSF, eSB e eMULTI apoiadas, na cidade de Campo Grande-MS, em função do ano. O modelo aditivo generalizado (GAM) estimado revelou aumento significativo no número de equipes ao longo do período estudado (p<0,0001; R²=0,9411). Resultados semelhantes foram observados para o número de eSB, com aumento significativo no município no período analisado (p<0,0001; R²=0,9416).

Tabela 1
Número de equipes de Saúde da Família, equipes de Saúde Bucal e equipes eMULTI apoiadas, na cidade de Campo Grande-MS, em função do ano.

Figura 1
Gráfico de controle e modelo aditivo generalizado (GAM) - linha preta, ajustado para o número de eSF, eSB e eMULTI em Campo Grande-MS, no período de 2013 a 2023.

Pode-se observar ainda que o número de eSF aumentou de 86 em 2013 para 197 em 2023 (aumento de 129,1%). Já em relação às eSB houve um aumento de 88 equipes em 2013 para 150 em 2021 (aumento de 70,5%). Com relação às equipes eMULTI, o gráfico de controle da Figura 1, indicou quatro, de cincos anos consecutivos, na zona de alerta superior, entre os anos de 2019 e 2023, indicando números mais altos nesse período em relação ao período todo analisado. O GAM também indicou aumento significativo no número de equipes eMULTI no período analisado (p<0,0001; R²=0,9357). A análise da curva que representa o modelo GAM ajustado (Figura 1) evidencia uma fase de crescimento na quantidade de equipes até o ano de 2020, seguida por um período de estabilização que estende até 2023. Pode-se notar um crescimento no município de 42 equipes de atenção primária apoiadas em 2013 para 160 em 2020 (aumento de 281,4%), flutuando em torno dessa quantidade até 2023, indicando uma fase de estabilidade.

Foram também analisados os dados das equipes criadas em cada ano (Tabela 2). Pode-se observar que no período estudado foram criadas 105 eSF e 76 eSB, sendo que 41,9% e 53,9% das eSF e eSB, respectivamente, foram criadas no ano de 2018. O segundo ano com maior expansão de equipes foi o ano de 2020, com expansão de 16,2% e 21,1% das eSF e eSB, respectivamente. Para as eSF também se observa expansões consideráveis nos anos de 2019 (11,4%) e 2023 (11,4%). Para equipes eMULTI criadas também não se observou tendências significativas ao longo do tempo, porém nota-se que os anos de maior expansão foram 2018 (43,1% das novas equipes) e 2020 (40,7% das novas equipes). Em maio de 2023, mediante a publicação da Portaria GM/MS nº 635, houve a necessidade de adequação das equipes existentes para homologação pelo Ministério da Saúde. Foram consideradas a modalidade adotada, bem como composição de carga horária, vinculação com o número de equipes e recursos humanos existentes. Desta forma 09 equipes de atenção primária anteriormente apoiadas e que não estavam dentro dos critérios previstos em portaria, deixaram de ser apoiadas pela eMULTI.

Tabela 2
Número de equipes de Saúde da Família, equipes de Saúde Bucal e eMULTI apoiadas, criadas em Campo Grande-MS, no período de 2013 a 2023.

A Figura 2 apresenta como se deu a expansão de equipes de APS nos bairros de Campo Grande no período compreendido entre 2013 e 2023, as unidades pré-existentes antes de 2013 e as áreas que não possuíam cobertura de serviços de atenção primária. Apresenta na sequência, também, o mapa de Campo Grande com o IES por bairro de Sauer et al.10 para fins de comparação com os dados encontrados por este estudo.

Figura 2
Mapa demonstrativo da expansão de equipes de saúde da família, de saúde bucal e de equipe eMULTI e o mapa do índice de exclusão social por bairro em Campo Grande-MS.

Na Figura 3 são apresentadas as expansões das equipes no município entre os anos de 2013 e 2023, em função do IES dos bairros. Pode-se notar que no período analisado, 24,8%, 27,6% e 25,2% das expansões nas eSF, eSB e eMULTI, respectivamente, ocorreram em bairros de maior exclusão social (IES entre 0,74 e 0,96). Enquanto 41,0%, 39,5% e 32,5% ocorreram em bairros com IES entre 0,45 e 0,61. O município possui 03 (três) unidades de saúde em área rural, que não foram categorizados pelo IES.

Figura 3
Distribuição das equipes de ESF e de Saúde Bucal criadas em Campo Grande-MS, entre os anos de 2013 e 2023, em função do índice de exclusão social (IES).

O número de eSF criadas anualmente, em função do IES, pode ser visualizado na Tabela 3. Pode-se notar que há uma variação na distribuição da expansão entre os anos, considerando o IES. Por exemplo, no ano de 2022, entre as oito equipes criadas, 75,0% foram estabelecidas em bairros com alta vulnerabilidade social. Já em 2023, das 12 equipes criadas, 75,0% foram em bairros com menor vulnerabilidade, caracterizados com IES entre 0,45 e 0,61, enquanto as restantes 25,0% foram implementadas em bairros com IES variando de 0,61 e 0,74. Ainda na Tabela 3 são apresentadas as expansões das eSB. Também nesse caso há uma variação na distribuição anual da expansão, considerando o IES. Em 2021, por exemplo, foram criadas duas equipes em bairros com IES entre 0,61 e 0,74 e em 2022 quatro equipes em bairros de maior vulnerabilidade (IES entre 0,74 e 0,96). Em relação às equipes eMULTI apoiadas, observa-se expansões nos anos de 2014 (com 80,4% em bairros de maior vulnerabilidade social), 2018 (com 18,9% em bairros de maior vulnerabilidade), 2020 (com 18,0% em bairros de maior vulnerabilidade) e 2022 (com 0,0% em bairros de maior vulnerabilidade), de acordo com a Tabela 3.

Tabela 3
Número e porcentagem de equipes de Saúde da Família, Saúde bucal e eMULTI apoiadas criadas em Campo Grande-MS, em função da categoria do índice de exclusão social (IES), no período de 2013 a 2023.

A Figura 4 corresponde a cobertura potencial de Atenção Primária por Distrito Sanitário em Campo Grande-MS, essa cobertura corresponde a todas as equipes de APS, incluindo as equipes de eSF, equipes Atenção Primária Prisional (eAPP), equipe de Consultório na Rua (eCR) e equipes de Atenção Primária (EAP), chegando a 86,75% de cobertura relativa a população de 916.001 habitantes (e-GESTOR), conforme Nota Técnica nº 301/2022-CGESF/DESF/SAPS/MS. Demonstrando o avanço potencial de cobertura do município que era de 35% em média antes de 2013 e avançou para 86,75% em 2023.

Figura 4
Cobertura potencial de Atenção Primária por Distrito Sanitário em Campo Grande-MS, 2023.

Discussão

O município de Campo Grande-MS disponibiliza os serviços conforme recomenda o Ministério da Saúde, em consonância com a Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 20176, sendo que na APS coexistem unidades de atenção primária (EAP), unidades de saúde da família (eSF), prisional (EAPP) e consultório na rua (eCR). Atualmente, em 2023, a Rede de Atenção Básica é composta por 74 unidades de saúde distribuídas nos 07 Distritos Sanitários, sendo 197 eSF, 147 equipes de saúde bucal na eSF (eSB), 55 EAP, sendo 20 EAP com Saúde Bucal, 07 eAPP, 01 eCR e 14 eMULTI.

A partir da adoção do modelo de saúde da família em 1999, houve aumento significativo no número de eSF em Campo Grande ao longo do período de 2013 a 2023 (p<0,0001; R²=0,9411). O número de eSF aumentou de 86 em 2013 para 197 em 2023. Observou-se que também houve aumento significativo no número de eSB em Campo Grande ao longo do período de 2013 a 2021 (p<0,0001; R²=0,9416). O número de eSB aumentou de 88 em 2013 para 150 em 2021. O ano de 2018 foi o de maior expansão de eSF e de eSB no município, sendo criadas 44 eSF e 41 de eSB, mas é importante ressaltar que esta expansão ocorreu devido a transformação de Unidades de Atenção Primária de modelo tradicional já existentes (com recursos humanos já atuantes), em Unidades com eSF, não impactando no percentual de cobertura do município que ainda permaneceu menor que 40%. Essa expansão ocorreu por decisão da gestão municipal, que estava voltada a fortalecer e melhorar a resolutividade da atenção primária e pela disponibilidade de recursos humanos que já compunham essas unidades tradicionais, sem aumento de despesa.

O segundo ano de maior expansão foi em 2019 a 2020 tendo sido criadas tanto eSF quanto eSB, período esse no qual ocorreu a expansão do programa RMFC, quanto a criação do Programa de RMSF, através da celebração de um acordo entre o município de Campo Grande e o programa RMFC do Rio de Janeiro e a Fiocruz, que financiou o projeto e qualificou o programa, investindo na contratação de preceptores para os programas de residência, reestruturação do processo de trabalho nas unidade de saúde elencadas para se tornarem cenário da formação, assim como melhoria das estruturas físicas e equipamentos. Portanto, essa expansão, através do programa RMFC e RMFC, promoveu o incremento do número de equipes no município, com novos profissionais. Dessa forma fica evidente que esta estratégia proporcionou o maior aumento de cobertura de AP. Aliado a isso, os programas de residência impactam na qualificação profissional das ESF com resultados na qualidade da assistência e melhora efetiva dos resultados na APS12,13.

Junto ao programa de formação dos profissionais de saúde, para fortalecimento da APS, unidades de saúde, que atuavam no modelo tradicional, foram transformadas em saúde da família, culminando em 2023, com uma cobertura potencial de 86,75% de equipes de Atenção Primária.

Diante de tal evolução do aumento expressivo no número de eSF, eSB e equipes apoiadas pelo eMULTI o município de Campo Grande-MS obteve o uma evolução admirável no ranking nacional da cobertura de atenção básica, saindo da 27ª colocação entre as capitais para 6ª posição no ano de 2022, conforme disponível no relatório pelo sistema e-gestor do Ministério da Saúde. Com a expansão da saúde da família, pode-se melhorar a garantia aos usuários para o primeiro contato, na longitudinalidade e na coordenação do cuidado, pois exercem suas atividades em áreas geográficas definidas e com populações adstritas, permitindo a construção de vínculo e reconhecimento de necessidades dos usuários daquela região14.

Das nove unidades que abrigam os Programas de RMFC e RMFC foram implantadas em áreas onde o IES varia entre os índices de 0,45 a 0,74, sendo que duas unidades estão em território de maior vulnerabilidade (0,74-0,96) segundo esse mesmo índice. O IES é uma importante ferramenta para a gestão municipal, sinalizando as áreas de maior exclusão social, que deveriam receber maiores investimentos para a melhoria da qualidade de vida. As unidades de saúde nesses locais, para além das ações de cuidado à saúde, podem atuar como recurso de apoio comunitário para solicitar ao poder público, ações de melhoria de condições de vida dessa população.

Observou-se no estudo que 24,8%, 27,6% e 25,2% das eSF, eSB e eMULTI criadas no período analisado, respectivamente, ocorreram em bairros de maior exclusão social (IES entre 0,74 e 0,96). Enquanto 41,0%, 39,5% e 32,5% das eSF, eSB e eMULTI criadas no período analisado, respectivamente, ocorreram em bairros com IES entre 0,45 e 0,61, isto porque, durante esse período do estudo, as eSF foram ampliadas e transformadas, a partir das unidades já existentes, restando cobrir os territórios com IES menor. Finalizando o ano de 2023, alcançando a totalidade da cobertura nas áreas com IES entre 0,74 e 0,96 (mais vulneráveis). O alcance dessas coberturas pode ser claramente visualizado na Figura 2.

As equipes de eMULTI também tiveram um incremento, sobretudo nos anos 2018 e 2020, período de maior expansão assim como ocorreu nas eSF, devido à decisão da gestão municipal e a criação do Programa de RMFC. Em 2023, houve um decréscimo no número de equipes, quando comparado ao ano de 2022. É necessário apontar que, em 2019, com a implantação do então modelo de financiamento da APS, Previne Brasil, o repasse para esse tipo de equipe foi extinto, levando ao descredenciamento desses serviços nos municípios. A gestão municipal, por entender a relevância dessas equipes multidisciplinares na APS, assumiu o custeio das mesmas, até a publicação da Portaria GM/MS nº 635, de 22/05/2023, que volta a custear as equipes multiprofissionais para atuarem na APS, com repasse de incentivos federais15. Desse modo, a redução apontada, só ocorreu devido a necessidade de adequar as antigas equipes NASF, de acordo com a portaria supracitada, pois ela aumentou a carga horária de cada equipe eMULTI.

Essas equipes eMULTI têm como potencialidade a ampliação do escopo de práticas, melhorando a resolutividade das equipes de saúde, além de atuarem no sentido da integralidade da atenção com foco nas necessidades dos territórios. Inclusive com a publicação desta portaria, as equipes multiprofissionais ampliaram as suas atribuições, atuando formalmente, como matriciadoras das eSF e atendimentos remotos.

Quanto à ampliação do acesso nas áreas de maior vulnerabilidade, pode-se observar que em 2023, constatou-se cobertura de saúde da família em 100% das áreas com maior IES. Estudo realizado em dois países desenvolvidos (Canadá e Estados Unidos) sobre as ações na atenção primária à saúde corroboram a importância de atuação das equipes em áreas de maior exclusão social para reduzir os riscos sociais, além de orientar aos cuidados primários para a comunidade, ampliar a equidade e o desenvolvimento social e econômico daquela região, com foco em abordagens baseadas nas potencialidades da comunidade16.

Perseverar em políticas públicas voltadas para a expansão da cobertura da saúde da família para cobrir todo o território, principalmente, aos mais vulneráveis, proporciona melhor acesso da população e minimiza a exclusão social. As estratégias que o município de Campo Grande-MS adotou com a transformação das unidades tradicionais para saúde da família, bem como a criação de RMFC e RMSF foram fundamentais para a efetividade da expansão do número de eSF, eSB e eMULTI.

Logo, a articulação técnica e financeira para a expansão da saúde família é fundamental para melhoria da estrutura física e de materiais para as unidades, e investir em formação continuada, facilita a motivação para ordenação do cuidado do território. No entanto, o desafio está em sustentar iniciativas semelhantes sem o apoio financeiro necessário.

Considerações finais

A gestão municipal investiu esforços na ampliação da APS no município, promovendo dessa forma o acesso da população a esses serviços principalmente nos últimos anos, através da criação de novas equipes em unidades de saúde da família. Inclusive, assumiu a manutenção de equipes multiprofissionais, mesmo sem financiamento específico do nível federal, por entender a necessidade de tais profissionais no cuidado integral da população. Destaca-se que hoje 86,75% da população tem acesso aos serviços de APS no município. Aliado a tal expansão, delineou-se estratégias para o fortalecimento da APS através dos programas de residência, médica e multiprofissional, sempre com o objetivo de qualificar os profissionais de saúde, buscando melhorar a resolutividade das eSF. Essa expansão demandou esforços continuados da gestão em saúde do município, que concomitantemente, vem readequando os processos de trabalho nos territórios, além de realizar o monitoramento de indicadores em saúde. Ressalta-se que a adoção do critério de exclusão social foi um fator que auxiliou a gestão a implantar eSF em áreas de vulnerabilidade, dessa forma foi possível reduzir as desigualdades na medida que essas populações foram reconhecidas e inseridas em programas sociais tais como o Bolsa Família, além de ter canais potentes para dar voz às condições inadequadas de vida.

Referências

  • 1 Starfield B. Atenção primária à saúde: equilíbrio entre a necessidade de saúde, serviços e tecnologias. Brasília: UNESCO, MS; 2002.
  • 2 Wonca Europa. A definição européia de medicina geral e familiar (clínica geral/medicina familiar) [Internet]. 2002 [acessado 2024 Jan 31]. Disponível em: https://apmgf.pt/apmgfbackoffice/files/Definicao_MGF-EURACT_2005.pdf
    » https://apmgf.pt/apmgfbackoffice/files/Definicao_MGF-EURACT_2005.pdf
  • 3 Pinto LF, Giovanella L. Do Programa à Estratégia Saúde da Família: expansão do acesso e redução das internações por condições sensíveis à atenção básica (ICSAB). Cien Saude Colet 2018; 23(6):1903-1914.
  • 4 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política nacional de atenção básica. Brasília: MS; 2006.
  • 5 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria GAB/MS nº 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Diário Oficial da União 2011; 22 out.
  • 6 Brasil. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União 2017; 22 set.
  • 7 Pinto Junior EP, Rosana A Medina MG Silva MGC. Efeito da Estratégia Saúde da Família nas internações por condições sensíveis à atenção primária em menores de um ano na Bahia, Brasil. Cad Saude Publica 2018; 34(2):e00133816.
  • 8 Giovanella L, Bousquat A, Almeida PF, Melo EA, Medina MG, Aquino R, Mendonça MHM. Médicos pelo Brasil: caminho para a privatização da atenção primária à saúde no Sistema Único de Saúde? Cad Saude Publica 2019; 35:e00178619.
  • 9 Rasella D, Aquino R, Santos CAT, Paes-Sousa R, Barreto ML. Effect of a conditional cash transfer programme on childhood mortality: a nationwide analysis of Brazilian municipalities. Lancet 2013; 382(9886):57-64.
  • 10 Sauer L, Campelo E, Capillé MAL. O mapeamento dos índices de inclusão e exclusão social em Campo Grande-MS: Uma nova reflexão. Campo Grande: Ed. Oeste; 2012.
  • 11 R Core Team. R. A Language and Environment for Statistical Computing. R Foundation for Statistical Computing, Vienna; 2023.
  • 12 Soranz D. Reforma da atenção primária em saúde na cidade do Rio de Janeiro (2009-2016): uma avaliação de estrutura, processo e resultado [tese]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2017.
  • 13 Castro ALB, Andrade CLT, Machado CV, Lima LD. Condições socioeconômicas, oferta de médicos e internações por condições sensíveis à atenção primária em grandes municípios do Brasil. Cad Saude Publica 2015; 31(11):2353-2366.
  • 14 Mendonça FF, Lima LD, Pereira AMM, Martins CP. As mudanças na política de atenção primária e a (in)sustentabilidade da Estratégia Saúde da Família. Saude Debate 2023; 47(137):13-30.
  • 15 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria GAB/MS nº 635, de 22 de maio de 2023. Credencia municípios a fazerem jus a transferência dos incentivos financeiros federais de custeio referentes às equipes Multiprofissionais - eMULTI no âmbito da Atenção Primária à Saúde - APS. Diário Oficial da União 2023; 23 maio.
  • 16 Haggerty J, Chin MH, Katz A, Young K, Foley J, Groulx A, Pérez-Stable EJ, Turnbull J, DeVoe JE, Uchendu US. Proactive Strategies to Address Health Equity and Disparities: Recommendations from a Bi-National Symposium. J Am Board Family Med 2018; 31(3):479-483.
  • Editores-chefes:
    Maria Cecília de Souza Minayo, Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Out 2024
  • Data do Fascículo
    Nov 2024

Histórico

  • Recebido
    08 Mar 2024
  • Aceito
    19 Abr 2024
  • Publicado
    21 Abr 2024
location_on
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cienciasaudecoletiva@fiocruz.br
rss_feed Stay informed of issues for this journal through your RSS reader
Accessibility / Report Error