Resumo
O objetivo deste artigo é verificar a associação raça/cor e acesso a serviços de reabilitação pós-AVC. Estudo transversal de base populacional com 966 adultos (≥18 anos) pós-AVC, respondentes da Pesquisa Nacional de Saúde. Desfecho, acesso à reabilitação, e exposição (raça/cor) foram coletados de modo autorreferido. Variáveis sociodemográficas, histórico clínico, plano de saúde e limitação pós-AVC foram considerados para o ajuste. Regressão de Poisson com estimativa de variância robusta foi utilizada para estimar a associação nas análises bruta e ajustada. Da amostra total, 51,8% são autodeclarados negros ou outras raças, 61,4% demandam por reabilitação, sendo que apenas 20% têm acesso ao serviço de reabilitação. Dificuldade em acessar reabilitação foi referida por 57,5% dos autodeclarados amarelos ou indígenas, 43% dos negros, e 35,4% dos brancos. Na análise ajustada, negros têm 4% menos acesso à reabilitação se comparados com seus pares brancos (RP 1,04, IC95% 1,00-1,08). Pessoas da raça amarela ou indígena 17% menos acesso que brancos (RP 1,17, IC95% 1,13-1,20). No Brasil, autodeclarados negros, amarelos, indígenas e outros têm pior acesso à reabilitação pós-AVC quando comparados aos autodeclarados brancos, apontando iniquidades raciais na reabilitação em sobreviventes de AVC.
Palavras-chave: Iniquidade étnica; Reabilitação; Acidente Vascular Encefálico
Abstract
This article aims to verify the association between race/skin color and access to post-stroke rehabilitation services. It is a cross-sectional population-based study including 966 post-stroke adults (≥18 years) that responded to the National Health Survey (PNS). The outcome, access to rehabilitation, and exposure (race/skin color) were collected in a self-reported manner. Socio-demographic variables, clinical history, healthcare plan and post-stroke limitation were considered for the adjustment. Poisson regression with robust variance estimation was used to estimate the association in the crude and adjusted analyses. Based on the sample, 51.8% are self-declared black and 61.4% require rehabilitation, with only 20% having access to the rehabilitation service. Difficulty in accessing rehabilitation was reported by 57.5% of other self-declared races, 43% blacks, and 35.4% whites. In the adjusted analysis, 4% of self-declared black (PR 1.04, CI95%1.00-1.08) and 17% of self-declared yellow and indigenous (PR 1.17, IC95%1.13-1.20) have less access to rehabilitation than their white peers. In Brazil, self-declared black and yellow and indigenous people have worst access to post-stroke rehabilitation in comparison with self-declared white people, highlighting racial inequities in rehabilitation in stroke survivors.
Key words: Ethnic inequality; Rehabilitation; Stroke
Introdução
O acidente vascular cerebral (AVC) é a segunda causa de morte no mundo e a segunda causa de anos vividos com incapacidade1. A incapacidade temporária ou definitiva tem impacto significativo, principalmente, em países em desenvolvimento2-4. Atualmente, a carga global do AVC é de 59,2%, sendo responsável por 5,7% dos anos vividos com deficiência5. Nas últimas décadas, o Brasil vem passando por um processo de transição demográfica, epidemiológica e social e, consequentemente, há mudanças na longevidade e na morbimortalidade da população. A mortalidade por AVC diminuiu cerca de 20% nos países de baixa e média renda, como o Brasil, e 37% nos países de alta renda entre 1990 e 20106,7. Com esta queda, há uma considerável alta no número de sobreviventes, sendo a reabilitação um processo importante para estes indivíduos.
As sequelas pós-AVC dependem da região cerebral acometida, do nível da lesão e da capacidade de recuperação de cada indivíduo, podendo limitar a capacidade dos sobreviventes em desempenhar, de forma independente, suas atividades de vida diária (AVDs)5. As dificuldades podem interferir na qualidade de vida com impacto no cotidiano da pessoa e de sua família, além da repercussão na realização do autocuidado8. Os graus de incapacidade determinam os níveis de dependência por assistência e, portanto, aqueles acometidos por AVC irão necessitar de reabilitação7,9,10.
A reabilitação após o AVC visa recuperar a independência na função diária, a inserção e a participação social do indivíduo11. No Brasil, em relação aos aspectos do atendimento às pessoas que tiveram AVC, existem diretrizes de prática clínica que recomendam avaliação rápida e abrangente, controle ativo para avaliação e planejamento precoce das intervenções de reabilitação12. Desta forma, a identificação e a gravidade das sequelas pós-AVC influenciam nos encaminhamentos oportunos e no prognóstico clínico do paciente. Em países desenvolvidos, como Canadá e Estados Unidos, estudos10,13 apontam que há relatos de iniquidades no acesso à reabilitação e que as diferenças raciais contribuem para iniquidades em saúde14, podendo-se destacar a raça/cor como um importante preditor do estado de saúde da população e um marcador de desigualdades sociais.
Negros apresentam pior função física pós-AVC e, consequentemente, maior limitação de vida diária quando comparados aos brancos15. Apesar da existência de acentuadas iniquidades raciais nos resultados pós-AVC, pouco se sabe sobre os mecanismos de discriminação racial que levam a estas iniquidades16,17. Faz-se necessária a realização de estudos que possam descrever essas diferenças, proporcionando reflexões acerca do tema, uma vez que as iniquidades raciais na saúde vêm sendo descritas como tendo relação de causalidade com a qualidade de vida e com a morbimortalidade dos negros; porém, sendo pouco explorada na perspectiva da saúde pública.
Em países em desenvolvimento, especialmente na América do Sul, estudos relacionando raça e iniquidades em saúde são pauta relativamente recente e desconhecemos estudos relacionando acesso à reabilitação e raça.
Considerando o atual cenário mundial de debates e discussões acerca das iniquidades sociais e de saúde18 e que o acidente vascular cerebral é uma das principais causas de limitação e impacto na vida social dos indivíduos, sendo um problema de saúde pública em nível global, este estudo tem por objetivo verificar a associação entre raça/cor e o acesso a serviços de reabilitação por sobreviventes de acidente vascular cerebral na população brasileira, buscando analisar se os indivíduos autodeclarados da raça/cor negra possuem maior dificuldade em acessar os serviços de saúde quando comparados aos seus pares brancos.
Métodos
Delineamento do estudo
A partir de análise de dados oriundos da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2013, um inquérito de base domiciliar de âmbito nacional, realizado a cada cinco anos, efetivado em parceria entre o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Ministério da Saúde e parte do Sistema Integral de Pesquisas Domiciliares (SIPD), realizou-se este estudo.
Participantes e critérios de elegibilidade
O plano de amostragem é apresentado em detalhes em artigo previamente publicado19. Foram selecionados 64.348 domicílios e 60.202 entrevistas foram efetivadas. Participaram do estudo os indivíduos adultos (≥18 anos) que responderam positivamente à questão “Algum médico já lhe deu diagnóstico de AVC - acidente vascular cerebral - ou derrame?”, sendo então, a amostra deste estudo composta por 966 participantes.
Variável exposição
Para variável de exposição, foi considerada a autodeclaração de raça/cor, que na PNS as opções são: branca, preta, parda, amarela, indígena e outra. Neste estudo, a exposição foi categorizada em: negros (união de autodeclarados pretos e pardos), brancos, e outras (união de autodeclarados amarelos, indígenas e outra). A aglutinação de pretos e pardos, que resultou na categoria “negros”, foi adotada seguindo o critério utilizado pelo IBGE, que soma os indivíduos autodeclarados pretos aos autodeclarados pardos20.
Variável desfecho
O acesso aos serviços de reabilitação após o AVC, desfecho deste estudo, foi obtido de modo autorreferido dispondo das respostas à questão “O que você faz atualmente por causa do AVC?”, sendo as opções: dieta, fisioterapia, outras terapias de reabilitação e uso de medicamentos. Foram consideradas as respostas positivas para fisioterapia e outras terapias.
Variáveis de ajuste
Para ajuste foram utilizadas variáveis sociodemográficas, como sexo (masculino e feminino), idade (categorizada em 18-39 anos, 40-59 anos e 60 anos ou mais), escolaridade (categorizada em ensino fundamental, ensino médio, graduação e pós-graduação) e região de moradia (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul). Ainda, foram consideradas para o ajuste variáveis sobre histórico clínico: hipertensão, hipercolesterolemia, doenças cardiovasculares, Diabetes Melittus e depressão, bem como ter plano de saúde e a limitação pós-AVC.
A limitação pós-AVC é apresentada em Escala Likert pela PNS, tendo como opções de respostas: não limita, limita pouco, limita moderadamente, limita muito e limita intensamente. Para este estudo, a variável limitação foi categorizada em “não limita” e “limita” (compreendendo limita pouco, limita moderadamente, limita muito e limita intensamente). Optou-se por esta categorização, pois indivíduos que ficaram com algum tipo de limitação pós-AVC, tendem a buscar por serviços de reabilitação. Ainda, algumas variáveis do histórico clínico, como hipertensão, Diabetes Mellitus e depressão apresentaram ausência de respostas no sistema, que foram incorporadas à categoria “não”.
Análise dos dados
A caracterização da amostra é apresentada através de frequências absolutas e relativas, considerando os pesos amostrais complexos. Foram analisadas as diferenças na distribuição e estimativas da razão de prevalência (brutas e ajustadas), utilizando o modelo de regressão de Poisson com estimativa de variância robusta. A análise ajustada foi realizada em três etapas: modelo 1 (ajuste para variáveis sociodemográficas), modelo 2 (ajuste para variáveis de histórico clínico) e modelo 3 (ajuste para variáveis de histórico clínico, limitação pós-AVC e uso de plano de saúde). Considerando a significância dos modelos de ajuste e a relação dessas variáveis com a exposição e o desfecho, optou-se por apresentar os dados com um modelo de ajuste final, incluindo todas as variáveis. Todas as análises foram feitas considerando as características da amostragem, não resposta e calibração, utilizando os pacotes Survey e Sandwich do programa R (versão 3.4.1).
Aspectos éticos
A PNS foi aprovada pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa sob o parecer de número 10853812.7.0000.0008. Todos os participantes assinaram termo de consentimento livre e esclarecido.
Resultados
Dentre os entrevistados na Pesquisa Nacional de Saúde, 966 (1,6%) foram acometidos por AVC, sendo que destes, 50,4% eram negros, 48,2% brancos e 1,4% indígenas, amarelos e de outras origens, considerando o peso amostral. A maior prevalência de AVC ocorreu em sujeitos do sexo feminino (51,4%) e a média de idade foi de 62 anos (DP=15 anos), sendo que 58,3% destes tinham 60 anos ou mais. Sobre a escolaridade, 80% dos participantes tinham até ensino fundamental, sendo esse o único curso informado pelos categorizados como outros (Tabela 1). Quanto ao histórico clínico, a hipertensão apresentou maior prevalência (70,3%) em relação aos demais fatores de risco para AVC (Tabela 2).
Considerando o acesso a serviços de saúde para reabilitação pós-AVC, 80,0% dos participantes relataram não ter acesso à reabilitação, sendo que as maiores prevalências foram referidas pelos participantes que se autodeclararam como amarelos, indígenas ou outros (99,1%) e negros (82,8%). Com relação à limitação, 61,4% dos participantes referiram ter limitação após o AVC, dos quais a categoria “negros” apresentou maior prevalência (60,2%). Quanto ao plano de saúde, 24,0% da amostra relatou ter plano de saúde (Tabela 2).
Com relação à associação entre raça/cor e não ter acesso à reabilitação pós-AVC, na análise bruta, foram observadas maiores prevalências entre os categorizados como amarelos, indígenas e outros (RP=1,27, IC95% 1,24-1,29), e como negros (RP=1,06, IC95% 1,04-1,08) em relação aos brancos. Desta forma, pode-se afirmar que as categorias “negros” e “outros” possuem, respectivamente, 6% e 27% de risco de não acessar serviços de reabilitação pós-AVC (Tabela 3).
Nas análises ajustadas, mantém a assimetria de acesso a serviços de reabilitação pós-AVC entre negros, amarelos e indígenas e brancos. Nos modelos de ajuste, levando em consideração as variáveis sociodemográficas (modelo 1), variável de histórico clínico (modelo 2) e variáveis de limitação pós-AVC e possuir plano de saúde (modelo 3), a diferença de acesso à reabilitação, em virtude da raça-cor entre brancos, negros, indígenas, amarelos e outros, foi mantida em todos os modelos de ajuste testados (Tabela 3).
No modelo final de ajuste, levando em consideração variáveis sociodemográficas, histórico clínico, limitação pós-AVC e possuir plano de saúde, amarelos, indígenas e outros possuem 17% mais risco de não acessar a reabilitação em relação aos brancos (RP=1,17, IC95% 1,13-1,20); e negros, 4% mais risco de não acessar serviços de reabilitação pós-AVC em relação aos brancos (RP=1,04, IC95% 1,00-1,08) (Tabela 4).
Discussão
Os achados deste estudo indicam que há disparidade racial no acesso aos serviços de reabilitação por pacientes acometidos pelo AVC, assinalando que indivíduos autodeclarados como negros, amarelos, indígenas e outros têm menos acesso à reabilitação quando comparados com indivíduos autodeclarados brancos. Ainda, pessoas da categoria “negros” referiram maior limitação decorrente de sequelas pós-AVC.
No geral, a população e os profissionais de saúde desconhecem como as questões raciais podem impactar a vida, o acesso aos serviços e a qualidade da atenção à saúde16. O não acesso ou a dificuldade em acessar os serviços de saúde e a qualidade da atenção à saúde, somados à raça/cor e à classe social, interferem diretamente nos desfechos de saúde e determinam diferenças importantes nos perfis de adoecimento e morte entre grupos estigmatizados e os que ocupam espaços de privilégio8,14.
As características sociodemográficas da amostra são aspectos relevantes a se considerar quando há estudo sobre não acesso a serviços de reabilitação. É sabido que os anos de estudo influenciam na busca por serviços de saúde21. Quando observada a escolaridade, estratificada por raça/cor, a maioria das pessoas autodeclaradas como negros e como amarelos, indígenas e outros possuem apenas o ensino fundamental. Na análise ajustada, a baixa escolaridade influenciou o não acesso à reabilitação da amostra estudada. Desta forma, pondera-se que o nível escolar dos participantes pode contribuir para a dificuldade de acesso, uma vez que pessoas com baixa escolaridade são mais propensas a não buscar por serviços de saúde.
Neste ponto, ressalta-se o papel do racismo estrutural, da cultura do racismo e do próprio nível individual da discriminação na construção das sociedades, uma vez que influenciam nos aspectos sociais e de acesso à saúde. Um fator que demonstra isso é que negros, mesmo com maior escolaridade, têm menor expectativa de vida quando comparados a brancos com menor escolaridade. Quando direcionado ao estado de saúde, negros têm maiores chances de início precoce da doença, progressão mais agressiva e menores chances de sobrevivência, fato que pode estar relacionado à posição de inferioridade ditada pela sociedade dos negros em relação aos brancos nos serviços de saúde22.
Fatores socioeconômicos, culturais e demográficos também são determinantes de saúde que contribuem para as desigualdades23, uma vez que influenciam as condições em que os indivíduos nascem e se desenvolvem24. Sabe-se que pessoas negras e de outras etnias consideradas não brancas possuem maior taxa de mortalidade ao nascer, menor expectativa de vida e piores condições de sobrevivência, além de ocuparem os piores índices de violência no mundo todo. A saúde dos grupos sociais é provavelmente mais fortemente afetada por fenômenos estruturais e não, individuais22.
Outro fator importante a ser levado em consideração e descrito como um importante determinante social de saúde e status socioeconômico é a região de moradia. As populações que dispõem de pior situação financeira são também as que têm maiores dificuldades de acesso aos serviços e às políticas públicas, habitações adequadas, água potável, saneamento, alimentos, educação, transporte, lazer, emprego fixo e seguro. Ou seja, vivem em piores condições sociais, ambientais e sanitárias25. Neste estudo, participantes autodeclarados amarelos, indígenas e outros apresentaram maior risco de não acesso à reabilitação pós-AVC, quando levado em consideração a região de moradia.
Com relação ao acesso à reabilitação, 60% dos participantes deste estudo referiram que o AVC limitou as suas atividades de vida. Além disso, a maioria da população adulta brasileira acometida por AVC não tem acesso à reabilitação, visto que, entre negros, amarelos, indígenas e outros, mais de 90% referiram não ter tido acesso a serviços de reabilitação. Os dados deste estudo demonstraram que que raça/cor tem influência na utilização dos serviços de reabilitação, sendo que os participantes autodeclarados como brancos, mesmo que em proporção na amostra, utilizam os serviços com maior frequência.
Em 2012, foi criada no Brasil a Linha de Cuidado ao AVC, com o objetivo de fornecer atendimento de urgência e reabilitação em tempo oportuno, buscando o planejamento terapêutico rápido para redução das sequelas do AVC após a alta hospitalar e investindo na educação permanente dos profissionais que prestam esses serviços12. Porém, em uma análise social, os dados obtidos neste estudo podem representar um privilégio em relação aos que têm acesso ao serviço, evidenciando a desigualdade entre os grupos estudados.
Estudos apontam que indivíduos negros têm piores desfechos pós-AVC quando comparados a indivíduos brancos14,26, indicando que as iniquidades encontradas entre raça/cor, em relação ao acesso à reabilitação são influenciadas por esses vieses raciais. Além disso, poucos estudos27,28 debatem essas diferenças em indivíduos de origem oriental e indígena em comparação aos brancos.
Os estudos encontrados apontam que, para estas populações, fatores culturais e de comunicação podem contribuir para a dificuldade de acesso à reabilitação29,30. Neste ponto, indivíduos com primeiro idioma diferente ao falado no país (no caso desta pesquisa, o Português Brasileiro) e com culturas medicinais próprias, como as tradições da medicina oriental e da medicina indígena, necessitam de atendimento de reabilitação adaptados, para melhorar a compreensão do processo de reabilitação proposto e adesão ao tratamento. A formação (e atuação) dos profissionais de saúde que considere a multiplicidade social e cultural existente na sociedade pode contribuir sobremaneira para o acesso e adesão ao serviço de reabilitação31.
Mesmo com poucos estudos epidemiológicos sobre o tema, a tentativa de reduzir as iniquidades raciais na saúde é de longa data no Brasil. A exemplo da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI)32 e da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN)33, o governo brasileiro reconhece as especificidades étnicas, culturais e territoriais destas populações, visando aperfeiçoar e adequar o atendimento à saúde dentro das competências do Sistema Único de Saúde (SUS). Mesmo que o tópico racismo faça maior referência à população negra em relação às populações orientais e indígenas, estas políticas reconhecem igualmente a necessidade de formação e educação permanente dos profissionais de saúde, visando conhecer as necessidades culturais e de saúde de cada uma, possibilitando desenvolver ações e estratégias de identificação, abordagem, combate e prevenção do racismo institucional no ambiente de trabalho e na oferta dos serviços de saúde.
No âmbito das limitações após o AVC, participantes com histórico clínico de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) relataram maior limitação. Já é sabido que a presença de DCNT tem forte influência na limitação, uma vez que fatores de risco acabam por interferir na independência e na realização das atividades de vida diária34. Uma hipótese para a maior prevalência de limitação nesta amostra seria de que indivíduos com histórico clínico de DCNT, quando somada à sequela do AVC, teriam maior percepção sua limitação nas atividades diárias. Outro fator que pode contribuir é a idade dos participantes, na qual a maioria da amostra tem 60 anos ou mais. Idosos têm maior comprometimento físico e prevalência de DCNT e, por consequência, apresentam maior limitação34.
Como um cenário geral, a discriminação racial é um dos braços que compõem as iniquidades em saúde entre grupos e tem sido cada vez mais relatada como tendo relação de causalidade com a qualidade de vida e com a morbimortalidade dos negros, mas essa questão é pouco explorada na perspectiva da saúde pública35,36 principalmente pensando no acesso aos serviços de saúde. Sabe-se que no Brasil as populações negra e indígena ocupam majoritariamente os espaços de menor privilégio. Levando-se em consideração os determinantes de saúde que envolvem estas populações e a discriminação racial enfrentada, o acesso aos serviços de saúde se mostram ainda mais distante.
Ainda que as informações e as discussões trazidas nesse estudo sejam potencialmente relevantes para a análise das iniquidades de acesso a serviços de reabilitação no cenário brasileiro sob um recorte de raça-cor, os dados estão sujeitos a vieses de classificação, especialmente por se tratar de um questionário autorreferido. Ainda, pode haver viés de memória dos entrevistados em relação a sua situação de saúde. Entretanto, essa importante gama de informações em nível populacional, e com a escassez de recursos humanos e financeiros disponíveis, é a melhor fonte de informações disponível neste momento. Mesmo que não seja a única, pode ser associada a outros dados e estudos, contribuindo de forma relevante para o mapeamento e reflexão sobre as questões levantadas. A prevalência de pretos e pardos pode estar subestimada na amostra, pois em 2013 a autodeclaração de raça/cor ainda não ocorria de forma aberta em função de o racismo estrutural ser histórico na população brasileira, onde, mesmo atualmente, autodeclarar-se preto prevê um peso social muito grande. Desta forma, as discrepâncias no acesso e uso de serviços de reabilitação podem ser ainda maiores. Com acesso a novas informações sobre o tema será possível fazer um levantamento com novos recortes temporais, a fim de acompanhar a evolução deste aspecto em relação ao tema, tanto em relação à autodeclaração de raça-cor, quanto em relação ao não acesso a serviços de reabilitação.
Conclusão
Neste estudo populacional com adultos, observa-se que existem iniquidades raciais no acesso aos serviços de reabilitação pós-AVC no Brasil, nas quais pessoas autodeclaradas brancas têm maior acesso quando comparadas com pessoas autodeclaradas pretas, pardas, indígenas, amarelas ou outras. Além disso, o acesso aos serviços de reabilitação pode ser influenciado por fatores sociodemográficos, como idade e escolaridade, bem como o histórico clínico e a limitação pós-AVC.
As formas estruturais de racismo e sua relação com as iniquidades em saúde permanecem pouco estudadas, sendo o racismo restringido à vida de minorias raciais e imigrantes ao longo da história. Torna-se necessário realizar pesquisas sob a ótica epidemiológica, visando à ampliação da discussão destas iniquidades raciais causadas pelo racismo estrutural. Desta forma, espera-se que este trabalho possa abrir janelas para que ocorram outros estudos epidemiológicos parecidos.
Além disto, a partir destes resultados, espera-se auxiliar nas tomadas de decisões referentes aos tratamentos das sequelas após o AVC e contribuir com o debate sobre as iniquidades em saúde no cenário brasileiro. Ressalta-se que a redução das iniquidades relacionadas à saúde contribuirá para a melhora dos resultados de tratamento entre estes pacientes com AVC.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
04 Maio 2022 -
Data do Fascículo
Maio 2022
Histórico
-
Recebido
29 Dez 2020 -
Aceito
02 Jul 2021 -
Publicado
04 Jul 2021