Acessibilidade / Reportar erro

As marcas de gênero no fumar feminino: uma aproximação sociológica do tabagismo em mulheres

Gender signs on female smoking: a sociological approach to women’s cigarette smoking

Resumos

A partir de extensa revisão bibliográfica do tema tabagismo feminino, o ensaio propõe, para melhor compreensão desta questão, a adoção de referenciais conceituais das ciências sociais, em particular da categoria gênero, visando subsidiar abordagens mais integrais e abrangentes na cessação e prevenção do tabagismo em mulheres. No cenário epidemiológico do tabagismo, identificam-se três tendências - pauperização, feminização e juvenilização - que confirmam o quanto muitos dos agravos à saúde feminina estão relacionados às desigualdades sociais e de gênero. A dimensão de gênero é relacionada ao tabagismo feminino através das “patologias de protesto” femininas que, historicamente, expressam insatisfações e contradições sociais vivenciadas pelas mulheres. Conclui-se que o significado construído pelas mulheres sobre o cigarro tem forte conexão com as formas com que as relações de gênero estão organizadas na sociedade atual, assim como nas suas relações com os serviços de saúde, advogando-se a necessidade de abordagens mais amplas e integrais da saúde feminina, incluso no tabagismo.

Tabagismo feminino; Gênero; Assistência à saúde; Patologias de protesto


Based on an extensive review of specialized literature about woman smoking, this essay aims to promote a better understanding of this issue, proposing the adoption of Social Sciences concepts, particularly at gender category, to support more comprehensive and encompassing approaches towards prevention and health assistance of tobacco smoking women. Analyzing the epidemiologic scenario of woman smoking, three tendencies could be identified - pauperization, feminilization and juvenilization - confirming that many of women disease are related to social and gender inequalities. Gender dimension is associated to woman smoking through women’s ‘protest pathologies’ which historically express dissatisfactions and social contradictions experienced by women. The essay concludes that the meaning attributed to cigarette by women has strong connections with the ways gender relations are organized in current society, as well as with their relationships with health services, demanding broader and integral approaches of women’s health, including woman smoking.

Woman and smoking; Gender; Health care; Protest pathologies


ARTIGO ARTICLE

As marcas de gênero no fumar feminino: uma aproximação sociológica do tabagismo em mulheres

Gender signs on female smoking: a sociological approach to women’s cigarette smoking

Marcia Terezinha Trotta BorgesI; Regina Helena Simões BarbosaII

INúcleo de Estudos e Tratamento do Tabagismo/ IDT, Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, UFRJ. Avenida Professor Rodolpho Rocco 255/3F 92, Cidade Universitária. 21941-913 Rio de Janeiro RJ. E-mail: marciatrotta@iesc.ufrj.br

IIInstituto de Estudos em Saúde Coletiva, UFRJ

RESUMO

A partir de extensa revisão bibliográfica do tema tabagismo feminino, o ensaio propõe, para melhor compreensão desta questão, a adoção de referenciais conceituais das ciências sociais, em particular da categoria gênero, visando subsidiar abordagens mais integrais e abrangentes na cessação e prevenção do tabagismo em mulheres. No cenário epidemiológico do tabagismo, identificam-se três tendências - pauperização, feminização e juvenilização – que confirmam o quanto muitos dos agravos à saúde feminina estão relacionados às desigualdades sociais e de gênero. A dimensão de gênero é relacionada ao tabagismo feminino através das “patologias de protesto” femininas que, historicamente, expressam insatisfações e contradições sociais vivenciadas pelas mulheres. Conclui-se que o significado construído pelas mulheres sobre o cigarro tem forte conexão com as formas com que as relações de gênero estão organizadas na sociedade atual, assim como nas suas relações com os serviços de saúde, advogando-se a necessidade de abordagens mais amplas e integrais da saúde feminina, incluso no tabagismo.

Palavras-chave: Tabagismo feminino, Gênero, Assistência à saúde, Patologias de protesto

ABSTRACT

Based on an extensive review of specialized literature about woman smoking, this essay aims to promote a better understanding of this issue, proposing the adoption of Social Sciences concepts, particularly at gender category, to support more comprehensive and encompassing approaches towards prevention and health assistance of tobacco smoking women. Analyzing the epidemiologic scenario of woman smoking, three tendencies could be identified – pauperization, feminilization and juvenilization – confirming that many of women disease are related to social and gender inequalities. Gender dimension is associated to woman smoking through women’s ‘protest pathologies’ which historically express dissatisfactions and social contradictions experienced by women. The essay concludes that the meaning attributed to cigarette by women has strong connections with the ways gender relations are organized in current society, as well as with their relationships with health services, demanding broader and integral approaches of women’s health, including woman smoking.

Key words: Woman and smoking, Gender, Health care, Protest pathologies

Introdução

Alguém não nasce e sim se torna uma mulher...

É a civilização como um todo

que produz essa criatura.

Simone de Beauvoir

A partir de uma extensa revisão crítica da bibliografia nacional e internacional sobre o tema tabagismo feminino, este ensaio propõe, para análise desta complexa questão, a incorporação de categorias conceituais das ciências sociais e humanas, particularmente da categoria gênero, na elaboração de uma nova abordagem, integral e interdisciplinar, deste importante problema de saúde pública.

Para a pesquisa bibliográfica sobre o tema tabagismo feminino, foi realizada uma extensa busca no período de março a julho de 2005, recorrendo-se às seguintes bases eletrônicas: Medline (entre os anos 1993 e 2005), Lilacs, Sciencedirect, Portal Capes, Portal de Revistas Científicas em Ciên­cias da Saúde, CCN, Fundação Carlos Chagas, Unicamp, SCielo, Prossiga, Bireme - BVS e Inwat.org (International Network of Women Against Tobacco). As informações do Instituto Nacional do Câncer (Inca) também foram consideradas, por ser este o órgão oficial de controle do tabagismo no Brasil. A busca priorizou estudos sobre as interfaces entre tabagismo e saúde da mulher, saúde reprodutiva e estudos de gênero. As palavras-chave utilizadas foram: women and smoking, tobacco, gender e women health.

Após minuciosa análise do material encontrado, constatou-se que a literatura especializada, embora já venha se dedicando a analisar as interações entre o tabaco e o corpo feminino, ainda se restringe a estudos de base biológica e/ou epidemiológica. São muito escassas as abordagens diferenciadas, o que destaca a importância, o ineditismo e a originalidade da proposta conceitual que será aqui apresentada.

Para se iniciar a abordagem do tabagismo feminino através da ótica de gênero, pode-se recorrer à célebre citação de Simone de Beauvoir, observando que a autora denuncia a “naturalização” do feminino através de sua biologia e revela que “ser mulher” é um processo moldado pela sociedade, pela cultura e por poderes dominantes que, através de estratégias de controle social, político e ideológico, perpetuam a reprodução deste estereótipo de feminilidade. Esta denúncia traz consequências importantes pois, se a condição feminina não é “destino biológico”, é passível de transformação através da ação coletiva política. Portanto, a produção de conhecimentos críticos torna-se importante ferramenta para dar visibilidade às desigualdades sociais, particularmente as de gênero, aqui relacionadas à saúde feminina.

A seguir, para contextualizar o tema no campo da saúde coletiva, será esboçada uma leitura sociológica da epidemiologia do tabagismo feminino que explicita o quanto esta questão está entrelaçada aos determinantes sociais, culturais e políticos dos processos saúde/doença. Dentre os dados epidemiológicos disponíveis, identificam-se três tendências já presentes em outros agravos à saúde feminina – como na epidemia de HIV/aids, por exemplo – que confirmam o quanto as desigualdades de gênero, entrelaçadas às de classe social e de raça/etnia, estão influindo sobre a vulnerabilidade feminina a doenças até então caracteristicamente masculinas. Estas tendências são a feminização, a pauperização e a juvenilização do tabagismo, apresentadas a seguir.

Feminização, pauperização e juvenilização do tabagismo

O tabagismo é um problema de saúde entrelaçado em múltiplos processos sociais, incluindo poderosos interesses econômicos que envolvem agricultura, indústria, comércio, arrecadação de impostos e milionárias verbas gastas em propagandas, que mantém milhões de usuários em todo o mundo. Portanto, para ser melhor compreendido, tratado e prevenido, deve ser tomado como um fenômeno complexo e multifacetado1.

O uso indiscriminado e globalizado do tabaco na sociedade contemporânea é responsável por quase cinco milhões de mortes anuais em todo o planeta. Na atualidade, ainda há menos mulheres fumantes do que homens, já que estas se iniciaram no tabaco mais tardiamente. Porém, observa-se, ao longo das últimas décadas, um ligeiro declínio na curva de homens fumantes e, em contrapartida, o aumento do tabagismo entre mulheres. Estima-se em 500 mil as mortes anuais do sexo feminino em decorrência do tabagismo, sendo que esta tendência encontra-se em ascensão em todos os países, principalmente entre as mulheres jovens2.

Comparando-se os dados de mulheres fumantes em países pobres e ricos, constata-se que a prevalência de mulheres fumantes na Ásia e África, abaixo de 10%, ainda é considerada baixa quando comparada com países desenvolvidos como, por exemplo, França e Alemanha, com taxas entre 30 e 39%, respectivamente. Na Suécia e Noruega, países com um dos menores índices de desigualdades sociais, ainda há maior prevalência de mulheres fumantes, acima de 50%. Os Estados Unidos e Canadá, em um nível intermediário, situam-se entre 20 e 29%3. Portanto, apesar do tabagismo feminino se encontrar em franca ascensão em todo o mundo, há diferenças significativas entre os países, provavelmente em decorrência de questões socioeconômicas, culturais e religiosas.

Soma-se a este quadro o fato de que as necessidades de saúde das mulheres vêm se modificando ao longo das últimas décadas, apontando para um quadro complexo em que problemas emergentes se articulam aos anteriores e questões de saúde reprodutiva se associam às não reprodutivas4. O uso do tabaco só tende a agravar essa situação, potencializando os riscos, por exemplo, das associações entre doenças cardio-cerebrovasculares e a contracepção hormonal; e, nas patologias tradicionais, as relacionadas à gravidez e ao parto5. Cabe ainda lembrar que a principal causa de mortalidade feminina por neoplasia, liderada pelo câncer de mama, já foi ultrapassada pelo aumento da incidência do câncer de pulmão entre mulheres em diversos países desenvolvidos6. Esta tendência também já foi constatada no Brasil, onde o aumento da prevalência do câncer de pulmão entre mulheres já foi detectado em todas as capitais7.

Em pesquisa francesa, realizada na década de sessenta, sobre o tabagismo segundo faixa de renda, constatou-se que, à medida que se subia na hierarquia social, a proporção de mulheres fumantes também aumentava, passando de 5,5% entre as mulheres de agricultores para 33,5% entre mulheres de técnicos e dirigentes assalariados8. Hoje, este quadro se inverteu: ainda que continuem existindo diferenças significativas na prevalência do fumar entre os distintos grupos socioeconômicos e que o fenômeno atinja todas as classes sociais, os que têm um poder aquisitivo mais elevado estão abandonando e/ou evitando o fumo, cujo consumo cresce entre os segmentos mais empobrecidos da população mundial9.

Com relação ao fato da maioria dos fumantes se encontrar em países pobres – 80% dos 1,2 bilhão de fumantes em todo o mundo9 – Rosemberg alerta para a sobrecarga que as doenças tabaco-relacionadas causarão, já que as mesmas acometem indivíduos de precário nível econômico e social em países onde as doenças endêmicas transmissíveis e carenciais estão longe de estarem superadas3.

Ainda com relação ao padrão de consumo associado aos determinantes econômicos, há evidência, na maioria dos países – independente de serem pobres ou ricos –, da forte correlação e prevalência do consumo de cigarros entre as pessoas com baixa renda e menor acesso à educação formal9. No Brasil, entre indivíduos com baixo nível de escolaridade, a probabilidade de serem fumantes é cinco vezes maior que indivíduos que têm o terceiro grau. Dentre os fatores sociais, destacam-se o menor acesso à informação, à educação e à assistência à saúde entre as classes populares2.

No entanto, a questão socioeconômica, acima comentada, adquiriu peso marcante como uma das marcas das desigualdades entre os gêneros na atualidade: o rosto da pobreza se feminilizou. Das 1,3 bilhão de pessoas em situação de pobreza no mundo, 70% são mulheres10. Portanto, há fortes indicações de que o fenômeno de “feminização da pobreza”11 entrelaça-se à feminização de agravos à saúde causados por problemas antes caracteristicamente masculinos, sendo o tabagismo um deles.

Os fenômenos de feminização e pauperização, no cenário epidemiológico do tabagismo, entrelaçam-se a outro fator agravante e preocupante, traduzido pela tendência mundial de iniciação do uso de tabaco e de bebida alcoólica – duas drogas lícitas na maioria das sociedades – cada vez mais precocemente2. A juvenilização do tabagismo tem sido constatada em diversos continentes, cujos dados apontam para o início do fumo entre os jovens antes dos 20 anos de idade. No Brasil, 90% dos fumantes iniciaram-se no tabaco antes dos 19 anos, sendo que 50% dos que experimentaram um cigarro tornaram-se fumantes na vida adulta5. Rosemberg3 afirma, inclusive, que o tabagismo já vem sendo visto como uma doença pediátrica, já que, em 98% dos casos, o início do consumo ocorre entre 12 e 18 anos de idade. Segundo dados do Inca, o brasileiro começa a fumar entre 5 e 19 anos5.

Estes fatos tornam-se alarmantes quando ilustrados pelos 2,5 milhões de crianças entre 5 e 10 anos que já fumam em todo o mundo, sendo que 100 mil crianças por dia, em média, passam a engrossar as fileiras dos usuários do tabaco9. Constatou-se que familiares e não familiares exercem um papel importante no início do fumar12. No entanto, as influências psicossociais são importantes, não só no estabelecimento, mas também na manutenção dos padrões de fumo precoce, até alcançarem um patamar em que o comportamento passa a ser motivado e mantido por um forte reforço farmacológico13. Além disso, a maioria dos jovens subestima os riscos reais de se tornarem dependentes. A dependência à nicotina pode se estabelecer muito rapidamente e, uma vez instalado o efeito farmacológico que reforça o desejo de fumar, o jovem se sente incapaz de deixá-lo9.

É importante destacar, ainda, que aqueles que se iniciam precocemente no tabagismo apresentam uma tendência a se tornarem fumantes pesados na vida adulta e que o risco de morte por doenças tabaco-relacionadas cresce na razão inversa da idade em que se iniciou a fumar e na razão direta da quantidade de cigarros fumados5.

Com relação às mulheres fumantes, em todos os países a taxa de prevalência vem crescendo aceleradamente, principalmente entre as jovens, que vêm experimentando o tabaco cada vez mais precocemente e em maior número que os rapazes14. Com isto, as mulheres fumantes passam a sofrer os mesmos riscos à saúde a que os homens já se expunham, acrescidos das consequências peculiares do tabagismo no sexo feminino1.

Os gestores de saúde devem, portanto, estar atentos às consequências que o quadro da juvenilização do tabaco pode provocar, assim como à complexidade das estratégias preventivas para este público-alvo. As campanhas de prevenção em larga escala deverão ser endereçadas aos jovens – preferencialmente utilizando os códigos e linguagens culturais próprios desta faixa etária – como, também, aos pais e/ou responsáveis, alertando-os não só para comportamentos, tais como pedir à criança que traga um cigarro já aceso, e que exercem forte influência na iniciação e manutenção do fumar, assim como para a questão do fumo passivo, desde o momento da gestação. Um outro ponto a se refletir, e que aponta o quanto questões “transversais” devem ser levadas em consideração nas campanhas de prevenção, é como se alcançar crianças pobres que não frequentam a escola, sendo esta considerada um fator de proteção.

É importante lembrar, também, que o acesso aos recursos terapêuticos que auxiliam a cessação do tabagismo são extremamente onerosos, o que acaba por criar um diferencial de classe social: muitos indivíduos de segmentos empobrecidos que desejam e/ou precisam parar de fumar nem sempre conseguem atingir esta meta. A dificuldade em conseguir vaga para atendimento na rede pública, assim como a realização de exames e acesso a medicamentos necessários ao tratamento é, muitas vezes, inatingível para a maioria da população. Isto, naturalmente, repercute de forma desigual nas consequências à saúde e recoloca em pauta a questão de saúde como direito de cidadania.

As tendências epidemiológicas do tabagismo acima comentadas apontam, na atualidade, para um problema que, dentro de poucos anos, será majoritariamente feminino2. Há ainda outras questões que merecem ser destacadas e que serão desenvolvidas adiante. As mulheres estão mais sujeitas a distúrbios de humor, como a depressão e ansiedade, ou a sentimentos como a tristeza e a solidão, sendo o tabaco, muitas vezes, usado como alívio e automedicação para questões que deveriam ser enfrentadas de outras formas15. Outras razões, tais como o estresse provocado pela dupla jornada de trabalho, pela desigualdade de oportunidades de trabalho e salariais, pela violência doméstica ou mesmo por questões estéticas impostas pelos padrões de beleza vigentes na sociedade atual, podem também levar à iniciação do fumar e reforçar a manutenção do uso do cigarro16.

Não casualmente, as mulheres têm sido um dos públicos-alvo preferidos das indústrias fumageiras, que seguem produzindo marcas específicas endereçadas ao público feminino. Através de milionárias campanhas publicitárias, procuram atingir as ansiedades e os anseios femininos, assim como suas demandas sociais14,17. Neste tipo de propaganda, são explorados conceitos como liberdade, independência, auto-afirmação e ascensão social, utilizando-se modelos femininos delgados que, sutilmente, impõem e reforçam padrões de estética corporal que certamente exercem forte influência na iniciação e permanência do fumar feminino18.

A seguir, apresentaremos o conceito de gênero e apontaremos alguns entrelaçamentos entre tabagismo feminino e desigualdades de gênero.

Conceito de gênero transversal: desvendando desigualdades

A consciência das mulheres sobre sua opressão é antiga na história humana. Porém, é somente na década de sessenta que, no bojo de outros movimentos contestatórios e libertários, o feminismo emergiu, enquanto movimento social e político, para denunciar a situação de opressão e exploração da maioria das mulheres em praticamente todas as sociedades humanas.

No decorrer deste movimento, o conceito de gênero foi sendo gestado para se contrapor à argumentação que atribui às características biológicas sexuais das mulheres sua posição social subalterna. Tornou-se necessário demonstrar que não são propriamente as características sexuais, mas a forma como estas são socialmente representadas ou valorizadas, que vai constituir, efetivamente, o que é masculino ou feminino em dada sociedade e em dado momento histórico. Portanto, para se compreender o lugar e as relações entre homens e mulheres em determinado contexto social, importa observar não exatamente seus sexos biológicos, mas tudo o que socialmente se constrói sobre os sexos. O debate passou, então, a se constituir através de uma nova linguagem, na qual gênero tornou-se um conceito-chave19.

Gênero como categoria teórica veio, portanto, colocar em cena uma parte da realidade social até então sem visibilidade: as experiências das mulheres no espaço privado da vida social. Assim, emergiram, num primeiro momento, estudos e denúncias sobre questões cotidianas da vida das mulheres que não eram problematizadas, ou eram interpretadas, com a ajuda das ciências, como pertencendo à esfera da natureza – biológica, genética ou psicológica – feminina. Fenômenos tais como violência doméstica, violência sexual, mulheres espancadas, assédio sexual, estupro e outros, até então invisíveis e circunscritos à esfera privada, foram nomeados, desnaturalizados e declarados como inaceitáveis. Ainda no espaço privado, o que uma vez pareceu necessário e “natural”, tornou-se injustificável: a mulher como objeto sexual passivo, esposa obediente, mãe dedicada e invisível à sociedade20. Portanto, a exposição das relações de poder e controle social, nas formas de opressão e exploração das mulheres, aproximou-as e fortaleceu-as em suas lutas emancipatórias.

A elaboração teórica sobre o gênero esteve, portanto, dialeticamente articulada à práxis social e política de mulheres organizadas. A experiência de opressão, coletivamente compartilhada em grupos de reflexão, gerou, num processo contínuo e crescente, uma consciência crítica sobre a sociedade opressora e a necessidade de teorização que identificasse as causas da opressão feminina, fornecendo subsídios para as transformações sociais pretendidas20.

Sendo, portanto, no seio das relações sociais que se constroem os gêneros, um ponto a se refletir e considerar é sua interseção com as dimensões de classe social e raça/etnia. É necessário se aprofundar a compreensão sobre as formas e processos em que se concretizam as inter-relações dialéticas entre as várias identidades constituintes dos sujeitos sociais, definindo-se, assim, de que mulheres estamos falando quando se trata, por exemplo, de trabalho, concentração de renda e raça/etnia, em um processo de “transversalização” entre as várias dimensões sociais10, 20-24.

A inter-relação gênero e classe social fica bem visível no capitalismo, em que as mulheres são, simbolicamente, um novo “Atlas”, o deus grego que carrega o mundo em suas costas: cuidam dos filhos, são cuidadoras de outros membros da família e, cada vez mais, têm que gerar renda para garantir o sustento familiar, trabalhando geralmente de forma super-explorada nas indústrias ou na agricultura, inclusive na fumageira25.

Ainda analisando-se a intersecção gênero e classe social, verifica-se o quanto o processo de globalização neoliberal vem aprofundando as desigualdades sociais em todo o mundo, alimentando-se não só das desigualdades entre mulheres e homens, mas também entre as diversas raças e etnias, potencializando a exploração26. A interseção entre essas três dimensões tem colocado, no Brasil, as mulheres negras em situação perversa: no mercado de trabalho, vivem a situação de maior precariedade salarial; diante da mesma origem social, apresentam menor escolarização; e suas famílias encontram-se em situações mais desfavoráveis, dentre outros fatores27.

Vale ressaltar que a categoria classe social, ao lado do recorte de gênero e racial/étnico – ser mulher, pobre e negra –, determina um prognóstico desfavorável em quase todas as enfermidades, iniciando-se pela grande dificuldade de acesso aos serviços públicos de saúde. Assim, pode-se concluir que as principais doenças que acometem a população negra estão sendo potencializadas em sua interação com o tabagismo28.

A seguir, numa perspectiva sociológica, apresentaremos uma interpretação do tabagismo relacionando-o às várias patologias que expressam historicamente as insatisfações e resistências das mulheres às situações de opressão e exploração que vivenciaram, e ainda vivenciam, em uma sociedade que reproduz, de várias formas, as diversas expressões de desigualdades.

A patologia como protesto de uma feminilidade aprisonada

A exposição das relações de poder e controle so­cial, nas formas de opressão e exploração das mulheres, tornou visíveis as variadas formas, nem sempre explícitas, através das quais as mulheres “protestam” e, assim, resistem.

Para melhor se entender a dinâmica das relações sociais de gênero, postula-se aqui que as estratégias de resistência e acomodação traduzem uma resposta à opressão e às contradições a que os oprimidos e explorados estão expostos, sendo rara a aceitação ou rejeição completa de atitudes e comportamentos “apropriados” aos papéis sexuais e/ou a outras situações de opressão e exploração. Com isso, denuncia-se que a “passividade feminina” é um mito e que as mulheres, mesmo que de formas não explícitas ou não-verbais, resistem à opressão29.

Desta forma, o feminismo evidenciou que o desenvolvimento das identidades de gênero, além de envolver recepção passiva de valores e atitudes conservadores impostos pela sociedade, abarca, também, uma resposta ativa das mulheres às contradições sociais na tentativa de solucionarem as mensagens antagônicas que recebem.

Assim, certos tipos de patologias podem ser interpretadas enquanto exemplos de resistência – “ao avesso” – à ideologia da feminilidade, pois operam justamente através da reprodução estereotipada de certas características típicas da feminilidade. Através dessas “patologias de protesto”, as mulheres expressam suas insatisfações e o incoformismo com as situações opressivas que vivenciam29.

A “patologia”, nestes casos, pode ser compreendida como uma forma de protesto, ainda que inconsciente ou sem recorrer à fala ou à política. A sintomatologia aponta para o significado simbólico e político na construção histórica do gênero: o corpo, marcado pela ideologia da feminilidade típica e normativa de cada época, exprime aquilo que as condições sociais tornam impossível verbalizar. Nessas patologias, as mulheres usam a linguagem da feminilidade para contestar os dilemas do seu próprio mundo, em épocas históricas em que ocorrem mudanças de gênero significativas30.

É importante destacar que, ao contrário dos homens, as mulheres costumam expressar resistência de forma discreta, privada e aquiescente, não aceitando nem rejeitando completamente a feminilidade hegemônica. Adaptam-na a seus próprios objetivos e, assim, resistem sutilmente. Mesmo sob a forma de recusa ou silêncio, acomodação e resistência são processos ativos, de ação defensiva, visando obter uma certa proteção dentro de estruturas sociais opressoras, porém, ainda sem a intenção consciente de transformá-las. Deste modo, as mulheres podem ficar presas às contradições que deveriam superar. Para que haja, portanto, uma verdadeira transformação social, almejando uma sociedade mais justa para todos e todas, é fundamental que as mulheres, assim como todos os explorados e oprimidos em geral, superem a resistência individual, politicamente enfraquecida, rumo a uma ação coletiva e política, tal como a empreendida pelos movimentos sociais, incluso o feminismo29.

A seguir, apresentaremos algumas “patologias de protesto” historicamente situadas, relacionando-as ao consumo de tabaco pelas mulheres.

Século XIX: a histeria como sintoma da repressão sexual

O movimento feminista começou a despontar no período da Revolução Francesa quando, com o advento do capitalismo e das profundas transformações econômicas, sociais e políticas, deu-se o deslocamento do trabalho produtivo do espaço doméstico-familiar para o espaço público, fazendo com que as mulheres saíssem para o mercado de trabalho, criando-se, assim, condições para a participação feminina na sociedade. O rompimento do confinamento das mulheres no lar, através do seu ingresso na força produtiva, lhes permitiu organizarem-se para lutar por seus direitos em diversos países. No entanto, as reivindicações femininas por igualdade nem sempre foram aceitas, contabilizando-se, do final do século XIX até o início do século XX, avanços e retrocessos31.

Neste período, fumar ainda era um ato eminentemente masculino, embora, nesta época, as mulheres já se articulassem, no ocidente, no movimento sufragista pelo direito ao voto, movimento este considerado a “primeira onda” do feminismo19.

O transtorno prevalente no grupo feminino, à época, era a histeria, expressão somática da severa repressão sexual característica da era vitoriana30. Os sintomas denunciavam os conflitos relacionados à sexualidade através da intensificação dos traços estereotipadamente femininos, tais como delicadeza, passividade sexual, instabilidade e labilidade emocional, temperamento “caprichoso” e “impressionável”, característicos da ideologia da feminilidade da época. Assim, através da “falta de voz”, afirmava-se a condição asfixiante da voz feminina, destinada a um silêncio “obediente”30.

A condição da “mulher silenciosa”, que não se queixa, é um ideal da cultura patriarcal, mas também pode ser vista como uma linguagem de protes­t­o, assim como a imposição do uso de espartilhos, simultaneamente sinal de repressão e resistência, já que, sob o véu das vestimentas, desnudava-se, através das curvas, a sensualidade das mulheres.

Na propaganda estampada nos maços de cigarro, a imagem da mulher já era usada como “inspiração” para as vendas, explorando a figura de mulheres “coquetes” e sensuais, com o intuito de atrair os homens.

No Brasil, desde o início do século XX, mudanças na vida privada foram se processando lentamente no universo feminino. As revistas femininas, normatizadoras da feminilidade hegemônica, definiam os novos “deveres” das mulheres como esposas, mães e donas de casa. Através da moda, conclamavam-nas a serem mais independentes; as saias se encurtaram e, neste momento, algumas mulheres já fumavam. Um novo ideal de mulher ia sendo construído: as “mulheres modernas” eram estimuladas ao desempenho de seus “deveres” familiares mas sem que se permitisse a reivindicação de seus “direitos” por igualdade, inclusive sala­rial32. Os movimentos feministas, que surgiram no Brasil entre 1918 e 1937, esbarraram na enorme distância entre as classes sociais e as normas culturais brasileiras. Assim, o sufrágio feminino, obtido em 1932, pouco significou para a maioria das brasileiras, analfabetas e pobres, assim como não modificou suas condições de vida. Os poucos ganhos foram alcançados pelas mulheres urbanas, brancas, de classes média e alta32.

Século XX: a agorafobia como sintoma do “pânico” do mundo público

Durante a Segunda Guerra Mundial, as mulheres foram convocadas a se inserirem no mercado de trabalho, ocupando o lugar dos homens enviados ao fronte. Assim, deixaram o mundo da casa, do cuidado e da afetividade para enfrentar um mundo público competitivo, racional e hostil.

Podendo ser visto como uma forma de contestar as condições ambíguas e contraditórias do mundo feminino, o protesto sob forma de patologia se “atualiza” no transtorno da agorafobia. Típico da segunda metade do século XX, esta fobia do “mundo da rua” passa a denunciar uma questão social mais ampla vivida pelas mulheres, expondo uma nova contradição de gênero: a preservação dos ideais femininos da domesticidade em confronto com as exigências do mundo público, masculino, do trabalho remunerado.

A pessoa agorafóbica, confinada à casa, vive literalmente essa construção da feminilidade. Não é por acaso que, a partir deste momento, um maior número de mulheres passa a beber e fumar30, configurando a segunda expansão do tabagismo no mundo2. No mesmo sentido, o alcoolismo feminino, uma dependência solitária e oculta na domesticidade, também pode ser identificado como uma forma extrema de “resistência na acomodação” ao papel feminino tradicional29, 33.

É na década de sessenta que o movimento feminista ressurge com intensidade, num contexto de efervescência social e política mais amplo, influenciado pela onda revolucionária socialista e junto a outros movimentos estudantis e de contestação de costumes31, configurando a “segunda onda” do feminismo19. É a partir desta década, com a chamada conquista da “liberdade sexual”, que as mulheres passam a assumir sozinhas a responsabilidade pela anticoncepção, o que, atrelado à difusão do uso do cigarro, se transforma numa “bomba relógio” para sua saúde.

As últimas décadas do século XX: as desordens alimentares enquanto “recusa da vida”

A patologia como protesto mais uma vez se atualiza e se faz agora presente nas desordens alimentares que, em grande escala, são características da cultura dos anos oitenta e noventa, em uma sociedade fortemente marcada pelo consumismo e pela mercantilização de todos os aspectos da vida, incluindo o corpo e a subjetividade. A anorexia e a bulimia surgem, inicialmente, entre mulheres brancas, de classes média e média-alta, sendo o corpo anoréxico uma caricatura do ideal contemporâneo de esbelteza exagerada para as mulheres29,30. A cultura hegemônica segue a apregoar concepções domésticas de feminilidade, a divisão sexual do trabalho, a mulher como nutridora física e emocional da família e da comunidade, paralelamente à mulher trabalhadora, competente e competitiva. Qualquer apetite passa a ser considerado excessivo e a recusa à comida, concomitante ao afinamento do corpo, denuncia uma sociedade que despreza e suprime, simbólica e concretamente, a fome feminina, reprimindo as necessidades corporais e exigindo trabalho constante e incansável de modelação de corpos cada vez mais esquálidos. O simbolismo corporal também é congruente com as associações culturais dominantes. Um corpo feminino curvilíneo é associado culturalmente com incompetência, assim como à vulnerabilidade social e sexual. Portanto, a mulher despreza as partes do corpo que a caracterizam como fêmea e, à medida que perde as curvas femininas, assemelhando-se a um corpo masculino, considera-se poderosa e invulnerável30.

O início das desordens alimentares emerge das dietas, buscadas obsessivamente pelas mulheres. Num país onde o culto à beleza e a exposição do corpo – fomentados pela mídia – estão sempre presentes, elas podem gerar estresse psicológico e exacerbar preocupações com o peso, o que tende a elevar a escala dos métodos de controle de peso, como, por exemplo, o fumar. Os corpos femininos enxutos, com roupas mais próximas à masculina, que se arrastam para as academias de ginástica e resistem às fomes – corporais e simbólicas – oferecem a ilusão de cumprir, através do corpo e por um ideal de esbelteza, as exigências contraditórias da ideologia da feminilidade contemporânea30.

No contexto cultural atual, com a disseminação da mídia televisiva, as imagens visuais padronizadas passam a transmitir as novas normas de feminilidade: regras sobre o que vestir, comer, beber ou fumar, regras para o comportamento so­cial e a configuração ideal do corpo. Neste caso, corpos femininos enxutos e delgados oferecem a ilusão de cumprir as exigências contraditórias da ideologia da feminilidade contemporânea: às mulheres jovens são ensinadas as “virtudes” femininas, mas, quando ingressam em áreas profissionais, precisam incorporar valores masculinos tais como competitividade, objetividade, disciplina emocional e auto-domínio30.

A mídia, ao mesmo tempo que anuncia incessantemente as delícias da culinária, preconiza o controle obsessivo do apetite feminino. Na realidade, é a fome feminina – de independência e satisfação sexual – que deve ser contida e o espaço público que se permite às mulheres, limitado. Essas normas estão “gravadas” no corpo da anoréxica.

O tempo gasto com esta feminilidade mercantilizada torna-se, então, uma corrida constante atrás de um padrão estético sempre em mutação, trazendo o permanente desconforto de nunca se ser suficientemente boa e/ou bela e, enquanto centradas na automodificação, as mulheres afastam-se da participação social e política. Uma outra questão a se destacar é que, quando as mulheres não correspondem aos padrões sociais dominantes de beleza, são rigorosamente julgadas e auto-julgadas. O grupo etário mais insatisfeito com sua aparência são as adolescentes entre 12 e 19 anos30. Não coincidentemente, é neste grupo que o cigarro é mais usado como uma forma de controle de peso.

A enorme expansão da mídia televisiva e impressa permite transmitir cotidianamente as normas de feminilidade através de imagens padronizadas, que passam a ditar as regras de comportamento e o ideal estético do corpo30. A propaganda explora uma “nova mulher” independente, que controla a fecundidade, trabalha fora e tem sua própria renda, ocultando, desta forma, a exploração do trabalho produtivo e reprodutivo feminino.

Porém, as mulheres estão vivendo processos sociais ideologicamente significados apenas como conquistas: independência, trabalho, liberdade sexual, sendo que a propaganda do cigarro explora este filão. No entanto, a feminização do trabalho nem sempre traz independência para a maioria das mulheres e, na verdade, encobre a exploração que todos e todas estão vivenciando em decorrência das políticas macroeconômicas que privilegiam o capital financeiro e o lucro em detrimento das reais necessidades da maioria da população que vive do trabalho10. Além disso, a “liberdade sexual” alcança­da pelas mulheres gerou um ônus pouco lembrado: o de que as mulheres foram exclusivamamente responsabilizadas pela prática contraceptiva34.

Fica claro, então, que, em um contexto de grandes diferenças sociais, como no Brasil, as conse­quên­cias da globalização neoliberal sobre as mulheres, como resultado da combinação de determinantes de classe, gênero e raça/etnia, assume proporções alarmantes, com sérias repercussões para sua saúde35, sendo o tabagismo mais um ônus.

No panorama nacional, a crise econômica brasileira dos anos oitenta levou a uma entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho, ocorrendo, paralelamente, uma queda brusca da taxa de fecundidade em todas as classes sociais, faixas etárias e regiões. Com o aumento do desemprego e, consequentemente, do número de “mulheres chefes de família”, responsáveis pela provisão da família, porém sem contar com uma redivisão sexual do trabalho, surgem novas contradições. Quando as mulheres passam a assumir a dupla jornada de trabalho, precisam conciliar seu papel reprodutivo (esfera privada) e de responsabilidade pelo lar com o seu novo papel produtivo (esfera pública), de sustento econômico da família, antes designado ao homem, o provedor familiar. Neste período, visto como uma “transição de gênero”, a reprodução torna-se dependente da participação da mulher no mercado de trabalho, e sua remuneração, garantia de sobrevivência da unidade familiar. Assim, cresce o número de famílias chefiadas por mulheres e alastra-se o fenômeno da “feminização da pobreza”, decorrências das profundas conexões entre desigualdades de classe, de gênero e raciais/étnicas10,35.

As mulheres mais pobres tiveram, então, que encontrar estratégias de sobrevivência para enfrentar situações como a necessidade de trabalhar e cuidar dos filhos menores sem contar com creches do governo ou outras políticas públicas, o que vem dificultando a escolarização dos filhos e, através disso, almejar para eles um futuro melhor. Assim, o atravessamento de classe social na questão feminina revela sua face contraditória: as conquistas obtidas pelas mulheres estão sendo usufruídas pelas mulheres das classes médias e altas. Para as mulheres da classe trabalhadora, não tem havido muito que comemorar10,35.

A transição para o século XXI: a era das drogas lícitas e ilícitas

As duas maiores dependências humanas – álcool e tabaco – encontram-se, nesta virada de milênio, consolidadas em ambos os sexos. Concomitantemente, aprofunda-se o uso abusivo de outras drogas, as ilícitas. Entre as mulheres, expande-se também o abuso de medicamentos psicotrópicos, parti­cularmente os “calmantes”, drogas lícitas e prescritas.

O uso abusivo de drogas também pode ser visto como uma tentativa, ainda que malsucedida, de conciliar as contradições de gênero na contemporaneidade. Neste sentido, o alcoolismo feminino pode ser interpretado como uma forma extrema de “resistência na acomodação” ao papel feminino tradicional29,33. As drogas, lícitas e ilícitas, são geralmente usadas por seus efeitos de prazer, para melhorar a performance social, enfrentar situações difíceis e, especialmente, como auto-medicação para conter a ansiedade gerada por um certo mal estar difuso e inominável. Analogamente, podemos supor que o cigarro também desempenha, concreta e simbolicamente, um importante papel no alívio da ansiedade e angústia decorrente das contradições de gênero que as mulheres estão vivendo. Apesar de se explicar o fato do tabagismo funcionar como “automedicação” para os sentimentos de tristeza ou humor negativo – já que a nicotina ajuda a manter a homeostase interna, interferindo nos sistemas neuroquímicos/circuitos neurais, associados à regulação de humor15 –, é possível que a sobrecarga de responsabilidades familiares e de trabalho remunerado que as mulheres estão acumulando influenciem a maior adesão ao cigarro, não só como alívio de tensões mas, muitas vezes, também como uma das poucas fontes de prazer.

Como já apontado, a ansiedade e a depressão são mais frequentes em mulheres. A “transição de gênero”36 vivenciada pela maioria das mulheres permite associar essas patologias à sobrecarga de trabalho sobreposta às responsabilidades com a casa e os filhos, muitas vezes sem contar com ajuda do companheiro na divisão do trabalho doméstico, na provisão econômica da família e, para a maioria das brasileiras, sem o apoio do Estado e das políticas públicas, que poderiam minimizar essas dificuldades.

É importante lembrar que, atualmente, a ansiedade e a depressão são apontadas como fatores que dificultam a cessação do fumo em mulheres e, muitas vezes, são preditores de recaída, sendo que, na depressão, a probabilidade de cessação é reduzida2. Quanto à relação tabagismo e ansiedade, as evidências são menos consistentes e variam segundo o distúrbio de ansiedade: as maiores prevalências de tabagismo encontram-se em pessoas com diagnóstico de agorafobia, transtorno de pânico e fobia simples15. Cabe lembrar que uma depressão aparente pode mascarar um quadro de alcoolismo, já que a mulher bebe de forma solitária e reclusa33. Ao investigarmos o tabagismo em mulheres, é necessário estar atento, portanto, ao possível abuso de álcool, assim como à queixa de depressão.

Percebe-se hoje que a modernização não perturbou a estrutura de desigualdades, particularmente as de gênero: às mulheres foi permitido exercer um novo papel, sem, no entanto, terem sido alertadas de que continuariam a ser exploradas. Essa sobrecarga tem tido sérias repercussões sobre a sua saúde, sendo a maioria dos riscos potencializados pelo uso do cigarro, droga de maior aceitação social. Estamos supondo, portanto, que as tensões, conflitos e sobrecargas que as mulheres estão vivenciando estão intimamente imbricados no “fumar feminino”.

Considerações finais

O desafio contemporâneo na área da saúde aponta para caminhos em que os avanços do conhecimento e as soluções técnicas e assistenciais não devem mais se encontrar em posição antagônica à compreensão mais profunda da dimensão humana, mas numa relação dialética que incorpore corpo e mente, razão e emoção, objetividade e subjetividade, concretude e simbolismo como parte da construção deste conhecimento. Para que isto ocorra, são necessários conhecimentos distintos e integrados que nos permitam compreender a realidade complexa do processo saúde-doença37, 38. Condizente com esta perspectiva, procuramos, portanto, neste ensaio, associar o problema do tabagismo a questões geralmente não consideradas significativas pelo modelo biomédico vigente.

Como aqui postulou-se, o fumar feminino, abordado em toda sua complexidade, demanda um paradigma de compreensão que supere a visão fragmentada do ser humano e atenda, de forma integral, às necessidades mais amplas de vida e saúde das mulheres.

Neste sentido, procurou-se evidenciar o quanto a adoção do referencial de gênero, transversalizado na classe social e na raça/etnia, é apropriado para se compreender um problema de saúde complexo, multifacetado e contraditório, o que pode conferir à análise maior alcance, integralidade e contextualização39. Assim, a partir do entendimento das questões de gênero envolvidas no fumar feminino, faz-se necessário pesquisar novas estratégias de prevenção e de abordagem terapêutica direcionadas às mulheres, levando-se em conta o grande contingente de mulheres jovens que estão em risco de começar a fumar, além das que já estão fumando.

Espera-se, com este ensaio, ter apontado questões relevantes que possam contribuir para a melhoria da assistência à saúde da população feminina, assim como para sensibilizar os profissionais de saúde, gestores e formuladores de políticas públicas para as questões de gênero que perpassam o tabagismo feminino.

E, se a condição feminina não é “destino biológico”, é passível, então, através da ação política, de transformação, o que exige nosso engajamento.

Colaboradores

MTT Borges participou da revisão bibliográfica, da concepção e elaboração do artigo; RH Simões-Barbosa participou da concepção e redação do artigo.

Artigo apresentado em 10/06/2006

Artigo aprovado em 10/07/2007

  • 1. Achutti A, Menezes AMB. Epidemiologia do tabagismo. In: Achutti A, organizador. Guia nacional de prevençăo e tratamento do tabagismo Rio de Janeiro: Vitrô Comunicaçăo & Editora; 2001. p. 9-24.
  • 2. Instituto Nacional de Câncer (Inca). Abordagem e tratamento do fumante - consenso 2001 Rio de Janeiro: Inca; 2001.
  • 3. Rosemberg J. Nicotina: droga universal. Rio de Janeiro: INCA, 2004. [acessado 2005 ago 24]. Disponível em: http://www.inca.gov.br/tabagismo/publicaçoes/nicotina.pdf
  • 4. Costa AM, Aquino EL. Saúde da mulher na reforma sanitária brasileira. In: Costa AM, Merchán-Hamann E, Tajer D, organizadores. Saúde e equidade de gęnero: um desafio para as políticas públicas Brasília: Abrasco/Alames/ Unb; 2000.
  • 5. Carvalho JT. O tabagismo visto sob vários aspectos Rio de Janeiro: Medsi; 2000.
  • 6. Center for Disease Control (CDC). Cigarette Smoking-Related Mortality. [acessado 2001 jun]. Disponível em: http://www.cdc.gov/tobacco/research_data/health_ consequences/mortali.htm
  • 7
    Instituto Nacional de Câncer (Inca). Inquérito domiciliar sobre comportamento de risco e morbidade referida de doenças e agravos não transmissíveis: Brasil, 15 capitais e Distrito Federal, 2002-2003 Rio de Janeiro: Inca; 2004.
  • 8. Boltanski L. As classes sociais e o corpo Rio de Janeiro: Ediçőes Graal; 1989.
  • 9. Jha P, Chaloupka FJ. A epidemia do tabagismo: os governos e os aspectos econômicos do controle do tabaco Washington, D.C.: Banco Mundial; 2000.
  • 10. Giffin K. Pobreza, desigualdade e eqüidade em saúde: consideraçőes a partir de uma perspectiva de gęnero transversal. Cad. Saude Publica 2002;18 (Supl.):103-112.
  • 11. Anderson J. La feminizacion de la pobreza en America Latina Peru: Red Entre Mujeres, Diálogo Sur-Norte, 1994.
  • 12. Edwards N. Pre and postnatal smoking: a review of the literature Ottawa: University of Ottawa; 1996. [Community Health Research Unit Publication no. M96-2]
  • 13. Nichter M, Nichter M, Thompson PJ, Shiffman S, Moscicki AB. Using qualitative research to inform survey development on nicotine dependence among adolescents. Drug and Alcohol Dependence 2002; 68:S41-S56.
  • 14. De la Rosa L, Otero M. Tabaquismo en la mujer: consideraciones especiales. Transtornos Adictivos 2004; 6(20):113-124.
  • 15. Rondina RC, Gorayeb R, Bothelho C. Relaçăo entre tabagismo e transtornos psiquiátricos. Rev. psiquiatr. clín [periódico na Internet] 2003; [acessado 2005 Abr 29]; 30(6):[cerca de 8 p]. Disponível em: http://www. scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-608 32003000600005&lng=pt&nrm=iso
  • 16. Chollat-Traquet CM. Porqué las mujeres empiezan a fumar y siguen haciéndolo En: Mujer y Tabaco. Geneva: WHO; 1992. p. 57-73.
  • 17
    Center for Disease Control (CDC). Surgeon General Report’s: Woman and Tobacco. Marketing Cigarettes to Women – Fact Sheet 2001 Disponível em: http://www. cdc.gov/tobacco/sgr/sgr_forwomen/factsheet_ marketing.htm#HistoryofAdvertisingStrategies
  • 18. Bianco E. Mujeres, industria tabacalera y marketing. Revista Mujer y Salud 2004; 1: 3-7.
  • 19. Louro GL. Gęnero, sexualidade e educaçăo Petrópolis: Vozes; 1997.
  • 20. Simőes-Barbosa RH. Mulheres, reproduçăo e aids: as tramas da ideologia na assistęncia ŕ saúde de gestantes HIV+ [tese]. Rio de Janeiro (RJ): Escola Nacional de Saúde Pública/Fundaçăo Oswaldo Cruz; 2001.
  • 21. Saffioti HIB. Rearticulando gęnero e classe social. In: Costa AO, Bruschini C, organizadores. Uma questăo de gęnero Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos;Săo Paulo: Fundaçăo Carlos Chagas; 1992.
  • 22. Kergoat D. Relaçőes sociais de sexo e divisăo sexual do trabalho. In: Lopes MJ, Meyer DE, Waldow VR, organizadores. Gęnero e saúde Porto Alegre: Artes Médicas; 1996.
  • 23. Brito JC. Enfoque de gęnero e relaçăo saúde/trabalho no contexto de reestruturaçăo produtiva e precarizaçăo do trabalho. Cad. Saude Publica [periódico na Internet] 2000; 16(1):[cerca de 10 p]. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid =S0102-311X2000000100020&lng=pt&nrm=iso
  • 24. Castro MG. Marxismo, feminismos e feminismo marxista mais que um gęnero em tempos neoliberais. Crítica Marxista 2000; 11:98-108.
  • 25. Berman R. Do dualismo de Aristóteles ŕ dialética materialista: a transformaçăo feminista da cięncia e da sociedade. In: Jaggar A, Bordo S, organizadores. Gęnero, corpo, conhecimento Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; 1997.
  • 26. Silveira ML. Políticas públicas de gęnero: impasses e desafios para fortalecer a agenda política na perspectiva da igualdade. In. Godinho T, Silveira ML, organizadores. Políticas públicas e igualdade de gęnero Săo Paulo: Coordenadoria Especial da Mulher; 2004. [Cadernos da Coordenadoria Especial da Mulher: 8]
  • 27. Bento MAS. Raça e gęnero no mercado de trabalho. In: Rocha MIB, organizador. Trabalho e gęnero: mudanças, permanęncias e desafios Săo Paulo: Editora 34; 2000.
  • 28. Oliveira F. O recorte racial / étnico e a saúde reprodutiva. In: Giffin K, Costa SH, organizadores. Questőes da saúde reprodutiva Rio de Janeiro: Fiocruz; 1999.
  • 29. Anyon J. Intersecçőes de gęnero e classe: acomodaçăo e resistęncia de mulheres e meninas ŕs ideologias de papéis sexuais. Cad. Pesqui. 1990; 73:13 -25.
  • 30. Bordo S. O corpo e a reproduçăo da feminilidade: uma apropriaçăo feminista de Foucault. In: Jaggar A, Bordo S, organizadores. Gęnero, corpo, conhecimento Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; 1997.
  • 31. Rangel O, Sorrentino S. Gęnero: conceito histórico. Princípios1994; 33:47-51.
  • 32. Besse SK. Modernizando a desigualdade: reestruturaçăo da ideologia de gęnero no Brasil, 1914 -1940 Săo Paulo: EDUSP; 1999.
  • 33. Cesar BAL. O beber feminino: a marca social do gęnero feminino no alcoolismo em mulheres [dissertaçăo]. Rio de Janeiro (RJ): Escola Nacional de Saúde Pública/Fundaçăo Oswaldo Cruz; 2004.
  • 34. Vieira EM. A medicalizaçăo do corpo feminino. In: Giffin K, Costa SH,organizadores.Questőes da saúde reprodutiva. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1999.
  • 35. Laurell AC. Globalización y Reforma del Estado. In: Costa AM, Merchán-Hamann E, Tajer D, organizadores. Saúde, equidade e gęnero: um desafio para as políticas públicas.Brasília: Editora Universidade de Brasília; 2000.
  • 36. Giffin K. Esfera da reproduçăo em uma visăo masculina: consideraçőes sobre a articulaçăo da produçăo e da reproduçăo, de classe e de gęnero. Physis 1994; 4(1):2340.
  • 37. Jaggar A. Amor e conhecimento: a emoçăo na epistemologia feminista. In: Jaggar A, Bordo S, organizadores. Gęnero, corpo, conhecimento Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; 1997.
  • 38. Giffin K. Estudos de gęnero e saúde coletiva: teoria e prática. Saúde em Debate 1995; 46:29-33.
  • 39. Xavier D, Ávila MB, Correa S. Questőes feministas para a ordem médica: o feminismo e o conceito de saúde integral. In: Labra ME, organizadora. Mulher, saúde e sociedade no Brasil Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: ABRASCO; 1989.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Out 2009
  • Data do Fascículo
    Ago 2009

Histórico

  • Recebido
    10 Jun 2006
  • Aceito
    10 Jul 2007
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cienciasaudecoletiva@fiocruz.br