Acessibilidade / Reportar erro

Entre o suporte e o controle: a articulação intersetorial de redes de serviços

Between support and control: the intersectorial coordination of services networks

Resumo

Redes sociais, especificamente de articulação entre serviços das políticas sociais, são incentivadas como forma de aumento da efetividade das ações, podendo promover maior suporte social, devendo ser implementadas pela gestão pública. Contudo, elas podem também produzir controle da vida dos pobres. Objetivou-se mapear as redes sociais em Campinas-SP, e investigar a estratégia de articulação entre os serviços das políticas de assistência social, educação e saúde como possível instrumento de suporte social. Para tanto, foram entrevistados 13 dos 15 coordenadores distritais das políticas sociais, aplicado questionários com terapeutas ocupacionais, com a colaboração de 47,2% (n = 17) das profissionais municipais e realizada observação de duas redes por quatro meses. Foram mapeadas 78 redes, com predominância no setor da saúde. Foram discutidas as categorias: O que é rede? Quem realiza as ações em rede? Quais as atribuições da rede? Suporte social ou controle? Conclui-se que há um distanciamento entre discurso e prática. Por um lado, há consenso em torno da necessidade das redes; por outro, não se possibilita mudanças institucionais para sua efetivação. Além de sua função parecer ser ambivalente, uma vez que procuram garantir suporte, são também dispositivos de controle.

Política pública; Rede social; Colaboração intersetorial

Abstract

Social networks, especially those coordinating different social policy services, are responsible for fostering the increase of effectiveness of actions, being able to promote greater social support that must be implemented by public administration, but they can also exercise control of the lives of the poor. The scope of this article was to map social networks in Campinas, state of São Paulo, to investigate the strategy behind intersectorial coordination among social services, education and health as a tool of social support. To achieve this, 13 of the 15 district coordinators of social policies were interviewed, questionnaires were filled out by occupational therapists, with 47.2% (n = 17) of collaboration of the city’s professionals, and two networks being monitored for 4 months. Mapping was conducted of 78 predominantly health sector networks. The following categories were discussed: What is a network? Who conducts network actions? What are the network’s attributes? – Social support or control? It was revealed that there is a gap between discourse and practice. The need for networks is a consensus, however the possibilities of institutional change for implementing such networks are not given. Likewise, the network has an ambivalent function: it can assure support but can also be a control device.

Public policy; Social networking; Intersectoral collaboration

Redes, Intersetorialidade e Território

Redes sociais, especificamente de articulação entre os serviços das políticas sociais, são incentivadas como forma de aumento da efetividade, podendo ser implementadas pela gestão pública. Contudo, além do aumento do suporte social à população atendida, podem produzir controle da vida dos pobres, demonstrando ambivalências em suas tessituras e ações.

A literatura apresenta inúmeras análises e definições para o conceito de rede social, sendo aqui escolhida a caracterização de rede social como um conjunto de sujeitos ligados entre si por relações interpessoais que permitem a transmissão de recursos, extrapolando os limites formais. A densidade de tais redes depende da relação e da quantidade de ligações de cada ator com os demais componentes11. Gomide M, Grossetti M. Rede social e desempenho de programas de saúde: uma proposta investigativa. Physis 2010; 20(3):873-893.. Podem também ser consideradas espaços em que as pessoas contam com diversos tipos de suporte, tendo a possibilidade de compartilhar os problemas e tentar encontrar soluções, como um sistema de apoio22. Mângia E, Muramoto M. Redes sociais e a construção de projetos terapêuticos: um estudo em serviços substitutivos em saúde mental. Rev. Ter. Ocup. USP 2007; 18(2):54-62. ou “a soma das relações que um indivíduo percebe como significativas ou diferenciadas da massa anônima da sociedade”33. Ferro LF. Grupo de convivência em saúde mental: intersetorialidade e trabalho em rede. Cad. Ter. Ocup. UFSCar 2015; 23(3):485-498..

Gonçalves e Guará44. Gonçalves AS, Guará IMFR. Redes de proteção social na comunidade In: Guará IMFR, organizador. Redes de proteção social. São Paulo: Associação Fazendo História; 2010. p. 11-29. listam diversos tipos de rede: redes primárias ou de proteção espontânea (sustentadas pelos princípios da solidariedade e do apoio mútuo, são constituídas pelo núcleo familiar, pelas relações de amizade e de vizinhança); redes sociocomunitárias (constituídas por organizações comunitárias, por associações de bairro e por organização filantrópicas, que se sustentam no princípio da confiança ativa e oferecem serviços às suas microlocalidades); redes sociais movimentalistas (formadas por movimentos sociais, cujo objetivo gira em torno da defesa dos direitos, da vigilância e da luta pela garantia da participação popular); redes setoriais públicas (formadas por serviços de natureza especializada, resultantes da ação do Estado por meio das políticas públicas); redes de serviços privados (formadas por serviços especializados fornecidos pela iniciativa privada àqueles que por eles podem pagar). Dentre as redes de caráter socioassistencial, existem as redes temáticas, redes intersetoriais, redes territoriais, redes organizacionais e interinstitucionais e outras, de natureza híbrida, que sejam ao mesmo tempo territoriais e temáticas. Fez-se a opção aqui pela investigação das redes intersetoriais, ou seja, redes formadas por serviços das organizações governamentais e/ou não governamentais.

Entretanto, é preciso assinalar que, mesmo em se tratando de redes formadas por instituições, muitas vezes as ações ocorrem de maneira não instituída, ou seja, não são programadas no nível do planejamento da política e/ou do serviço. Com frequência os trabalhadores que atuam na “ponta”, os chamados “burocratas de rua”, segundo Lotta55. Lotta G. O papel das burocracias do nível da rua na implementação de políticas públicas: entre o controle e a discricionariedade. In: Faria CAPF, organizador. Implementação de Políticas Públicas. Teoria e Prática. Belo Horizonte: Editora PUC Minas; 2012. p. 20-49. aqueles que estão diretamente na assistência à população, tecem redes que não estão formalmente instituídas e frequentemente sequer são conhecidas pela gestão pública, urgindo da necessidade dos técnicos em solucionar a demanda cotidiana.

Teixeira66. Teixeira SMF. O desafio da gestão das redes de políticas. In: Anais do VII Congresso internacional Del CLAD sobre La Reformadel Estado y Modernización de La Administración Pública; 2002; Lisboa. p. 1-24. afirma que, nas sociedades latino-americanas, a disseminação do tema redes se relaciona a dois fenômenos: a descentralização e a democratização política, que estão intrinsecamente relacionados. A descentralização muitas vezes é considerada facilitadora para o processo de democratização, visto que pode garantir e incentivar a participação da sociedade civil nos processos decisórios. Neste sentido, segundo Pereira e Teixeira77. Pereira KYL, Teixeira SM. Redes e intersetorialidade nas políticas sociais: reflexões sobre sua concepção na política de assistência social. Textos & Contextos 2013, 12(1):114-127., a rede pode ser considerada um instrumento de luta contra a centralização das políticas, na direção do estabelecimento de ações mais horizontais.

Por sua vez, intersetorialidade, de acordo com Inojosa88. Inojosa RM. Sinergia em políticas e serviços públicos: desenvolvimento social com intersetorialidade. Cadernos FUNDAP 2001; 22:102-110., pode ser compreendida como “a articulação de saberes e experiências com vistas ao planejamento, para a realização e a avaliação de políticas, programas e projetos, com o objetivo de alcançar resultados sinérgicos em situações complexas”. Deve estar articulada à possibilidade de criação de novas estratégias políticas de ação, e não somente a soma de recursos ou pessoas, levando em consideração as especificidades territoriais e populacionais88. Inojosa RM. Sinergia em políticas e serviços públicos: desenvolvimento social com intersetorialidade. Cadernos FUNDAP 2001; 22:102-110..

Bronzo99. Bronzo C. Intersetorialidade como princípio e prática nas políticas públicas: reflexões a partir do tema do enfrentamento da pobreza. In: Anais do XX Cogresso del CLAD sobre la Reforma del Estado y Modernización de La Administración Pública; 2007; Caracas. p. 7-45. defende que a base da intersetorialidade é constituída pela perspectiva da integralidade das ações públicas. Pontua que a especialização se faz necessária, visto que é preciso atender a mais variada sorte de demandas, mas em contraponto a integralidade possibilitando a visão global sobre os sujeitos e suas necessidades, com maior efetividade das políticas para com a população.

Com frequência, é possível notar na literatura, a qual discute o tema das redes e da intersetorialidade, referências à noção de território. Monnerat e Souza1010. Monnerat GL, Souza RG. Política Social e intersetorialidade: consensos teóricos e desafios práticos. SER Social 2009; 12(26):200-220. defendem que a perspectiva de intervenção sobre problemas complexos se associa fortemente à noção de território. É possível considerar a caracterização de base territorial como um dos princípios organizativos mais importantes para as políticas sociais, pois possibilita singularizar a população e seus problemas, além de dimensionar os impactos dos sistemas sobre os níveis de atenção à população. Permite ainda o estabelecimento de uma relação de responsabilidade entre os serviços e a população adscrita, considerando as singularidades de cada território1111. Akerman M, Franco de Sá R, Moyses S, Rezende R, Rocha D. Intersetorialidade? IntersetorialidadeS! Cien Saude Colet 2014; 19(11):4291-4300..

Adicionalmente, Souza1212. Souza TP. A norma da abstinência e o dispositivo “drogas”: direitos universais em territórios marginais de produção de saúde (perspectivas da redução de danos) [tese]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas; 2013. afirma que a “construção de redes territoriais de produção de saúde busca superar a percepção de que o território é apenas um lugar produtor de demandas que requerem ofertas técnicas, e busca afirmar que o território é um espaço vivo que requer diálogos e coproduções de ordem política e social”. Para tanto, é compreendido que o conceito de rede poderia ser um importante arranjo político no nível local/territorial, contributivo para maior efetividade das ações e oferta de maior suporte social à população atendida. Segundo Righi1313. Righi LB. Redes de Saúde: uma reflexão sobre formas de gestão e fortalecimento da atenção básica. In: Cadernos Humanizasus. Atenção Básica. Brasil: Ministério da Saúde; 2010. p. 59-74., “o conceito de rede representaria uma inovação importante para a organização da atenção no campo da saúde, visto que nas redes não há centro”, ou seja, o processo de cuidado torna-se mais flexível.

A partir deste conceito, é possível considerar o território e as produções ali tecidas como fundamentais para a existência de redes. Além disso, é importante pontuar que os equipamentos mais próximos territorialmente à população geralmente são as escolas e serviços da atenção/proteção básica de assistência social e de saúde. Neste sentido, Souza1212. Souza TP. A norma da abstinência e o dispositivo “drogas”: direitos universais em territórios marginais de produção de saúde (perspectivas da redução de danos) [tese]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas; 2013. defende que são estes serviços e profissionais os mais possibilitados em manter a comunicação entre a rede de serviços e os territórios existenciais dos usuários.

As redes de serviços, ao se proporem a acompanhar os movimentos do território, precisam estar flexíveis a se modificarem. Só assim, compreendendo o território como um espaço de pertencimento, de classe, e permeado por relações de poder, é que as articulações entre os serviços da rede poderão se concretizar como estratégia de suporte social e, principalmente, como ferramenta para a garantia de direitos.

O que se pretende trazer à luz é o papel central exercido pela articulação da rede social de serviços, por meio da intersetorialidade, na organização das ações estatais para e com a população, compreendendo essa ferramenta como possível fomentadora da governança, visto que oferece a possibilidade de organização e ação de vários atores na condução das políticas públicas1414. Lima LD, Albuquerque MV, Scatena JHG. Quem governa e como se governam as regiões e redes de atenção à saúde no Brasil? Contribuições para o estudo da governança regional na saúde. Novos Caminhos 2016; 8:1-13.. No bojo de tais discussões, questiona-se se as redes sociais de serviços podem se configurar como suporte adequado às demandas sociais de cada território. Assim, esta investigação se propôs a debater criticamente as formações de rede sociais entre os serviços, que lançam mão da intersetorialidade, especificamente dos setores de assistência social, de educação e de saúde, em Campinas-SP, a fim de oferecer pistas para fomentar iniciativas que se pautem pela possibilidade de governança, pela garantia de direitos e de suporte social.

Percursos e Métodos

A investigação ocorreu no município de Campinas-SP, tendo a cidade sido escolhida pelo seu pioneirismo na proposição de iniciativas governamentais intersetoriais e em rede. O município é localizado no interior paulista, conta com um total de 1.150.753 habitantes1515. Fundação Sistema Estadual de Análise de dados (Seade). Perfil dos municípios paulista - Campinas. [página na internet] 2017. [acessado 2018 Jan 24]. Disponível em: http://www.perfil.seade.gov.br
http://www.perfil.seade.gov.br...
, sendo a terceira cidade mais populosa do estado. A gestão administrativa ocorre por meio de cinco distritos, localizados nos territórios de cada região.

Para contemplar os objetivos da investigação, foram propostas três fases: a) entrevistas com os coordenadores distritais das áreas de assistência social, educação e saúde, com o intuito de realizar um mapeamento das redes em funcionamento, de conhecimento da gestão, e conhecer sua visão sobre este dispositivo institucional; b) aplicação de questionário com profissionais municipais de uma categoria profissional, terapeutas ocupacionais, sendo que das 43 terapeutas ocupacionais atuantes no município, 36 estavam em exercício do cargo e 17 (47,2%) colaboraram com a pesquisa; c) observação de duas “redes”. A fase a contou com a colaboração de 13 dos 15 gestores administrativos, sendo cinco da assistência social, quatro da educação e quatro da saúde. A escolha das redes para realização da fase c se deu pela indicação positiva dos gestores distritais, ou seja, destacaram experiências de bom funcionamento e resolutividade; além da escolha pelas pesquisadoras de duas propostas de diferente natureza. A fase c ocorreu pelo período de quatro meses, com o intuito de observar a dinâmica efetivada em uma experiência de rede social, com vistas a identificar fatores que facilitam e dificultam o trabalho em rede. Com objetivo de preservar a identidade dos sujeitos, foram dados nomes fictícios: Rede Alecrim e Rede Lavanda.

Resultados

Os resultados foram divididos em: mapeamento das redes em funcionamento e levantamento de categorias para discussão sobre as estratégias de articulação intersetorial entre os serviços que compõem as políticas sociais investigadas.

O mapeamento foi construído a partir do que foi identificado como “rede” pelos colaboradores da pesquisa - tanto na fase a, entrevistas com os coordenadores distritais, quanto na fase b, questionários aplicados junto às terapeutas ocupacionais atuantes no município. No total, foram listadas 78 redes.

Sete das iniciativas são consideradas municipais, ou seja, não ocorrem no nível do território, mas sim para toda a cidade, são elas: Rede AD (Álcool e outras Drogas), Rede da Mulher, Rede da Criança, Grupo de Trabalho das Maternidades, SISNOV (Sistema de Notificação de Violência), Conselhos e Orçamento Participativo. Destaca-se que alguns arranjos políticos, como Orçamento Participativo, e arranjos de base legal, como Conselhos, foram identificados pelos gestores e técnicos como redes de articulação entre os serviços.

Entre as demais redes, divididas nas cinco regiões administrativas, foram listadas: “Redes Intersetoriais”, iniciativa da Secretaria de Assistência Social, com o objetivo de discutir e encaminhar questões relativas ao território, como, por exemplo, o uso de espaços comunitários, possíveis problemas em torno de algum equipamento ou serviço do bairro, moradia, discussão de caso de famílias em vulnerabilidade social, dentre outras, totalizando 17 no município; reuniões periódicas entre serviços da saúde e da educação (notadamente entre unidades básicas de saúde e escolas); “RAPS” (Rede de Atenção Psicossocial) ou “Fórum de saúde mental”, organizados por meio de reunião com representantes de serviços de saúde do distrito para discutir e encaminhar pautas ligadas especificamente à saúde mental; Rede Cegonha, que articula todos os níveis de atenção na saúde em torno da questão da gestação e puerpério; “Oncorede”, a qual articula todos os níveis de atenção na saúde em torno do cuidado às pessoas com câncer; Reunião da rede socioassistencial, realizada com toda a rede de proteção básica da Assistência Social; e os “matriciamentos”, encontros entre profissionais e serviços, geralmente na saúde, mas não exclusivamente, com objetivo de discutir casos, pactuar ações, avaliar seus resultados e repactuar novas estratégias para a produção do cuidado.

As redes se articulam, principalmente, com dois objetivos gerais: discutir casos ou promover debates acerca de uma temática específica.

No caso das redes observadas, escolhidas pela indicação dos gestores e por terem objetos diferentes, seus objetivos variaram. A Rede Alecrim objetiva discutir casos e propor encaminhamentos para a população infanto-juvenil de um mesmo território, no qual se identificavam demandas educacionais, sociais e/ou de saúde. Contudo, na prática cotidiana, a reunião da rede era utilizada, centralmente, para discutir casos com o intuito de se decidir se devem ou não ser encaminhados para avaliação e atendimento no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) infanto-juvenil e no serviço de fonoaudiologia. Já a Rede Lavanda se pauta pela discussão de casos - pessoas e/ou famílias, inseridas naquele território, nas quais são identificadas problemáticas relacionadas à vulnerabilidade social, violações de direitos ou outros para os quais se avalia ser necessário intervenções conjuntas entre vários setores. Algumas temáticas são mais recorrentes, notadamente questões em torno da infância.

Com base nos dados, foram escolhidas as seguintes categorias para a discussão: O que é rede? Quem realiza as ações em rede? Quais as atribuições da rede? Suporte social ou controle?

O que é rede?

É possível afirmar que existe consenso no que diz respeito à concepção sobre o que é rede e quais são seus objetivos entre os diferentes setores. É compreendida como uma ferramenta de trabalho, ou uma estratégia, que propicia a interação entre os atores sociais, de um mesmo território, tendo como objetivo central a efetivação dos direitos da população, devendo se pautar pelo que é preconizado na política pública. Em suma, foi consensual a visão da rede intersetorial como uma rede de suporte.

É um conjunto de serviços que vão ter que se interagir e se complementar na missão final que é o cuidado do usuário [...]. É uma rede integrada que tem como finalidade a complementariedade do cuidado. (Entrevista Saúde 1)

Eu penso que a rede de serviços ela tem esses objetivos, que na verdade se convergem, e elas se complementam. Então o aspecto da complementariedade, eu acho que tem muito a ver com a especificidade que cada serviço tem. Então a ideia é que a rede possa se complementar mesmo, nas suas diferenças. (Entrevista Assistência Social 3).

O setor educação nomeou poucas redes com a sua participação, se comparado à saúde e à assistência social. Foi discorrido principalmente sobre parcerias cotidianas, caracterizadas como importantes e frequentes, mas sem periodicidade regular. Não é possível avaliar como sendo mais ou menos importante do que as ações sistemáticas, mas sim que possuem características diferentes, e geralmente envolvem a gestão da escola e raramente os professores. Ressalta-se a diferença do setor educação, em comparação aos demais, na natureza de seu serviço: a escolarização formal. Apresentando, portanto, um outro conceito de rede.

Nosso trabalho, apesar da gente estar na educação, nosso trabalho depende de outras ações. O que posso jogar como exemplo: nós vemos crianças que têm uma necessidade de atendimento especial. Com quem a gente conta para fazer o diagnóstico? Geralmente a gente encaminha para os postos de saúde, é também grande verdade que há uma demora no atendimento pela falta de profissional. Nós contamos com esses serviços e outros serviços também. (Entrevista Educação 3)

Os atores apresentaram a percepção que a ação em rede é relevante para a interferência na política e ação nos arranjos institucionais estabelecidos e possibilidades de governança, porém seu alcance é pequeno, focando-se mais na resolução de problemas locais.

São fundamentais para a interferência na política. Então acho que hoje, como são as práticas cotidianas que estão mais fortalecidas, a gente consegue resolver questões mais pontuais das pessoas através de ações intersetoriais. Mas eu acho que com essa coisa de lidar com as questões cotidianas a gente não consegue interferir nas formulações das políticas. Então eu sinto que, embora acabe ocorrendo uma interferência, mas eu acho que ela é pequena. E para isso a gente precisaria fortalecer os fóruns, porque os fóruns é onde você consegue discutir questões que saem do aspecto da particularidade e você consegue pensar política. (Entrevista Educação 1)

Os entrevistados de todos setores referiram acreditar que o trabalho intersetorial acontece, de certa forma, mas que precisaria avançar e se consolidar em diversos aspectos.

Elas são frágeis, frágeis, frágeis, frágeis demais, porque a gente precisa sair do paradigma do trabalho isolado, e os núcleos profissionais têm muita dificuldade em sair do núcleo e atuar no campo. (Entrevista Saúde 1)

Eu penso que precisaria avançar, que essas ações em rede deveriam estar mais consolidadas, com protocolos um pouco mais alinhavados para que a gente pudesse atender de maneira mais integral o cidadão, o munícipe. (Entrevista Educação 1)

Quem realiza as ações em rede?

Um debate ocorrido foi entre a reponsabilidade da gestão e a execução concreta das redes pelos trabalhadores. O que acaba personalizando as redes em determinadas figuras. Além disso, relataram não haver diretrizes específicas para o trabalho em rede e que estas são sustentadas pelas singularidades de cada território. Podemos supor, inclusive, que são estes os fatores que podem ocasionar a intermitência ou descontinuidade das ações.

Existe uma... um trabalho sim feito de cunho intersetorial, politicamente falando. Acho que o desejo começa pelo governo, pelas Secretariais. Mas, quando você vai lá para a base, realmente o que acontece? Fica muito voltado para a responsabilidade dos profissionais [...]. Mas nós ainda temos dificuldades sim, eu acho que a gente persiste muito. Está nas mãos de muitos profissionais que são responsáveis por manter aquecida essa rede. (Entrevista Assistência Social 1)

Outro apontamento, desta vez pela sua ausência nos resultados, refere-se à participação da população nas ações de articulação em rede. Em nenhuma das ações acompanhadas foi observada a participação da comunidade, embora ela seja o alvo de todas as redes. Para este segmento, é reservada a participação em poucos espaços, exclusivamente naqueles voltados ao debate de questões estruturais ou organizativas do bairro onde residem, e nunca nos diálogos sobre situações ou casos que envolvam concretamente a comunidade, tampouco em redes temáticas, como, por exemplo, álcool e outras drogas.

Uma gestora da educação elucidou a relevância da participação comunitária neste arranjo da rede social:

O que eu acho bacana é que nessa condição de você botar uma situação de rede de serviços, diferentes colegas debatendo com a comunidade, ouvindo as demandas da comunidade, faz com que você aprimore os serviços prestados, o tempo todo. Trabalhar dentro do serviço público sem ouvir, você não consegue. Você consegue aprimorar uma política pública de atendimento a partir do momento que você está no território ouvindo o sujeito histórico do território dele, naquilo que ele quer dizer para você o que é demanda dele. (Entrevista Educação 2)

Quais as atribuições da rede?

As discussões acerca da linha tênue que separa aquilo que é competência dos níveis básicos de atenção e o que deve ser cuidado nos níveis mais especializados (ou secundários), são geralmente geradas entre técnicos do mesmo setor. Quando se pautou atendimento de saúde mental, por exemplo, pôde-se observar divergências ao se discutir aquilo que seria de competência da atenção básica e o que seria de incumbência do CAPS.

Em uma discussão na Rede Alecrim, uma criança, avaliada pelo CAPS há aproximadamente um ano, foi medicada pelo psiquiatra durante o período de avaliação, que durou em torno de um mês. Ao fim da avaliação, ficou decidido que a criança não necessitava ser inserida naquele serviço, mas prosseguiu em uso do medicamento psicotrópico. Foi feita contra referência para a unidade básica, com a pediatra renovando a receita do medicamento periodicamente. Após vários meses, esta profissional requisitou que a criança fosse reavaliada pelo psiquiatra, com objetivo de saber se deveria ou não prosseguir dessa maneira. A solicitação foi levada à equipe do CAPS e à profissional do apoio institucional de saúde mental do distrito, que compreenderam que aquela seria uma demanda ambulatorial, e houve recusa em acolher o pedido. Tal recusa gerou divergências, pois a equipe da atenção básica não compreendia como atendimento ambulatorial. Cogitou-se, inclusive, suspender o medicamento, pois a pediatra não concordava em permanecer renovando a receita sem nenhum tipo de respaldo. Após vários encontros da rede, ficou acordado que a psiquiatra do CAPS participaria de uma reunião para discutir o caso, mas não atenderia a criança, em princípio.

Tal exemplo demonstra uma fragilidade na determinação das atribuições da rede. Entretanto, apesar das dissonâncias apreendidas durante a observação dos encontros, pode-se afirmar que a estratégia também permitiu a corresponsabilização do cuidado, como foi apreendido durante o diálogo sobre outros casos. Além disso, foi possível notar também discussões que evitaram o encaminhamento equivocado de algumas crianças para atendimento no nível secundário.

Suporte social ou controle?

Outra categoria refere-se à dicotomia entre o discurso do suporte social em contraponto às ações de controle, vigilância e revitimização conduzidas a partir das reuniões intersetoriais. Ao considerarmos a observação dos encontros da rede voltados para a discussão de casos, evidenciou-se a questão da vigilância em torno das famílias nas falas dos técnicos.

Nas reuniões da Rede Lavanda, observou-se que os serviços de atenção/proteção básica, notadamente da saúde e da assistência social, são frequentemente chamados ao papel de vigilantes das famílias, talvez pelo fato de estarem firmados no território e contarem com profissionais que realizam visitas domiciliares com frequência. Não raro surgiram relatos, via os integrantes da rede, de famílias que verbalizaram seu incômodo com os serviços, solicitando que cessassem tais atendimentos. Uma trabalhadora compartilhou o discurso de uma antiga moradora do território, ao encontrá-la, por acaso, em outro bairro. A profissional questionou se ela teria o desejo de retornar ao território, então a mulher respondeu que de maneira alguma o faria, pois lá todos os serviços a vigiavam e isso lhe causava muito incômodo. Naquele momento, a colocação pareceu não ter gerado reflexão sobre as multiplicidades de significados das ações da rede, mas sim, indignação nos profissionais, que não viram o reconhecimento de seu difícil trabalho cotidiano, considerando a mulher, de alguma forma, como “mal-agradecida”.

Somado a isso, surgiram também julgamentos e especulações cunhados em torno de situações vividas pelas famílias, que reproduzem preconceitos e estigmas sociais. Estando em um território caracterizado pela pobreza, consequentemente, as redes de serviços se articulavam em torno desta população. Entretanto, entendendo que a pobreza está além da questão financeira, e por trás desta há uma desigualdade social bastante estigmatizante e marginalizadora, a articulação entre os diferentes serviços pode ser utilizada para reforçar o controle e a tutela ao invés de proporcionar a garantia dos direitos da população. Ao utilizar da moralidade burguesa, as famílias de trabalhadores, pela “instabilidade financeira”, inerente ao excludente modo de produção capitalista, são classificadas no escopo da imoralidade e da falta de estrutura, sendo passíveis do que Donzelot1616. Donzelot J. A polícia das famílias. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1980. chama de incessantes intervenções por parte do Estado. Naquilo que são considerados os modos de vida1717. Lobo ES. Caminhos da sociologia no Brasil: modos de vida e experiência. Tempo Social 1992; 4(1-2):7-15., a organização dos trabalhadores pobres passa a ser passível de muitas classificações sociais. De acordo com Silva, a inclusão e exclusão dos sujeitos se dá em vista do processo cíclico de agravamento das crises do capital, caracterizadas como crises econômicas, que geram desemprego e exploração1818. Silva MOS. Pobreza, desigualdade e políticas públicas: caracterizando e problematizando a realidade brasileira. Rev Katál 2010; 13(2):155-163..

À título de ilustração, foi percebido em algumas reuniões que, se problematizava a violação de direitos da criança, o que é legítimo, mas não se pautava como violência diversas situações de abuso vividas pela mulher. Muitos casos discutidos envolviam a questão da infância e, assim, a mulher, mãe da criança, também aparecia. Porém, não se tratava a família como alvo do cuidado, mas sim a criança. Nos casos nos quais se colocava a suspeita de negligência, a mãe era responsabilizada e, mesmo quando se discutia esta relação com os problemas cotidianos vinculados à pobreza e à falta de rede de suporte, pouco se questionava ou se debatia intervenções que buscassem fortalecer a mulher. Não raro foi possível observar especulações por parte dos profissionais. Nos casos em que a mulher, mãe ou gestante, fazia uso de drogas (lícitas ou ilícitas, mas principalmente as ilícitas), o julgamento moral se acentuava. A gestante usuária de drogas não era vista como alguém que demanda cuidado, mas sim como alguém que está violando os direitos da criança que carrega e, por isso, precisaria ser punida.

É importante não personificar ou personalizar tais condutas a um ou outro profissional, pois não se trata, aqui, de mais um julgamento, mas sim apontar reflexões acerca do que a estratégia em rede produz. Destaca-se também que são condutas que não se restringem ao universo de um setor apenas ou à realidade campineira exclusivamente, mas que deflagram a ambiguidade das redes sociais.

Discussão

A dicotomia a ser explorada aqui tem como base a afirmação de Andrade1919. Andrade LOM. A saúde e o dilema da intersetorialidade [tese]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas; 2004. sobre a intersetorialidade e o seu consenso discursivo e dissenso prático.

De acordo com Amaral e Bosi2020. Amaral CEM, Bosi O. Desafio na análise de redes de saúde no campo da saúde coletiva. Saúde Soc 2017; 26(2):424-434., o termo rede é um transconceito. Segundo os autores, rede pode ser definida a partir de múltiplas concepções, extrapolando os limites de um domínio disciplinar específico. Além disso, os autores também destacam cinco dimensões das redes – unidades, conectividades, integração, normatividade e subjetividade, as quais propomos discutir os dados em tela.

Ao utilizar a concepção de redes sociais, o que fica em evidência são as relações entre os pontos da rede. No caso dos serviços, operadores das políticas sociais, a rede pode ser considerada como pontos ou unidades2020. Amaral CEM, Bosi O. Desafio na análise de redes de saúde no campo da saúde coletiva. Saúde Soc 2017; 26(2):424-434. entre pessoas (trabalhadores ou usuários), individualmente e entre serviços, equipes ou instituições.

Quando se discute quem compõe a rede, é identificado que os técnicos “da ponta” são os responsáveis pela sua efetivação. Pode-se inferir que tal questão indique uma política apenas discursiva, visto que há diretrizes legais em torno da defesa da estratégia das redes, mas que as condições ofertadas para sua efetivação são pequenas. Dessa maneira, a execução da estratégia fica limitada e dependente da disposição dos trabalhadores. Ainda confirma a hipótese “de que quanto mais distante dos problemas concretos da população mais a lógica setorial se impõe”1010. Monnerat GL, Souza RG. Política Social e intersetorialidade: consensos teóricos e desafios práticos. SER Social 2009; 12(26):200-220.. Tal ponto é essencial para se discutir a formação de redes como uma práxis de governo, que efetive mudanças substanciais na dinâmica das instituições.

Uma ausência relevante de se destacar é a participação dos usuários dos serviços e suas famílias nos processos de construção das redes. Aponta-se que eles também deveriam ser considerados pontos da mesma rede e, de alguma maneira, deveriam integrar suas ações de maneira participativa, e não apenas como alvo das intervenções.

Tal problemática traz à tona a necessidade de se inventar – e reinventar – a maneira como as articulações intersetoriais se relacionam com a população. Acredita-se que, via de regra, a participação popular qualifica as ações, já que ouve aqueles a quem se destinam as intervenções. Além disso, facilita a desconstrução de julgamentos pré-estabelecidos e a reprodução de violências, além de compreender o território como parte produtora da política pública1212. Souza TP. A norma da abstinência e o dispositivo “drogas”: direitos universais em territórios marginais de produção de saúde (perspectivas da redução de danos) [tese]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas; 2013..

Portanto, as unidades aqui destacadas referem-se aos atores presentes e ausentes na realização das redes, sendo que destacamos dois polos: a gestão, e sua presença discursiva nas estratégias em rede, porém não efetiva em criar condições para sua prática; e a população, apenas compreendida como alvo das ações e não parte do processo de tomada de decisões.

A segunda dimensão, a conectividade, apresenta uma multiplicidade de formas de ocorrer, de acordo com a necessidade e disponibilidade locais. Estratégias como encaminhamentos, contato telefônico, visitas institucionais, reuniões e outras podem ser consideradas maneiras de se estabelecer contato entre os pontos da rede. Porém, a conectividade também ocorre pelos lugares instituídos e reconhecidos.

Uma discussão frequente foi a utilização do setor saúde para a concessão de diagnósticos. O cuidado ao processo saúde-doença é responsabilidade do setor saúde, sendo que isto inclui a elaboração de diagnósticos. Contudo, questiona-se a articulação entre a rede de serviços quando reduzida a encaminhamentos para diagnósticos, visto que raramente desdobram em outras ações, contribuindo para uma cultura de patologização e medicalização da vida social2121. Tesser CD. Medicalização social (I):o excessivo sucesso do epistemicídio moderno na saúde. Interface (Botucatu) 2006; 10(19):61-76..

A questão dos diagnósticos esteve presente na observação das reuniões das duas redes, mais explicitamente na Rede Alecrim, quando, em dado momento, a necessidade de elucidação diagnóstica de um possível “transtorno mental” foi determinante. O fato demonstrou que, mesmo utilizando da perspectiva intersetorial, a rede pode funcionar de maneira restrita e setorializada, não privilegiando as múltiplas chaves de leitura permitidas pelos encontros coletivos.

Com isso, a conectividade aqui assinalada refere-se às consequências não esperadas pela ação da rede, como, por exemplo, a medicalização da vida.

A terceira dimensão é a integração, compreendida como produto da continuidade e da complementariedade das intervenções.

Durante as observações dos encontros das duas redes, notou-se que na Rede Alecrim houve dissensos com relação às incumbências de cada serviço, em vista da diferença nos níveis de complexidade (atenção primária/centro de saúde e atenção secundária/CAPS).

Na ambiguidade intrínseca a este processo, concorda-se com Belotti e Lavrador2222. Belotti M, Lavrador MCC. A prática do apoio matricial e os seus efeitos na Atenção Primária à Saúde Cad. Ter. Ocup. UFSCar 2016; 24(2):373-378. , ao afirmarem que a estratégia permite a corresponsabilidade no cuidado, a depender do curso da discussão, e também diminui – ou até evita, em vista do diálogo prévio, encaminhamentos equivocados, feitos sem o critério necessário ou seguindo o fluxo errado.Para tanto, é necessário que a continuidade da atenção seja mantida por todos os pontos da rede, mesmo ao se remanejar determinada responsabilidade a outro serviço. Ou seja, é essencial que a rede alimente sua conectividade e que os serviços conservem os vínculos entre sujeitos.

A integração das redes, portanto, é algo que precisa ser construída para uma atenção integral.

A quarta dimensão – normatividade, diz respeito à autonomia no controle da gestão das redes. É necessário que haja um objetivo comum (ainda que nem sempre consensual) e que se normatize, de alguma medida, as ações realizadas pelos serviços, mesmo na ausência de protocolos, afim de tornar possível a todos os pontos da rede as diretrizes para determinadas situações, os fluxos a serem seguidos e a responsabilidade de cada serviço e setor1717. Lobo ES. Caminhos da sociologia no Brasil: modos de vida e experiência. Tempo Social 1992; 4(1-2):7-15.. Paralelamente, as redes intersetoriais devem ser flexíveis, para que situações singulares possam entrar em pauta e para que se permita emergir novas possibilidades1212. Souza TP. A norma da abstinência e o dispositivo “drogas”: direitos universais em territórios marginais de produção de saúde (perspectivas da redução de danos) [tese]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas; 2013..

O consenso em torno do objetivo das articulações intersetoriais foi encontrado, tendo sido identificado que as redes são estratégia para a garantia de direitos dos usuários, notadamente no que diz respeito ao cuidado integral das demandas e a construção de ações que respondam de maneira adequada às necessidades de determinado território e população. Dessa forma, podemos dizer que há consonância no entendimento de que as redes intersetoriais se configuram como redes de suporte social.

Entretanto, durante as observações dos encontros, as redes intersetoriais pareciam também cumprir a função – mais velada, de controle dos sujeitos. Assim, permite-se fazer uma analogia entre as redes intersetoriais de serviços e os panópticos: tudo veem dos sujeitos, entretanto sem serem vistos. Isso porque esse espaço de diálogo entre os profissionais se apresentou como um momento no qual todo tipo de informação sobre a vida dos sujeitos parecia ser exposto, inclusive acompanhado de julgamentos morais.

Desta forma, a normatividade é um ponto central que precisa de atenção na discussão das estratégias de ação em rede, tanto a normatividade desejada quanto aquela produzida de forma velada.

A última dimensão, a subjetividade das pessoas envolvidas, é transversal às quatro anteriores, pois permeia todo o funcionamento das articulações entre serviços. É o “componente humano que cria, modifica e extingue seus processos”2020. Amaral CEM, Bosi O. Desafio na análise de redes de saúde no campo da saúde coletiva. Saúde Soc 2017; 26(2):424-434..

À priori, é importante retomar a discussão do quanto as estratégias das redes ficam, majoritariamente, a cargo dos trabalhadores os quais atuam diretamente com a população. O fato de as pessoas dispenderem seu tempo para a organização de ações desse tipo já se configura como importante componente da subjetividade que baliza a criação e a manutenção das redes. Afinal, não é tarefa fácil compor um espaço no qual a discussão e o debate são elementos centrais, que muitas vezes é necessário abrir mão de opiniões pessoais, receber críticas, elaborar novas proposições e acolher encaminhamentos diversos. Dessa maneira, os trabalhadores se propõem a encontrar soluções conjuntas para problemas complexos constituindo no cotidiano as redes sociais. Em síntese, reitera-se o que foi discutido por Lotta55. Lotta G. O papel das burocracias do nível da rua na implementação de políticas públicas: entre o controle e a discricionariedade. In: Faria CAPF, organizador. Implementação de Políticas Públicas. Teoria e Prática. Belo Horizonte: Editora PUC Minas; 2012. p. 20-49. como “burocratas de rua”: aqueles que estão diretamente na assistência com a população são os que tecem as redes.

Todavia, é fundamental reforçar o papel do Estado para a operacionalização das redes como um exercício contínuo e independente da gestão de um ou outro governo. Sendo que, na experiência em tela, a dimensão da subjetividade dos trabalhadores mostrou-se sustentadora das ações em rede do município estudado.

Conclusão

A partir do conteúdo expresso ao longo deste processo investigativo, buscou-se, centralmente, problematizar o debate em torno da formação de redes sociais de serviços, articuladas intersetorialmente, considerando o lugar comum que geralmente ocupa, o qual utiliza de um discurso acrítico acerca de um suposto potencial inerente embutido neste tipo de arranjo político.

Fica explícito que as ações em rede são mais discursivas, do ponto de vista da gestão, do que práticas, sendo fundamental que os gestores ultrapassem o discurso para de fato estabelecer processos de negociação e de distribuição de recursos que garantam novos contornos e transformações às rígidas e tradicionais estruturas pelas quais estão organizadas as políticas sociais.

Teoricamente está incorporada a diretriz de defesa das articulações intersetoriais como forma de promover maior efetividade das ações, ofertando suporte social aos sujeitos. Entretanto, é necessário debater as ambivalências deste processo, sendo a vigilância, o controle e a moral categorias que precisam adentrar as preocupações para a reflexão sobre o processo.

Assinala-se, então, dois investimentos centrais para avançarmos em torno da garantia de uma rede intersetorial de serviços que possa garantir suporte e observar direitos: do Estado, para a sua efetivação, e dos trabalhadores, para construir de maneira mais crítica os debates e ações em torno das populações assistidas.

A partir do que foi investigado, é possível afirmar que, dentro de suas limitações, o recurso das redes sociais nos serviços, por meio da articulação intersetorial, é capaz de promover e facilitar o acesso às políticas sociais, ampliando seu alcance. Portanto, refere-se a um arranjo bastante potente e capaz de modificar a maneira como a política interfere no cotidiano dos sujeitos, mas carece de institucionalidade na gestão e crítica constante de suas ações.

Referências

  • 1
    Gomide M, Grossetti M. Rede social e desempenho de programas de saúde: uma proposta investigativa. Physis 2010; 20(3):873-893.
  • 2
    Mângia E, Muramoto M. Redes sociais e a construção de projetos terapêuticos: um estudo em serviços substitutivos em saúde mental. Rev. Ter. Ocup. USP 2007; 18(2):54-62.
  • 3
    Ferro LF. Grupo de convivência em saúde mental: intersetorialidade e trabalho em rede. Cad. Ter. Ocup. UFSCar 2015; 23(3):485-498.
  • 4
    Gonçalves AS, Guará IMFR. Redes de proteção social na comunidade In: Guará IMFR, organizador. Redes de proteção social São Paulo: Associação Fazendo História; 2010. p. 11-29.
  • 5
    Lotta G. O papel das burocracias do nível da rua na implementação de políticas públicas: entre o controle e a discricionariedade. In: Faria CAPF, organizador. Implementação de Políticas Públicas. Teoria e Prática. Belo Horizonte: Editora PUC Minas; 2012. p. 20-49.
  • 6
    Teixeira SMF. O desafio da gestão das redes de políticas. In: Anais do VII Congresso internacional Del CLAD sobre La Reformadel Estado y Modernización de La Administración Pública; 2002; Lisboa. p. 1-24.
  • 7
    Pereira KYL, Teixeira SM. Redes e intersetorialidade nas políticas sociais: reflexões sobre sua concepção na política de assistência social. Textos & Contextos 2013, 12(1):114-127.
  • 8
    Inojosa RM. Sinergia em políticas e serviços públicos: desenvolvimento social com intersetorialidade. Cadernos FUNDAP 2001; 22:102-110.
  • 9
    Bronzo C. Intersetorialidade como princípio e prática nas políticas públicas: reflexões a partir do tema do enfrentamento da pobreza. In: Anais do XX Cogresso del CLAD sobre la Reforma del Estado y Modernización de La Administración Pública; 2007; Caracas. p. 7-45.
  • 10
    Monnerat GL, Souza RG. Política Social e intersetorialidade: consensos teóricos e desafios práticos. SER Social 2009; 12(26):200-220.
  • 11
    Akerman M, Franco de Sá R, Moyses S, Rezende R, Rocha D. Intersetorialidade? IntersetorialidadeS! Cien Saude Colet 2014; 19(11):4291-4300.
  • 12
    Souza TP. A norma da abstinência e o dispositivo “drogas”: direitos universais em territórios marginais de produção de saúde (perspectivas da redução de danos) [tese]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas; 2013.
  • 13
    Righi LB. Redes de Saúde: uma reflexão sobre formas de gestão e fortalecimento da atenção básica. In: Cadernos Humanizasus. Atenção Básica Brasil: Ministério da Saúde; 2010. p. 59-74.
  • 14
    Lima LD, Albuquerque MV, Scatena JHG. Quem governa e como se governam as regiões e redes de atenção à saúde no Brasil? Contribuições para o estudo da governança regional na saúde. Novos Caminhos 2016; 8:1-13.
  • 15
    Fundação Sistema Estadual de Análise de dados (Seade). Perfil dos municípios paulista - Campinas [página na internet] 2017. [acessado 2018 Jan 24]. Disponível em: http://www.perfil.seade.gov.br
    » http://www.perfil.seade.gov.br
  • 16
    Donzelot J. A polícia das famílias Rio de Janeiro: Edições Graal; 1980.
  • 17
    Lobo ES. Caminhos da sociologia no Brasil: modos de vida e experiência. Tempo Social 1992; 4(1-2):7-15.
  • 18
    Silva MOS. Pobreza, desigualdade e políticas públicas: caracterizando e problematizando a realidade brasileira. Rev Katál 2010; 13(2):155-163.
  • 19
    Andrade LOM. A saúde e o dilema da intersetorialidade [tese]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas; 2004.
  • 20
    Amaral CEM, Bosi O. Desafio na análise de redes de saúde no campo da saúde coletiva. Saúde Soc 2017; 26(2):424-434.
  • 21
    Tesser CD. Medicalização social (I):o excessivo sucesso do epistemicídio moderno na saúde. Interface (Botucatu) 2006; 10(19):61-76.
  • 22
    Belotti M, Lavrador MCC. A prática do apoio matricial e os seus efeitos na Atenção Primária à Saúde Cad. Ter. Ocup. UFSCar 2016; 24(2):373-378.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Out 2018

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2018
  • Revisado
    06 Mar 2018
  • Aceito
    23 Maio 2018
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cienciasaudecoletiva@fiocruz.br