RESENHAS
Uma luz no fim do túnel
Fernanda Godoy Falcão; Nelson Filice de Barros
Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas.
Parnia S. O que acontece quando morremos: um estudo sobre a vida após a morte. São Paulo: Larousse; 2008.
De repente, a escuridão. E eis que surge um longo túnel, com uma luz ao seu final, como que chamando para um local de paz e bem-estar. Seres o acompanham, lado a lado, e tudo é tranqüilidade. Mas há algo errado nisso. Ainda não é o momento, há mais coisas para se fazer antes de chegar ao fim do túnel! E num borrão, a cena divina é deixada para trás. Lá está você, olhando do teto, para a equipe médica tentando fazer seu coração voltar a bater. Com um forte tranco ele volta, bem como você ao seu corpo.
Este é um exemplo de Experiência de Quase Morte (EQM), com um efeito fora do corpo. Situações que intrigam e são ainda objeto de descrédito em diversos meios. Mas seria somente ilusão? Imaginação?
Após o atendimento de um senhor aparentemente estável que acabou evoluindo a óbito em menos de uma hora sob sua responsabilidade, o médico inglês Sam Parnia, na época em seu último ano de faculdade, decide iniciar sua busca pelas respostas que já tanto o intrigavam: como se dá esse processo de transição da vida para a morte? Como alguém que está entre nós, de repente não está mais? Suas pesquisas, relatadas nas 246 páginas do livro "O que acontece quando morremos - Um estudo sobre a vida após a morte", publicado pela editora Larousse, no ano de 2008, tentam desvendar a partir dos pontos de vista médico e científico, o que ocorre nessa fronteira entre a vida e a morte.
Ao se deparar com as histórias de EQM, Parnia decide orientar suas pesquisas sob essa óptica, já que os depoimentos das vítimas descrevem uma situação que é a mais próxima da morte, até hoje encontrada.
Utilizando como frontispício de sua obra uma pintura do século XV de Hieronymus Bosch, denominada "A ascensão para o império", que retrata a cena de um túnel com seres em ascensão através dele, o autor visa mostrar que esses fatos misteriosos sobre pessoas que viram a morte bem de perto e voltaram à vida contando o que presenciaram não são recentes. Além disso, apresenta o relato de um soldado ferido quase mortalmente em batalha e que é ressuscitado na cerimônia do funeral, descrito em "A República" de Platão, escrito em IV a.C.
Assim o autor não se sente só para indagar sobre a viagem da escuridão à luz, os seres-guia e os sentimentos de paz e alegria presentes, reacendendo a longa dúvida que permeia a vida dos Homens: o que acontece quando morremos?
Sabendo que o que acontece com a mente durante o processo de morte ainda permanece uma preocupação muito mais filosófica do que médica, o que o pesquisador propõe é justamente estudar essa transição do ponto de vista científico, médico, fisiológico. É tentar desvendar esse processo utilizando a ciência como principal ferramenta de trabalho.
Parnia coletou relatos de vítimas de EQM para descobrir o que acontece nesse momento crucial. Das experiências selecionou aqueles que passaram por uma parada cardíaca, viram o túnel com a luz em seu final, vivenciaram a experiência fora do corpo e descreveram os procedimentos médicos que foram realizados neles durante o acontecimento. Esses relatos aguçam a curiosidade pela riqueza de detalhes técnicos apresentados e pontos comuns.
No livro, então, o pesquisador cruza informações, compara histórias e acaba percebendo o quanto os relatos são próximos. Estabelece relações, pesquisa origens das vítimas, suas crenças, seus dados biológicos no momento da parada cardíaca ("morte") e a cada nova história percebe que não há como ser invenção. Não uma invenção tão rica em detalhes, principalmente no que tange à atitude da equipe médica, vista pelos pacientes, "suspensos" no teto. Assim, questiona: como essas pessoas possuem memória tão límpida e viva de um momento em que seus corações pararam de bater, deixando seus cérebros, considerados a fonte dos pensamentos e memórias, sem fluxo sanguíneo, sem aquilo que lhes permite funcionar? Seria somente o cérebro a origem da consciência? Seria ele o total responsável por armazenar e interpretar informações e sensações? Continuariam a mente humana e a consciência funcionando mesmo após a morte clínica?
Dando margem a essas questões, o autor sai em busca de teorias que expliquem a consciência e sua formação. Como as poucas existentes apresentam lacunas importantes começa, então, a construir seus próprios meios de avaliação. Algumas vezes ridicularizado, outras, totalmente desacreditado, continua suas tentativas de verificar as experiências fora do corpo, realizando testes em hospitais. Depara-se com relatos incríveis e fica espantado ao ver a quantidade de pessoas que concordam em colaborar com suas pesquisas, inclusive enviando-lhe cartas com suas histórias de EQM, nunca antes contadas por vergonha de serem consideradas loucas ou inventivas.
Na construção de sua narrativa o autor cita teorias sobre a morte clínica e analisa resultados, sempre com um senso crítico científico e esforçando-se em construir explicações claras e "traduzidas" para leigos. A despeito de certo descuido na revisão da tradução para o português, a linguagem é acessível, com analogias simples e próximas das pessoas, para que todos possam entender a idéia que visa ser transmitida. Porém, há momentos mais "tensos", como na aproximação que é feita da forma e expressão da consciência com a teoria das 11 dimensões do universo, fruto do pensamento quântico.
De acordo com essa teoria, do mesmo modo que não somos aptos (ainda, talvez) a ver as outras tantas dimensões existentes no universo, também não podemos ver a consciência humana. Dessa maneira, como Faraday que sugeriu haver algo a mais na espiral além da corrente elétrica gerada por ele afetando a circunferência, e só pôde prová-lo anos depois, também há essa sugestão quanto à consciência, e, para o autor, apenas não encontramos ainda uma forma satisfatória de medi-la.
Já formado e com pós-graduação em treinamento clínico na medicina interna, e tendo obtido o título de Membro da Faculdade Real de Médicos, decidiu combinar um PhD em biologia celular (sua carreira na pesquisa médica) com uma especialização em tratamento respiratório (sua carreira na medicina clínica). Mesmo assim, não abandonou suas pesquisas e acabou chegando a um ponto em que não poderia continuar os estudos sem um patrocínio. Porém, conseguir o custeio de uma pesquisa tão ousada como essa não seria fácil. As instituições médicas de apoio procuradas não tinham interesse pelo tema da morte, ou dispunham de um orçamento extremamente limitado. Uma das maiores e mais bem-sucedidas instituições patrocinadoras de pesquisa do Reino Unido, que na época almejava apoiar projetos de alto risco e inovadores, acabou negando o financiamento por julgar "o conceito de testar as afirmações das pessoas de estarem 'fora do corpo'" como sendo algo inaceitável para eles. Temiam que a pesquisa tivesse um impacto negativo para a instituição na imprensa, e a Parnia sugeriram que não pesquisasse mais esse tipo de assunto, por não ser bom para sua carreira.
Não é necessário aprofundar a enorme sensação de fracasso, abandono, carência de recursos e falta de confiança que tomou o pesquisador. Também, não é preciso discutir sua obsessão e afinco em reativar a Horizon Research Foundation (www.horizonresearch.org), uma instituição patrocinadora de pesquisa, com o objetivo de não somente arrecadar fundos para seu próprio estudo, como também ser uma fonte de financiamento para outros que queiram pesquisar sobre a morte. Desse modo o autor prossegue seus estudos de forma árdua, buscando dar visibilidade a suas ideias nos meios científico e não científico.
Para concluir, o autor deixa ver que as pesquisas continuaram, sobretudo calcadas no questionamento da onipotência do cérebro e na dúvida sobre se ele é o único responsável por nossa consciência. Em suas palavras: "o que foi descoberto até agora talvez seja apenas a ponta de um iceberg, mas possui enormes implicações para todos nós". Tendo como única certeza na vida a nossa própria morte, o assunto torna-se de interesse geral senão no aspecto científico, pelo menos por curiosidade ante um momento que se apresentará a todos nós. Além disso, Sam Parnia explicita que o papel da ciência não é somente duvidar e rotular como impossível, mas sim de ir à busca de evidências. De forma que se ainda não somos capazes de provar, não significa que o fato seja improvável. O papel do investigador é buscar os meios possíveis para compreender e explicar as experiências de fronteira.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
24 Jan 2012 -
Data do Fascículo
Jan 2012