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A vigilância sanitária e a mudança do modelo de atenção à saúde

The sanitary surveillance and the change in the health attention model

DEBATEDORES DISCUSSANTS

A vigilância sanitária e a mudança do modelo de atenção à saúde

The sanitary surveillance and the change in the health attention model

Luis Eugenio Portela Fernandes de Souza

Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia. luiseugenio@ufba.br

O artigo de De Seta e Dain tem o grande mérito de pôr em questão o pressuposto - raramente explicitado, mas sempre presente - de que a construção do SUS deve seguir estratégias similares em todas as suas áreas de atuação. Mais especificamente, o artigo questiona a ideia de que as estratégias de descentralização e de coordenação federativa adotadas na área da assistência médico-sanitária ou mesmo na da vigilância epidemiológica deveriam ser seguidas também na área da vigilância sanitária.

Nesse ponto, é fácil concordar com as autoras e reconhecer que a especificidade da vigilância sanitária recomenda o desenvolvimento de estratégias próprias para a constituição de um sistema nacional de vigilância sanitária, considerando especialmente a heterogeneidade dos entes federativos das três esferas de governo.

Embora não afirme com todas as letras, o artigo passa, claramente, a ideia de que, dada a sua peculiaridade, a construção do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária exige a adoção de uma estratégia de manutenção ou de reforço da separação político-institucional das ações de vigilância sanitária. Essa ideia se exprime de várias formas: no alinhamento das autoras à interpretação da vigilância da saúde como sinônimo de vigilância epidemiológica; no posicionamento crítico às iniciativas da Secretaria de Vigilância da Saúde do Ministério da Saúde (SVS-MS) de articular as ações das vigilâncias; na condenação à desvinculação dos recursos da vigilância sanitária nos blocos de financiamento, instituídos pelo Pacto de Gestão; e até na escolha do qualificativo "minoritária" para caracterizar a participação de técnicos da vigilância sanitária em uma instância não deliberativa como o Grupo Técnico em Vigilância da Saúde da Comissão Intergestores Tripartite (CIT).

Peço vênia para registrar uma posição diferente: não acredito que o reforço da separação institucional assegure o respeito à especificidade da vigilância sanitária nem favoreça a constituição de seu sistema nacional. Ao contrário, parece-me um equívoco insistir em uma espécie de"realismo institucional", determinado historicamente, e aceitar uma separação que tem significado, invariavelmente, uma desarticulação entre as ações das vigilâncias e destas com as de assistência.

Tento justificar minha posição.

Em primeiro lugar, sou de opinião que é desejável e possível implantar, no Sistema Único de Saúde (SUS), um modelo de atenção à saúde, pautado no princípio da integralidade. Assim, considero importante retomar o conceito de vigilância da saúde como conjunto articulado de intervenções para resolver problemas de saúde em determinado território populacional1,2, em vez de tomá-lo como sinônimo de vigilância epidemiológica.

Ressalte-se que, na concepção de vigilância da saúde que esposamos, não são os saberes técnicos, baseados em disciplinas ou em antigas estruturas organizacionais, que devem determinar a combinação de intervenções sobre o processo saúde-doença; é a busca de impacto ou efetividade das ações, assim como a sua eficiência, que deve reger a combinação de tecnologias para o enfrentamento dos problemas concretos de saúde. Não é demais lembrar que tais tecnologias incluem, via de regra, ações de vigilância sanitária, de vigilância epidemiológica e de assistência médico-sanitária, além de, eventualmente, ações de setores outros que não o da saúde.

Nesse sentido, o esforço de constituição de um sistema nacional de vigilância sanitária deve contribuir para a superação - e não para a manutenção - dos modelos de atenção dominantes, quais sejam: o médico-hospitalar e o sanitarista3. Há que se louvar, portanto, como um passo significativo, ainda que pequeno, a implantação da Programação Pactuada e Integrada da Vigilância em Saúde (PPI/VS).

Em segundo lugar, parece-me correta a iniciativa da Secretaria de Vigilância da Saúde de se aproximar da vigilância sanitária. Entendo que é, sim, o Ministério da Saúde, na esfera federal, assim como são as secretarias estaduais (SES) e municipais da saúde (SMS), nas suas respectivas esferas, os agentes responsáveis pela formulação das políticas de saúde, que incluem necessariamente as ações de vigilância sanitária.

Não tenho dúvida sobre o avanço que a estruturação da Anvisa trouxe para a área da vigilância sanitária, tanto nas atividades autorizativas e normativas, quanto nas de educação e comunicação em saúde. Além disso, a Anvisa representa uma experiência bastante interessante de novo modelo de gestão4. Contudo, não pode ser atribuição de uma agência reguladora ou executiva a formulação de políticas. É o governo, legitimado pelo voto popular, que tem, nas suas instâncias diretas, a prerrogativa de propor as políticas públicas e decidir sobre elas. A Anvisa é e deve ser autônoma, para que possa ser ágil e eficiente na execução das políticas, mas não é nem deve ser soberana, no sentido de ter poder de deliberação política, independentemente das instâncias de direção do SUS.

É claro que a SVS-MS, hoje, tem sua estrutura essencialmente voltada para a área da vigilância epidemiológica. Por isso, é preciso organizar, dentro do MS - provavelmente na SVS - um setor competente de inteligência em vigilância sanitária para assessorar os dirigentes do MS nas decisões políticas que impliquem ações de vigilância sanitária, cuja execução é de responsabilidade da Anvisa. Talvez a organização desse setor na própria SVS-MS contribua para a aproximação entre as vigilâncias.

A comparação entre as trajetórias das vigilâncias epidemiológica e sanitária, muito engenhosamente feita pelas autoras, revela as diferenças históricas do processo de constituição das duas áreas, mas não aponta nenhum obstáculo intransponível à sua articulação, inclusive institucional.

Em terceiro lugar, vejo o Pacto de Gestão, inclusive os blocos de financiamento, como elemento a facilitar e não a dificultar a coordenação federativa.

Antes do Pacto, o processo de descentralização do SUS, com gestão compartilhada entre as três esferas de governo, foi fomentado e orientado pelas Normas Operacionais (NOB 01/93, NOB 01/96, Noas 01/01, Noas 01/02) do Ministério da Saúde. Há de se reconhecer, nesse sentido, a importância das normas.

No entanto, depois de mais de uma década, ficaram evidentes os limites das Normas Operacionais, em particular aqueles de caráter burocrático. Muitas vezes, a habilitação de um município ou de um estado em um nível de gestão definido pela norma (gestão parcial, gestão plena etc.) representava apenas o cumprimento formal de certas exigências, sem correspondência com as responsabilidades realmente assumidas. Acrescente-se que as normas, sendo de abrangência nacional, frequentemente atropelavam características regionais ou locais particulares. Além disso, só tratavam dos recursos federais transferidos aos entes subnacionais e não estimulavam a discussão conjunta da aplicação dos recursos de estados e municípios.

A ideia do Pacto surgiu, assim, da tentativa de superar tais limites. Mais importante que estabelecer, burocraticamente, as atribuições que todo e qualquer município ou estado brasileiro deveria cumprir, o Pacto buscou estimular um processo de negociação em que cada gestor assumiria compromissos de acordo com as necessidades e as possibilidades de seu município e de seu estado. Não identifico melhor maneira de respeitar a heterogeneidade da federação brasileira.

Obviamente, sabia-se, desde o início, que se trataria de um processo complexo de negociação, permeado por disputas políticas de toda ordem. Algumas experiências práticas, todavia, têm indicado - Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Sergipe, por exemplo - que onde as secretarias estaduais assumem efetivamente a coordenação do processo o Pacto de Gestão contribui para melhorar a coordenação federativa.

Enfim, não é pelo reforço da separação institucional que passa a consolidação do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária na realidade complexa e heterogênea do Brasil, mas sim pelo oposto, ou seja, pela articulação das ações de vigilância sanitária ao conjunto de estratégias que visam à mudança do modelo de atenção, em prol da integralidade: a universalização e a qualificação da atenção básica, a política de promoção da saúde, a reforma psiquiátrica, a reorganização da média e alta complexidade etc. A estratégia própria para o fortalecimento da área da vigilância sanitária é, portanto, a da sua inserção no processo tentativo de construção das redes e dos sistemas integrados de serviços de saúde.

De um ponto de vista operativo e considerando a necessidade de fortalecer os mecanismos de coordenação federativa, a tática mais promissora parece-me ser aprofundar a implantação do Pacto de Gestão, avançando, entre outras coisas, para uma única PPI, que articule ações de assistência e de vigilância.

Assim, o fortalecimento da vigilância sanitária, com o reconhecimento de suas especificidades, será consequência da sua integração ao esforço de construção de um sistema de serviços de saúde capaz de impactar positivamente as condições de saúde e de vida das pessoas.

  • 1
    Mendes EV. A construção social da vigilância à saúde no Distrito Sanitário. In: Mendes EV, organizador. A vigilância à saúde no distrito sanitário Brasília: Opas/OMS; 1992. p. 7-19.
  • 2
    Paim JS. A reorganização das práticas de saúde em distritos sanitários. In: Mendes EV, organizador. Distrito sanitário: o processo social de mudança das práticas sanitárias do Sistema Único de Saúde São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Abrasco; 1993. p. 187-220.
  • 3
    Teixeira CF. Modelos assistenciais: desatando nós e criando laços. In: Teixeira CF, Solla JP, organizadores. Modelo de atenção à saúde: promoção, vigilância e saúde da família Salvador: EdUFBA; 2006. p. 19-58.
  • 4
    Souza LE. Anvisa: um modelo da nova gestão pública? In: Costa EA, organizadora. Vigilância sanitária: desvendando o enigma Salvador: EdUFBA; 2008. p. 165-177.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Nov 2010
  • Data do Fascículo
    Nov 2010
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