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Saúde bucal coletiva: a busca de uma identidade

Collective oral health: the search of an identity

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Saúde bucal coletiva: a busca de uma identidade

Collective oral health: the search of an identity

Everardo Duarte Nunes

DMPS/FCM/Unicamp. evernunes@uol.com.br

Ler e comentar o artigo do Botazzo é retomar com ele um diálogo que vimos mantendo ao longo de alguns anos e que se mostra sempre produtivo e instigador.

Neste trabalho, o autor se volta para um tema que se tornou uma preocupação nuclear em sua produção acadêmica ­ desvendar a constituição de um campo, o da saúde bucal coletiva. Isto ele já apresentava de forma original e erudita em sua tese de doutorado1, escavando as origens da clínica odontológica e recolocando-a na dimensão sociopolítica. Agora, amadurece idéias, apresenta dúvidas, interroga o campo científico, invoca a tradição da medicina social/saúde coletiva daqui e de outras latitudes, conclama os seus queridos epistemólogos, como Canguilhem, Vieira Pinto e Samaja, sociólogos como Bourdieu e Castoriadis e sociólogos da saúde como Donnangelo e Minayo, retoma àqueles que pensaram a saúde bucal, como Narvai e seu octólogo, filósofos como Althusser e Foucault, sem esquecer do físico e historiador da ciência, Khun. Pode parecer, à primeira vista, uma galeria muito extensa de celebridades procedentes de diferentes galáxias teóricas e que poderiam provocar desastres epistêmicos ao se encontrarem. Não é o caso. Botazzo usa com propriedade os autores e, para as finalidades propostas, os diálogos entre eles não se tornam impossíveis e, sem dúvida, num momento de reflexão sobre a crise de pensamento da saúde coletiva, a diversidade de pensadores que nos ajudam a palmilhar esse terreno é extremamente benéfica. A questão não resolvida da configuração do campo ­ eu mesmo já o abordei althusserianamente, lendo-o em suas práticas: teórica, pedagógica e política; ou bourdiuenamente, como campo; ou dimensionado como pensamento, teoria e movimento ­ é complexa e extrapola a disciplinarização mais convencional.

O sempre citado trabalho de Donnangelo2 apontou questões relevantes. Infelizmente, a sua autora não teve tempo de adensá-lo e deixar para os pósteros um estudo mais completo sobre o coletivo na e da saúde. Assim, todo trabalho que tente levar avante essa tarefa é sempre bem recebido. Nesse sentido, Botazzo traz destacada contribuição, que, sendo específica de uma determinada realidade ­ a bucal ­, pode ser apreendida pelos estudiosos da saúde coletiva em geral. Embora seja categoria fundamental das ciências sociais e tenha sido objeto dos clássicos do pensamento social, o coletivo foi apropriado de diferentes maneiras e seu significado estendido à saúde tem sido alvo das mais distintas conotações. Ao defini-lo no campo de que trata este artigo, pode se encontrar uma extensa e ilimitada aplicação do conceito: A saúde bucal coletiva constitui uma prática social, libertária e orgânica à construção de uma sociedade de inclusão, democrática e livre, caracterizada pela construção de um modelo de saúde orientado pela universalidade, a equidade e a integralidade da atenção em saúde bucal, cujos agentes, formados com orientação ecológica, utilizam o método científico para conhecer estruturalmente as características epidemiológicas em que se dão os processos de saúde-doença bucal e que isto o faz através de uma abordagem e intervenção social democrática e participante, que define as políticas de saúde bucal como fazeres concretos para resolver os problemas de saúde-doença bucal integralmente e integrados a um conjunto de problemas gerais que caracterizam as dificuldades de um espaço social determinado para desenvolver-se plenamente.6

Mesmo limitando a dimensão teórica aos aspectos epidemiológicos, a definição pretende ser ampla e irrestrita: serviços, política, intervenção, participação estão presentes como atributos diretos do campo. Em realidade, esta é a questão que tensiona a saúde coletiva, independentemente de sua especificidade temática, quer seja a bucal, a do trabalho, a mental, etc. ­ as suas duas vocações: para a ciência e para a política. Nesse sentido, o texto de Botazzo, como a definição acima, apanha estas dimensões, ao dizer que os problemas que cercam a saúde bucal coletiva são extensamente os mesmos que animam a produção teórica da Saúde Coletiva, colocando inclusive em dúvida a possibilidade da existência de uma teoria da saúde coletiva, visto ser esta balizada pelas duas vocações acima assinaladas, ou, como diz o autor, por seu atravessamento pela vida social genérica. Isto, sem dúvida, amplia a dificuldade de se estabelecer a sua unidade, e a dispersão dos objetos, métodos e práticas evidenciam que (re)situá-la no campo das áreas do conhecimento conduz a inúmeras dificuldades. Diante dessa questão, talvez se possa usar a postura adotada por Dosse3 ao analisar a mudança de paradigma em ciências sociais pós-estruturalismo, quando propunha uma dialogia, um agir comunicativo como saída da falsa alternativa entre divinização e dissolução do sujeito, que marcou durante muito tempo as ciências humanas.

O que chama a atenção é que a saúde coletiva sofre a síndrome da família grande ­ há o núcleo central, os parentes próximos, outros em segundo e terceiro graus de parentesco, os agregados, amigos e vizinhos ­ formando uma intricada rede de relações que, sem dúvida, tem trazido enorme vitalidade, mas, ao mesmo tempo, cria evidentes dificuldades. Recentemente, na tentativa de estabelecer as novas áreas do conhecimento, a comunidade científica verificou que, para alguns pesquisadores, há saúde coletiva e há saúde pública, e cada uma delas comporta subcategorias, às vezes disciplinares, às vezes temáticas, e estranhamente, tendo ficado fora as ciências sociais!

Estas idéias que perpassam as análises sobre campos de conhecimento são inerentes especialmente àqueles de formação mais recente, como o caso da saúde bucal coletiva. Já em seu trabalho anterior, Botazzo1, ao trabalhar a idéia de uma biopolítica da boca, interrogava acerca do objeto da odontologia. É possível afirmar-se um objeto tão insólito quanto este denominado boca? O que significa exatamente ou que rede de significados se entrecruzam neste território singular? É possível falar de um objeto que não seja tão exclusivamente hegemonizado por uma única disciplina? Não vou alinhar as questões levantadas por Botazzo, de total procedência, as relações odontologia e medicina, ou um certo silêncio ­ um não à vontade ­ quando as pessoas tratam dos discursos da cavidade bucal. Nesse momento, o autor passa a falar da boca como um território. Esta noção será trazida para o presente texto e para seu melhor entendimento reporta-se a As palavras e as coisas. Desta obra magnífica de Foucault4, que mostra a construção arqueológica das ciências humanas, o autor retira a sua essência para aplicá-la ao estudo da bucalidade, que constitui hoje uma das linhas de pesquisa que orienta no Observatório de Saúde Bucal Coletiva, do Instituto de Saúde/São Paulo. Ao transportar para o seu objeto as categorias de Foucault, Botazzo ilustra como a linguagem, a vida e o trabalho se cruzam no entendimento do território boca, sendo esse recurso teórico-conceitual fundamental para que se veja esse objeto em sua materialidade e em sua projeção sociopsíquica. Sem dúvida, o solo para a discussão da odontologia pode ser encontrada em outra obra de Foucault5 ­ A arqueologia do saber. Desse livro, que é uma súmula da história arqueológica como proposta metodológica, retiro algumas passagens dos seus capítulos finais, onde o autor se dedica a mostrar a relação entre arqueologia e análise das ciências. Por que voltar a esta questão? Porque o texto de Botazzo busca entender qual é o status de conhecimento vinculado e veiculado pela saúde bucal coletiva, além de uma odontologia social. E nisso, o recurso à discussão do filósofo francês é fundamental. Acredito que, para se entender a saúde bucal coletiva, a definição dada de arqueologia é básica. Para Foucault5, A arqueologia fala ­ muito mais à vontade que a história das idéias ­ de cortes, falhas, aberturas, formas inteiramente novas de positividade, e de redistribuições súbitas. Foucault, em seu estilo de retomar uma idéia e completá-la, cerca de duas páginas depois, assinala: A arqueologia, ao invés de considerar que o discurso é feito apenas de uma série de acontecimentos homogêneos (as formulações individuais), distingue, na espessura do discurso, diversos planos de acontecimentos possíveis: plano dos próprios enunciados em sua emergência singular; plano de aparecimento dos objetos, dos tipos de enunciação, dos conceitos, das escolhas estratégicas (ou das transformações que afetam as que já existem); plano da derivação de novas regras de formação a partir de regras já empregadas ­ mas sempre no elemento de uma única e mesma positividade; finalmente, a um quarto nível, plano em que se efetua a substituição de uma formação discursiva por outra (ou do aparecimento e desaparecimento puro e simples de uma positividade). A enunciação desses planos é relevante no momento em que se pretenda escavar o terreno de onde emerge uma determinada prática discursiva. Foucault fornece as orientações necessárias quando discute a procedência do que denomina de positividades, cuja análise, segundo ele, permite mostrar que regras norteiam a prática discursiva e permite formar grupos de objetos, conjuntos de enunciações, jogos de conceitos, séries de escolhas teóricas. Como a prática discursiva não coincide com a elaboração científica, esse recurso criado por Foucault, de estabelecer diferentes limiares de positividade: epistemologização, cientificidade e formalização, cujas cronologias não são nem regulares, nem homogêneas, é extremamente instigante para a exploração de práticas discursivas e de como se constituíram os territórios arqueológicos. Acredito que a pesquisa sobre a Saúde Bucal Coletiva necessita ser aprofundada e a utilização desse recurso teórico-metodológico pode ser um dos caminhos, e dessa forma concorrer para a sistematização dos condicionantes de suas possibilidades.

Avançar qualquer discussão seria repetir o que Botazzo fornece em seu texto, mas voltando a Foucault4 quando diz que As ciências humanas, com efeito, dirigem-se ao homem na medida em que ele vive, em que ele fala, em que ele produz. É como ser vivo que ele cresce, que tem funções e necessidades, que vê abrir-se um espaço cujas coordenadas móveis estabelece em si mesmo, encontro o fio condutor para se pensar a transformação da odontologia em saúde bucal, relembrando o filósofo que brilhantemente nos mostrou outras transformações ­ a história natural em biologia, a análise das riquezas em economia, a reflexão sobre a linguagem em filologia ­ em cujos horizontes surge o homem com a sua posição ambígua de objeto para um saber e de sujeito que conhece4. Se esse é o interesse maior das ciências e dos saberes das ciências humanas, que a construção de uma teoria da saúde (coletiva e bucal) não o ignore.

REFERÊNCIAS

1. Botazzo C. Da arte dentária. São Paulo: Hucitec; Fapesp; 2000.

2. Donnangelo MCF. A pesquisa na área da saúde coletiva no Brasil ­ A década de 70. Ensino da Saúde Pública, Medicina Preventiva e Social no Brasil 1983; 2:19-35.

3. Dosse F. O império do sentido: a humanização das ciências humanas. Tradução de Ilka Stern Cohen. Bauru: Edusc; 2003.

4. Foucault M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de António Ramos Rosa. Lisboa: Portugalia; s/d.

5. Foucault M. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Petrópolis: Vozes, Lisboa: Centro do Livro Brasileiro, 1972.

6. Portillo JAC. Saúde coletiva [acesso em 8/10/2005]. Disponível em http://www.unb.br/fs/sbc/saude_ coletiva.htm.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2006
  • Data do Fascículo
    Mar 2006
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