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DEBATEDORES DISCUSSANTS

Humanização da assistência hospitalar e o cuidado como categoria reconstrutiva

Humanization of the hospital assistance and care as a re-constructive category

José Ricardo de C. M. Ayres

Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. jrcayres@usp.br

É com enorme satisfação que participo do debate sobre o artigo de Suely Deslandes. São diversas as razões dessa satisfação, mas, sem sombra de dúvida, a principal delas é a própria existência do debate. Com efeito, apesar de me considerar um otimista convicto, não tinha muitas esperanças de chegar a ver publicado num periódico acadêmico da maior credibilidade um artigo cuja temática central fosse a questão da humanização da assistência e, melhor ainda, que este trabalho tomasse como substrato de suas análises documentos oficiais, com reflexões e proposições do Ministério da Saúde sobre o assunto. Achava que isso seria uma conquista de gerações futuras, mas eis que estamos nós, a mesma geração da Reforma Sanitária (ou quase), discutindo humanização com a mesma dedicação, compromisso e entusiasmo com que vimos discutindo a questão da universalidade e eqüidade na organização do sistema de saúde.

Mais que isso, é quase como viver uma utopia a observação de que, entre os diversos sentidos que, como Deslandes demonstra, estão na raiz das proposições de humanização, tenha sido destacada a dimensão da linguagem e da ação comunicativa na abordagem da questão, não apenas por parte da autora, mas dos próprios documentos do ministério. O que para muitos parecia ser um conjunto de preocupações abstratas, chamadas de filosóficas num sentido que beirava o pejorativo, mostra aqui claramente sua relevância e vitalidade práticas, apontando problemas e possibilidades de solução do maior interesse para a saúde da população brasileira.

A contribuição que a autora quer trazer ao debate é clara: aceitando a proposta de humanização da assistência, não obstante sua forte polifonia e polissemia, como um convite ética e tecnicamente irrecusável, aponta a necessidade de um adensamento filosófico e conceitual da proposta para que ela venha a se concretizar como prática. Para isso, trata de realizar um duplo movimento na concisa, aguda e bela reflexão que nos oferece. De um lado, busca mapear minimamente os diferentes sentidos que conformaram e permitem compreender o discurso da humanização incorporado e difundido pelo Ministério da Saúde. De outro lado, preocupa-se em identificar os caminhos pelos quais esse discurso pode abandonar o plano puramente doutrinário, ou ideológico, e se tornar efetivamente um elemento transformador da assistência à saúde.

Sua arquitetônica analítica e a direção à qual dirige suas posições particulares sobre o tema são bastante coerentes, pois a autora valoriza sobretudo a abertura à interação dialógica com o outro – paciente, população, demais profissionais da equipe – como forma de construção da humanização das práticas assistenciais. Nesse sentido, sua busca de elucidação dos sentidos do discurso da humanização responde a uma exigência fundamental, segundo Habermas, para qualquer diálogo que se pretenda livre e simétrico, qual seja, a transparência das suas pretensões de validez, especialmente as de validez normativa.

É no encontro desses dois pilares da argumentação da autora, sua hermenêutica do discurso da humanização e sua busca de caminhos práticos para a proposta, que reside, em meu entender, o aspecto mais rico do texto de Deslandes. É daí também, por outro lado, que partem suas maiores inquietações. Por trás da recusa da violência contra os usuários dos serviços, da má qualidade técnica da assistência, das precárias condições de trabalho dos profissionais de saúde e da pobreza da comunicação entre equipes de saúde e usuários e entre os diferentes membros das equipes, a autora aponta um denominador comum: a invisibilidade do outro e a necessidade de interagir efetivamente com esse outro. A questão mais desafiante para a autora diz respeito não apenas à efetividade dessa interação eu-outro, mas à sua legitimidade mesma: o que, para além das limitadas ouvidorias e da frágil e frequentemente paternalista "sensibilidade" dos profissionais para as "reais" necessidades dos usuários, poderá garantir a presença do outro e o respeito ao outro no cotidiano dos serviços de saúde?

Para responder à questão acima, Deslandes aponta duas direções programáticas, dois pontos críticos para a agenda de um adensamento conceitual das propostas de humanização. A primeira seria superar o que considera uma falsa dicotomia entre tecnologia e fator humano na compreensão da organização da assistência à saúde. Apoiada em Merhy, aponta as tecnologias leves, tais como definidas por esse autor, como um exemplo de que materialidade técnica e interação humana podem e devem ser pensadas de forma integrada. A segunda seria a de ver, para além da necessidade de desenvolvimento da capacidade comunicativa nos serviços, a urgência de aprimorar algo que a autora sintetiza como uma espécie de "capacidade expressiva" do usuário. Ou seja, defende que a comunicação que se busca aperfeiçoar ainda está excessivamente apoiada em exigências de validade interpretadas pelos profissionais e técnicos da saúde, e não pelos próprios interessados.

Aceitando a provocação de Deslandes, vou reagir, dentro das possibilidades deste limitado espaço de debate, às duas desafiantes questões destacadas acima. Para tanto, vou recorrer a uma construção conceitual que venho buscando desenvolver com toda uma comunidade de pensadores da Saúde Coletiva, que é a do Cuidado, como uma categoria reconstrutiva, isto é, como um constructo filosófico que busca refletir, de modo simultaneamente crítico e propositivo, acerca das possibilidades de reorganização das práticas de saúde, orientada pelos valores éticos de uma emancipação solidária dos sujeitos em sua diversidade, singularidade e interdependência.

Um dos aspectos que tenho ressaltado quando sou levado a discutir a questão do Cuidado é a sabedoria prática, no sentido aristotélico ( phrònesis ), presente (ainda que potencialmente) em qualquer encontro terapêutico. Gadamer nos ensina que Aristóteles distinguiu analiticamente teckné, theoría e práxis, associando a esta última a phrònesis, justamente porque percebeu, no seu pathos classificador, que, embora relacionados entre si, havia qualquer coisa de não reprodutível e não universalizável em todo encontro intersubjetivo em que estivesse em questão a construção da Vida Boa. Esta, no seu duplo estatuto de condição primeira e razão última da existência humana, estaria sempre em ato, como um devir, como uma potência se atualizando no e pelo discernimento humano em cada encontro singular entre as almas em suas situações singulares. A universalidade das verdades e a perenidade dos artefatos expressa e cristaliza esse devir da Vida Boa, mas não pode substituir os juízos humanos que, a cada vez, devem saber reconhecer e atualizar suas potencialidades.

Ora, o encontro terapêutico será sempre o recurso a verdades e artefatos, mas também e fundamentalmente uma interação intersubjetiva visando à Vida Boa. Nesse sentido, entendo a preocupação de Deslandes em que não se dissocie verdades, artefatos e intersubjetividade no ato assistencial. Mas pela mesma razão defendo que, em certa medida, eles devam, sim, ser distinguidos, embora nunca isolados. Tal distinção será relevante na exata medida em que nos permita ver que a tarefa de aperfeiçoar o Cuidado não diz respeito apenas a melhorar a aplicação de verdades e a construção de objetos, mas exige também tratar que as verdades e artefatos que medeiam esses encontros intersubjetivos sejam passíveis de apropriação crítica, escolha circunstanciada e utilização livre por aqueles que buscam a assistência.

Nesse sentido, além de elevar a dignidade das tecnologias leves no arsenal de nossos conhecimentos e artefatos para a saúde, além de aperfeiçoar nossas já bastante valorizadas tecnologias duras, precisamos criar as condições para otimizar o exercício de nossa sabedoria prática nos espaços de assistência. Precisamos minimizar, seja na força das estruturas e normas institucionais, seja nas ideologias e práticas formadoras, os constrangimentos ilegítimos, e desnecessários, das racionalidades técnica e científica sobre nossa capacidade de elaborar e compartilhar juízos sobre o que somos, o que queremos e o que precisamos para sermos, todos, felizes.

Como se vê, a discussão da primeira questão já remete à segunda, referente à interação, à comunicação. Elaborar e compartilhar juízos sobre o que somos, queremos e precisamos é, como já apontado acima, o substrato fundamental de todo processo comunicativo. De fato, não apenas Habermas, mas outros filósofos contemporâneos, como Herbert Mead, Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer ou Paul Ricoeur, entre outros, têm demonstrado que a construção da identidade de cada um de nós e a comunicação entre nós são, na verdade, os dois lados de uma mesma moeda. Seremos tão mais individuados e legítimos quanto mais livremente nos comunicarmos, e a liberdade de nossa comunicação, por sua vez, está diretamente relacionada à nossa capacidade de dar legítima expressão às diversas identidades singulares em interação.

Por isso, mais uma vez, concordo e discordo de Deslandes quando sugere, ainda que sub-repticiamente, priorizar a "capacidade expressiva" sobre a "capacidade comunicativa" entre as tarefas reconstrutivas das práticas assistenciais. Concordo no que há de denúncia e recusa de uma concepção de comunicação abstrata e idealizada, estéril em sua quase ingênua suposição de que se trataria quase que exclusivamente de melhorar os meios de circulação de mensagens igualmente conhecidas e legitimadas entre os diversos interlocutores (população usuária e serviços). Discordo, porém, da separação que pode ser sugerida, mesmo que involuntariamente, entre "expressão e valorização das expectativas e demandas dos usuários-pacientes", com o reconhecimento de "sua autonomia e legitimidade simbólicas", e as mudanças culturais visando à construção de "maior capacidade comunicativa".

Se aceitamos a validade da filosofia da linguagem e da identidade na qual a reflexão de Deslandes está amplamente apoiada, então só se poderá alcançar autenticidade expressiva com efetividade comunicacional e vice-versa. Por isso, talvez seja mais apropriado polarizar a questão não em termos de comunicação versus expressão, mas transmissão versus compartilhamento, no modo de problematizar as insuficiências das interações intersubjetivas nos serviços de saúde. Com efeito, enquanto estivermos presos à idéia de comunicação na dimensão de uma estrita troca de informações entre sujeitos distintos e isolados entre si, teremos dificuldade de perceber e transformar o processo de mútuo engendramento da construção de identidades subjetivas no e pelo ato de se comunicar.

Bem, os aportes que busquei trazer aos dois aspectos comentados acima não resolvem a inquietação de base da autora: Haveria espaço para mudanças estruturais e para a implementação de novos conceitos e práticas, voltados para a humanização da assistência? A imponderabilidade e indeterminação do que seria efetivamente necessário para humanizar a assistência permanecem intocados.

Mas... não é assim mesmo que deve ser? Se a autora propõe, e eu estou de pleno acordo, que, no final das contas, humanizar é abrir-se ao outro e acolher solidária e legitimamente a diversidade, teria sentido alguma proposição de Cuidado que reivindicasse realizar plenamente o ideal de humanização? Postulá-lo seria negar a fina e criadora dialética entre identidade e interação e o caráter aberto e deveniente da sabedoria prática reclamados pelo Cuidado como categoria reconstrutiva. Abster-se de propor, por outro lado, seria negar o sentido ético da reconstrução que se busca.

Por isso, não vejo saída mais "humana" para a situação, Suely, que habitarmos produtivamente nossa inquietação, buscando sempre a (intangível) justa medida entre o propor como queremos ser e o julgar como podemos ser, a cada momento, do modo mais compartilhado, compartilhável e aberto à mudança de que formos capazes.

Dilemas do setor saúde diante de suas propostas humanistas

Dilemmas of the health field in front of their proposals humanists

Maria Cecília de Souza Minayo

Editora científica da revista Ciência e Saúde Coletiva. cecília@claves.fiocruz.br

O artigo de Suely "Análise do discurso oficial sobre humanização da assistência hospitalar", sobre o projeto de humanização dos serviços de saúde proposto pelo Ministério da Saúde, tem a virtude de se ater ao sentido intrínseco oferecido por seus formuladores. A autora faz uma análise do discurso sobre o tema e o resume em alguns pontos: a) a compreensão do ser humano como um ser de linguagem; b) a violência real e simbólica que existe na ausência da comunicação; c) a necessidade de articular qualidade técnica dos atendimentos aos usuários com a qualidade das relações; d) a importância de ampliar o processo comunicativo. A autora mostra, criticamente, que não basta o desejo da mudança, é preciso ter em conta a imbricação do processo de produção tanto da linguagem quanto dos meios e dos atos que tornam a assistência à saúde tão "desumana".

Minha contribuição à discussão do artigo de Suely se resume a dois pontos. Em primeiro lugar, ampliar, do ponto de vista filosófico, a noção de "humanização" ou de "humanismo". Em segundo lugar, propor algumas indagações sobre os dilemas do paradigma médico diante da proposta em pauta.

Quando se fala em humanização, é preciso, de início, questionar se alguma coisa feita pelo ser humano, pode receber o nome de desumana. Recentemente Henri Atlan (2002) escreveu um livro cujo título é praticamente sobre a mesma pergunta La science est-elle inhumaine? Essai sur la libre nécessité. E o autor, imediatamente define sua opinião: Só os seres humanos podem ser desumanos ou confrontados com a desumanidade (2002) lembrando que os animais, os vegetais e os minerais deveriam ser classificados como não-humanos. Para Atlan o problema do humanismo remete imediatamente às questões filosóficas do determinismo e da liberdade, temas comuns a todos os filósofos que tratam do assunto. É nesse sentido que incluo a seguinte contribuição.

O humanismo, como doutrina, centra-se nos interesses e valores humanos, sobrepondo-os aos valores religiosos e transcendentais. Historicamente, sobretudo, a Igreja católica sempre chamou para si a explicação da natureza humana e do papel do ser humano no mundo. O humanismo vem se contrapor a esse movimento, laicizando-no . É uma linha de pensamento que remonta ao Renascimento. Fundamenta-se nas abordagens da metafísica do ser, atingindo seu auge no século 16. Caracteriza-se por uma valorização do espírito humano e de uma atitude crescentemente individualista e questionadora que eclode nesse momento histórico. Apesar de seu sentido laico e de sua busca de diferenciação em relação ao domínio da teologia católica, essa corrente, que no século 20 vai estar presente no pensamento e na obra de vários autores, sempre terá como referência a filosofia cristã.

No século 20, o humanismo sinalizou, primeiro, uma crise do racionalismo. Este se impusera como concepção mecanicista ou logicista do Universo que dominou o pensamento ocidental durante muitos anos. A absolutização da razão que quase identificou o racional com real, perpassou toda a construção do conhecimento científico e as práticas nele fundamentadas. Foi o caso da medicina que, desde o início adotou os métodos de pesquisa e de atuação das ciências naturais e exatas nos diagnósticos e tratamentos, mesmo sendo um campo em que razão e emoção andam tão perto que não se sabe onde começa uma e termina outra.

As teorias e as práticas racionalistas acabaram sendo atingidas pelo que Husserl denominou "crise das ciências européias". A crise das ciências, entretanto, era apenas projeção de um mal-estar maior do pensamento e da civilização ocidental, movimento que o chamado "pós-modernismo" colocou em evidência. Com efeito, o império da razão, que a Revolução Francesa julgara institucionalizado, cedeu lugar a uma realidade histórica estigmatizada pela guerra no plano internacional, pela hipertrofia do poder estatal, pela radicalização do mundo no binômio desenvolvimento-subdesenvolvimento e pelo conseqüente ceticismo do ser humano diante dos valores tradicionais.

Durante o último século, o humanismo teve vários focos de debate, dentre eles o humanismo ou personalismo cristão, e o humanismo existencialista. No primeiro caso as referências podem ser sintetizadas nas obras de Jacques Maritain (1973). Em ambas o debate central se move entre determinismo e liberdade, vencendo a idéia de que a essência do ser humano é sua capacidade de se auto-determinar.

Os humanistas cristãos, cujas teorias passaram a expressar na revista Ésprit, a partir da França nos anos 30, tiveram como cenário de suas reflexões a crise econômica e a desorientação política e moral da Europa no período entre as duas guerras mundiais. Julgavam eles que o investimento na pessoa seria uma solução para os impasses de seu tempo. Esse tipo de humanismo tomou corpo, sobretudo nos discursos e nas intervenções que afirmavam a necessidade de aprimoramento do indivíduo diante dos males político-sociais. Na proposta dos principais pensadores cristãos evidenciava-se um conjunto de crenças: a) o ser humano é bom, é capaz de ser protagonista de uma história de realizações a favor da sociedade; b) as tendências massificadoras e de perda da sociabilidade podem ser revertidas pela intervenção social; c) é possível criar uma sociedade mais consciente, mais harmônica e mais feliz; d) por isso é importante favorecer o auto-conhecimento, a auto-estima e os mecanismos de reflexão e de interação.

No campo filosófico laico produziu-se um retorno às abordagens compreensivas, relativizando-se as mega-narrativas ideológicas e de base quantitativa. É preciso voltar ao sentimento da vida, dirá Dilthey. É preciso voltar às coisas mesmas, dirá Husserl, lembrando a necessidade de se dissolver a tradicional dualidade epistemológica sujeito-objeto na unidade vivencial da correlação fenomenológica entre consciência e mundo. Deste modo, esses pensadores sobrepuseram, aos esquemas objetivistas, o sujeito concreto em sua incontestável singularidade, historicamente engajado e comprometido com os problemas da vida, do mundo, de seu próprio projeto existencial e da construção de sua humanidade.

A descoberta do sentido da existência e o estudo de seu caráter contingente e irracional constituirão a dramática experiência filosófica que Sartre rotulará com o nome sugestivo de "existencialismo". Com esse termo, o autor expressou e enfatizou o compromisso histórico do humanismo com o mistério da vida, com a práxis e com a compreensão da contingência humana. Este tipo de humanismo, para todos os existencialistas, desde Kierkegard, Gabriel Marcel, Heidegger e Sartre, trouxe a marca inconfundível da crença na liberdade humana.

O humanismo laico foi objeto de muitas objeções por parte dos personalistas cristãos. Opondo-se às críticas que lhe foram feitas, Sartre o fundamenta, evidenciando que em seu pensamento está subentendida a crença: a) numa solidariedade universal dada pela universalidade da condição e do projeto humanos (ao se escolher como objeto de sua própria construção, o ser humano escolhe sua humanidade); b) de que o ser humano só se realiza na ação, num projeto vivido subjetivamente, mas cujos fins o superam e o transcendem; c) de que o ser humano, fundamentalmente, é responsável pelo que é e o seu ser é a síntese de todos os seus atos.

O humanismo existencialista de Sartre se desenvolve sobre as diretrizes teóricas de uma ontologia fenomenológica de uma "teologia atéia". Com Husserl, essa dualidade se dissolve na unidade de uma ontologia fenomenológica cujo objeto, o ser, se dá no fenômeno e o fenômeno, como única realidade existente, está lastreado de pensamento, de verdade e de intenção.

Temos de partir do "cogito" ou subjetividade, diz Sartre, por ser ele o único meio de atingirmos a verdade e salvar o ser humano de se tornar objeto (1980). Pelo "cogito", atingimo-nos a nós próprios e aos outros que se nos apresentam como condição de nossa existência, "como uma liberdade posta em face de nós mesmos" (1980). Descobrimos, assim, o mundo da intersubjetividade.

Mas o humanismo existencialista, na qualidade de filosofia da crise e por suas próprias origens, deve ser historicamente entendido, também, como um complexo de doutrinas eminentemente voltadas para a crítica ao racionalismo: enfatiza o sentido da construção do indivíduo concreto, como algo primordial, misterioso e irredutível. A existência é concebida como o lugar e o tempo da transformação do ser humano, de seu projeto e de seu próprio destino como um ato de liberdade que se constitui afirmando-se. O ser humano possuidor de liberdade e de subjetividade se move numa realidade aberta aos outros e ao mundo. Isso traz como conseqüência, a necessidade da dissolução do dualismo sujeito-objeto inerente ao racionalismo que fundamenta as teorias clássicas do conhecimento.

Bem, os termos do humanismo, seja em seus aspectos de personalismo cristão, seja de existencialismo laico, pontuam três pontos centrais para a humanização do setor saúde.

1) Primeiro, a centralidade do sujeito em intersubjetividade. Esse sujeito não é apenas o profissional de boa vontade, tratando com delicadeza seus pacientes. Não é apenas aceitar o alojamento conjunto para a mãe-bebê. Não é simplesmente criar um ambiente favorável numa consulta. É também. Mas, consiste, principalmente, no reconhecimento da humanidade do outro, de sua capacidade de pensar, de interagir, de ter lógica e se manifestar e de expressar intencionalidade. E mais ainda, na cumplicidade, universalidade e solidariedade desse outro em intersubjetividade, seja ele colega, paciente, doente ou familiares.

2) O segundo ponto que toda a filosofia humanista pontua é que o ser humano é uma síntese de seus atos. Em As classes sociais e o corpo (Boltanski, 1979) evidencia a situação freqüentemente vivida pela categoria médica, tensionada entre a idéia de missão humanista, lógica comercial e projeto de investigação. Cada vez mais, a lógica comercial e o cálculo dos custos-benefícios presidem sua práxis, dificultando ou diminuindo o sentido da solidariedade e da cumplicidade humanas vividas intersubjetivamente. De qualquer forma, o processo de humanização transcende os esquemas funcionalistas e mecanicistas que freqüentemente são traçados para "racionalizar" sua implantação. No sentido existencialista esse projeto só "é" se está em ação, envolvendo os vários sujeitos, nos quais se acredita e dos quais se leva em conta sua "verdade" em ação.

3) O terceiro é que, apesar de toda a crise da ciência racionalista, é preciso ter em conta que o modelo médico continua tecnicista e instrumental. A formação dos profissionais de saúde, em que pesem todos os esforços do projeto de integralidade e de humanização, continua fortemente marcado pela hegemonia do positivismo e das teorias mecanicistas que tratam o doente como um corpo e um corpo com o um dispositivo bioquímico e funcional. No mais profundo das práxis do setor persiste um menosprezo pelo enfermo como um ser portador de liberdade e de auto-determinação.

Esses nós que travam a humanização em seu mais profundo recôndito precisam ser problematizados para que, de fato, se mudem as crenças, os atos e os aparatos do setor, intersubjetivamente.

Referências bibliográficas

Atlan H 2002. La science est-elle inhumaine? Essai sur la libre nécessité. Éditions Bayard, Paris.

Boltanski L 1979. As classes sociais e o corpo. Editora Graal, Rio de Janeiro.

Maritain J 1973. A filosofia moral. Livraria Agir, São Paulo.

Sartre JP 1980. O existencialismo é um humanismo, pp. 9-28. In Os Pensadores. Vol. XLV. Abril Cultural, São Paulo.

Humanização da assistência hospitalar: o dia-a-dia da prática dos serviços

Humanization of hospital care: discussing service practices

Cristina Boaretto

Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro. cboarett@pcrj.rj.gov.br

Primeiramente gostaria de agradecer o convite da professora Suely Deslandes e da Revista Ciência & Saúde Coletiva para participar deste debate público sobre a humanização da assistência hospitalar. É, portanto, um privilégio a oportunidade desta participação. O artigo representa uma oportuna e significativa contribuição para a discussão contemporânea acerca do tema humanização na sua relação com as políticas de saúde. A autora analisa o discurso do Ministério da Saúde sobre a humanização da assistência a partir de leitura crítica de documentos oficiais, no caso, o Programa de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH), discutindo as principais idéias de humanização lá contidas.

Muitas seriam as possibilidades de abordagens do tema, no entanto, minha contribuição, tecendo algumas considerações, será orientada a partir da minha prática do trabalho institucional inserida na organização de ações e serviços públicos de saúde.

O termo humanização levanta polêmicas e resistências nas instituições de saúde sendo até mesmo negado pelos profissionais, visto que defender a humanização das práticas assistenciais significaria admitir que nós os humanos perdemos nossa humanidade. Como conceituar humanização? Que conteúdos e práticas podem ser considerados humanizados na prática médica? O que é assistência humanizada no dia-a-dia dos serviços? Que tipo de tratamento é identificado como humanizado? Como a clientela gostaria de ser atendida? Quais os aspectos relacionados à percepção da qualidade da atenção?

Concordamos com Deslandes quando afirma que o termo humanização tem contornos teóricos e operacionais pouco definidos e ainda não consensuais, estando sua abrangência e aplicabilidade pouco demarcadas. E ela nos indaga: considerando a organização e estrutura física das instituições de saúde da rede pública, a formação biomédica, as relações de trabalho e sua lógica de produção, haveria espaço para mudanças estruturais e para a implementação de novos conceitos e práticas, voltados para a humanização da assistência? Vamos tentar comentar alguns desses aspectos.

Os investimentos em saúde cresceram, os cardápios de ofertas de ações e serviços ampliaram-se sobremaneira, o processo democrático possibilitou maior visibilidade no rol de demandas e necessidades da população. O diálogo do setor saúde com outros setores da sociedade, conselhos de defesas e grupos sociais permitiu maior influência e participação da população na gestão das políticas públicas. No entanto, as dificuldades de acesso e de relação entre profissionais e clientela permanecem e são barreiras para a humanização da assistência.

Houard, médico e cientista social americano, refere em texto clássico que existe um paradoxo central no sistema de saúde: a prática da medicina é ao mesmo tempo um assunto intrinsecamente humano e crescentemente um processo desumanizado (Houard, 1975). Para o autor, os currículos médicos e os serviços de saúde tornaram-se cada vez mais e mais orientados para a tecnologia, e a atenção tornou-se menos e menos intrinsecamente humana.

Estudo realizado com parturientes em maternidades do SUS do Rio de Janeiro (Boaretto, 2003), que avaliou aspectos da humanização do atendimento, revelou o baixo nível de implementação dessas políticas. Informações sobre o processo do trabalho do parto foram recebidas por apenas 26% das mulheres; sobre exames por 15% e sobre uso de medicamentos por 22,3%. Menos de 30% das mulheres sabiam informar o nome do médico atendente. O contato precoce mãe-bebê ocorreu em 44% dos casos, o estímulo à amamentação ainda na sala de parto em 37% dos casos. Apenas 26% das mulheres tiveram a possibilidade da presença de um acompanhante de sua escolha. Na avaliação mais geral sobre tratamento recebido, embora 15% delas tivessem referido terem sido tratadas com indiferença e pouca atenção e 4,5% com agressividade e estupidez, para 80% o atendimento foi satisfatório e até mesmo carinhoso. Neste caso, devemos considerar a influência dos vieses de satisfação, tais quais ter sido atendida, ter conseguido ser internada, depositar baixa expectativa com o atendimento e obter um desenlace feliz do evento.

Sabemos que um dos aspectos mais relevantes na relação médico-paciente é a relação de classe, o médico adota um comportamento diferente conforme a classe social do paciente. No nosso meio não podemos perder de vista a enorme influência dos fatores relacionados à nossa extrema desigualdade social. Os médicos são da classe média, possuem certa segurança financeira, são na sua grande maioria brancos, detêm o saber científico e determinada visão de mundo. A clientela do sistema público é pobre, majoritariamente de cor negra ou parda, tem instabilidade de trabalho e renda, tem baixa escolaridade e é diferente da dita norma social. A distância social e cultural traz conseqüentemente uma distância na relação entre os médicos e a clientela. Nesta relação assimétrica estabelecida, e diante de rotinas médicas, a clientela encontra-se menos capacitada para fazer valer seus desejos, perde autonomia e tem dificuldade de negociar seu direito à informação e à participação. Os serviços por sua vez são organizados na perspectiva dos profissionais e da instituição, e não com base nas necessidades do cliente. Esta vulnerabilidade da clientela, com diferentes níveis de exclusão social, é acompanhada de uma vulnerabilidade institucional com relação às legislações, normas, rotinas e práticas.

Não há uma solução simples para o problema; ele é multidimensional e envolve questões do sistema, como o acesso; questões da qualidade técnica, como a capacitação de profissionais e do cuidado, como a sensibilização dos mesmos para posturas e comportamentos mais respeitosos e cordiais.

Sabemos que o sistema de saúde influencia e é influenciado por valores e atitudes da sociedade. Dessa forma ele também tem, potencialmente, a capacidade de provocar mudanças sociais na direção de valores mais humanos. Neste contexto, a democracia, a maior participação política da população, a ampliação dos direitos de cidadania podem fazer mais para criar um sistema de saúde mais humanizado e equânime do que, por exemplo, o aparelho formador, as escolas médicas.

No Brasil ainda é pequena a produção científica relacionada à discussão de políticas de intervenção considerando os aspectos da humanização. Também ainda não está no rol das prioridades da maioria dos gestores públicos a dimensão mais subjetiva da qualidade da atenção, como o conforto, o acolhimento e a satisfação dos usuários.

Nos últimos anos vem se consolidando um movimento de humanização da atenção na área da assistência obstétrica, tomando como base estudos de epidemiologia clínica. A situação específica da gestação e parto, eventos sociais e culturais, não relacionados diretamente com o adoecimento, torna mais gritante os comportamentos desumanizados evidenciados nesta assistência, pois trata-se de uma assistência à mulheres sadias basicamente, que vão dar à luz os seus bebês. Movimentos de mulheres, profissionais de saúde e sociedade civil vêm questionando as práticas de assistência ao parto consideradas intervencionistas e demasiadamente medicalizadas para um evento, muito mais social e cultural do que médico propriamente dito, que, portanto, estaria mais na ordem da promoção da saúde.

Documento do Ministério da Saúde sobre a assistência ao parto refere que existe a necessidade de modificações profundas na qualidade e humanização da assistência nas instituições. Um processo que inclui desde a adequação da estrutura física e equipamentos dos hospitais, até uma mudança de postura e atitude dos profissionais de saúde e da clientela (MS, 2001). Dessa forma, recomenda a adoção de um conjunto de medidas de ordem estrutural, de capacitação técnica, gerencial e financeira, e de atitude ética e humana do profissional envolvido com a atenção, de forma a propiciar às mulheres um parto humanizado sob a orientação do princípio da medicina baseada em evidências.

O reconhecimento dos direitos humanos na assistência ao parto, independentemente do uso do termo humanização, também tem sido expressado em vários importantes documentos (OMS, 1985; Enkin, 2000; MS, 2001). Essas publicações enfatizam princípios gerais sobre o direito das mulheres de receber cuidado adequado no pré-natal e parto, com o papel central em todos os aspectos da assistência, incluindo a participação no planejamento, desenvolvimento e avaliação do cuidado. Afirmam que fatores sociais, emocionais e psicológicos são decisivos no entendimento e na implementação deste cuidado. As publicações reforçam que devem ser valorizados no manejo do parto os aspectos da informação, da participação e autonomia da parturiente, buscando-se promover um acompanhamento tranqüilo, com intimidade e privacidade, com ênfase no suporte emocional tanto por parte da equipe de saúde quanto por parte do acompanhante de escolha da mulher.

Gostaríamos de reforçar que a interação que se estabelece na relação da clientela com a equipe de saúde tem grande influência na evolução de um tratamento e na satisfação com o mesmo. A equipe tem papel importante e deve saber lidar com as emoções, adquirir sensibilidade e capacidade de escuta, incorporando a dimensão subjetiva e social do paciente, tomando em conta sua percepção sobre a doença e sua experiência de vida, ajudando a reduzir medos e ansiedades e dando o suporte emocional necessário, um instrumento terapêutico valioso.

Acreditamos no caráter incremental das políticas de humanização. Algumas medidas são fundamentais, como a publicação de normas e portarias, que dão o suporte legal para que algumas práticas se concretizem. Outro aspecto importante é o investimento nas instituições de assistência, dotando-as de estruturas técnicas adequadas, criando ambientes mais acolhedores e propícios a uma assistência mais humanizada. A difusão de novos protocolos a todos os profissionais através de treinamentos de sensibilização e de capacitação é uma importante estratégia para o estabelecimento de uma nova cultura institucional, com ênfase à prestação de uma assistência menos autoritária e mais voltada para as necessidades da clientela. É necessário transformar as atuais práticas institucionais impessoais e discriminatórias, incorporando novos conceitos e atitudes, que valorizem os componentes culturais da clientela.

A disseminação mais ampla de informações sobre conteúdos e práticas de saúde para que a clientela possa ampliar suas possibilidades de escolha, com maior autonomia e participação nas decisões, é a meu ver um dos aspectos mais importantes a ser considerado. Somente com usuários mais exigentes, estabelecendo relações mais simétricas com os profissionais, poderão ocorrer avanços significativos na humanização da assistência.

A reforma do sistema de saúde está na agenda política e necessita envolver uma abordagem de saúde pública baseada na combinação de um modelo médico e social. No espaço institucional é preciso assegurar caminhos que viabilizem mudanças na gestão dos serviços de saúde, com programas mais bem desenhados e políticas mais bem executadas na direção da humanização da atenção e da inclusão social.

Estes são, a meu ver, cara Suely, alguns dos desafios a serem enfrentados no cotidiano exercício das práticas em saúde.

Referências bibliográficas

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Mudando os processos de subjetivação em prol da humanização da assistência

Changing the subjectivity process in order to improve the humanization of assistance

Rosana Onocko Campos

Departamento de Medicina Preventiva e Social da FCM/Unicamp. rosanaoc@mpc.com.br

Desejo agradecer à revista o privilégio de participar deste debate, que me é muito caro. Participei do PNHAH desde seu lançamento e publiquei recentemente um texto (Onocko Campos, 2003a) que foi parte dos seminários iniciais do PNHAH; portanto, a oportunidade de retomar essa discussão muito me agrada.

Ato seguido, preciso dar os parabéns à Suely pelo seu artigo, pela pertinência e correição de sua abordagem metodológica e por alguns dos pontos relevantes que ela destaca.

Suely identifica três eixos discursivos do texto oficial:

a) humanização como oposição à violência;

b) humanização como atendimento de qualidade articulando avanços tecnológicos e o bom relacionamento;

c) humanização como condições do trabalho do cuidador.

Concordando com que eles de fato existem como eixos temáticos, pretendo discutir os três no seu atravessamento por um quarto – não destacado pela autora, ausente no discurso oficial analisado? –, na minha opinião, fundamental para se pensar em processos de "humanização" da assistência. Esse quarto eixo transversal eu denominaria de "Humanização como transformação dos processos de subjetivação vigentes na produção de saúde".

Nosso primeiro empecilho na discussão está no termo "humanização"; o Dicionário Aurélio diz que humanizar significa entre outras coisas " tornar benévolo, afável" (Ferreira, 1999). Diríamos então que a violência não é humana? E, então, o que será que temos assistido na história recente do Ocidente, no último século, com suas guerras, massacres pela fome, terrorismo, etc.? Algum de nós – humanos – teria coragem de afirmar que isso deve ser atribuído aos nossos restos de "animalidade"? Tenho perguntado se alguém já viu seu gato com inveja da ração do gato do vizinho (Onocko Campos, 2003c). A raiva, a inveja, a agressão são comportamentos absolutamente humanos, e o são porque não somos – somente – seres racionais. Para entender algumas coisas não nos bastaria o cogito cartesiano. Como dizia Nietzsche (1886), somos humanos, "demasiado humanos", nunca seremos somente bons.

Suely nos diz que a prática dos maus tratos é "timidamente confirmada pela literatura", e que não é possível "afirmar o quanto essas ações são usuais ou corriqueiras". Sou obrigada a discordar. De Goffman a Illitch, passando por Foucault e tantos outros, houve, na história da produção escrita humana, farto material para se analisar essa violência. Basta uma visita rápida a qualquer pronto-socorro do país, e uma dose suficiente de indignação ético-política pelos rumos do SUS para se autorizar a reconhecê-la.

Sem timidez, afirmo, então, que há de fato essa violência, que deveríamos ser capazes de enfrentá-la, mas que para isso não nos bastará uma abordagem cartesiana. Por isso, o eixo proposto é o dos processos de subjetivação, pois essa violência não se exerce porque as pessoas "não sabem" (o que nos colocaria na confortável posição de informá-las ou educá-las e aí, sim, estaria tudo resolvido), ou porque "racionalmente não querem". As pessoas atuam essa violência porque não podem fazer outra coisa. A sociedade contemporânea, e nela as modernas organizações assistenciais da saúde obrigam-nos, o tempo todo, a recalcar nossas pulsões mais vitais. Como bem nos ensinou Freud (1930) no Mal-estar na civilização, "não se faz isso impunemente". Portanto, o reconhecimento desse eixo destacado pela autora nos ajuda a ficar atentos a essa questão da violência, mas a nossa problematização nos tira a ilusão de termos achado uma solução simples. E leva-nos ao segundo eixo destacado por Deslandes.

Humanização como atendimento de qualidade articulando avanços tecnológicos e o bom relacionamento. Gadamer nos diz: aquele que atua lida com coisas que nem sempre são como são, pois que são também diferentes [...] Seu saber deve orientar sempre seu fazer (1997). Para Gadamer o problema da aplicação está sempre, e desde o começo, já definido pelo objeto. Para a metodologia gadameriana o destaque do objeto já opera uma aplicação, pois o contexto da aplicação é o que, de certa forma, faz possível o destaque do objeto. Em nosso tema isso seria algo assim como: em preocupando-nos com o tema da humanização, é óbvio que deveríamos estar preocupados em achar saída para os problemas concretos da assistência nos hospitais. Para Gadamer (1997) há na ética aristotélica uma primeira e fundamental diferenciação entre o conhecimento ético e o conhecimento técnico. Na técnica, haveria sempre um saber prévio ao qual recorrer; na ética, no mundo da ação, não vale o saber, porém o "saber-se" em situação, buscando conselho consigo mesmo para, aí sim, acionar um saber prévio. Penso que não é casual que o tema da ética contraposta ao saber técnico apareça em Verdade e método depois do tema da aplicação, pois o problema da aplicação é sempre um problema ético; por mais que tentemos nunca conseguiremos reduzi-lo a um problema técnico.

Considero que uma grande contribuição de Merhy (1997) em relação ao trabalho vivo é chamar a atenção para o fato de que na vida real os processos tecnológicos não estão separados dos subjetivos. Na trilha desse autor, portanto, poderíamos radicalizar a proposta do quarto eixo e dizer que os processos de subjetivação são produzidos no mesmo ato que os processos de trabalho. Ou dito de outra forma, processos de trabalho e processos de subjetivação são duas formas, duas expressões, de uma dada conformação do plano de produção num determinado momento histórico, num determinado local. Destarte, não se trataria tanto de "articulá-los", porém de parar de separá-los sem deixar de diferenciá-los.

Abordar o problema dessa forma iria nos ajudar a evitar o risco de uma dicotomia perigosa, como seria separar "tecnólogos" de "humanizólogos" na abordagem da gestão, ou ainda, contribuiria para afastar o perigo de uma certa manipulação instrumental da escuta ( as tecnologias da escuta e de negociação das regras comportamentais e organizacionais, como muito bem nos lembra a autora).

E podemos, assim, chegar ao terceiro eixo destacado no texto em debate, no que se refere à melhoria das condições de trabalho do cuidador. A autora ressalta a importância dada à palavra no discurso oficial que analisa. Magnificamente problematiza a questão, indica caminhos para ampliação dos processos comunicacionais, questão que continua a ser aprofundada nas seções seguintes até a conclusão.

Como ela faz essa discussão com muita solvência, limito-me a trazer de novo o eixo da subjetivação. No bojo da polêmica Gadamer-Habermas, à qual a autora se refere, está o conceito de tradição. Gadamer (1997) nos diz que estamos sempre insertos em tradições, que a tradição nos fala com vozes múltiplas, e que o momento em que o pesquisador se volta para a tradição e escolhe uma dentre essas vozes é um momento de liberdade e criativo. A tradição, para Gadamer, nos fala sempre com uma voz nova, se assim não fosse, o recurso à tradição seria meramente reprodutivo. Já para Habermas (1994) a tradição enfatiza o hegemônico, foi construída sobre inúmeras camadas de dominação e trabalho. Adeus à ilusão do paraíso comunicativo! Suely mostra muito bem como seriam alguns dos caminhos possíveis. Há algumas vozes que poderiam ser resgatadas na tradição médica. Como médica e professora de uma escola médica fiquei muito feliz com a lembrança.

Alguns dos autores do texto do PNHAH citados pela autora são psicanalistas. E para a psicanálise as palavras não são somente componentes de uma estratégia comunicacional. Aliás, às vezes, a estratégia comunicacional é não comunicar. As palavras são tão humanas que se parecem conosco: elas nunca poderão ser somente boas, elas enganam, ocultam, velam, destroem, segundo o caso. Todo consenso se constrói sobre a renúncia de alguém; na minha experiência o convencido é sempre o mais fraco.

Por tudo isso, sustento que a mudança cultural é inseparável dos processos de subjetivação. Precisamos resgatar o valor das palavras, concordo. Isso nos é imprescindível, mas não nos basta. O protótipo do dilema ético é a ação, a práxis, não a retórica. Não me parece que se trate de mais comunicação, senão de experimentarmos arranjos e dispositivos (Campos, 1997, 1998, 2000; Merhy, 1997, 2002; Onocko Campos, 2003d) que potencializem outras formas de comunicação, outras formas de organização do trabalho, outras formas de subjetivação. É necessário ficar muito atento para as formas com as quais a gestão opera em cada local, com os modos de subjetivação que são por ela postos (ou não) a funcionar.

O texto de Suely é muito bem-vindo por destacar a importância de atrevermo-nos a explorar o convite ético-político da humanização da assistência. E ela soube com muitíssima competência fugir das leituras simplificadoras ou maniqueístas. É em boa hora que a autora e a revista abriram este debate.

O velho Freud (1937) nos ensinou que há, também, construções em análise. Ou seja, não interpretamos somente dissecando discursos, porém alinhavando novas narrativas (Onocko Campos, 2003d). Que nada mais são que histórias "não (ainda) narradas" (Ricoeur, 1997). Essas histórias, para Ricoeur, são passíveis de serem contadas, pois já estão simbolicamente midiatizadas no social. A memória do passado e a espera do porvir é que serão ditas, narradas. Uma tal narrativa, formulada na rede das relações humanas, e destinada ao inter-esse político, está fundamentalmente inserida na ação, e só poderia manifestar essa lógica tornando-se ela própria ação (...) (Kristeva, 2002). Inter-esse, lugar do entre-dois, modelo político que não se fundamentaria em outra coisa que na ação e na palavra, mas nunca uma sem a outra, poderia ser o chamado que fazemos à humanização. Dessa maneira pretendemos trabalhar com a gestão de serviços de saúde, com uma ética profundamente compromissada na defesa da vida, devolvendo-lhe seu caráter político, do entre-dois, daquilo que só pode se produzir em contato com o outro, seja este usuário ou trabalhador. Recentemente, Kristeva (2000) nos convidou a tirar o texto do centro de nosso foco e colocar ali a experiência, porque a narrativa somente, por mais brilhante que seja, não teria como salvar uma vida (Kristeva, 2002).

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A AUTORA RESPONDE THE AUTHOR REPLIES

A humanização e a construção política do lugar de sujeito no processo comunicacional

Humanization and political construction of subjectivity in the communication process

Ter um texto debatido por Cecília Minayo, Ricardo Ayres, Cristina Boaretto e Rosana Onocko Campos é uma grande honra e oportunidade ímpar (porque entre pares) para refletir junto, incorporar, fundamentar ou esclarecer conceitos e argumentos. Cecília enriquece o texto original com uma leitura histórica das correntes humanistas, permitindo situar a proposta de humanização numa tradição filosófica, além de apontar os limites e obstáculos do modelo médico profissional diante de tal proposta. Ricardo, de forma extremamente elegante, aprofunda pontos de consenso e dissenso entre o texto apresentado e sua compreensão da proposta reconstrutiva das práticas de saúde. Cristina discute o tema a partir de sua vasta experiência institucional no campo da gestão de ações e de serviços públicos de saúde, ponderando os avanços e os desafios para uma práxis humanizadora. Detalha ainda a proposta de humanização no âmbito da assistência ao parto. Rosana aprofundará o debate sobre os processos de subjetivação envolvidos na produção em saúde, na tessitura singular deste processo de trabalho, e aponta o quão são essenciais às práticas de humanização. E sem recorrer a etiquetas editoriais afirmo que sou sincera e profundamente agradecida a todos e à revista Ciência & Saúde Coletiva.

A polissemia das teorias humanistas, como nos mostra Cecília Minayo, nos revela uma busca histórica da construção teórico filosófica do conceito de humano e dos propósitos da condição humana no mundo. Este empreendimento, se guardarmos o marco do Renascimento, possui pelo menos quinhentos anos. Os vários teóricos humanistas se lançaram, desde então, ao difícil exercício de nomear a condição humana de forma a mais abrangente possível, numa macro definição unificadora, que ultrapassasse as diferenças entre os homens e mulheres reais, de diferentes classes, etnias e culturas. Definições que se pretendiam universais e não um mero espelho dos que a enunciavam, não deixando de ser, entretanto, uma busca essencialista em grande medida.

Trata-se de vários esforços teóricos, artefatos construídos por pensadores que, em situações e épocas concretas e a partir de certos marcos ideológicos, exercitando um modo de ver (i.e., um arsenal teórico), constroem uma visão que se pretende universal do humano.

Podemos inferir, a partir da minuciosa exposição de Cecília, que as definições da condição humana, geralmente vêm indissociavelmente acompanhadas de um projeto de realização mais plena deste humano, de uma resposta ante ao dilema filosófico do determinismo e da liberdade – eixos de preocupação comum à leitura humanista.

Obviamente, como produções históricas, as muitas leituras humanistas vão refletir preocupações das épocas em que foram geradas, buscando enfrentar o que poderia ser identificado como o que ameaça a expansão do humano, o que o "desumaniza", "aliena" ou "objetifica". Assim, algumas propostas humanistas ao mesmo tempo em que não levam em conta os homens reais em suas múltiplas e cotidianas relações de poder e dominação, de suas diferenças étnico e socioeconômicas, vislumbram criar uma definição que os iguale como humanos, buscando estabelecer uma "plataforma" universal de liberdade, felicidade e emancipação que deve ser acessível a todos que assim escolherem. Outras propostas já refletem como necessidade a construção intersubjetiva, mitigada no seu universalismo pela inclusão da historicidade dos sujeitos concretos e imersos no mundo da vida. Certamente, podemos vislumbrar perspectivas humanistas etnocêntricas e outras que se lançam ao encontro com o Outro, buscando também incluir em alguma medida a alteridade da condição humana-no-mundo. Certamente caberá sempre indagar quais relações definidoras de diferenças e quais grupos permanecem excluídos nesta ou naquela proposta humanista e quais usos sociais podem vir a ter (Rabinow, 1999). E este é um dos pontos ricos do diálogo entre a filosofia e a sociologia.

E como defendemos inicialmente, o setor saúde a partir da proposta de humanização se abre a esta proposta, por si mobilizadora de rica reflexão e, como ratificam Ayres e Campos, eticamente irrecusável, mas ainda demandando um adensamento reflexivo e conceitual.

Neste sentido, destacamos a leitura habermasiana, uma proposição humanista contemporânea e que entendemos sustentar em boa parte a proposta de humanização da assistência na saúde. Antes que adotá-la pretendi uma compreensão de sua adequação devido ao seu uso mais ou menos implícito nas propostas oficiais analisadas. Neste espaço, aproveito para tentar situar um pouco mais esta proposta (de forma bem reduzida e invariavelmente reducionista) e agora confrontá-la com algumas especulações sociológicas, e paralelamente respondendo ao debate proposto.

Grosso modo, Habermas irá postular à filosofia uma grandiosa tarefa: contribuir para o esclarecimento e emancipação humana. Dialogando com a tradição moderna, aponta a linguagem e o trabalho como os elementos essenciais e mediadores do humano e de sua emancipação. Destaca a relevância e os nexos entre trabalho e a interação social como referências para a formação do espírito humano. Mas, discordando de um tipo de interpretação marxista, não aceita uma leitura economicista da emancipação humana pela desalienação do trabalho. Tampouco vai aceitar que as interações sociais sejam, em ultima instância, reguladas pela lógica da produção, negando uma provável leitura instrumental. Vai enfatizar seu projeto emancipatório na linguagem, mediadora ela mesma do trabalho e das interações humanas, numa proposta de comunicação livre de coações e voltada para a produção de consenso. Entende que a obstrução da comunicação (distorções e dominações) é construída socialmente e ameaçaria a construção de identidade de qualquer sujeito, comprometendo seu status humano. Caberia, então, à filosofia (aliada a outros campos do saber) o papel de identificar e criticar o que oprime ou distorce o diálogo pleno nas sociedades contemporâneas e de se articular de forma cooperativa interdisciplinar às ciências para dirimir tais obstáculos (e essa proposta de parceria foi alvo de muitas especulações e polêmicas) (Siebeneichler, 1989).

Como é sabido, Habermas (1990) irá criticar as bases da racionalidade moderna, uma racionalidade instrumental que historicamente separou sujeito e objeto do conhecimento. Um paradigma que sempre identificou como finalidade do conhecimento a intervenção e normatização, numa síntese de conhecer para dominar, representada pela tipologia weberiana da "ação racional relativa a fins". Uma racionalidade, portanto, voltada pragmaticamente para o domínio e incapaz de viabilizar a emancipação humana. Irá propor uma outra racionalidade, ancorada na comunicação, em processos amplos de argumentação de onde serão construídas as validades dos discursos e das ações.

Assim, a razão comunicativa não se constrói apenas logicamente, mas antes de tudo na processualidade do debate. Envolve decisões existenciais, um agir no mundo e uma ética de solidariedade contra o sofrimento e a opressão. Se aproxima do que Campos situa como um modelo político em que ação e palavra estão em profunda sinergia.

A ação comunicativa se construirá no e pelo encontro intersubjetivo mediado pela linguagem. Neste aspecto, destacamos a importância concedida por Habermas aos atos de fala, sendo essencialmente por meio deles possível as relações entre sujeitos (falantes-ouvintes). A razão comunicativa/agir comunicativo envolve então uma pluralidade de vozes. A relação comunicacional, baseada numa troca ativa de opiniões, valores e informações entre os participantes de uma determinada práxis social, tem como horizonte o entendimento, a compreensão e o consenso. Esse entendimento seria produzido internamente, não vindo de fora ou a partir de um a priori fixo, precisando ser aceito como válido pelos participantes da comunicação.

Essa passagem, central para a proposta do agir comunicativo, será alvo de questionamentos do sociólogo Pierre Bourdieu (1996) que criticará o suposto poder das palavras (contido na proposição de Austin e para ele também em Habermas), da força ilocucionária e propositiva das expressões para a construção ativa de novos significados e consensos. Para ele, os poderes da linguagem, da eficácia da palavra, da maneira ou do conteúdo do discurso dependem crucialmente da posição social dos interlocutores. Dependem do reconhecimento de uma autoridade, de um capital simbólico acumulado por certo grupo e enunciado por seus porta-vozes autorizados. Bourdieu retrata assim, as desigualdades presentes nas trocas lingüísticas, afirmando que sua eficácia simbólica não se constrói no encontro entre falantes mas se situa num conjunto de fatores que o antecede (a relação entre as propriedades do discurso, as propriedades daquele que o pronuncia e as propriedades da instituição que o autoriza a pronunciá-lo. (...) não se deve esquecer que as trocas lingüísticas – relações de comunicação por excelência – são também relações de poder simbólico onde se atualizam as relações de força entre os locutores e seus respectivo grupos).

Tal debate nos ajuda a questionar as desigualdades presentes há séculos na cultura médica científica entre seus agentes e seus pacientes. Nos pontua, que mediando e mesmo dando as regras que estruturam o singular e criador encontro entre intersubjetividades, existe uma posição e fala considerada legítima e autorizada (científica dos profissionais) e outra ainda relegada ao lugar do equívoco e da ignorância (senso comum, tradições dos pacientes). E esta condição, como nos lembra Cecília, persiste no modelo médico.

Assim, a proposta de entender a produção de cuidados assistenciais em saúde a partir da referência de uma racionalidade comunicativa estabelece uma outra ordem paradigmática para a produção de cuidados em saúde. Contudo, pressupõe, concordando em boa parte com a crítica de Bourdieu, uma relação minimamente simétrica entre falantes que estão em condições de compartilhar a construção de significados/entendimento. Como tão bem assinalam Boaretto e Campos também demanda intenso investimento numa outra ordem de gestão. Necessita de uma atitude comunicativa, ou seja, voltada para o diálogo e disposta a uma leitura hermenêutica. E não se trata de apostar numa capacidade reconhecida como potencialidade de qualquer humano, mas que sejam realizáveis concretamente em qualquer serviço de saúde em que envolva o encontro singular entre paciente e profissional de saúde. Não está, de maneira alguma, garantida ou dada a priori pela condição humana reconhecida entre quem produz e quem necessita do cuidado ou no encontro de ambos. Assim, a construção de identidades e a comunicação entre sujeitos estão imbricadas num mesmo processo, desde que assim produzidas. Pois em sua face de negação podem representar o não reconhecimento do estatuto de sujeito ou mesmo de pessoa, construindo o fenômeno estudado pelos teóricos da violência como a negação social de identidades de grupos e, neste limite, estamos falando da possibilidade da não-relação – uma forma de violência simbólica de extrema intensidade (Wieviorka, 1997).

Falando de violências, neste ponto faço breve parêntesis para dirimir com Rosana um mal-entendido que, certamente, deve ter sido ocasionado por minha redação. Quando afirmei que não havia evidências atuais na literatura da prática constante de maus-tratos estava me referindo a maus-tratos físicos, isto é, quando os profissionais agridem fisicamente o paciente. Essas punições e agressões corporais, como mostra o próprio Foucault, foram sendo substituídas no hospital moderno pelas inúmeras formas de violência simbólica, corporificadas sim, mas por distintos mecanismos disciplinares. Ainda que não constituam uma prática generalizada na prática de todos os profissionais, os maus-tratos representados pela rispidez, indiferença, coisificação, agressão verbal, negligência etc. são constantemente atualizados, como pude observar no estudo que fiz de duas emergências públicas (Deslandes, 2002). Expressões, digamos, limites de qualquer possibilidade comunicacional.

Eis um dos pontos do debate proposto por Ricardo e Rosana. Ayres pontua que não se deve restringir a capacidade comunicativa à oferta de "capacidade expressiva", no que devo também ter sido bem infeliz na argumentação pois efetivamente não corresponde a minha proposição. Não se trata de meramente dar/permitir espaços de expressão deste paciente. Não se trata do binômio comunicação-expressão. Falamos de uma condição de assujeitamento, de uma identidade negada a quem historicamente tem sido objetificado pela racionalidade instrumental da biomedicina. Penso que estas lacunas sejam concretas e impeditivas de compartilhamento dialógico. Também creio que não podemos recorrer ao binômio "mais comunicação", versus "outras formas de comunicação", pois não é possível pensar num gradiente de mais ou menos comunicação sem levar em conta as bases desta relação comunicativa, uma coisa é impensável sem a outra. Se o interlocutor/paciente não tem reconhecido sequer o status de sujeito não podemos falar de um "agir comunicativo". Assim, não resolvemos a questão "oferecendo" mais espaço de expressão ao paciente, pois isso deveria ser conseqüência de uma maior legitimidade e capital de poder deste interlocutor no jogo intersubjetivo institucional. Sem isso, a oferta de espaços de expressão ao paciente/familiares pode funcionar como cosmética ou etapa burocrática.

Retomando então a proposição habermasiana, se considerarmos a busca de produção de consenso como essencial à relação comunicativa, precisamos também falar das condições necessárias a isto. O que distingue o consenso real de pseudo-consenso? A possibilidade de os interlocutores empreenderem de forma igual atos de fala argumentativos. Este assunto será debatido por Habermas que delineará alguns postulados que funcionam como horizonte e que supostamente podem ser cumpridos sempre que envolver o encontro entre sujeitos: postulado de igualdade comunicativa; de igualdade de fala; de veracidade e sinceridade; de correção de normas. Todos delineiam condições simétricas de argumentar, interpretar, recomendar, justificar, problematizar, expressar idéias e sentimentos, de opor, permitir e proibir.

Neste sentido, usando a expressão de Ayres, concordo discordando com sua argumentação. Melhor, não diria nem discordando, mas querendo detalhar mais a compreensão de nuances e, quem sabe, atingir um futuro consenso mais válido. O compartilhamento, a construção intersubjetiva de entendimentos no e pelo processo comunicativo podem (e creio que devem) funcionar como horizontes da práxis em saúde, concretizáveis a partir de profundos e sistemáticos investimentos críticos na formação contínua do profissional de saúde, em modelos favoráveis de gestão e na ampla politização do estatuto de sujeito do paciente. Mas não está dado pela singularidade do encontro intersubjetivo per si. Embora nele que efetivamente se realize. Como argumenta Campos é preciso construir arranjos e dispositivos que permitam outras formas de organização do trabalho que por usa vez potencializem outras formas de subjetivação. O que, dialeticamente, pode levar ao reconhecimento da centralidade do encontro intersubjetivo entre profissionais, profissionais e pacientes/familiares e à valorização da produção de narrativas, de textos-em-ação que se não capazes de salvar vidas (como corretamente lembra Rosana) são facilitadores para a construção do seu significado, de dar sentido emocional e, sobretudo, cultural ao sofrimento humano (Mattingly e Garro, 2000; Mishler e Clarck, 2001).

Sem farsesca modéstia creio que neste espaço conseguimos produzir uma ruptura com os discursos de senso comum sobre humanização, problematizando interpretações mas, sobretudo, vislumbrando ações e propostas. Cecília e Cristina nos trouxeram de forma muito cristalina alguns nós que os praticantes do projeto de humanização precisam desatar e das conquistas que se colocam. Rosana e Ricardo trazem propostas que ao mesmo tempo são epistêmicas e estratégicas. Mas como Ayres pontua, certamente continuaremos habitando as muitas inquietações deveras humanas. Reafirmando seu raciocínio/vaticínio, penso que precisamos estar abertos para não tomar a proposta de humanização como "agenda programática", objetivamente executável e rigidamente mensurável. Ao contrário, desejamos produzir uma leitura aberta e inclusiva, flexível a mudanças e capaz de se alimentar de novos pontos de vista.

Referências bibliográficas

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    2004
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