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DEBATEDORES DISCUSSANTS José Mendes Ribeiro 1

Atenção básica em saúde e a busca por uma conceituação

Basic health care and the search for a definition

1 Departamento de Ciências Sociais, Escola Nacional da Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz.

ribeiro@ensp.fiocruz.br

O presente número da revista Ciência & Saúde apresenta a seus leitores o artigo "Atenção básica na agenda da saúde", elaborado por Regina Bodstein, para o qual foram convidados comentadores no sentido de favorecer a difusão do debate acerca de tema de alta relevância. A autora nos apresenta um ensaio consistente em torno do ordenamento da atenção à saúde à luz dos objetivos mais gerais do Sistema Único de Saúde e da configuração da oferta de serviços após mais de uma década de implementação dos princípios da Reforma Sanitária no Brasil.

Nesse sentido o artigo se mostra bastante atual, como requer a noção de agenda setorial, e destaca os dilemas da descentralização como tema correlato ao da reorganização da oferta básica no SUS e de formatos mais recentes como o de programas de atenção à família. Em linhas gerais, Bodstein assinala que os desenlaces recentes, em que pesem obstáculos importantes, convergem para a ampliação da capacidade de governo local associada à melhor estruturação da atenção básica. Estariam, então, fortalecidas as teses discutidas acerca das vantagens da descentralização nos termos da política setorial.

Após estabelecer os termos da agenda política setorial, a autora apresenta uma concepção de avaliação de processo cujo objeto - descentralização na forma de municipalização - deve ser analisado tendo em consideração as noções de inovação e responsabilidade. Como diz, "A análise do contexto de implantação e os ajustes entre os princípios do SUS e sua execução como política pública são imprescindíveis quando o que está em jogo é a compreensão e a avaliação das mudanças em curso e os impactos na saúde da população". Em função das inovações, "um aspecto metodológico importante vem (...) de efeitos contraditórios ou perversos (...) diante da situação de pobreza e de demanda crescente por assistência e atendimento em saúde." Conclui essas considerações de caráter metodológico afirmando que "...um dos grandes desafios para os estudos de caráter mais avaliativo é o de que resultados e efeitos virtuosos das transformações em curso, ainda que intermediários [...sem dar conta de apontar impactos quer na organização de sistemas locais (...) quer no perfil sanitário da população] são imprescindíveis".

As inovações destacadas pela autora enfatizam o papel dos programas de saúde da família e de agentes comunitários de saúde (PSF e PACS). No entanto, para efeito de um comentário ao bem-sucedido artigo apresentado pela autora, e no espírito que imagino deva ter um debate dirigido como o sugerido pelos editores, que implica colocar em questão os pressupostos e análises apresentados, tomo como ponto de partida o questionamento da autora no encerramento da primeira seção de seu artigo.

"A pergunta-chave aqui é, em que medida a política de reorganização da atenção básica e a pequena mudança na alocação de recursos advinda da implementação da descentralização no setor tem sido suficiente para modificar o padrão de desigualdade no acesso aos bens e serviços de saúde, dado pela própria heterogeneidade e desigualdade social existente no país".

Esta é uma grande questão. A forte desigualdade social observada em nosso país, o nível avançado de sua industrialização, as diferenças regionais e a coexistência de dois sistemas nacionais robustos (Sistema Único de Saúde e Saúde Suplementar) tornam o caso brasileiro singular no mundo, e todos os esforços em termos de formulação de políticas devem partir deste quadro específico e desta constatação.

Tentando comentar, em vez de imaginar ser capaz de responder à pergunta elaborada acima, acho recomendável considerar o que venha a ser atenção básica. Existe vasta produção teórica no setor saúde, especialmente na literatura nacional, tratando do tema em termos conceituais e elaborando os possíveis benefícios de estratégias e modelos organizacionais voltados para a atenção básica, como se diz. Revisão temática tem sido feita com bastante sucesso, por exemplo, por Mendes (1993).

No entanto, ao se buscar definir atenção básica, me parece que dois tratamentos conhecidos devam ser lembrados em termos de caracterização do escopo analítico (Leavell & Clark, 1976) e do modelo organizacional (Schraiber, 1990).

Quanto ao escopo analítico, atenção básica em saúde pode ser considerada com vantagens segundo o argumento clássico de Leavell & Clark, no qual uma dada aceitação de um modelo de história natural das doenças proporcionaria a identificação de período pré-patogênico, susceptível a ações de Promoção da Saúde e de Proteção Específica. Este binômio de intervenções corresponderia à chamada Prevenção Primária. Um esforço metodológico no sentido de definir, para fins de avaliação, o que seja atenção básica remete, a meu ver, a considerar que o diversificado elenco de conceitos e ações estabelecido nessa direção pode ser ainda recoberto por este modelo clássico.

Quanto ao modelo organizacional, grande parte do que hoje é tratado em termos de atenção básica e de estratégias de intervenção capazes de combinar prevenção e proteção, assistência, foco no potencial transformador de modelos de atenção e integração entre diferentes níveis de atenção, me parece contido na noção de ação programática estabelecida no trabalho organizado por Schraiber (1990).

Estas referências são úteis para um exercício inicial necessário em uma agenda de pesquisas da qual se deve exigir uma definição precisa e inequívoca do objeto. Para estudos de avaliação de impacto da atenção básica, torna-se fundamental se livrar do grande emaranhado de definições misturadas a projetos políticos, defesa de interesses de grupos profissionais, crenças e pressupostos jamais testados ou provados, entre outros problemas que se colocam em meio a um novo e bem-vindo boom de estudos sobre atenção básica. Não acredito que seja necessário, ou mesmo possível, um consenso com relação a tais conceitos, mas apenas que cada estudo deva definir com nitidez o que se pretende estudar. As duas referências citadas são exemplares do sucesso em termos conceituais.

Um outro desafio, tendo-se estabelecida a noção mais geral de atenção básica, se refere a reconhecer e apontar ações, iniciativas, intervenções, serviços e/ou estruturas organizacionais que poderiam ser identificados com o conceito geral e isolados ou identificados para fins analíticos.

Neste caso, novas escolhas devem ser feitas. No sentido da pergunta feita por Bodstein assinalada anteriormente, me arrisco a responder com mais perguntas, todas no sentido de permitir delimitar o conceito em favor de estudos empíricos. Faço isso no pressuposto de que concordemos em que uma boa estratégia de política governamental deva combinar boas idéias sustentadas por bons resultados, comprovados em termos técnicos e científicos. Para fins empíricos, podemos definir a atenção básica por diferentes recortes, alguns dos quais são comentados em seguida, apenas a título de exercício.

Um recorte possível é o conferido pelo governo e expresso pelo Piso da Atenção Básica, exigindo-se, no entanto, de forma explícita, a nomeação de qual dentre as inúmeras portarias ministeriais escolhemos como referência, desde as primeiras versões da NOB/96 até a última versão disponível da NOAS. Muitas pesquisas vêm sendo feitas com este desenho em virtude de algumas vantagens. Os estudos são facilitados pela nitidez do objeto, a sua expressão como uma política definida dotada de população-alvo, regras de financiamento, itens de produção de serviços, disponibilidade de bases de dados. Os problemas decorrem do fato de, neste caso, atenção básica se restringir a uma cesta restrita de serviços e coleção de programas, que representam apenas um subconjunto das ações assinaladas, por exemplo, pelos autores tomados por referência no início deste comentário, e diria pela maior dos nossos especialistas.

Outra opção seria associar atenção básica a equipamentos e instalações. Assim, colocaríamos de um lado o conjunto do atendimento efetuado em hospitais (enfermarias, setores e ambulatórios), e as ações e procedimentos realizados fora do ambiente hospitalar (excluídos os reconhecidos como de alta complexidade) de outro lado, então tipificados como de atenção básica. A vantagem estaria novamente na fácil identificação dos serviços e ações designados ao estudo. Além disso, como esta definição recobre as ações programáticas em seu componente verticalizado, ao combinar os procedimentos simples e os referenciados, supera os problemas apontados no item anterior. Por outro lado, existem problemas de duas ordens. Um deles afeta a identidade do objeto com o ideário reformador do chamado modelo assistencial, que muitos atribuem às chamadas ações básicas, ao incluir no grupo os atendimentos especializados prestados em policlínicas. Porém o principal obstáculo se refere aos estudos comparados de desempenho, pois ao incluir instalações tão diversas como componentes da atenção básica, esta heterogeneidade não estaria reproduzida nas diferentes regiões.

Uma opção oposta, de caráter restritivo, e que favorece a perspectiva dos estudos comparados, seria definir atenção básica por meio do Programa de Saúde da Família. Embora seja um componente do PAB, seu alcance supera este limite e oferece uma certa padronização organizacional, além de respeitar os aspectos relacionados ao ideário reformador. O problema desta solução seria de definição clara de fronteiras. O PSF encontrou acelerada expansão em todo o país na forma de mecanismo facilitador do acesso de populações pobres aos serviços de saúde. Desta forma, a sua distribuição foi focalizada segundo classes de renda. Após a fase inicial de implantação acelerada dos módulos, e perante a necessidade de dotar os módulos de equipamentos mínimos e de vínculos com a rede local de saúde para a realização de exames complementares e consultas a especialistas, diversas instalações passaram a se assemelhar com os tradicionais postos de saúde. Assim, para fins de pesquisa, teríamos de retornar à questão assinalada sobre a necessidade de relacionar com precisão as unidades incluídas no objeto.

Outra opção seria definir atenção básica de forma semelhante à que o governo federal utilizou para caracterizar os planos básicos do setor de saúde suplementar ao longo dos anos de implementação da regulação nos termos da lei 9.656. Existe aqui um interessante problema de formulação de políticas. O governo federal, por meio da Secretaria de Assistência à Saúde, designa a atenção básica na forma do PAB, e o mesmo governo, por meio de outro órgão, a Agência Nacional de Saúde Suplementar, relaciona um rol bem mais ampliado de ações e serviços de saúde como pacote básico para as operadoras de planos de saúde no país. Este é justamente o maior empecilho em se utilizar o padrão da Agência Nacional de Saúde para as pesquisas no setor público, em função da necessidade de se traduzirem os procedimentos de um sistema para o outro.

Por fim poderíamos admitir, nos termos da ação programática em saúde, que atenção básica seja definida por meio das atividades, serviços e ações, tanto de proteção aos indivíduos ou coletivos, como de assistência direta, incluídos nos conhecidos programas de saúde coletiva. A comparabilidade seria favorecida pela ampla difusão destes programas no país e pelo enunciado de seus protocolos. O maior problema, no entanto, estaria novamente em se criar mecanismos adequados para identificar estas ações no conjunto das políticas de saúde. Muitas cidades executam seus orçamentos no setor saúde por meio de programas específicos, mas esta não é a realidade para a maioria, que estrutura seus orçamentos em grandes agregados ou, quando muito, seguindo o modelo do SIOPS, no qual se reproduz a matriz de execução do governo federal que, por sua vez não aplica a matriz programática de modo integral.

Acredito que os modelos das ações programáticas, por um lado, e o pacote do setor de saúde suplementar, de outro lado, mesmo que originários de tradições tão distintas, são os que demonstram maior consistência interna para um trabalho inicial de definição nítida e precisa do que se deseja afinal estudar e avaliar.

Não penso que estas considerações resolvam os problemas de identidade da atenção básica, mas uma agenda política setorial deve incluir este esforço analítico. De qualquer forma, existe em nossa área de atuação um certo senso comum que tem servido para que o debate circule - algo como, todos sabemos o que se deseja com a atenção básica, mesmo que não seja tão fácil definir seus limites.

Referências bibliográficas

Leavell H & Clark EG 1976. Medicina preventiva. McGraw-Hill do Brasil, São Paulo.

Mendes EV (org.) 1993. Distrito Sanitário: o processo social de mudança das práticas sanitárias do Sistema Único de Saúde. Hucitec-Abrasco, São Paulo-Rio de Janeiro.

Schraiber LB (org.) 1990. Programação em saúde hoje. Hucitec, São Paulo.

Ana Maria Canesqui 1

Sobre a avaliação da atenção básica

About the basic care evaluation

1 Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. canesqui@mpc.com.br

As reflexões propostas por Regina Bodstein, em torno da atenção básica, suscitam um conjunto de questões diante das quais é impossível discordar.

A primeira delas é sobre a importância de se avaliarem os processos institucionais e contextos, que produzem resultados intermediários capazes de oferecer a compreensão de um conjunto de fatores favoráveis ou não às inovações que se quer implementar. Trata-se de um tipo de estudo costumeiramente referido na literatura de avaliação de processo, cujos acúmulos são ainda pouco expressivos no Brasil, apesar de alguns esforços já feitos pelos cientistas sociais.

A segunda questão é sobre a pertinência de se recorrer aos estudos de caso e de natureza qualitativa para compreender mais adequadamente os múltiplos processos e arranjos que se efetivam nos sistemas municipais de saúde, os quais podem demonstrar as especificidades e diversidades, mesmo quando se tem a forte indução da esfera federal de governo no processo de descentralização em curso.

O terceiro aspecto se refere a um dos efeitos do processo descentralizador sobre a organização dos atores locais, mediante formas de participação, pela via dos Conselhos de Saúde, processo este de grande expansão e que trouxe importantes inovações na condução das várias políticas sociais. Podemos, contudo, acrescentar que nem sempre descentralizar significa democratizar, uma vez que também nos deparamos com diferentes arranjos locais nas conduções dos processos decisórios, capazes de comportar tanto formas clientelistas e autoritárias, quanto as mais democráticas, conforme inúmeros estudos têm demonstrado.

Por último, a autora reconhece outros efeitos favoráveis do processo descentralizador sobre o fortalecimento dos sistemas municipais de saúde, a reorganização da atenção básica pela introdução de inovações no modelo assistencial, que procura integrar as ações de prevenção, promoção, recuperação e manutenção da saúde e quer ampliar também a oferta de bens e serviços de saúde, sem que a necessária universalização, posta pela reforma sanitária, tenha sido ainda plenamente alcançada.

O texto é bastante pertinente quando sugere pistas metodológicas importantes à avaliação do processo de implementação, centrando-se nos processos institucionais e nos meios neles imbricados, demonstrando, contudo, os limites de se considerarem apenas fatores atrelados à suficiência ou não dos recursos materiais e humanos, de infra-estrutura, ao lado das capacidades de gestão, uma vez que há também fatores estruturais impedindo o melhor desempenho setorial na atenção básica.

Pois bem, os estudos de implementação, uma vez centrados nos processos institucionais e na operação do conjunto de meios, são capazes de equacionar fatores que facilitam ou impedem as inovações. Neste sentido, não desconhecem outras variáveis hards, oriundas das políticas macroeconômicas e setoriais, que dificultam o alcance da maior efetividade das políticas no atendimento das demandas sociais. Isso porque também existem limites das próprias políticas sociais (graças a sua própria natureza num sistema capitalista) para responder adequadamente ao conjunto das necessidades sociais, o que se soma, na situação brasileira, a uma realidade socioeconômica adversa, perversa, gerada pelos constrangimentos estruturais refletidos setorialmente.

No entanto, isso não deve invalidar os esforços realizados através dos estudos de implementação para identificar e qualificar os meandros do fazer das políticas, que enfrentam tanto com as diferentes capacidades institucionais dos municípios, segundo o seu porte e inserções regionais, quanto se calcam num conjunto de outras dimensões referidas aos elementos estratégicos que sustentam a formulação da política. E ainda o seu desenho e as características do programa a ser avaliado, que se inserem no processo descentralizador, implicando, entre outros fatores, o estabelecimento de relações intergovernamentais.

Outras dimensões dos estudos costumam focalizar ainda as dimensões situadas no plano das formas de gestão, dos fatores institucionais (decisores, disponibilidade de meios materiais e humanos, atores e suas características) implicados na operação dos programas. Tudo isso certamente terá o seu peso, maior ou menor, no desempenho dos programas examinados e no alcance de sua maior ou menor eficácia e efetividade social. De fato, a autora tem razão quando quer incluir os elementos estruturais que funcionam como constrangedores sobre os institucionais, mas que não podem invalidar os esforços feitos nestas instâncias para alcançar a maior efetividade e eficácia das políticas.

Neste caso, não se põe dúvida sobre as dificuldades enfrentadas pelo processo descentralizador, no âmbito do qual está sendo conduzida a estratégia de renovação do modelo assistencial da atenção básica, sob forte indução da instância federal de governo. Este processo, como têm evidenciado as pesquisas, ainda enfrenta a multiplicidade de interesse; as dimensões agigantadas e heterogeneidades das redes de saúde; as frágeis capacidades administrativas e gerenciais dos municípios e das instâncias estaduais, em muitos estados da federação (em processo de mudança); as fortes tradições centralizadoras ainda vigentes nas mentes e corações como também nos formatos administrativos e gerenciais das próprias organizações; as fragilidades regulatórias do Estado em relação ao setor privado de prestação de serviços, dificultando o comando único das ações de saúde, juntamente com as relações intergovernamentais, que estão atravessadas pelas questões fiscais diante do ajuste macroeconômico.

Embora os esforços de pesquisa do processo de implementação das políticas e programas sociais no Brasil sejam muito recentes, sabe-se que estudos desta natureza podem contribuir com aportes importantes para aperfeiçoar a gestão, desde que os próprios gestores manifestem interesse de contar com tais estudos. A meu ver, é sempre a partir do consentimento e estabelecimento de acordos entre gestores, avaliadores e os próprios componentes das equipes instadas nos serviços de saúde, que se possibilita o início de um processo de avaliação que vise trazer elementos para aperfeiçoar a formulação e implementação das políticas.

Para finalizar, deve-se lembrar com Gross et al. (1971) que os estudos de implementação são bastante adequados aos programas que introduzem inovações, os quais devem contar, por sua vez, com fortes apoios externos e internos às mudanças pretendidas; financiamento adequado; com mecanismos de identificação das necessidades dos membros das organizações e dos problemas organizacionais; com a aceitação, pelos membros, das necessidades de mudanças; treinamento e capacitações dos profissionais para as novas tarefas; com os apoios e agentes favoráveis às mudanças, instados nas burocracias. Deve-se lembrar ainda da necessidade de aquiescência e apoio da população beneficiária do programa à qual se deseja prestar a atenção básica domiciliar.

Referências bibliográficas

Canesqui A M 2000. Avaliação de políticas e programas sociais: conceitos e tipos de pesquisas. Cadernos de Serviço Social. Número especial, n. 17 outubro pp. 85-103.

Gross N, Gianquita J, Bernstein M 1971. Implementing organizational inovation. A sociological analysis of planned education changes. Basic Books Inc. Publisher, Nova York.

Subirats J 1993 Análisis de políticas públicas y eficacia de la admnistración. Ministerio para las Administraciones Publicas. Serie Administración General, Madri.

Luiz Cordoni Jr. 1

Uma agenda para a análise do SUS

A guideline for the analysis of the Unified Health System (SUS)

1 Departamento de Saúde Coletiva, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Estadual de Londrina PR.

cordoni@sercomtel.com.br

O artigo de Regina Bodstein lança um olhar abrangente sobre o desenvolvimento do SUS, articulando diversos cenários e atores que se combinam, a partir do foco sobre a atenção básica.

As considerações iniciais versam sobre os desafios metodológicos da avaliação em saúde. Tais desafios levam, por vezes, a uma postura paralisante do pesquisador que valoriza apenas as avaliações de resultado e impacto. Worthen et al. (1997) mencionam a utilidade das avaliações de contexto e de processo. Estas, associadas àquelas, permitem antever os rumos de determinadas políticas. Diz a autora, apoiando-se em McKinlay, Hartz, Denis & Champagne: "[...] identificar o contexto de implantação dos programas e intervenções por um lado, e enfatizar a importância da avaliação processual, por outro, são questões cada vez mais enfatizadas na literatura sobre o tema", acrescentando, "a análise do contexto de implantação é imprescindível para se alcançar uma compreensão mais global da intervenção, identificando processos e resultados intermediários, porém fundamentais". Há necessidade "[...] de se priorizar a avaliação de processo vis-à-vis contextos específicos."

Ainda em termos metodológicos, a leitura do trabalho permite perceber que a avaliação de parte de um todo maior pode levar ao conhecimento que transcende a parte avaliada. Assim, propõe a autora que se tome como objeto de investigação a rede básica como indicativo da política de descentralização, pois, "mudanças ocorridas no sentido da universalização e da reorganização da rede e das ações básicas em saúde sob a responsabilidade municipal podem servir indiretamente para a avaliação do processo de descentralização da rede de serviços de saúde [...]".

A seguir, analisa os instrumentos utilizados para a implementação da atenção básica, com destaque para o papel das Normas Operacionais Básicas do SUS (NOBs). Constata que somente "a partir de 1998, ano em que a NOB/96 efetivamente entra em vigor, há uma alavancagem importante no ritmo e no alcance do processo descentralizador". Aqui fica introduzida importante polêmica sobre o papel indutor do nível central (governo federal) na mudança do modelo assistencial. Polêmica estabelecida no interior do movimento sanitário, ou seja, entre autores/atores que não discordam dos princípios do SUS e da necessidade de desenvolvê-lo. De um lado, os que aprovam tal indução, como a autora do artigo ora discutido e, de outro, os que interpretam a intervenção do governo central como indevida recentralização do sistema.

A mesma autora, em artigo anterior (Bodstein, 2001), admite que "a partir de 1996 [...] são implementadas medidas de incentivo para os municípios assumirem, parcial ou totalmente, a gestão dos serviços de saúde, deslanchando uma política deliberada do governo central em prol da municipalização da assistência, com ênfase na responsabilização direta do gestor local em relação à chamada rede de atendimento básico". E neste trabalho em debate, referindo-se à indução do governo central ao fortalecimento das secretarias municipais, afirma: "parece evidente que na medida em que uma série de pré-requisitos para a habilitação dos municípios (plano de saúde municipal, conta PAB, relatório de gestão, fundo de saúde, implantação de banco de dados nacionais de saúde, a criação dos CMS) é exigida, essa é uma preocupação presente na estrutura normativa montada."

Barros (2001) defende a tese da recentralização. Discorrendo sobre as mudanças operadas pela NOB 96, afirma que a recentralização se expressa "[...] na criação de condicionalidades para o acesso aos recursos em determinadas áreas, como a exigência de implementar programas federais, definidos de modo centralizado [...]".

Ora, se examinamos quais são as "condicionalidades", verificamos que são, por exemplo, a implantação, pelos municípios, da vigilância sanitária, da vigilância epidemiológica, do programa de medicamentos básicos e do Programa de Saúde da Família.

Creio não haver discordância que os serviços acima fazem parte do redirecionamento do modelo assistencial, pelo menos no que diz respeito à integralidade e à descentralização das ações e serviços de saúde. Assim, a pergunta que se faz é: os municípios venceriam a inércia determinada pelo modelo dominante, hospitalocêntrico, curativista, irracionalmente especializado, etc., somente por força do texto constitucional e das leis 8.080 e 8.142? Certamente que não. E quanto à legitimidade de o governo central induzir a mudanças na direção apontada, esta emana do movimento da Reforma Sanitária, consagrado na 8a Conferência Nacional de Saúde e legitimado constitucionalmente e nas leis orgânicas da saúde.

Além de induzir a implantação dos serviços acima, destaca a autora que a NOB/96 "[...] obriga a criação do Fundo Municipal de Saúde e do Conselho Municipal de Saúde [...] como condição de habilitação ao PAB [...]", cabendo aqui pergunta semelhante àquela do parágrafo anterior: sem tal "indução", tais fatos ocorreriam? Pesquisa conduzida por Cordoni, Gutierrez & Lopes (não-publicada) em 15 municípios da região de Londrina (PR), constatou que todos possuíam fundos e conselhos municipais de saúde e que em mais da metade dos conselhos os usuários figuravam em número igual ou superior a 50% dos membros componentes.

Bem verdade que as medidas induzidas ou obrigadas pelas NOBs não asseguram, por si só, a reversão do modelo e a implantação de conselhos não asseguram maior accountability e controle social, reconhece o trabalho aqui discutido. No caso dos conselhos, sua existência se constitui em condição necessária, porém não suficiente para o bom desempenho das políticas públicas aqui consideradas. "Ainda que fundamentais para o fortalecimento do capital social local, os conselhos dependem em grande parte do desempenho do poder público", afirma a autora citando Putnam.

Para concluir, pode-se afirmar que o trabalho, embora focalize principalmente a atenção básica, demonstra as características multifacetadas do SUS, constituindo-se em uma agenda a ser consultada por todos os interessados em analisar e avaliar o processo de construção de nosso sistema de saúde.

Referências bibliográficas

Barros E 2001. Implementação do SUS: recentralizar será o caminho? Ciência e Saúde Coletiva 6(2):307-313.

Bodstein R 2001. Desafios na implementação do SUS nos anos 90. Ciência e Saúde Coletiva 6(2):314-317.

Worthen BR, Sanders JR & Fitzpatrick JL 1997. Program evaluation: alternative approaches and practical guidelines. Ed. Longman, Nova York, 558pp.

Zulmira Maria de Araújo Hartz 1

Institucionalizar e qualificar a avaliação: outros desafios para a atenção básica

Institutionalizing and qualifying the evaluation: other challenges for primary care

1 Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. zulmira@ensp.fiocruz.br

A leitura do oportuno e esclarecedor artigo de Regina Bodstein, ao destacar a importância e os desafios metodológicos da avaliação da atenção básica, estimulou-me a articular a integração de dois outros componentes - político e organizacional - que julgo fundamentais nesta discussão: qualificar e institucionalizar a avaliação nos diversos níveis de governo comprometidos com as mudanças do modelo assistencial no SUS.

O desafio de "qualificar" as avaliações realizadas está diretamente vinculado ao segundo, uma vez que tais processos não podem ser implantados sem um claro incentivo à capacitação de recursos humanos, do nível central ao local, que assegure, aos produtos desse esforço institucional, a utilidade e a validade requeridas neste investimento, mas, dada a restrição do espaço reservado ao debate, limitar-me-ei em pontuar o que julgo serem os principais problemas específicos da institucionalização.

Institucionalizar a avaliação tem aqui o sentido de integrá-la em um sistema organizacional no qual esta seja capaz de influenciar o seu comportamento, ou seja, um modelo orientado para a ação ligando necessariamente as atividades analíticas às de gestão. O caráter institucional da avaliação supõe também definir formalmente as responsabilidades respectivas do comanditário (quem encomenda o estudo de avaliação) e dos avaliadores, de modo que o primeiro possa se apropriar dos resultados dos conhecimentos produzidos e integrá-los à sua própria visão da realidade. A decisão de institucionalizar a avaliação, no plano nacional, exige que seja definida uma "política de avaliação para a avaliação de políticas" com um mínimo de diretrizes: os propósitos e recursos atribuídos à avaliação (estrutura); a localização e abordagens metodológicas da(s) instância(s) de avaliação (prática), as relações estabelecidas com a gestão e a tomada de decisão (utilização) (Hartz, 1999).

Na abordagem preliminar desta temática, em âmbito setorial, eu já havia alertado para a falta de diretrizes claras que orientem esta política de avaliação, o que reforça abordagens fragmentárias e conservadoras, como a quase completa dissociação do sistema nacional de auditoria, tendência inversa à dos países desenvolvidos. De outro lado, na perspectiva dos programas de saúde, embora se observem algumas iniciativas de setores ou unidades de monitoramento e avaliação, que se constituiriam em espaços "estruturais" a serem privilegiados na institucionalização da avaliação de políticas ou programas, o impasse se dá, sobretudo, na incapacidade organizacional e funcional com que estes operam, sofrendo normalmente de uma carência de recursos humanos qualificados e excesso de atribuições decorrentes da necessidade permanente de implementação, gestão e análise dos bancos de dados ligados ao monitoramento.

No que concerne especificamente à atenção básica, no âmbito federal, esta questão é claramente percebida pelos investimentos relacionados ao Sistema de Informação (SIAB), considerado indispensável para acompanhar o rápido e amplo incremento do Programa de Saúde da Família (PSF), e pela impossibilidade de a mesma equipe apropriar-se simultaneamente dos ganhos obtidos com a implantação do novo modelo, ainda que financiando e apoiando diversos estudos com esta finalidade. Fica assim evidente a necessidade de se estabelecerem mais claramente os vínculos entre monitoramento e avaliação, como adverte Cracknell (2000): "tem sempre havido uma íntima ligação entre monitoramento e avaliação, às vezes muito íntima por acomodação (...) é inevitável que estas duas atividades estejam intimamente relacionadas, mas qual a natureza deste relacionamento (somente amigos, primos, irmãos ou mesmo gêmeos siameses?) é um questionamento que tem sido - e ainda é! - calorosamente debatido há anos".

O referido autor, conceituado e experiente avaliador internacional de programas sociais, tem alertado para o problema, atribuindo a sua origem, nos países em desenvolvimento, a uma certa universalização das práticas de combinar o monitoramento e a avaliação, quase como se as duas funções fossem sinônimos, na mesma unidade organizacional (M&E - Monitoring and Evaluation Unit), colocada como precondição de projetos com financiamento do Banco Mundial já nos anos 70. Um dos pontos resgatados por Cracknell que me parece fundamental no campo da saúde é o conceito de monitoramento, o qual originalmente deveria servir, sobretudo, ao gestor imediato de projeto, com maior uso de medidas qualitativas do que quantitativas dos processos, produtos e clientes, que não demandassem competências para a análise estatística de dados, uma vez que deveriam estar regularmente disponíveis para a tomada de decisões. Infortunadamente, esta não teria sido a orientação seguida, e complexos sistemas computadorizados tornaram o monitoramento muito mais uma ferramenta de controle e acompanhamento do nível central e/ou de organismos financiadores. Não deveria assim surpreender o fato de os gestores locais não verem sua utilidade e se irritarem com a sobrecarga da coleta de informações. Um importante relatório do Banco Mundial, de 1986, já chamava a atenção para a importância de que tal equívoco fosse resolvido, definindo-se a especificidade e a independência das diferentes funções (até separando-as, se possível), que devem operar com objetivos, métodos e usuários diversos.

Outros organismos vêm insistindo na mesma direção, tentando assegurar a complementaridade sem perda das particularidades de tais funções. Do texto do Unicef (2000), podemos destacar alguns dos itens que diferenciam o monitoramento x avaliação, respectivamente: periódico x episódico; foco nos produtos e resultados imediatos x efetividade e impacto; avaliadores internos x presença necessária de avaliadores externos, com incorporação da análise de dados que extrapolam as informações de rotina para incluir outros estudos e investigações. O manual da Unaids (2000) concorda com os mesmos atributos, distinguindo também o monitoramento do conceito de vigilância, ambos com coleta sistemática de informação, porém o primeiro concentraria o foco no programa, enquanto o segundo ocupar-se-ia dos danos e riscos (estes em menor freqüência nos sistemas atuais). O texto enfatiza a avaliação como um conjunto de atividades, desenhadas seqüencialmente, para se determinar o valor ou mérito de um programa, projeto ou intervenção que evidencie as relações entre os diferentes níveis de julgamento dos processos (integridade e qualidade da implementação) e seus efeitos. Abreviando o recurso às citações, poder-se-ia dizer que a avaliação engloba o conjunto de efeitos, esperados e imprevistos no desenho original da intervenção, em uma visão estratégica e sistêmica de ações compartilhadas e/ou competitivas, com maior alcance populacional, espacial e temporal.

Para uma efetiva associação do monitoramento e dos estudos de avaliação, seriam portanto necessárias medidas concretas de institucionalização desta convivência, o que implica mudanças organizacionais tais como: a designação de um pequeno grupo interdisciplinar de pesquisadores consultores, cuidadosamente selecionado, que dê assistência permanente ao processo de planejamento e gestão; a criação de um posto de supervisor/coordenador responsável por garantir o uso complementar das informações de monitoramento e pesquisas; uma equipe de divulgação encarregada de preparar estas informações para os diversos interessados; e um esforço de capacitação que permita ao staff dos programas se familiarizar com os principais métodos de pesquisa e que dê aos pesquisadores uma orientação das abordagens de gestão, conhecendo ambos o exercício e a importância de seus respectivos papéis e funções, claramente definidos. Um componente de capacitação (capacity building evaluation) ligando serviços e instituições de ensino-pesquisa em saúde pública facilitaria o cumprimento da missão institucional de ambos. Esses benefícios poderiam ser conseguidos com uma unidade de avaliação capaz de, entre outros objetivos, desenvolver e manter uma infra-estrutura para coordenar e apoiar projetos, estabelecendo o intercâmbio colaborativo com os atores das intervenções avaliadas e instituições acadêmicas (Hartz, 2000).

Para concluir, retomando a discussão aberta pela autora referente aos desafios que nos esperam como profissionais convidados a colaborar no debate do aperfeiçoamento das abordagens metodológicas de avaliação da atenção básica, eu gostaria de reiterar os posicionamentos anteriores que defendem a tese de que tais questionamentos e encaminhamentos precisam ser inseridos em uma "agenda de institucionalização". Tal agenda deve ser pautada por um amplo projeto de capacitação, permitindo, assim, descentralizar e qualificar adequadamente processos de monitoramento mais oportunos e relevantes para a tomada de decisão, articulados, sem se confundir, no espaço, que necessita ser ampliado para a avaliação das políticas e programas de saúde.

Referências bibliográficas

Cracknell BE 2000. Evaluating development aid. Sage, Londres, 386pp.

Hartz ZMA 2000. Pesquisa em avaliação da atenção básica: a necessária complementação do monitoramento. Divulgação em Saúde para Debate, 21:29-35.

Hartz ZMA 1999. Institutionalizing the evaluation of health programs and policies in France: cuisine internationale over fast food and sur mesure over ready-made. Cadernos de Saúde Pública, 15(2):229-260.

Unaids 2000. National AIDS Programmes. A guide to monitoring and evalution <www.unaids.org.br>.

Unicef 2000. A Unicef Guide for Monitoring and Evaluation <www.unicef.org>.

Eleonor Minho Conill 1

Complementando a discussão sobre a atenção básica: podem o acesso, a integralidade e o controle social se constituírem em temáticas de consenso para a avaliação da reforma brasileira?

Supplementing the discussion about primary care: accessibility, comprehensiveness and social control like consensus themes in order to evaluate Brazilian reform

1 Departamento de Saúde Pública, Núcleo de Apoio à Municipalização e Implementação do SUS em Santa Catarina/NAM-SUS, Universidade Federal de Santa Catarina. eleonor@repensul.ufsc.br

Preocupar-se com o nível local tem feito parte da trajetória de Regina Bodstein, que, com um estilo claro, incentiva o debate franco sobre a atual política de reorganização da atenção básica. Aponta um conjunto de questões que, apesar de útil para os rumos do SUS, pode, segundo a autora, ser considerado óbvio. Mas é justamente aí que reside a "força da tarefa": dar um tratamento acadêmico a questões importantes relacionadas com a prática e com o quotidiano assistencial, que tendem a permanecer escondidas nas discussões teóricas. Tratar desse óbvio escondido: iniciar seu mapeamento constitui um passo importante para promover a adequação dessas políticas. Minha contribuição consistirá em complementá-lo com um enfoque no campo da avaliação.

Enfim, a atenção básica torna-se relevante. Como compreender este processo no contexto brasileiro marcado por tantas diversidades e precariedades? A autora aponta para a necessidade de avaliações abrangentes, capazes de entender diferenças, captando mudanças ainda tênues e sutis. Reforça o recurso às metodologias qualitativas, análises de implantação e da avaliação de processos e resultados intermediários do desempenho institucional dos governos municipais. Deveríamos voltar a atenção para o compromisso, a capacidade de gestão, o controle social e para inovações não perceptíveis através de indicadores clássicos. Indaga, também, até que ponto pode-se esperar combater a pobreza com ações do sistema de saúde.

De fato, diferentemente da avaliação de atos médicos ou de tecnologias, a de programas e sistemas de saúde enfrenta de forma mais contundente pelo menos três desafios: a determinação multifatorial da saúde; a noção de julgamento de valor como núcleo essencial da prática avaliativa; e o fato de que seu objeto são processos de trabalho que visam contribuir para mudanças sociais.

A multifatorialidade do processo de saúde/ doença exige cuidados na medição de efeitos de políticas ou programas, necessitando que se leve em conta interações com outras variáveis que participam desse processo. O "peso", ou a importância, dos serviços tem sido tratado em modelos teóricos e em estudos empíricos de tipo quantitativo. A influência dos serviços em geral é considerada menor que a do ambiente (incluindo as relações sociais de produção), da biologia e do estilo de vida, pelo menos, quando os desfechos utilizados são indicadores da mortalidade (Hortale et al., 1999; Vogel & Ackermann, 1998). A mortalidade infantil, considerada até há pouco um indicador sensível à ação dos serviços e programas, tem sido alvo de controvérsias (Silva & Duran, 1990). Entretanto, outros autores como Miltom Terris (1992) reforçam o impacto das ações setoriais.

Utilizando os recursos de análise multivariada, investigamos recentemente, em 26 estados brasileiros e no Distrito Federal, a correlação entre indicadores demográficos, socioeconômicos e de oferta de recursos e serviços em saúde com os de morbidade e mortalidade. O acesso à água tratada, a renda e a escolaridade foram as variáveis que tiveram mais correlação com o padrão epidemiológico encontrado, constatando-se uma enorme desigualdade entre as Unidades Federadas. Este padrão não incluiu a mortalidade infantil, reforçando a hipótese do declínio de sua importância em estudos avaliativos (Conill & Marasciulo, 1998)

Na longa lista dos marcadores que compõem o Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB), esta questão parece ter sido levada em conta, com indicadores aparentemente sensíveis às ações dos serviços, tais como: valvulopatias reumáticas, hanseníase com grau de incapacidade II e III, meningite tuberculosa em menores de cinco anos, hospitalizações por complicações do diabete, citologia oncológica NIC III, carcinoma in situ e óbitos em menores de um ano por diarréia.

A lista é longa e exige revisão, não residindo aí o principal problema deste sistema, composto ainda por relatórios de produção, de acompanhamento das prioridades epidemiológicas e das famílias cadastradas, com distintos níveis de agregação (microárea, área, município). Embora haja alguns problemas relacionados a sua validade, a quantidade de dados é muito grande, mas até agora pouco utilizada. Sofisticou-se o universo de informações coletadas, mas o avanço é lento em direção a uma gestão comunicativa, no sentido que vem sendo trabalhado por Rivera (1996), ou seja, multidirecional, flexível e adaptada à cultura do meio. Seria salutar diminuir o excesso de papéis com pouco aproveitamento que hoje sobrecarrega equipes e administrações, mantendo-se o essencial para favorecer reflexão, diálogo e negociação sobre a prática, entre os atores locais.

Na tarefa de avaliar, a noção de "juízo" mescla-se com a objetividade da noção de "medida", tendo predominado a preocupação com esta última. O círculo avaliativo começa com a formação de valores já na definição de objetivos e aí termina, ao estabelecer-se o critério de "bom" que fundamenta o juízo avaliativo. A omissão em tratar a questão dos valores põe em plano secundário a avaliação ex-ante, minimizando a importância de compreender a sociedade ou a organização onde se aplicará a intervenção (Stenzel, 1996). Por esta razão, além da análise da implantação apontada no texto, queremos destacar também a importância da análise estratégica (o termo, reconheço, está um pouco desgastado), pesquisa avaliativa que visa determinar a pertinência da intervenção ao seu contexto (Contandriopoulos et al., 1997). Estudos desse tipo talvez pudessem favorecer adequações locais da política de atenção primária levando-se em conta culturas organizacionais e especificidades dos processos de trabalho em saúde.

A subjetividade da noção de valor leva a reconhecer a existência de diversos olhares sobre a mesma realidade e a necessidade de integrá-los. Para Campbell et al. (2000), a qualidade em nível individual é percebida como adequada ao obtermos cuidado resolutivo quando dele necessitamos, ou seja, o usuário valoriza o acesso e a efetividade das ações. Na dimensão coletiva, o interesse seria outro, sugerindo-se que a qualidade seja julgada em termos de eqüidade e custos.

Em 1996, um inquérito identificou as inovações mais freqüentes nas administrações municipais (Fleury & Carvalho, apud Conasems, 1997). Situavam-se na dimensão social, relacionadas com um melhor controle social através dos Conselhos, prestação de conta, permeabilidade às demandas e fornecimento de informações, sendo menores na esfera gerencial e assistencial. Alertava-se para as conseqüências desse desequilíbrio, já que mudanças sociais sem alterações perceptíveis no quotidiano assistencial poderiam gerar desencanto com a democratização dos serviços. Embora a conjuntura tenha mudado com trabalhos mais recentes indicando melhorias na oferta, é preciso cuidado ao permanecermos na avaliação de objetivos intermediários.

Penso que os três eixos sugeridos no texto, o acesso, a integralidade e o controle social, em torno dos quais se articulam as transformações pretendidas pela reforma brasileira, podem constituir-se em temáticas consensuais para estudos avaliativos. Contemplam as preocupações da autora, pois são objetivos intermediários dos serviços e instituições, cuja verificação da implantação é passo importante para determinação de efeitos na situação de saúde. Atendem também aos interesses dos usuários, podendo ser operacionalizados tanto em nível macrossocial como na esfera local. Alguns trabalhos têm sido realizados, visando determinar a validade de conteúdo e a validade de construção dessas categorias e podem auxiliar na continuidade do debate (Hortale et al., 1999; Giovanella et al., 2000; Ortiga, 1999; Conill et al., 2002).

Finalmente, um aspecto relevante pouco presente no texto relaciona-se com a avaliação econômica. Afinal, quanto seria necessário gastar para que os municípios realizem com qualidade as responsabilidades e ações estratégicas mínimas de atenção básica, definidas no anexo 1 da Norma Operacional da Assistência à Saúde/NOAS - SUS 01/2001? Dar prioridade ao local nos estudos de economia da saúde pode nos auxiliar a verificar até que ponto a política de atenção primária é ou não retórica, compreendendo, em parte, a razão do fetiche que os planos de saúde exercem sobre a população.

Ainda que não seja possível esquecer os eternos limites estruturais impostos pela nossa inserção periférica na ordem (desordem?) mundial, o financiamento é um poderoso indicador de compromisso do poder público. Apesar de contraditório, o SUS tem mostrado uma invejável persistência aos efeitos devastadores das políticas neoliberais. Avaliemos portanto, ao que tudo indica, essa sensata teimosia.

Referências bibliográficas

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Conill EM & Marasciulo AC 2001. Health services and health results: the case of Brazil in the mid 90´s. International Journal of Health Service (aceito para publicação).

Contandriopoulos AP, Champagne EF, Denis JL & Pineault R 1997. A avaliação na área da saúde: conceitos e métodos, pp. 29-45. In Hartz ZMA (org.). Avaliação em saúde. Dos modelos conceituais à prática na análise da implantação de programas. Fiocruz, Rio de Janeiro.

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Hortale V, Conill EM & Pedroza M 1999. Desafios na construção de um modelo para a análise comparada da organização de serviços de saúde. Cadernos de Saúde Pública 15:79-88.

MS (Ministério da Saúde) 2001. Portaria MS/95 de 26/ 01/2001. Norma Operacional de Assistência à Saúde SUS 01/2001. Diário Oficial da União, 26/01/01.

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Silva LCSA & Duran EDM 1990. Mortalidad infantil y condiciones higienicosociales en las Américas. Un estudio de correlación. Revista de Saúde Pública 24:473-480.

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Terris M 1992. La Situación de salud en las Américas, pp. 75-89 In Salud internacional, un debate Norte-Sur. Organización Panamericana de la Salud, Washington, DC.

Vogel RL & Ackermann RJ 1998. Is primary care physician supply correlated with health outcomes? International Journal of Health Services 28:183-196.

Carmen Fontes Teixeira 1

Descentralização do SUS: múltiplos efeitos, múltiplos olhares

Decentralization of SUS: multiples effects, multiples points of view

1 Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia. carment@terra.com.br

O artigo de Regina Bodstein traz uma grande contribuição ao debate acerca do processo de implementação da política de descentralização da gestão do SUS, na medida em que discute as múltiplas perspectivas metodológicas de avaliação desse processo, ao tempo em que sugere alguns elementos teóricos que podem vir a enriquecer a análise e interpretação dos determinantes sociais e dos efeitos e resultados político-institucionais da descentralização nos diversos contextos que se configuram nos estados e municípios do país.

Buscando estabelecer um diálogo com a autora, gostaria de comentar três aspectos que me parecem fundamentais em sua argumentação: a) a importância de se diversificarem os objetos e níveis de avaliação do processo de implementação da política de descentralização; b) a possibilidade de se redefinir conceitualmente o objeto de avaliação quando se pretenda investigar o desempenho institucional no setor (ministério, secretarias e outras instituições); c) as implicações políticas e práticas da diversificação de perspectivas na produção do conhecimento acerca do processo e dos efeitos da descentralização da gestão do SUS.

Antes, porém, é importante ressaltar que o artigo de Regina se inscreve no contexto mais recente do desenvolvimento dos estudos e pesquisas na área de Saúde Coletiva, no qual vem se verificando um interesse redobrado na elaboração e execução de projetos de avaliação de políticas, programas, sistemas e serviços de saúde, uma das conseqüências, até mesmo, do processo de construção do SUS durante os anos 90. Retomando brevemente as características dos períodos nos quais vêm se constituindo o campo da Saúde Coletiva, como campo de produção de conhecimentos e de práticas de intervenção sobre as políticas e práticas de saúde, cabe recordar que o período 1975-1985 foi marcado pela intensificação do debate e formulação de propostas políticas de reforma (RSB) fundamentadas em estudos e pesquisas que analisavam criticamente a "crise do setor saúde" e seus determinantes.

O período subseqüente, particularmente o triênio 1987-1989, foi marcado pela experimentação de alternativas de gestão, financiamento e organização dos serviços de saúde no contexto de implementação do SUDS, sendo que, a partir da implementação do SUS, particularmente com o desenvolvimento do processo de descentralização induzido pelo MS com as Normas Operacionais Básicas, durante os anos 90, é que vem crescendo o interesse dos pesquisadores, tanto em problematizar as características desse processo quanto em avaliar seus efeitos no âmbito do sistema de serviços públicos de saúde.

O artigo de Regina propõe, exatamente, uma nova interpretação das estratégias de mudança da gestão do sistema (municipalização induzida pelo nível central) e das estratégias governamentais de reorganização dos serviços, especialmente a Atenção Básica como objeto privilegiado das propostas de mudança no financiamento (PAB) e organização da oferta de ações e serviços (PACS/PSF). Tomando como pressuposto a complexidade do processo de descentralização e assumindo a multiplicidade de perspectivas sob as quais este pode ser investigado, a autora busca sistematizar, no item "Desafios metodológicos", um quadro analítico que contempla vários objetos e níveis de avaliação.

Inspirada na leitura do texto, e procurando contribuir para a construção desse quadro analítico, creio que podemos considerar que o processo de descentralização produz múltiplos "efeitos" em vários níveis de organização do sistema, quer nas estruturas e práticas desenvolvidas no seu "ambiente interno", quer nas relações com os o "ambiente externo", o que exige do pesquisador a definição do "nível de ancoragem" (Samaja, 1994) da sua avaliação.

Assim, é possível investigar os efeitos da descentralização na estrutura político-institucional, organizativa e operacional do sistema em vários níveis de governo (federal, estadual, municipal), podendo-se adotar distintas perspectivas de análise - política, administrativo-gerencial ou econômica, que dêem conta de alterações nas práticas de gestão e financiamento, na organização dos serviços ("modelo de atenção à saúde") e na infra-estrutura do sistema (rede física, pessoal e equipamentos).

Também é possível investigar os efeitos da descentralização como alterações nos produtos do sistema, em termos da produção de ações e serviços (perfil de oferta) do ponto de vista quantitativo e qualitativo, quer ainda nos resultados esperados no que diz respeito aos efeitos sobre a "situação de saúde", isto é, na melhoria dos indicadores de morbi-mortalidade (em uma perspectiva técnico-sanitária) ou ainda na aceitação e satisfação da população usuária (em uma perspectiva socioantropológica).

Além da diversidade de objetos de avaliação, correspondente à multiplicidade de efeitos possíveis do processo de descentralização, é possível se incorporar a noção de "planos de profundidade" das mudanças, contribuição recente de Almeida (1997) ao investigar as propostas de reforma da educação médica. O autor utiliza criativamente a distinção entre "inovação", "mudança" e "transformação", para caracterizar alterações fenomênicas, processuais ou estruturais no(s) objeto(s) de intervenção. No caso dos estudos sobre os efeitos da descentralização, os "planos de profundidade" da mudança podem ser referidos à gestão do sistema de saúde, à organização das ações e serviços, à infra-estrutura de recursos, ao perfil de oferta, aos resultados clínico-epidemiológicos e aos efeitos sobre a percepção e as representações da população acerca da saúde e dos serviços de saúde, gerando, em cada um desses níveis, a construção de "tipologias" que dêem conta do grau de profundidade das mudanças introduzidas.

Como se pode perceber, o enfrentamento dos "desafios metodológicos" dos estudos e pesquisas avaliativas na nossa área abre um leque de possibilidades de articulação da contribuição de vários autores, subsidiando o desenvolvimento de projetos que abordem aspectos específicos, na busca de reconstrução analítica e compreensão da complexidade do processo no qual estamos direta ou indiretamente envolvidos. Nesse sentido, a contribuição de Regina é extremamente oportuna ao provocar a reflexão e estimular o diálogo entre instituições e núcleos de investigação que estão desenvolvendo projetos nessa linha.

O segundo aspecto que gostaria de ressaltar da contribuição do artigo de Regina diz respeito às sugestões da autora quanto ao enriquecimento teórico dos estudos acerca da gestão do SUS. Ao enfatizar "a importância de se avaliarem processos e resultados intermediários voltados para o desempenho institucional, que podem ser traduzidos em vontade política e compromisso público, capacidade de gestão e maior controle e participação social", Regina introduz a noção de "desempenho institucional", entendido como resultante das relações estabelecidas entre o governo e a comunidade local (Putnam, 2000), categoria que pode vir a ser utilizada amplamente na análise das características e dos determinantes estruturais e históricos das práticas governamentais em saúde.

Concordo inteiramente com a autora sobre a importância de estudos dessa natureza, o que resgata a proposta de se investigar "como o governo governa" (Paim, 1992), o que implica analisar instituições e práticas institucionais onde se materializam as políticas e programas, gerando ações concretas em termos de tomada de decisão, planejamento, programação, coordenação, controle e avaliação de ações e serviços de saúde. Mais do que investigar as decisões e ações "em si" como produto de processos político-gerenciais e técnico-operacionais que se desenvolvem no âmbito das instituições de saúde, caberia, entretanto, investigar os sujeitos desses processos, quer os dirigentes e a burocracia governamental, quer os profissionais e trabalhadores de saúde, quer a população, não apenas como usuários, consumidores dos serviços produzidos, senão no papel de sujeitos, cujo protagonismo, quer na tomada de decisão, quer no controle e avaliação da gestão do sistema, vem sendo estimulado no processo de construção do SUS.

Ao enfatizar a necessidade de avaliação do "desempenho institucional", portanto, o artigo de Regina, além de reforçar a importância de estudos que abordem as práticas de condução político-gerencial do sistema de saúde, nos vários níveis de governo, especialmente ao nível municipal, reforça a importância de se levar em conta a heterogeneidade econômica, política e cultural existente entre as diversas regiões, estados e municípios do país. Desse modo, reafirma a importância das "variáveis contextuais", ou seja, a importância da análise dos contextos onde se desenvolve o processo de implementação das políticas de descentralização, não apenas como "cenário" que o emoldura, mas como conjunto de elementos que podem contribuir para a construção da explicação e da compreensão acerca das características do processo e dos resultados alcançados.

Penso que estas indicações e sugestões contidas no artigo de Regina são extremamente estimulantes para quem estuda e trabalha com questões relacionadas com a gestão de políticas e a gerência de programas e projetos em saúde, na medida em que aponta a possibilidade de "outros olhares" sobre políticas, estratégias e programas, a exemplo das Normas Operacionais Básicas ou programas como o PACS e PSF, que vão além do seu significado como instrumentos gerenciais para a introdução de inovações, mudança ou transformação na gestão e financiamento do sistema de saúde ou na organização do modelo de atenção. A "ressignificação" da noção de "desempenho institucional", à luz dos estudos de Putnam, amplia a perspectiva de análise do processo de gestão do SUS, uma vez que incorpora as relações estabelecidas entre os vários atores envolvidos nesse processo, não só os dirigentes e as equipes de governo das instituições gestoras nos diversos níveis, mas também os profissionais e trabalhadores de saúde, as organizações profissionais, comunitárias e outras entidades representativas da população, participantes (ou não) dos Conselhos de saúde. Acrescentaria apenas a necessidade de não se esquecer da mídia, "ator" social e político cujo peso na formação de opinião e no direcionamento do processo político em geral e em saúde, em particular, não pode ser desprezado.

Com isso, creio que uma das principais implicações políticas e práticas do desenvolvimento de estudos na perspectiva apontada pelo artigo de Regina, sem dúvida, será a de lançar luzes sobre a compreensão da complexidade do processo político em saúde nos vários níveis de governo (federal, estadual e municipal), especialmente levando-se em conta as especificidades político-institucionais de cada secretaria estadual e municipal de Saúde em suas inter-relações com o contexto político e social de cada estado e município. Do mesmo modo, creio que a multiplicação de estudos que dêem conta das especificidades da "cultura cívica" da população das diferentes regiões, dos diversos estados e municípios, ainda que realizados a partir da seleção de "casos", poderá contribuir para a acumulação de conhecimentos e experiências que permitam a flexibilização e adaptação de estratégias político-institucionais à variabilidade de situações existentes no país. E isso tanto do ponto de vista econômico, político e cultural em geral, quanto do ponto de vista da "herança" em termos da situação de saúde da população e dos problemas do sistema de serviço de saúde aos quais a política de saúde tenta dar respostas compatíveis com os valores incorporados à legislação básica do SUS e com as necessidades e aspirações dos diversos grupos da população, especialmente aqueles que não conhecem ainda o significado dos direitos de cidadania.

Finalmente, cabe um último comentário acerca da importância do desenvolvimento de estudos que tomem como objeto os efeitos de programas como PACS/PSF na perspectiva apontada por Regina, dando conta do seu eventual "impacto" sobre os indicadores de saúde e cobertura de ações básicas e, também, dos efeitos que tem produzido (ou não) na "mudança do modelo assistencial", isto é, na reversão do caráter essencialmente médico-assistencial, hospitalocêntrico e curativo dos serviços de saúde oferecidos à população. Embora alguns estudos venham demonstrando que a implementação do PACS/PSF tem gerado efeitos inegáveis no aumento do volume da prestação de serviços básicos e na incorporação de ações de prevenção de riscos e agravos, especialmente junto a determinados grupos da população alvo dos programas, não há evidências suficientes que apontem para a institucionalização de ações e práticas de promoção da saúde nas áreas cobertas por estes programas, o que sugere a necessidade de esforços muito mais amplos para o desenvolvimento desse componente essencial à integralidade do cuidado à saúde (Teixeira, 2002a).

Estudos acerca das estratégias que vêm sendo acionadas no âmbito municipal e local, induzidas ou não pela implementação do PACS/ PSF, podem contribuir para a relativização da "crença" de que, "em si mesmos", estes programas são "inovadores", constituindo-se em "estratégias de mudança e transformação" do modelo de atenção à saúde. Ainda que essa crença possa ser útil na conquista da adesão política aos programas, elemento importante para garantir a viabilidade de sua implantação em diferentes contextos, ela obscurece um aspecto fundamental, qual seja, o de que cada programa, como de resto qualquer política ou projeto em saúde, será aquilo que os sujeitos concretos poderão fazer em condições históricas determinadas, ainda que possam transformá-las por sua ação política, seja no âmbito institucional propriamente dito, seja no âmbito social mais amplo.

Desse modo, é importante enfatizar que a implementação das propostas de reforma em saúde, sejam quais forem, implica, sempre, a construção de alianças estratégicas e a neutralização de oposições e resistências à inovação, mudança e transformação das práticas, quer de gestão, quer de atenção à saúde. Daí a necessidade de realização de estudos e pesquisas que contribuam para a compreensão desse processo, tanto pesquisas avaliativas dos resultados alcançados como estudos de caso de experiências bem (ou mal) sucedidas que permitam a elucidação dos elementos que facilitam ou obstaculizam a implementação das políticas, estratégias e programas de saúde em nosso meio (Teixeira e Solla, 2002).

Para o desenvolvimento desses estudos, sem dúvida, é essencial o diálogo permanente entre os pesquisadores da área, ora enriquecido com as contribuições trazidas pelo artigo de Regina Bodstein, cuja leitura estimula a reflexão e a busca de perspectivas de análise que permitam a construção de outros olhares sobre o SUS, capazes de subsidiar as práticas necessárias à sua efetiva consolidação.

Referências bibliográficas

Almeida MJ 1997. Educação médica e saúde: limites e possibilidades das propostas de mudança. Tese de doutorado. Faculdade de Saúde Pública da USP, São Paulo, 283pp.

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Samaja J 1994. Epistemologia y metodologia: elementos para uma teoria de la investigación científica. EUDEBA, Buenos Aires, 412pp.

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Teixeira CF & Solla JP 2002. Gestão do processo de implantação do Programa de Saúde da Família no município de Vitória da Conquista 1998-2002. Versão preliminar, 26pp.

Regina Bodstein

A autora responde

The author replies

O objetivo aqui é tratar, na medida do possível, de alguns aspectos e questões levantados pelos comentários ao meu artigo, dando continuidade a um debate que creio bastante promissor. Nessa perspectiva, gostaria de enfatizar que a grande motivação e o pressuposto da argumentação e, por isso mesmo, fio condutor do meu artigo diz respeito a uma defesa intransigente de todos os esforços em prol da democratização do acesso aos serviços de saúde. Tais esforços parecem mais com um grande desafio, tratando-se de um país como o nosso com enormes desigualdades sociais. Como decorrência, não creio que essa democratização possa ocorrer sem que se equacione a questão da atenção básica vis-à-vis às mudanças no modelo assistencial, com ênfase nas ações de promoção à saúde.

O que não se pode é escamotear o fato de que existe ainda hoje no país um contingente significativo de população sem acesso ou pelo menos com um grau razoável de dificuldade em acessar os serviços e bens essenciais de saúde. Assim, é necessário esclarecer que, diferentemente do que nos diz José Mendes no seu comentário de que "a distribuição... (do PSF) foi focalizada segundo classes de renda", penso que o núcleo duro da questão é que o PSF foi implantado visando alcançar o grupo dos "sem-serviços de saúde" ou, quem sabe, do contingente de população "sem-médico". Dessa forma, estaria reproduzindo o velho modelo de um simples "programa de extensão de cobertura".

Mesmo assim arriscaria dizer que é exatamente aí que residem "as delícias e o inferno" de o PACS/PSF ser o que é: um programa que "tem efeitos inegáveis no aumento do volume da prestação de serviços básicos e na incorporação de ações de prevenção de riscos e agravos, especialmente junto a determinados grupos da população alvo...", como sintetiza Carmem Teixeira em seu comentário.

De fato, se a pobreza, e o que é definido como injustiça do ponto de vista social, pode ser vista como falta de acesso sistemático a um conjunto de bens e serviços essenciais (renda, educação, saúde, habitação saudável e segurança pública), as políticas sociais, longe de serem paliativas ou meramente compensatórias - desde que desenhadas com eqüidade e implementadas com certo grau de eficiência -, têm um papel crucial no combate à pobreza. Ora, dentro dessa perspectiva, programas como o PSF são inteiramente coerentes, oportunos e necessários se não para alterar a estrutura da desigualdade do país, pelo menos para responder ao déficit de ações e serviços de saúde.

Do ponto de vista normativo é necessário ressaltar que as atividades de promoção e de atenção básica, longe de representarem uma questão menor dentro da complexidade do sistema de saúde, devem ser priorizadas exatamente porque compõem o elenco de bens essenciais no campo da saúde pública. Assim, a ampliação e reorganização dessas atividades e ações, fundamentais para a diminuição do déficit na oferta geral de serviços, indiretamente contribuem para a melhoria da qualidade de vida e saúde da população.

No caso das políticas de saúde há certamente uma convergência quanto à importância e centralidade da atenção básica ou primária no planejamento dos sistemas de saúde, desde a Conferência de Alma-Ata em 1978. Porém até hoje pelo menos dois grandes desafios estão postos nesse campo no Brasil:

1. a necessidade de expandir a oferta desses serviços e atividades, promovendo uma universalização das ações médico-sanitárias vis-à-vis às imensas restrições orçamentárias;

2. a definição do conteúdo dos serviços e atividades a serem universalizados, devendo ser uma resposta efetiva não só à demanda e/ou necessidades existentes, mas acima de tudo centrada em medidas de promoção e prevenção em saúde, daí a necessidade de reorganização da atenção básica e de mudança do modelo assistencial.

O debate técnico sobre a definição do conteúdo e da abrangência da atenção básica em termos de atividades e serviços é certamente importante, como o comentário de José Mendes Ribeiro ressalta com toda a propriedade. O autor chama a atenção para a discussão entre o que seria, do meu ponto de vista, uma cesta ideal de atenção básica e uma outra minimalista, sendo esta, ao que tudo indica, a que está de fato sendo implementada. Mesmo, aceitando a pobreza da cesta e suas limitações intrínsecas, a importância da sua avaliação não pode ser subestimada.

Mas do ponto de vista da negociação política concreta e, portanto, das atividades de planejamento e gestão é necessário considerar que metas muito ambiciosas, normalmente envolvendo um grau mais elevado de recursos, podem inviabilizar sua implementação, dificultando ou impedindo sua expansão e universalização. No plano político se trabalha com o possível e não com o ideal. As políticas sociais, como já foi bastante ressaltado na literatura, traduzem sempre escolhas trágicas. Daí o desafio e a importância da avaliação.

Assim, de fato, como E. Conill ressaltou, os três principais eixos que devem nortear as propostas de avaliação das mudanças introduzidas na atenção básica (o acesso, a integralidade e o controle social), apesar de serem valores inquestionáveis, apresentam uma dificuldade real de serem traduzidos em indicadores. Concordo inteiramente com o argumento de Conill quando critica a longa lista de marcadores do Sistema de Informações da Atenção Básica/SIAB, aparentemente tão sofisticados e exaustivos, porém de difícil apropriação e reflexão para os gestores locais. Um último ponto levantado por Conill diz respeito à quase ausência de avaliações econômicas do SUS no Brasil. Concordo inteiramente, mas neste aspecto é conveniente também não cair em conclusões precipitadas. A partir de estudos e avaliações ainda em andamento, é possível pensar na possibilidade de o PAB fixo e sua parte variável ter representado de fato uma política distributiva, de fortalecimento dos recursos financeiros alocados para a atenção básica na maioria dos municípios brasileiros.

Os comentários de Carmem Teixeira certamente enriquecem o debate, contribuindo em certo sentido para uma melhor percepção dos desafios metodológicos da avaliação da gestão descentralizada, do ponto de vista da qualificação do bom desempenho dos municípios e dos gestores locais do setor saúde. A autora tem inteira razão ao enfatizar a multiplicidade de efeitos da descentralização, e daí a importância de o avaliador precisar e definir o objeto e o nível em que se situa o desenho avaliativo proposto.

Carmem Teixeira também nos lembra uma questão extremamente importante e que certamente não foi enfatizada na minha argumentação: no final das contas, as ações, programas e atividades são sempre relações entre sujeitos. Por aí talvez se expliquem as resistências, os conflitos e o mal-estar que a perspectiva avaliativa freqüentemente traz e que a metodologia da avaliação participativa procura contornar. Por fim, concordo inteiramente com Carmem quando nos lembra que as ações e práticas de promoção da saúde ainda estão longe de terem sido implementadas pelos programas PACS/PSF, sendo, nesta medida, impossível de se falar de uma mudança em curso no modelo assistencial.

Compartilho com Ana Maria Canesqui a preocupação de que os desenhos metodológicos incluam tanto questões estruturais, ou mais hards, como ela nos diz, e questões locais. O ponto que quis ressaltar, sem esquecer que nada mais prático do que uma boa teoria, é que o conhecimento empírico é primeiramente local. As pesquisas avaliativas trazem a perspectiva da busca de evidências: do que funciona ou não, do que merece ser generalizado, expandido e identificado como best practice. Ou ao contrário, aspectos ou programas inteiros que de fato são ineficazes, ineficientes, etc. e, dessa forma, sua importância é crucial para o processo decisório e para subsidiar uma gestão socialmente responsável. Assim, no caso do processo de descentralização do SUS, das mudanças nos serviços e na atenção básica, as análises em profundidade ou "estudos de caso" parecem da maior relevância, trazendo evidências sobre alguns efeitos e impactos deste processo.

Não posso deixar de concordar inteiramente com Luiz Cordoni sobre o papel virtuoso do processo de indução, pelo governo central, de implementação pelos municípios de determinados programas essenciais na concepção da saúde pública e da atenção básica: vigilância sanitária, combate às carências nutricionais, programa de imunização, farmácia básica, etc. Conhecendo a realidade da imensa maioria dos municípios brasileiros no que diz respeito à fragilidade da estrutura de saúde pública e dos recursos disponíveis, pesquisas em andamento vêm trazendo evidências das mudanças ocorridas a partir de um conjunto de transformações de certa forma capitaneadas pela criação do PAB. São mudanças pequenas, processuais e ainda sem maiores evidências de seus impactos na saúde da população - principalmente concentradas nos pequenos municípios -, mas que devem ser monitoradas, sistematizadas e, acima de tudo, divulgadas.

O comentário de Zulmira, por sua vez, aborda uma questão crucial e que de fato merece ser ressaltada e aprofundada. A perspectiva da avaliação ganha relevância exatamente na medida em que integra práticas de saúde pública e reflexões e conhecimentos mais analíticos e acadêmicos. Assim, a relação e, mais do que isso, o compromisso entre a academia e os serviços e as atividades de pesquisa e de gestão, tão necessárias e preconizadas, encontra na avaliação um campo fértil. O que Zulmira ressalta em seu comentário é a importância da institucionalização e da capacitação de recursos humanos em avaliação. Do meu ponto de vista, trata-se de chamar a atenção para o fato de que a avaliação deve ser vista como uma função crucial da gestão. Ou seja, uma atividade intrínseca e inseparável do planejamento e da gestão. Daí, a necessidade de se promover e de se desenhar uma política explícita de capacitação para futuros gestores/avaliadores em programas e projetos de saúde.

Outro ponto que chama a atenção na reflexão de Zulmira, e que certamente contribui para o debate, é a distinção entre avaliação e monitoramento, sendo o este uma atividade mais ligada ao gestor imediato do projeto, gerando informações cruciais para o processo decisório e para as mudanças e aperfeiçoamentos necessários no rumo dos programas. Entendo que a distinção entre avaliação e monitoramento como a debatedora coloca, antes de ser uma questão meramente semântica, ressalta um ponto que procurei refletir no meu artigo: a importância das "avaliações processuais" e dos chamados resultados intermediários. Assim, o comentário de Zulmira avança no debate e nas questões conceituais do campo da avaliação de uma maneira geral e do papel do monitoramento nos serviços e programas de saúde, em particular, na medida em que, essa é a minha leitura, sua função é gerar informações de curto e médio prazo e de fácil apropriação e utilidade para o dia a dia dos gestores.

As inúmeras possibilidades analíticas advindas dos estudos de avaliação, e que meu artigo procurou considerar, dizem respeito à necessidade de confrontar o ideal com o que foi de fato desenvolvido no plano das políticas e programas, de forma a torná-las mais equânimes, eficientes e mais efetivas. Além disso, foi pressuposto de toda a minha argumentação de que, de fato, há fortes evidências de mudanças mais ou menos abrangentes, mais ou menos profundas, mas, ao que parece, contínuas desde meados da década passada, no sentido de uma responsabilidade crescente do gestor local com os serviços e atividades básicas em saúde.

Finalmente, só me resta agradecer aos companheiros que aceitaram a tarefa um tanto ingrata de comentar e debater meu artigo (e que o fizeram de maneira tão carinhosa e solidária), acabando por enriquecer em muito a discussão, iluminando certos aspectos da temática. Certamente, fica o desafio e o incentivo de que apareçam e se multipliquem estudos, pesquisas e dissertações com forte base empírica, qualificando o sentido dos avanços, sem deixar de identificar os possíveis retrocessos na implementação do SUS entre nós.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Dez 2002
  • Data do Fascículo
    2002
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