Open-access Atenção à Saúde para quem (con)vive nas sombras

Resumo

Este estudo teve como objetivo analisar a implantação das equipes de Consultório na Rua, cofinanciadas pelo Ministério da Saúde, em território nacional, no período de 2018 a 2023, com foco na perspectiva da equidade e na abrangência dos cuidados em saúde prestados à população em situação de rua no Brasil. Trata-se de um estudo exploratório de abordagem quantitativa, com técnicas de distribuição espacial, baseado em dados secundários de equipes de Consultório na Rua implantadas. A análise dos dados sobre a implantação das eCnaR apresentou evoluções importantes em direção à democratização do acesso aos serviços de saúde. Durante o período de 2018 a julho de 2023, registrou-se um incremento de 21,73% no número de equipes cofinanciadas pelo Ministério da Saúde.

Palavras-chave: Atenção Primária à Saúde; População em situação de rua; Acesso aos serviços de saúde; Vulnerabilidade em Saúde

Abstract

This study aimed to analyze the implementation of Street Clinic teams, co-financed by the Ministry of Health, in the national territory from 2018 to 2023, focusing on the perspective of equity and the scope of healthcare provided to Brazilian people living on the streets. This quantitative, exploratory study employed spatial distribution techniques based on secondary data from implemented Street Clinic teams. The data analysis on the implementation of eCR showed significant developments toward democratizing access to health services. An increase of 21,73% in the number of teams co-financed by the Ministry of Health was observed from 2018 to 2023.

Key words: Primary Health Care; Homelessness; Health Services Accessibility; Health Vulnerability

Resumen

El estudio tuvo como objetivo analizar la implementación de los equipos de Consultorio en la Calle (eCR, sigla en portugués), cofinanciados por el Ministerio de Salud, en territorio nacional, durante el período de 2018 a 2023, con un enfoque en la perspectiva de equidad y en la amplitud de los cuidados en salud prestados a la población en situación de calle en Brasil. Se trata de un estudio exploratorio, de enfoque cuantitativo, con técnicas de distribución espacial, basado en datos secundarios de los equipos de Consultorio en la Calle implementados. El análisis de los datos sobre la implementación de los eCR mostró una evolución significativa hacia la democratización del acceso a los servicios de salud. Durante el período de 2018 a julio de 2023, se registró un incremento del 21,73% en el número de equipos cofinanciados por el Ministerio de Salud.

Palabras clave: Atención Primaria en Salud; Población en situación de calle; Acceso a los servicios de salud; Vulnerabilidad en salud

Introdução

No Brasil, o Consultório na Rua (CnR) foi concebido por meio da proposta de alcançar pessoas em situação de rua, em condições de vulnerabilidade social e distanciados dos serviços de saúde, para cumprir com as retaguardas legislativas que dispõem sobre a proteção do direito à saúde no país, estabelecida pela Constituição Federal de 1988 e regulamentada pelas Leis Orgânicas da Saúde, tais quais nº 8.080/1990 e nº 8.142/1990, que fortaleceram o Sistema Único de Saúde (SUS) no país1.

Esse movimento também foi influenciado pelas discussões em torno da Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPSR), instituída pelo Decreto nº 7.053/2009, com o objetivo de assegurar o acesso aos serviços e programas relacionados às políticas sociais, dentre as quais, as do setor saúde. De acordo com Dias e Amarante2, o fomento à adesão de propostas como a do CnR se deu por meio do fortalecimento de movimentos populares, assim como da eleição de governos de centro-esquerda no Brasil.

Sob uma perspectiva histórica, no ano de 2011, o Brasil apresentou evoluções importantes em direção à democratização do acesso aos serviços de saúde, no seguimento da reforma psiquiátrica, para a valorização da promoção da saúde mental e da assistência à saúde de pessoas em situação de rua. Dentre as principais iniciativas, teve-se a publicação da Portaria GM/MS nº 3.088/2011, que instituiu a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), e a Portaria GM/MS nº 2.488/2011, que trouxe a revisão da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), incluindo as equipes de Consultório na Rua (eCR) como também as equipes de Atenção Primária à Saúde (APS) para o cuidado de populações em situação de vulnerabilidade específicas. Por conseguinte, instituiu-se as Portarias GM/MS nº 122/2012 e nº 123/2012, que estabeleceram as diretrizes de organização e funcionamento das eCR.

No ano de 2012, as eCR podiam ser compostas por profissionais das seguintes categorias: enfermagem de nível médio e superior, psicologia, assistência social, terapia ocupacional, medicina, agente social e saúde bucal de nível médio. Em 2014, publicaram-se as Portarias GM/MS nº 1.238/2014 e nº 1.029/2014. A primeira instituiu um valor fixo de custeio para as eCR e, a segunda, acrescentou profissionais de saúde bucal de nível superior, da educação física na saúde e formados em arte e educação nessas equipes. As modalidades de adesão recomendadas foram: Modalidade I, com quatro profissionais, sendo dois de nível médio e dois de nível superior; Modalidade II, com seis profissionais, sendo três de nível médio e três de nível superior; e Modalidade III, com o arranjo da modalidade II, acrescida de profissional médico. Como materiais norteadores dos serviços, teve-se a publicação do ‘‘Manual de Cuidado à População de Rua’’ e das ‘‘Diretrizes, Metodologias e Dispositivos de População de Rua’’, em 2012 e 2014, respectivamente3.

A partir de 2016, o Brasil sofreu alguns retrocessos no que concerne à promoção de políticas de bem-estar social, a exemplo da publicação da Emenda Constitucional 95/2016, que limitou as despesas primárias governamentais sem considerar as taxas de crescimento econômico e demográfica4. Soma-se a isso, por conseguinte, o fato da revisão da PNAB em 2017 ter flexibilizado o conceito de cobertura universal da APS, sem um claro compromisso indutor de expansão dos serviços segundo críticos da literatura científica nacional5-7.

No ano de 2019, a APS passou por mudanças em sua estrutura de financiamento, com o Programa Previne Brasil, instituído pela Portaria GM/MS nº 2.979/2019, com a substituição dos Pisos de Atenção Básica (PAB) Fixo e Variável pelos novos componentes do Programa, como a Capitação Ponderada, que requereu maiores esforços dos gestores municipais na administração dos arranjos de equipes nos territórios8.

Ainda nessa conjuntura, o Ministério da Saúde publicou a Portaria GM/MS nº 1.255/2021, que dispôs sobre as normativas para o funcionamento das eCR e adotou critérios de cálculo do número máximo, passível de adesão, a essas equipes pelos municípios e Distrito Federal, considerando-se os registros do Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica (Sisab) e do Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico). Os territórios com população total estimada em mais de 100 mil habitantes passaram a ter o direito de ter pelo menos uma eCR cofinanciada pelo Ministério da Saúde. No que concerne às mudanças das modalidades permitidas, a presença de Agente Comunitário de Saúde (ACS) passou a fazer parte das possibilidades de composição dessas equipes.

O cenário histórico e as alterações no modus operandi, de composição e de financiamento das eCR influenciaram na adesão dos municípios. Torna-se, portanto, um imperativo ético a realização de estudos que verifiquem os avanços e o perfil de territórios que aderiram às eCR. Nesta perspectiva, este estudo objetivou descrever a evolução da implantação das eCR cofinanciadas pelo Ministério da Saúde, no período de 2018 a 2023.

Métodos

Trata-se de um estudo exploratório de abordagem quantitativa com técnicas de distribuição espacial, com dados secundários das eCR implementadas em território nacional. Os dados foram obtidos no sítio eletrônico do Sisab, especificamente no relatório público “Financiamento da APS”, abrangendo o período de 2018 a 2023. A escolha desse intervalo temporal decorre da ausência de dados nos anos anteriores. A informação está organizada mensalmente no sítio eletrônico e foi coletada em fevereiro de 2024.

As variáveis estudadas incluem o número de eCR com financiamento federal, credenciadas e homologadas, bem como suas respectivas modalidades I, II e III. A análise da distribuição espacial baseou-se na técnica de dados de área para identificar possíveis concentrações geográficas das eCR em determinadas regiões do país.

Para abordar as diversas situações que apontam para a exclusão e vulnerabilidade social no Brasil, empregou-se o Índice de Vulnerabilidade Social (IVS). Esse índice abrange três dimensões analíticas: IVS Infraestrutura Urbana, IVS Capital Humano e IVS Renda e Trabalho. A finalidade de utilizar o IVS é capturar uma perspectiva mais abrangente, englobando múltiplas dimensões que refletem a complexidade e diversidade das condições sociais desfavoráveis, proporcionando, assim, uma visão mais holística das questões sociais no país.

Resultados

No período de 2018 a 2023, observou-se que as eCR cofinanciadas pelo Ministério da Saúde apresentaram um aumento de 45,34% (n=73). No entanto, ressalta-se que houve discreta redução no cofinanciamento dessas equipes entre os anos de 2019 e 2020 (-6,45; n=10) (Gráfico 1).

Gráfico 1
Distribuição do total de equipes de Consultório na Rua cofinanciadas pelo Ministério da Saúde, Brasil, 2018-2024.

Entre as 264 equipes incluídas no cofinanciamento federal em 2024, 35,89% (n=84) foram registradas na modalidade I, 12,82% (n=30) na modalidade II, e 51,28% (n=120) na modalidade III. Quando se observa esta distribuição por Grande Região e Unidade Federativa (UF), verifica-se que todas as UF possuem eCR, com predominância da modalidade de equipe III (51,28%, n=120) e da Grande Região Sudeste (53,41%, n=125), com destaque ao estado de São Paulo, que possui quase metade do total de equipes dessa região (48%, n=60). A Grande Região Centro-Oeste concentra a menor quantidade de eCR (7,26%, n=17) quando em comparação às demais regiões do país. Por outro lado, estados da Grande Região Norte, como Acre e Rondônia, apresentam a menor quantidade de equipes em relação às demais UF (Tabela 1).

Tabela 1
Distribuição de equipes de Consultório na Rua cofinanciadas pelo Ministério da Saúde, por Grande Região e Unidade Federativa, Brasil, 2024 (n=234).

O país conta com 169 municípios com eCR (Figura 1a), com uma distribuição heterogênea entre os territórios, com maior concentração no leste de estados das Grandes Regiões Sudeste e Sul (Figura 1b).

Figura 1
Identificação de municípios com adesão e total de equipes de Consultório na Rua cofinanciadas pelo Ministério da Saúde, Brasil, 2024.

Embora todas as eCR cofinanciadas estejam localizadas em áreas urbanas, apresentam distintas classificações de IVS. Valores de IVS entre 0,000 e 0,200 são classificados como muito baixos; valores entre 0,201 e 0,300 incluem-se entre os baixos; entre 0,301 e 0,400 são considerados médios, ao passo que aqueles entre 0,401 e 0,500 são considerados altos. Valores entre 0,501 e 1,000 indicam municípios em situação de muito alta vulnerabilidade social. Dos 169 municípios que abrigam as eCR, a maioria exibe um IVS considerado muito baixo (13,01%, n=22) e baixo (42,60%, n=72), indicando baixa vulnerabilidade social. Em seguida, há classificações de IVS médio (34,91%, n=59), alto (6,50%, n=11) e muito alto (2,95%, n=05). A mediana geral do IVS desses municípios é de 0,288, com um intervalo interquartil de 0,116, mínimo de 0,130 e máximo de 0,727. Não se identificou valores de IVS atípicos entre os grupos de classificação, com exceção dos municípios com classificação ‘‘muito alto’’, em que um município apresentou um IVS de 0,727 (Gráfico 2).

Gráfico 2
Medidas resumo do IVS de municípios que possuem eCR cofinanciadas pelo Ministério da Saúde, por boxplot, Brasil, julho de 2023 (n=169).

Discussão

Estudos demonstram que as pessoas que vivem em situação de rua apresentam maiores taxas de morbidade e mortalidade em relação à população geral, representando um grave problema de saúde pública. No universo populacional de pessoas em situação de rua, as pessoas do sexo feminino apresentam maior taxa de mortalidade (11,9) quando comparado às pessoas do sexo masculino (7,9)9. Nesse contexto, torna-se imprescindível articular políticas públicas e outras políticas setoriais de maneira que possa assegurar o amplo acesso à população em situação de rua aos serviços sociais e de saúde10.

O problema do acesso à moradia adequada no Brasil é vivenciado em outros países do mundo e vem aumentando gradativamente ano a ano, como é o caso dos Estados Unidos, Inglaterra e Austrália. As circunstâncias que levam uma pessoa a viver na rua podem estar relacionadas a vários fatores, como a falta de emprego, moradia acessível e apoio à renda, problemas de saúde física e mental, uso de substâncias, violência doméstica e familiar, entre outros11.

Diante dessas questões, a falta de moradia tem relação direta com problemas de saúde, como os piores desfechos da saúde física e mental, além da morte prematura. Para a população idosa em situação de rua, esses problemas são acompanhados mais intensamente por acesso insuficiente e tratamento adequado no sistema de saúde. Esse panorama contribui para o aumento em admissões nas emergências e das taxas de internações12.

Vulnerabilidade Social

O Índice de Vulnerabilidade Social oferece uma perspectiva abrangente das desigualdades presentes nas metrópoles brasileiras, pois incorpora a avaliação de indicadores relacionados à infraestrutura urbana (saneamento, coleta de lixo e renda per capita), capital humano (mortalidade infantil, escolaridade, analfabetismo, entre outros), e renda e trabalho (desocupação, ocupação informal, dependência química, por exemplo)13.

Para além dos resultados apresentados em relação a baixa vulnerabilidade social, nesse cenário somam-se a baixa dispersão territorial das equipes nos respectivos territórios, bem como a ausência e fragmentação de estimativas da população em situação de rua em níveis desagregados de município, dificultando a realização de diagnósticos situacionais mais robustos. Esse panorama destaca a necessidade urgente de uma coordenação efetiva da gestão tripartite para promover a visibilidade dessa população e atender às suas necessidades de saúde.

Implantação das equipes de Consultório na Rua no Brasil

As equipes de Consultório na Rua foram estabelecidas com o objetivo de ampliar o acesso e a qualidade da atenção integral para pessoas negligenciadas das principais políticas públicas do Estado. Além de proporcionar cuidados em saúde, essas equipes também facilitam o acesso a direitos sociais básicos, simultaneamente reconhecendo a dignidade dessas pessoas. A criação do CadÚnico é uma ferramenta que, além de facilitar o acesso a serviços de saúde, promove concomitantemente o reconhecimento da cidadania em um ambiente onde esses direitos são frequentemente negados.

Em 2023, o Ministério da Saúde concentrou esforços na expansão das equipes que atuam na Atenção Primária à Saúde, especialmente aquelas com solicitações pendentes de credenciamento e homologação junto à Secretaria de Atenção Primária à Saúde (Saps), incluindo as eCR. As variações no número de equipes ao longo desse período indicam um aumento no credenciamento de novas equipes, juntamente com o descredenciamento de equipes antigas devido ao não cumprimento das regras relacionadas aos critérios de repasse financeiro estabelecidos pela Portaria de Consolidação GM/MS nº 2/2017.

Diante desse panorama, percebe-se que o Ministério da Saúde tem se empenhado em reconhecer e enfrentar a crise gerada pela pandemia da COVID-19, que exacerbou as vulnerabilidades preexistentes. A resposta a essa crise inclui a implementação de iniciativas específicas direcionadas à garantia de acesso aos serviços públicos de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS), por essa população, com a ampliação gradual das eCR em todo o território nacional.

Conclusão

A expansão das equipes de Consultório na Rua (eCR) no Brasil é essencial para melhorar o acesso aos serviços de saúde para populações em situação de vulnerabilidade social, especialmente aquelas em situação de rua ou em áreas de difícil acesso. O Ministério da Saúde tem como parte de seu planejamento alcançar 660 equipes até o ano de 2027. É uma ampliação de 312,5% em relação a julho de 2022. Essa estratégia é fundamental para garantir que mais pessoas em condições de vulnerabilidade tenham acesso aos cuidados primários de saúde, promovendo assim mais equidade no Sistema Único de Saúde (SUS)14.

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  • Editores-chefes:
    Maria Cecília de Souza Minayo, Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Out 2024
  • Data do Fascículo
    Nov 2024

Histórico

  • Recebido
    10 Mar 2024
  • Aceito
    17 Abr 2024
  • Publicado
    19 Abr 2024
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