Resumo
O método de análise espacial permite mensurar a acessibilidade espacial dos serviços de saúde para alocação dos recursos de forma eficiente e eficaz. Diante disso, o objetivo deste estudo foi analisar a distribuição espacial das taxas de COVID-19 e dos recursos de saúde na Amazônia Legal. Estudo ecológico realizado com casos de COVID-19 e os recursos de saúde nos 772 municípios em dois picos da pandemia. Utilizou-se o método bayesiano global e local para elaboração de mapas coropléticos, com cálculo do índice de Moran para análise da dependência espacial e utilização do Moran map para identificação dos clusters da doença. Os índices de Moran calculados para os dois períodos demonstraram autocorrelação espacial positiva dessa distribuição e dependência espacial entre os municípios nos dois períodos, sem muita diferença entre os dois estimadores. Evidenciaram-se maiores taxas da doença nos estados do Amapá, Amazonas e Roraima. Em relação aos recursos de saúde, observou-se alocação de forma ineficiente, com maior concentração nas capitais.
Palavras-chave: COVID-19; Análise espacial; Estudos ecológicos; Ventiladores mecânicos; Unidades de terapia intensiva
Abstract
Spatial analysis can help measure the spatial accessibility of health services with a view to improving the allocation of health care resources. The objective of this study was to analyze the spatial distribution of COVID-19 detection rates and health care resources in Brazil’s Amazon region. We conducted an ecological study using data on COVID-19 cases and the availability of health care resources in 772 municipalities during two waves of the pandemic. Local and global Bayesian estimation were used to construct choropleth maps. Moran’s I was calculated to detect the presence of spatial dependence and Moran maps were used to identify disease clusters. In both periods, Moran’s I values indicate the presence of positive spatial autocorrelation in distributions and spatial dependence between municipalities, with only a slight difference between the two estimators. The findings also reveal that case rates were highest in the states of Amapá, Amazonas, and Roraima. The data suggest that health care resources were inefficiently allocated, with higher concentrations of ventilators and ICU beds being found in state capitals.
Key words: COVID-19; Spatial analysis; Ecological studies; Mechanical ventilators; Intensive care units
Introdução
O Brasil é o único país do mundo que possui um sistema de saúde universal, integral e gratuito para uma população superior a 100 milhões de habitantes1. Este sistema, que contribuiu por décadas para reduzir as desigualdades no acesso aos cuidados de saúde, foi sobrecarregado na pandemia em função de o Brasil ser um dos países mais atingidos pela COVID-19, levando a América Latina a ser declarada o epicentro da pandemia em maio e junho de 20202.
Apesar da extensa rede da atenção primária, o Brasil enfrentou o maior colapso sanitário e hospitalar da história do país. As taxas de ocupação de leitos de unidade de terapia intensiva (UTI) de COVID-19 para adultos no Sistema Único de Saúde (SUS) em março de 2021 chegaram a números iguais ou superiores a 80% em 24 estados e no Distrito Federal, sendo 15 deles com taxas iguais ou superiores a 90%3.
De 17% a 35% dos pacientes hospitalizados com COVID-19 necessitam de uma UTI quando não vacinados, mais comumente devido à insuficiência respiratória hipoxêmica. Além do mais, de 29% a 91% das pessoas acometidas requerem suporte ventilatório invasivo4-6.
O vírus SARS-CoV-2 é altamente transmissível e com a maioria dos indivíduos suscetíveis a infecção7. A propagação desse vírus é um processo complexo, que envolve dados demográficos, mobilidade populacional e meio ambiente, com padrão de transmissibilidade muito heterogêneo nos diferentes países ou regiões e variabilidade ao longo do tempo5.
A Amazônia Legal, localizada ao norte do Brasil, possui baixa densidade populacional. Contudo, foi marcada pela alta concentração de casos da COVID-198. É considerada uma região com cenário socioambiental heterogêneo e multifacetado, com presença de centros urbanos populosos em contraponto a cidades relativamente isoladas e populações tradicionais diversificadas que residem em áreas rurais remotas, como indígenas, comunidades ribeirinhas, pescadores e quilombolas, às vezes em territórios até inexpugnáveis. Além disso, caracteriza-se pela disparidade dos indicadores sociais, econômicos e sanitários, somados ao crescimento demográfico e econômico acelerado, com alta concentração de renda e condições de vida amplamente desfavoráveis para a maior parte da população9.
Nela ainda se localiza a cidade de Manaus, capital do estado do Amazonas, que foi surpreendida com o aumento repentino do número de casos e de mortes em abril de 202010, ocasionando pressão sobre os serviços de saúde. Além disso, e especificamente na saúde, as barreiras geográficas da região da Amazônia Legal são utilizadas para justificar as dificuldades para prover ações interiorizadas e o acesso à saúde nos três níveis de complexidade11.
Dessa forma, mapear o padrão de distribuição da doença e dos recursos físicos da saúde possibilita compreender a atual dinâmica do acesso à assistência, com identificação de áreas de maior vulnerabilidade à pandemia. Essa compreensão pode oferecer suporte à implementação de medidas de controle da propagação do vírus, à prevenção de surtos locais e ao planejamento para alocação de recursos, favorecendo a acessibilidade de suporte intensivo a pacientes graves. Diante disso, este estudo teve como objetivo analisar a distribuição espacial das taxas de detecção de COVID-19 e dos recursos de saúde na Amazônia Legal.
Material e método
Trata-se de um estudo ecológico com análise exploratória dos dados referentes à distribuição das taxas de detecção de COVID-19 e dos recursos de saúde (UTI-COVID-19 e ventiladores respiratórios) na Amazônia Legal.
O cenário analisado foi a Amazônia Legal, tendo como unidade de análise o município. Essa região é formada pelos estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do Maranhão, totalizando 772 municípios. Possui área aproximada de 5.015.067,75 km² (58,9% do território brasileiro) e baixa densidade populacional na maior parte do território12.
Foram utilizados dados de casos detectados de COVID-19 no período de 25 de fevereiro de 2020 (data do registro do primeiro caso) até 31 de março de 2021, sendo considerados os casos acumulados até julho de 2020 e até março de 2021. Tais períodos se justificam por terem ocorrido dois picos da pandemia no Brasil, conforme visualizado no gráfico de casos por semana epidemiológica no site da Organização Mundial de Saúde (OMS)13.
Os dados referentes aos casos de COVID-19 por município de residência foram extraídos do Painel Coronavírus do Ministério da Saúde no dia 10 de abril de 202114. Ressalta-se que os dados são atualizados ou corrigidos constantemente, inclusive sobre o município de notificação nem sempre ser o mesmo onde a pessoa notificada reside, havendo retificação após a conclusão do processo de investigação. Ao todo foram registrados 1.860.217 casos, sendo 559.349 até o primeiro pico da pandemia (julho de 2020).
Para o cálculo das taxas de detecção de casos por município, utilizou-se dados sobre a população residente por município correspondente às estimativas do IBGE para o ano de 202015.
A partir dos dados coletados, foram calculadas as taxas brutas de detecção acumulada de casos por município (número de casos dividido pela população total, multiplicado por 100.000), bem como as taxas suavizadas pelo estimador bayesiano global, que calcula a média ponderada entre a taxa local e a de toda região e o estimador bayesiano local, que considera os efeitos espaciais das estimativas locais de municípios vizinhos geográficos16.
Esses estimadores reduzem a flutuação aleatória das taxas e podem indicar as áreas de prioridade para ações sanitárias (ondes as taxas se destacam mesmo após a suavização), e no caso do estimador bayesiano local, pode gerar estimativas que levam em consideração o comportamento das áreas vizinhas. Com relação ao estimador bayesiano local, foi considerada a vizinhança de 1ª ordem, ou seja, apenas os vizinhos imediatos. A criação dos mapas coropléticos se deu para visualização da distribuição das taxas, com graduação dos valores por quebras naturais.
Calculou-se o índice de Moran para verificar a dependência espacial da distribuição das taxas bayesiana global e local. O índice varia de -1 a +1, sendo que os valores positivos indicam dependência espacial; valores negativos indicam correlação espacial negativa; valores próximos a zero assinalam ausência de autocorrelação espacial. Criou-se uma matriz de vizinhança de contiguidade e considerou-se o nível de significância de 5%.
Para evidenciar os regimes espaciais, utilizou-se o diagrama de espalhamento de Moran do coeficiente de detecção calculado pelo estimador bayesiano local. A visualização do mesmo se deu através do Moran map, a fim de identificar clusters estatisticamente significantes de áreas com altos valores e vizinhos em igual condição (Q1 - padrão Alto-Alto), áreas com baixos valores e com vizinhança também em igual condição (Q2 - padrão Baixo-Baixo), ou áreas em transição (Q3 - padrão Alto-Baixo e Q4 - padrão Baixo-Alto).
Os dados relativos aos ventiladores mecânicos e leitos de terapia intensiva para COVID-19 disponíveis nos dois períodos foram levantados do Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde - CNES17. O número de leitos de UTI-COVID-19 e de ventiladores mecânicos foi representado por meio de círculos de tamanhos proporcionais às quantidades indicadas no CNES e localizados nas sedes dos municípios. Essa informação foi sobreposta ao Moran map para permitir a comparação entre a quantidade de insumos e os clusters de casos da doença.
A manipulação dos dados, o georreferenciamento das informações, a realização da análise espacial e a confecção dos mapas se deram por meio dos programas Excel 2013, GeoDa 1.18.0 e QGIS 3.18.1. A análise descritiva e o teste de Pearson para verificar a correlação entre as variáveis nos dois períodos de referência ao nível de confiança de 95% foram efetuados utilizando o programa estatístico SPSS.
Por se tratar de um estudo empreendido exclusivamente com dados secundários de domínio público, não foi necessária a submissão do projeto ao Comitê de Ética em Pesquisa.
Resultados
Um total de 1,99 casos de COVID-19/100.000 habitantes foram notificados até 31 de julho de 2020 na Amazônia Legal, passando para 6,62 casos/100.000 habitantes até 31 de março de 2021. A Tabela 1 apresenta os dados analisados nos dois períodos de referência da pesquisa.
Os índices de Moran calculados para os dois períodos pelo estimador bayesiano local foi de 0,44 (p = 0,001) na primeira onda e de 0,46 (p = 0,001) na segunda onda; pelo estimador bayesiano global, foi de 0,43 (p = 0,001) na primeira onda e de 0,45 (p = 0,001) na segunda onda. Os valores demonstraram autocorrelação espacial positiva dessa distribuição e dependência espacial entre os municípios nos dois períodos, com pouca diferença entre os dois estimadores.
As figuras 1 e 2 apresentam a distribuição das taxas de detecção da COVID-19 acumulada bruta e padronizada pelos métodos de estimação bayesianos globais e locais até julho de 2020 e até março de 2021, respectivamente. Conforme observado nos mapas, tanto no primeiro pico da doença como no segundo houve uma variação muito pequena entre as taxas brutas quando comparadas às taxas padronizadas.
Taxa de detecção de COVID-19 bruta e padronizada pelos métodos de estimação bayesiana global e local até julho de 2020 na Amazônia Legal, Brasil.
Taxa de detecção de COVID-19 bruta e padronizada pelos métodos de estimação bayesiana global e local até março de 2021 na Amazônia Legal, Brasil.
Até julho de 2020, os municípios com coeficiente de detecção superior a 3.000 casos/100.000 habitantes se concentraram nos estados do Amapá, noroeste e centro-sul do Amazonas, leste e sul de Roraima e regiões esparsas no Pará. As menores taxas de detecção (inferiores a 1.000/100.000 habitantes) ocorreram majoritariamente no Mato Grosso, Tocantins, leste de Rondônia, norte e sudeste do Pará (Figura 1). Apenas o município de Mateiros, no Tocantins, não registrava casos da doença.
No mês de março de 2021, as taxas de detecção acumuladas de COVID-19 subiram expressivamente. Considerando os dados brutos, os coeficientes de detecção mais altos (superiores a 8.000 casos/100.000 habitantes) se concentraram no Amapá, sul e noroeste do Pará, norte e sudoeste do Amazonas. Os municípios do Maranhão e nordeste do Pará tiveram o menor coeficiente de detecção registrado (inferior a 4.000 casos/100.000 habitantes). Também é possível observar que todos os municípios já registravam casos da doença (Figura 2).
A Figura 3 mostra a distribuição dos ventiladores mecânicos nos municípios sobrepostos ao Moran map das taxas suavizadas pelo método bayesiano local no primeiro e no segundo pico da COVID-19. Em ambos os picos da doença, observa-se concentração deste equipamento de saúde nas capitais.
Moran map do coeficiente de detecção de casos de COVID-19 por município e distribuição do número de ventiladores mecânicos na Amazônia Legal, Brasil, 2020 e 2021.
No primeiro pico, embora algumas capitais como Manaus (1.040), Cuiabá (847) e Belém (829) tenham apresentado alta concentração no número de ventiladores, observam-se regiões com padrão Alto-Alto estatisticamente significante, ou seja, altas taxas de detecção com vizinhos também apresentando altos valores, porém com poucos dispositivos. Um exemplo deste padrão é o estado do Pará, que apresentou o maior número de equipamentos em regiões que não tinham altas taxas de detecção da doença e poucos equipamentos em agrupamentos Alo-Alto (Novo Progresso/Itaituba e Parauapebas/Canaã dos Carajás). Assim, várias regiões críticas da doença enfrentaram escassez desse recurso (Figura 3), e nenhuma região com padrão Alto-Alto teve disponível número elevado de leitos de UTI (Figura 4).
Moran map do coeficiente de detecção de casos de COVID-19 por município e distribuição do número leitos de UTI, Amazônia Legal, Brasil, 2020 e 2021.
Ainda sobre a primeira onda, as regiões com padrão Baixo-Baixo estatisticamente significantes, ou seja, com baixa taxa de detecção e vizinhos em iguais condições, concentram-se principalmente no Tocantins, que teve alocadas quantidades intermediárias de ventiladores e leitos de UTI, e na região noroeste e nordeste do Mato Grosso, onde os números de ventiladores e leitos de UTI também foram baixos (figuras 3 e 4).
Na segunda onda, o padrão Alto-Alto se manteve dominante no Amazonas e se expandiu para o sudoeste e nordeste do estado. O Amapá se manteve inalterado quanto ao padrão e à oferta de ventiladores, mas no Pará o cenário se modifica, com o padrão Alto-Alto agora na região noroeste e se mantendo no Sudoeste. Em Roraima, manteve-se o padrão Alto-Alto ao sul do estado e houve o incremento da região central. O Acre passou a ter os municípios de Feijó, Assis Brasil e Sena Madureira com padrão Alto-Alto, contudo, desses, apenas o último com ventiladores (2). Em Rondônia, o entorno da capital (Porto Velho) também apresentou o mesmo padrão, mas com alta concentração de ventiladores e leitos de UTI na região (figuras 3 e 4).
Na segunda onda, houve modificação das regiões com padrão Baixo-Baixo, passando a se concentrar no nordeste do Pará e no Maranhão. Ambas as regiões apresentaram altas concentrações de ventiladores e leitos de UTI (figuras 3 e 4). Vale destacar que os ventiladores e leitos de UTI atendem não apenas a municípios detentores dos mesmos, mas a municípios limítrofes e/ou aqueles que integram as regiões de saúde.
Considerando as regiões de saúde da Amazônia Legal, foram verificadas correlações de Pearson significativas entre as variações das taxas de detecção da COVID-19 e o número de ventiladores (0,267) e leitos de UTI (0,359). Isso demonstra estatisticamente que a alocação dos ventiladores mecânicos e leitos de UTI tiveram correlação positiva com o incremento da taxa de detecção ao comparar os dois períodos de referência (p < 0,05).
Discussão
Este estudo, ao comparar as duas ondas, evidenciou um incremento da taxa de detecção de casos em 332%, de ventiladores em 14,54% e de leitos de UTI em 35%, com dependência espacial dessa distribuição das taxas nos dois períodos. Municípios com padrão Alto-Alto de detecção de COVID-19 foram recorrentes nos estados do Amapá, Amazonas e Roraima. Ressalta-se que são estados fronteiriços.
A grande maioria dos países não tem testado o suficiente para garantir a qualidade dos indicadores de saúde relativos à COVID-1918. No Brasil, o acesso aos testes ocorreu de forma desigual, com menor capacidade de testagem em regiões mais pobres19, o que supostamente aconteceu na Amazônia Legal.
A propagação inicial e as mortes por COVID-19 no Brasil foram afetadas principalmente por padrões de vulnerabilidade socioeconômica, em vez da estrutura etária da população e da prevalência de fatores de risco à saúde pré-existente20,21. A região Norte do país apresentou o maior grau de vulnerabilidade à exposição à COVID-19 no país22, e as altas taxas de detecção da COVID-19 na Amazônia Legal, com alto incremento em relação às ondas da doença, corroboram essa afirmação.
No estado do Amazonas, a propagação se deu pelos mecanismos de conexão de territórios e hierarquia urbana macrorregional. Somada a isso, a presença dos portos internacionais, do polo industrial da Zona Franca de Manaus (ZFM) e da rede fluvial, principal meio de mobilidade das populações amazônicas e de transportes de mercadorias. Esses elementos contribuíram para a interiorização da contaminação da COVID-1923, o que pode justificar o padrão de distribuição dos casos observado neste artigo.
Outro estado que apresentou padrão Alto-Alto nos dois períodos de referência analisados foi o Amapá. Ao final de maio de 2020, o estado atingiu a terceira posição em percentual de casos de COVID-19 na região Norte, porém, pelo coeficiente de incidência, foi o primeiro do Brasil24. A fronteira com a Guiana Francesa pode ser uma explicação para esses números, uma vez que esse país apresentou a maior taxa de incidência acumulada, com 14.941,98 por 100 mil habitantes em novembro de 202125. A relação de casos entre a Guiana Francesa e o Amapá pode ser objeto de estudo futuro.
Em relação à disponibilidade de recursos de saúde na Amazônia Legal, é evidente a discrepância de regiões com padrão Alto-Alto e pouca quantidade de recursos físicos. Embora os serviços de saúde possam ser integrados entre localidades por meio das regiões de saúde, a grande demanda associada à acessibilidade geográfica pode resultar em acesso desigual aos níveis de atenção de maior complexidade. Esses dados corroboram os achados de Bezerra et al. (2020)26, que observaram a heterogeneidade e a desigualdade de acesso ao atendimento no sistema de saúde da população brasileira.
Estudo realizado no Brasil constatou que a taxa de mortalidade padronizada da COVID-19 foi maior na região Norte, onde foi observada a maior escassez de recursos hospitalares21. As mortes por COVID-19 foram correlacionadas positivamente com vulnerabilidades socioeconômicas e negativamente com recursos hospitalares21. Os achados de Moreira (2020)27 concluíram que as regiões de saúde que apresentaram as maiores médias de mortalidade estavam situadas em locais de escassez de leitos de UTI e de ventiladores.
Levantamento efetuado em abril de 2020 observou que os menores índices de infraestrutura de saúde foram registrados no Amapá e em Roraima. Em termos de clusters espaciais significativos com padrão Baixo-Baixo, o destaque foi para Amazonas e Pará, com possibilidade de fragilidade do serviço de saúde para atendimento à população, principalmente em situações de demanda elevada26.
Embora tenha grande extensão territorial, praticamente todas as UTIs do Amazonas estão localizadas na capital. Isso significa que o colapso do sistema de saúde em Manaus se traduz no colapso da saúde de todo o estado. O mesmo acontece no Amapá e em Roraima, levando os municípios da região a dependerem diretamente da infraestrutura de saúde da capital.
A inequidade no acesso à saúde no Amazonas é imposta pela dispersão demográfica e o vasto território, com extensas bacias hidrográficas, coberto pela floresta amazônica e com precariedade da rede de circulação28. Essas características impõem dificuldades aos pacientes com COVID-19 oriundos de localidades menores e longínquas, com dificuldade de deslocamento para as centralidades regionais onde estão disponíveis os serviços de média e alta complexidade23. Além disso, o incremento de ventiladores mecânicos (14,54%) e leitos de UTI adultos de COVID-19 (35%) da primeira onda para a segunda na Amazônia Legal não foi proporcional ao aumento da taxa de detecção (332%).
A perspectiva é que o Brasil possa enfrentar surtos recorrentes de COVID-19. A recomendação é que os países utilizem dados cada vez mais detalhados para ajustar e coordenar as respostas à COVID-1929. O uso de dados georreferenciados em sistemas de informações geográficas podem subsidiar as decisões, gerando mais velocidade e assertividade nas ações de saúde pública. Com isso, espera-se que este estudo contribua para o planejamento da distribuição de recursos de saúde, levando em conta as áreas de maior vulnerabilidade.
A presente investigação apresenta limitações de estudos ecológicos, como a impossibilidade de relacionar exposição e desfecho em nível individual. No Brasil, a testagem é feita preferencialmente em pessoas sintomáticas, havendo necessidade de cautela na análise da incidência de casos, diante da possibilidade de subnotificação, baixa testagem em regiões mais remotas e principalmente nas populações vulneráveis, em que o acesso ao serviço de saúde e informação são limitados. Apesar dos dados serem atualizados diariamente, é passivo de defasagem, pois as secretarias municipais e estaduais de Saúde têm autonomia para corrigir a informação do local de residência após a investigação da ocorrência da notificação e repassá-la ao Ministério da Saúde. Outro ponto é que o sistema de informação do governo federal foi atualizado diversas vezes durante a pandemia e foi implantado para fins de vigilância epidemiológica, sendo preenchidos por pessoas não vinculadas à pesquisa, ou seja, passível de erros. Contudo, a relevância da análise dos dados coletados permitiu o entendimento da distribuição da COVID-19 nas duas ondas.
Conclusão
Os valores demonstraram autocorrelação espacial positiva da distribuição da COVID-19 e dependência espacial entre os municípios nos dois períodos. Também se evidenciou maiores taxas da doença nos estados do Amapá, Amazonas e Roraima. Em relação aos recursos de saúde, observou-se alocação de forma ineficiente, com maior concentração nas capitais.
O método de análise espacial permite assim mensurar a acessibilidade espacial dos serviços de saúde para subsidiar políticas públicas e alocação dos recursos de forma eficiente e eficaz.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
06 Jan 2023 -
Data do Fascículo
Jan 2023
Histórico
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Recebido
30 Mar 2022 -
Aceito
05 Ago 2022 -
Publicado
07 Ago 2022