Resumo
A Atenção Primária à Saúde (APS) no Brasil se fortaleceu nas últimas décadas e assim a demanda por trabalhadores do setor. Com delineamento transversal (n=492), objetivamos avaliar o vínculo longitudinal dos usuários adultos e a sua relação com o Programa de Residência em Medicina de Família e Comunidade (PRMFC) em uma área do município do Rio de Janeiro sob a ótica dos usuários adultos. Para tal, utilizamos o questionário Primary Care Assessment Tool versão reduzida, combinado com a versão estendida do atributo “longitudinalidade”. A pesquisa foi realizada em duas Clínicas da Família, uma unidade participante do PRMFC há mais de 10 anos e outra não participante. O escore geral da APS para toda a população estudada foi 5,63 [4,56; 5,80]. Comparativamente, o desempenho da Clínica da Família com PRMFC foi superior (6,32 [6,12; 6,53]) ao da unidade sem o programa (4,94 [4,70; 5,19]). Quanto à longitudinalidade, a primeira também obteve escore superior (7,02 [6,81; 7,23]) ao da segunda (5,43 [5,17; 5,68]). Os resultados deste estudo apontam para gestores que o PRMFC pode ser uma ferramenta útil para a melhoria da qualidade dos serviços através da qualificação dos Médicos de Família, e, para tal, demanda investimentos na área.
Palavras-chave: Atenção Primária à Saúde; Longitudinalidade; Avaliação em saúde; Rio de Janeiro
Abstract
Primary Health Care (PHC) in Brazil has become stronger in recent decades, thus increasing the demand for workers in the area. Using a cross-sectional design (n=492), this study aimed to evaluate the longitudinal tie of adult users and their relationship with the Family and Community Medicine Residency Program (Programa de Residência em Medicina de Família e Comunidade - PRMFC) in a region of the municipality of Rio de Janeiro from the perspective of adult users. To this end, we used the reduced version of the Primary Care Assessment Tool (PCATool) questionnaire, combined with the extended version of the “longitudinality” attribute. This study was conducted in two family clinics, one participating in the PRMFC for over 10 years and the other non-participatory. The overall PHC score for the entire study population was 5.63 [4.56; 5.80]. Comparatively, the performance in the family clinic with PRMFC was higher (6.32 [6.12; 6.53]) than that with no residency program (4.94 [4.70; 5. 19]). Regarding longitudinality, the former also obtained a higher score (7.02 [6.81; 7.23]) when compared to the latter (5.43 [5.17; 5.68]). The results of this study suggest to administrators that the PRMFC can be a useful tool for improving the quality of services through the qualification of Family Doctors and, thus, calls for investments in the area.
Key words: Primary Health Care; Longitudinality; Health assessment; Rio de Janeiro
Resumen
La Atención Primaria de Salud (APS) en Brasil se ha fortalecido en las últimas décadas, junto con la demanda de trabajadores del sector. Se trata de un estudio transversal (n = 492) con el objetivo de evaluar el vínculo longitudinal entre los usuarios adultos y su relación con el Programa de Residencia en Medicina Familiar y Comunitaria (PRMFC) en un área de la ciudad de Río de Janeiro, desde la perspectiva de los usuarios adultos. Para ello, se utilizó el cuestionario Primary Care Assessment Tool, versión reducida, combinado con la versión ampliada del atributo “longitudinalidad”. La investigación se realizó en dos clínicas de familia, una participante en el PRMFC desde hace más de diez años y la otra no participante. La puntuación global de la APS para toda la población del estudio fue de 5,63 (4,56; 5,80). En comparación, el rendimiento de la Clínica de la Familia con PRMFC fue superior (6,32 [6,12; 6,53]) al de la unidad sin el programa (4,94 [4,70; 5,19]). En cuanto a la longitudinalidad, la primera también obtuvo una puntuación más alta (7,02 [6,81; 7,23]) que la segunda (5,43 [5,17; 5,68]). Los resultados de este estudio apuntan a que el PRMFC puede ser una herramienta útil para mejorar la calidad de los servicios a través de la cualificación de los médicos de familia, pero para ello es necesario invertir en el área.
Palabras clave: Atención Primaria de Salud; Longitudinalidad; Evaluación en salud; Rio de Janeiro
Introdução
Consolidada na conferência internacional sobre cuidados primários de saúde de 1978, em Alma-Ata, a Atenção Primária à Saúde (APS) é reconhecida como modelo que proporciona maior e melhor acesso ao sistema de saúde, além de ser forma de reorganização dos sistemas de saúde pelo mundo1. Nos sistemas de saúde universais, é primeiro nível de acesso dos serviços para os usuários, e deve ser responsável pelo cuidado das condições mais comuns e resolução da maior parte das demandas de saúde de uma população2.
Objetivando orientar a organização desses serviços, Barbara Starfield definiu um conjunto de características desejáveis e que serviram como norteadores para avaliação dos serviços de APS, os atributos essenciais e derivados. Dentre eles, a longitudinalidade, é a característica da APS de ser fonte habitual do cuidado do indivíduo ao longo do tempo, com relação estabelecida com um médico, equipe ou local a quem seja solicitado atendimento diante de alguma necessidade, com manutenção da relação mesmo na ausência de uma. A manutenção dessa parceria é benéfica para o cuidado dos usuários de um sistema de saúde3.
No Brasil, a implementação da APS inicia na década de 1990, após a Constituição de 1988 e instituição do Sistema Único de Saúde (SUS)4. Respeitando as organizações desse sistema, o setor primário evolui com uma organização descentralizada pelo país, com responsabilização municipal para seu planejamento, com caracterização heterogênea pelo país.
No município do Rio de Janeiro, a APS se caracterizava com baixa capacidade para expansão da Estratégia Saúde da Família (ESF) até 2009, se organizado em centros de saúde com médicos especialistas5 e cobertura de apenas 3,5% pela ESF. A partir 2009, iniciou-se uma Reforma dos Cuidados em Atenção Primária em Saúde (RCAPS), com um plano que estimulou a expansão dos serviços da APS, priorizando a ESF como modelo, através de uma reestruturação administrativa, organizacional e do próprio modelo de atenção. Esse movimento resultou em um aumento expressivo na cobertura populacional pela APS do município, evoluindo dos seus 3,5% de cobertura em dezembro de 2008 para 55% em 2015 e de número de equipes de Saúde da Família implantadas, que aumentou de 128 em 2008 para 958 em 20165.
Os anos de 2018 a 2020 foram de retrocesso para o modelo, com novas conformações nas equipes de saúde, redução do número de agentes e queda de 35% de equipes da Estratégia Saúde da Família. Contudo, é possível notar retorno dos esforços para incentivo e expansão da APS em 2021, após nova troca na gestão. Segundo dados do site e-gestor AB, em relação ao histórico de cobertura da APS, em outubro de 2023, o município do Rio de Janeiro contava com 1.256 equipes e cobertura populacional de aproximadamente 82%.
O aumento da cobertura da APS provocou uma demanda por mais profissionais no setor. Assim, como forma de sanar a demanda por profissionais médicos provocada pela expansão da APS e para fomentar a capacitação, fixação e captação de profissionais, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (SMS-RJ) iniciou em 2012 o Programa de Residência em Medicina de Família e Comunidade (PRMFC-Rio) com intuito de oferecer qualificação aos profissionais atuantes da estratégia, além de fortalecer os demais programas (UFRJ/Fiocruz e UERJ) já existentes no município previamente6.
Diante da relevância que a APS ganhou no sistema de saúde brasileiro desde a sua criação, debates sobre sua resolutividade e eficiência foram aprofundados7. Isso ocasionou a busca por formas de realizar avaliação do setor, com intuito de identificar suas forças e fraquezas, e ser ferramenta de aprimoramento para a gestão8. Dos instrumentos disponíveis, o Primary Care Assessment Tool (PCATool) é uma ferramenta utilizada em muitos países e validada nacionalmente, capaz de medir o grau de orientação da APS, com versões disponíveis para aplicação em profissionais, gestores e usuários6.
O município do Rio de Janeiro possui um cenário singular diante da sua construção, além de abrigar o maior Programa de Residência de Medicina de Família e Comunidade do país, contando com a abertura de 150 vagas anuais e com a presença ativa desses residentes nos processos de trabalho das clínicas da família. Dessa forma, percebe-se a necessidade de avaliação da qualidade das estruturas e processos da APS durante a formação desses profissionais.
Avaliações nos serviços de saúde no Rio de Janeiro ainda são escassas e irregulares, em especial em relação à residência médica. É possível encontrar na literatura duas importantes avaliações realizadas por Harzheim no município do Rio de Janeiro que utilizaram o PCATool, ambas conduzidas há 10 anos, com necessidade de atualização: a primeira em 2013, onde foi aplicado a versão profissionais da ferramenta com melhores resultados para os especialistas em Medicina de Família e Comunidade (MFC)9; outra em 2014, com grande amostra10. A residência médica durante seu curso não foi abordada nesses estudos.
Esse estudo visou avaliar a dimensão do vínculo longitudinal e sua relação com a residência em Medicina de Família e Comunidade na área programática 3.1 do Município do Rio de Janeiro, sob a ótica dos usuários adultos. Também, caracterizar o perfil dos entrevistados de acordo com sexo, faixa etária, raça/cor e situação conjugal e sua relação com a longitudinalidade e examinar a avaliação dos usuários pelo PCATool em relação ao escore geral obtido em cada unidade.
Materiais e métodos
Foi realizado um inquérito populacional com usuários adultos em duas unidades de atenção primária à saúde na área de planejamento 3.1 no município do Rio de Janeiro: Clínica da Família Felippe Cardoso (CFFC) e Clínica da Família Nilda Campos (CFNC). Como critério de inclusão, o usuário deveria estar cadastrado há mais de um ano em cada CF e ter 18 anos ou mais.
O tamanho de amostra aleatória simples (AAS) foi calculado com o objetivo de comparar o grau de orientação à APS (escore geral - nota de 0 a 10) entre as duas Clínicas da Família (CF). Os cálculos foram efetuados utilizando nível de confiança 95%, e um precisão (d) de 6,5% das estimativas a serem calculadas, considerado que, além dos escores do questionário gerados pelo PCATool, haveria diversas perguntas com frequências (prevalências) que também seriam calculadas. Com isso, devido à ausência de estudos prévios recentes, consideramos o caso mais desfavorável em que p=q=0,511. Dessa forma, o tamanho de amostra estimado foi de 250 para cada Clínica da Família (CF), já considerando uma perda estimada de 10%. Após a coleta de dados, cada CF obteve um total de 246 respondentes.
A CFFC contém 14 equipes da Estratégia de Saúde da Família e parcerias com programas de residência médica, de enfermagem e multiprofissional. Todas suas equipes são parte do PRMFC-Rio há aproximadamente 10 anos. A CFNC, possui oito equipes da ESF e, na época da coleta de dados, havia três equipes possuíam médicos generalistas sem especialização em MFC que atuavam por 40 horas semanais em suas equipes por mais de 2 anos.
A coleta dos dados foi realizada nas próprias unidades de saúde, após a conclusão do atendimento do usuário, em ambiente reservado, de junho a agosto de 2023, atuando como entrevistadores quatro alunos no internato em Saúde da Família da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a própria autora. Os usuários selecionados foram abordados de forma alternada após saírem da consulta. Foi utilizado o questionário Primary Care Assessment Tool (PCATool) -Brasil versão reduzida, transcrito em plataforma digital, KoboTool, de acesso gratuito, onde foram aplicadas as regras descritas no Manual PCATool 2020. Essa versão é composta por 25 itens, reprodutibilidade avaliada que pode ser utilizada de forma segura12. Foi utilizada a versão extensa para a longitudinalidade, que contém os itens da versão reduzida, mas que permite o cálculo da média deste atributo isoladamente, além do escore geral da APS.
As respostas foram através da escala tipo Likert, com as categorias: com certeza, sim; provavelmente, sim; provavelmente, não; com certeza, não e; não sei/não lembro. Os escores do PCATool podem ser classificados em Alto (escore≥6,6) e Baixo (escore<6,6). Quando a média é maior ou igual a 6,6, podemos dizer que há presença e extensão dos atributos da APS, o que configura serviços melhor orientados para a APS13.
Foram aferidas através do questionário apresentado aos usuários o escore da longitudinalidade isoladamente e o escore geral da APS para cada unidade. Além desses itens, também foi analisado o escore da “afiliação”, item do PCATool que contempla a identificação da unidade de saúde referenciada do entrevistado como sua. Os escores foram correlacionados com as unidades e com o perfil do usuário por fatores como sexo, idade, raça e situação conjugal e foram realizadas comparações entre esses perfis e as unidades com e sem residência médica. Para fins de análise dos dados, a variável idade foi estratificada em dois grupos, de acordo com o valor mediano observado (45 anos).
O projeto do estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da ENSP/Fiocruz sob o Parecer 5.906.217 e da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro sob o Parecer 6.008.838, respeitando os aspectos éticos que envolvem seres humanos e em atendimento à Resolução CNS n° 466/2012 da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP).
Resultados
Os resultados estão descritos abaixo segundo os achados de cada uma das unidades de saúde onde as coletas foram realizadas. Para efeitos comparativos, foi realizada a caracterização da população conforme as variáveis sociodemográficas, o cálculo do escore geral da APS pelo PCATool Brasil versão reduzida e do atributo da longitudinalidade de cada unidade.
Dos 492 questionários válidos, 246 coletados na CF Felippe Cardoso e 246 na CF Nilda Campos, oito foram considerados não aptos para o cálculo do escore já que possuíam mais de 50% das respostas como “não sei, não lembro” ou com dados incompletos (“missing”), o que segundo a recomendação do Manual do instrumento, inviabiliza a média final.
Em relação aos dados sociodemográficos (dados não tabulados), observou-se predominância do sexo feminino entre os entrevistados em ambas as unidades, com um total de 192 mulheres (78,05%) e 54 homens (21,95%) na CFFC e 178 mulheres (72,36%) e 68 homens (27,64%) na CFNC. Em relação à faixa etária, observamos que 130 pacientes com até 45 anos (52,85%) na CFFC e, na CFNC, 119 usuários responderam ter até 45 anos (48,97%). Quando foram perguntados sobre qual cor/raça se identificavam, na CFFC, 174 (70,73%) como parda/preta e 170 (69,11%) na CFNC. Sobre o estado civil dos participantes, os casados são 47,56% na CFFC e 44,9% na CFNC.
Avaliação dos serviços de saúde na perspectiva dos usuários adultos
No que se refere à aplicação do PCATool, a média do escore geral da APS foi de 5,63 [5,46; 5,80], da longitudinalidade de 6,22 [6,04; 6,40] e a afiliação de 7,63 [7,37; 7,89]. Ao individualizar as unidades, na CFFC, o escore geral da APS foi possível ser calculado para 243 usuários, com uma média de 6,32 [6,12; 6,53]. O escore da longitudinalidade foi calculado para 245 usuários, com média de 7,02 [6,81; 7,23]. A média da afiliação foi de 7,87 [7,52; 8,23]. Na CFNC, o escore geral teve média de 4,94 [4,70; 5,19]. A média do escore da longitudinalidade foi de 5,43 [5,17; 5,68]. Por fim, o escore de afiliação teve média entre 7,38 [7,02; 7,51] (Tabela 1).
Ao se correlacionar os escores de acordo com sexo, percebemos uma menor pontuação dada pelo sexo masculino tanto no escore geral (6,40 [6,16; 6,36]), como na longitudinalidade (7,08 [6,83; 7,32]) e na afiliação na CFFC (8,06 [7,67; 8,44]). Já as estimativas para o sexo feminino foram, respectivamente, 6,06 [5,66; 6,47], 6,81 [6,38; 7,26] e 7,22 [6,40; 8,05]. A mesma relação não foi observada na CFNC, onde as avaliações pelo sexo masculino foram, inclusive, maiores para a longitudinalidade e escore geral da APS. Nessa unidade, obtivemos, para o sexo feminino, o escore geral de 4,85 [4,56; 5,14], para longitudinalidade 5,35 [5,05; 5,66] e para afiliação 7,57 [7,16; 7,97]. A média do público masculino foi de 5,18 [4,71; 5,65], 5,26 [5,16; 6,08] e 6,91 [6,11; 7,72], respectivamente (Tabela 2).
Em relação à faixa etária, observou-se melhor avaliação pelos usuários com mais de 45 anos entrevistados em ambas as clínicas. O escore geral da APS foi de 6,00 [5,7; 6,29], da longitudinalidade de 6,73 [4,42; 7,04] e da afiliação de 7,20 [6,71; 7,74] pelos entrevistados que tinham até 45 anos na CFFC. Já os com mais de 45 anos nessa unidade, a média do escore geral foi de 6,67 [6,38; 6,96], da longitudinalidade de 7,35 [7,06; 7,63] e da afiliação de 8,62 [8,20; 9,04]. Na CFNC as médias dos usuários menores de 45 anos foram de 4,83 [4,46; 5,19], 5,12 [4,73; 5,51] e 7,25 [6,71; 7,80], respectivamente. Entre os maiores de 45 anos, 5,05 [4,72; 5,38], 5,72 [5,39; 6,05] e 7,5 [7,01; 8,00], respectivamente (Tabela 3).
Correlacionando a cor da pele referida pelos entrevistados com a nota final, a média do escore geral da APS, da longitudinalidade e da afiliação das pessoas que se declararam brancas, indígenas ou amarelas, foi de 6,49 [6,15; 6,84], 7,19 [6,86; 7,52] e 8,29 [7,75; 8,83], respectivamente e dos que declararam parda/preta, 6,25 [6,00; 6,51], 6,95 [6,68; 7,22], 7,70 [7,26; 8,15]. Na CFNC, nessa mesma ordem, as médias dos que se declararam brancos/indígenas/amarelos foram de 4,80 [4,38; 5,23], 5,21 [4,75; 5,67] e 7,76 [7,11; 8,41] e os que se declararam pardos/pretos de 5,05 [4,72; 5,38], 5,72 [5,39; 6,05] e 7,50 [7,01; 8,00] (Tabela 4).
Já a variável “situação conjugal” mostrou que na CFFC as médias do escore geral, de longitudinalidade e afiliação dos usuários que estão com um parceiro foi de 6,32 [6,04; 6,61], 7,05 [6,74; 7,35], 7,58 [7,06; 8,10]. Os que estão separados/viúvos de 6,31 [5,97; 6,64], 6,95 [6,60; 7,30], 8,10 [7,56; 8,64] e dos solteiros de 6,39 [5,72; 7,06], 7,17 [6,56; 7,78], 8,28 [7,12; 9,43], respectivamente. Na CNFC, os pacientes que responderam ser casados/união estável tiveram média de 4,86 [4,50; 5,23], 5,31 [4,93; 5,69] e 7,30 [6,75; 7,85] para o escore geral da APS, da longitudinalidade e da afiliação. Os viúvos/separados 5,02 [4,63; 5,42], 5,48 [5,07; 5,89], 7,39 [6,77; 8,01] para os mesmos itens e ordem dos anteriormente citados. Por fim, os que responderam serem solteiros tiveram suas médias da seguinte ordem: 4,98 [4,34; 5,61], 5,62 [4,95; 6,29], 7,60 [6,75; 8,44] (Tabela 5).
Discussão
O estudo avaliou e comparou a longitudinalidade e o escore geral da APS na perspectiva dos usuários em duas unidades em uma região do município do Rio de Janeiro - uma com equipes de residência médica do PRMFC-Rio e a outra com profissionais sem esse vínculo. Através dos resultados, notamos uma relação positiva entre a presença do PRMFC-Rio e a presença e extensão da longitudinalidade e dos demais atributos, com melhor avaliação pelos usuários nessas unidades.
A avaliação em saúde pode desempenhar um papel estratégico na melhoria da qualidade dos serviços de saúde, na redução de desigualdades e na orientação de políticas públicas. Porém, o processo avaliativo ainda não está incorporado nos sistemas de saúde no Brasil devido aos impasses que permeiam essa prática, como escassez de recursos, a fragmentação do sistema de saúde e a falta de integração entre os diferentes níveis de atenção14.
A ferramenta escolhida neste estudo tem sido cada vez mais usada no Brasil, o que pode se dar devido à sua fácil reprodução, compreensão e baixo custo15 e foi incluída em 2019 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com o apoio da Secretaria de Atenção Primária à Saúde do MS, na Pesquisa Nacional de Saúde (PNS)16.
A análise do perfil sociodemográfico ajuda a compreender as características e necessidades da população, identificando barreiras no acesso e desigualdades na saúde. Entre os participantes dessa pesquisa, a maioria que se identificava com o sexo feminino, pardo/preto e solteiro(a)/separado(a)/viúvo(a). Esse perfil encontrado é similar ao estudo realizado em 2014 no Rio de Janeiro, onde os adultos entrevistados eram majoritariamente do sexo feminino, não branca, com idade média de 46,96 anos, uma média de 2,62 filhos por adulto e com maioria solteiro(a)/viúvo(a)/separado(a)/divorciado(a)10.
Podemos também traçar paralelo com o estudo realizado pelo IBGE, que incluiu pela primeira vez um módulo sobre avaliação da APS em seu inquérito populacional. Apesar de não ser possível isolar o perfil da população no Município do Rio de Janeiro nos resultados desse estudo, ao comparar com a região Sudeste do país, encontramos uma população com um perfil similar, com 69,59% participantes do sexo feminino, 56,33% pardas/pretas, 37,79% não possuíam cônjuge e 54,53% com renda até um salário mínimo16.
A semelhança nos perfis das pesquisas indica um esvaziamento do público masculino e jovem nas unidades e maior acesso de mulheres pardas/pretas nas unidades de saúde no Rio de Janeiro, podendo ser sinal aos gestores para potencializar as políticas para esse público. Uma hipótese para esse perfil pode ser relacionada a aspectos culturais sobre cuidados em saúde, além da visão do papel social do homem e a relação com a imagem de fragilidade17.
As médias do escore geral da APS obtidos nesse estudo se assemelham ao estudo conduzido em 2014 no Rio de Janeiro, com a participação de 3.530 adultos que participaram da pesquisa e responderam ao questionário PCATool, onde o escore geral foi de 5,73 [5,60; 5,84], o de afiliação 7,05 [6,83; 7,27] e o da longitudinalidade 6,27 [6,1; 6,40] no Município do Rio de Janeiro e, mais especificamente na CAP 3.1, um escore geral de 6,0 [5,7; 6,29], de longitudinalidade 7,46 [6,91; 8,00] e afiliação 6,26 [5,9; 6,6]10, e também a outro estudo conduzido em 2019 pelo IBGE, teve média do escore geral do RJ de 5,3 [5,6; 5,9] e na região sudeste de 5,8 [5,7; 6,0]16.
Podemos inferir que ao comparar as duas unidades, a que apresenta residência médica possui escore alto tanto na afiliação como na longitudinalidade e um escore geral maior do que a unidade sem residência média, apesar de não atingir o corte para configurar a presença e extensão dos atributos da APS. Isso pode ser reflexo das políticas da gestão anterior, que reduziram de forma expressiva as equipes da ESF, tratando-se de um período ainda de recuperação dos serviços que foram desmontados.
Os dados indicam que há melhora da qualidade do atendimento nas equipes com residência médica, com melhor avaliação tanto geral quanto da longitudinalidade quando comparada às equipes sem especialistas em MFC. A avaliação superior do atributo “longitudinalidade” nas equipes com residência aponta para a construção de um vínculo longitudinal apesar da rotatividade de residentes, o que pode ser justificado pela estrutura e características do PRMFC-Rio, como a presença persistente do preceptor nessas equipes, profissional qualificado para supervisionar o desenvolvimento das habilidades do MFC.
É importante ressaltar, todavia, que apesar dos usuários entrevistados serem abordados de forma aleatória após suas consultas, uma limitação do estudo se dá pela sua amostra abranger apenas os usuários que frequentam a unidade e não se estender a todos os cadastrados do território, o que pode provocar um viés nos resultados ao serem extrapolados para toda a população.
A proposta da ESF como modelo principal na APS demanda profissionais especializados que dominem o conhecimento sobre os atributos desenhados por Starfield, com visão mais integral e reflexiva sobre o indivíduo18. Em 2013, foi realizado no Rio de Janeiro um estudo de caso sobre a implementação das Clínicas da Família, somada à aplicação do PCATool versão Profissionais de Saúde. Nele, os profissionais médicos foram classificados em especialistas (com residência ou especialização em MFC, ou Saúde da Família) ou não, o que configurou diferença nos escores médios dos resultados, com escores mais altos para os profissionais especialistas9.
Além de existir associação entre maior efetividade na APS e a presença do médico especializado no setor, a longitudinalidade e o estabelecimento do vínculo longitudinal estão diretamente relacionados com o tempo de permanência dos profissionais e o estabelecimento de uma relação entre profissionais/equipe e usuários. Muitos estudos apontam que a residência médica favorece a fixação de profissionais nos locais de formação19. O vínculo longitudinal permite que o profissional ou equipe conheça de forma mais integral os seus usuários e construa uma relação de maior confiança e, assim, maior resolução dos problemas que possam ser apresentados18.
Ao comparar os resultados encontrados neste trabalho com outras experiências de avaliação pelos usuários conduzidas em outros municípios, encontramos resultados próximos a este como o realizado em 2014 no sul de Minas Gerais, com escore geral de 5,9220, em Fortaleza em 2019 que obteve escore geral de 5,7 e de longitudinalidade de 6,4021, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul (2020) com escore geral de 5,5 e 7,2 para a longitudinalidade, este último mais elevado que quando comparado às unidades sem residência deste estudo22.
Apesar de análises comparativas serem produtivas e auxiliarem nas tomadas de decisão ao observar outras realidades, é importante ressaltar a diversidade do nosso país de dimensão continental, o que justifica encontrar resultados divergentes nas avaliações de diferentes municípios.
Considerações finais
O PRMFC-Rio abriga seus residentes nas clínicas da família, sob supervisão de preceptores médicos de família, que realizam preceptoria ombro a ombro durante o treinamento em serviço por dois anos. Uma preceptoria forte, com profissional da área qualificado e com contrato fixo que permite sua permanência por anos nas equipes, facilita o desenvolvimento dos atributos da APS, inclusive do vínculo longitudinal.
Nesta pesquisa verificou-se através da ferramenta PCATool versão reduzida para usuários adultos, com aplicação integral do componente da longitudinalidade, que as clínicas com residência de medicina e família e comunidade foram bem avaliadas pelos usuários. O componente da longitudinalidade obteve escore de 7,02, considerado alto pela ferramenta aplicada, em contraste com a unidade sem o PRMFC-Rio que teve média de 5,43. O escore geral também obteve diferença expressiva, com média de 6,32 na primeira e 4,94 na segunda. Dessa forma, foi possível traçar uma relação entre a presença do PRMFC-Rio e a satisfação dos usuários com o serviço de saúde.
Esse trabalho se faz relevante diante da crescente demanda por processos avaliativos que contribuam para os ajustes dos gestores de uma APS carioca em expansão e, também, para o contínuo aprimoramento dos processos de trabalho e melhora do cuidado desempenhado pela APS. Os achados do estudo reforçam a importância do investimento nos programas de residência e de especialização de profissionais na APS para melhorar a qualidade da APS no Rio de Janeiro.
A versão reduzida do PCATool representa uma limitação parcial ao estudo diante da impossibilidade de detalhar a contribuição de cada atributo na composição final na nota. Por esse motivo, inclusive, optou-se pela inclusão integral do atributo “longitudinalidade” na abordagem. Porém, devido a sua maior facilidade de replicação, a versão reduzida torna-se uma ferramenta oportuna para ser aplicada de forma mais regular e em cenários de limitação de recursos humanos, financeiros e de disponibilidade de tempo.
O uso dessa ferramenta, na sua versão estendida ou reduzida, permite uma avaliação acessível e de baixo custo, tornando possível perceber a evolução da presença e extensão dos atributos da APS nos serviços de saúde ao longo do tempo, através da realização seriada de pesquisas avaliativas. É necessário que novos estudos sobre o tema, com pesquisa em outras realidades, explorando outros atributos e sobre o papel das residências em medicina de família e comunidade em relação a outros aspectos, como a sua relação com desfechos clínicos, sejam desenvolvidos para uma melhora constante do cuidado à população.
O resultado do presente estudo evidenciou uma avaliação positiva sobre o vínculo longitudinal durante a residência em Medicina de Família e Comunidade no Município do Rio de Janeiro, o que indica melhor desempenho desse atributo e uma potencialidade para o cuidado dos usuários dentro desse contexto.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
21 Out 2024 -
Data do Fascículo
Nov 2024
Histórico
-
Recebido
08 Mar 2024 -
Aceito
26 Abr 2024 -
Publicado
28 Abr 2024