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As autoras respondem. Ponto de chegada e de partida: o debate sobre a construção federativa do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária

The authors reply. Arrival and departure points: the debate over the federal construction of the National Sanitary Surveillance System

DEBATEDORES DISCUSSANTS

As autoras respondem. Ponto de chegada e de partida: o debate sobre a construção federativa do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária

The authors reply. Arrival and departure points: the debate over the federal construction of the National Sanitary Surveillance System

Agradecemos a dupla generosidade dos autores em debater o nosso artigo. Por terem aceitado se centrar nas questões da vigilância sanitária e de seu sistema nacional, área de prática e de reflexão que tem recebido crescente atenção dos pesquisadores do campo da Saúde Coletiva; e também pelo conteúdo e formato adotados pelos debatedores, que apresentaram ideias que alimentarão debates futuros. Antecipamos, com isso, a nossa impossibilidade de abordar as ricas contribuições trazidas pelos debatedores.

Geraldo Lucchese dialoga amplamente com o artigo e nos aporta outros elementos para compor o quadro de referência para compreensão da singularidade da vigilância sanitária. Entre suas contribuições ao debate pinçamos duas: a crítica ao modo autárquico de organização da vigilância sanitária nas três esferas de governo; e a aparente superação da proposta de unificação das vigilâncias. Essa forma autárquica, segundo o autor, decorre também da natureza de seus objetos e seria mais coerente com a lógica do mercado do que com o caráter de política pública welfariana.

Esses argumentos de Lucchese, impossíveis de serem tratados satisfatoriamente aqui, aportam elementos novos ao debate da vigilância sanitária e do Sistema Único de Saúde. Autarquia é termo muito difundido no SUS na sua acepção jurídica, e apenas mais recentemente tem se agregado um sentido crítico de excessiva autonomia ou descentralização com deseconomias de escala e baixa qualidade, no chamado paradigma da municipalização autárquica1. Em analogia, o sistema nacional de vigilância poderia corresponder a um sistema fechado, autônomo e governado por si mesmo?

A proposta de unificação das vigilâncias, que parece ser o outro lado da mesma moeda cunhada como fragmentação das vigilâncias, não nos parece estar plenamente superada. Nem essa suposta fragmentação parece ser um fato recente, decorrente da criação da Anvisa. Reconhecemos a necessidade de articulação da vigilância sanitária com todos os processos que ocorrem no interior do sistema de saúde, incluídas aí as demais práticas de proteção, prevenção, recuperação e promoção da saúde. Existem mecanismos e instrumentos gerenciais potencialmente facilitadores da articulação setorial e das vigilâncias, mas a questão não é gerencial, apenas. Um aspecto importante é que a cooperação e a resolução conjunta de problemas pressupõem capacidades distintas, mas também coordenação - do trabalho e federativa.

A coordenação do trabalho entre as vigilâncias poderia ser definida "situacionalmente", a depender do tipo de problema - e não exclusivamente com base em certa linha de mando e hierarquia, se

o que se quer é uma ação mais efetiva, a bem da saúde e da qualidade de vida da população. Para isso, essa articulação precisa transcender os aspectos formais de mera reforma administrativa com interposição de níveis hierárquicos. E o caráter mais ou menos estável dessa articulação corresponde a certo modo de distribuição do poder institucional, ou é dependente do tipo de problema a ser resolvido cooperativamente: pelas vigilâncias, pelo sistema de saúde, ou na articulação da saúde com as demais políticas públicas?

A coordenação federativa de uma política em processo de descentralização se dá fundamentalmente por meio de dois instrumentos: existência de regras nacionais para reger o processo de descentralização e a cooperação financeira, bem como a própria efetivação dos repasses financeiros para os entes. E aí entram questões relativas à qualidade e estabilidade da norma, potência do incentivo, requisitos institucionais e políticos da política e, também, a vontade dos entes federados. Esta decorreria de um cálculo feito pelas esferas subnacionais, na ausência de obrigatoriedade, por exemplo, constitucional.

Luis Eugenio apresenta um ponto de vista discordante e faz uma ardorosa defesa da vigilância da saúde e do Pacto de Gestão, enriquecendo o debate. Com isso, contribuiu o autor para suprir nossa omissão, resultado da opção de não discutir, neste artigo, a vigilância da saúde. Conforme seus principais autores, a vigilância da saúde teria apresentado três vertentes distintas, sendo uma delas, a terceira vertente, alternativa para a mudança do modelo de atenção2.

Como o cerne deste debate é a construção federativa do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, previsto em lei nacional, visto como necessário para reduzir certas externalidades do seu campo de ação, deixou-se de abordar a mudança do modelo de atenção. Equivocadamente ou não, essa mudança nos pareceu ser uma discussão de âmbito mais geral, para o qual as quatro vigilâncias3 - epidemiológica, sanitária, ambiental e em saúde do trabalhador - têm muito a contribuir. Mas nela a área da assistência, ou melhor, do cuidado direto às pessoas, não pode estar ausente.

Compreendemos que a reforma do Sistema Nacional de Vigilância em Saúde pode representar nesse momento uma oportunidade estratégica de recolocação do modelo da vigilância da saúde na agenda política setorial. Mas, para nós, a discussão desse modelo - que tende a tornar mais peculiar o modelo de vigilância em saúde difundido por meio da cooperação internacional - não pode se restringir aos esforços atuais de construção dos sistemas nacionais das vigilâncias.

Roberto Parada aponta a chegada ao limite da forma de pactuação setorial tripartite no molde atual. O artigo dá margem a que se reconsidere

o arranjo federativo que se tem construído na área de prestação de cuidados à saúde das pessoas e desvenda outro plano. Certamente, o regime federativo brasileiro no qual se embasa o arranjo tripartite do SUS tem mais dimensões que a "federação" da saúde, embora esta venha sendo usada como exemplo virtuoso, como experiência bem-sucedida de construção federativa de política pública. Bem-sucedida, mas que, segundo o autor, chega ao esgotamento no seu patamar atual.

O autor chama a atenção para o fato de que a complementaridade, a equidade e a flexibilidade das regras e das instituições - tão caras ao federalismo - não se concretizam apenas setorialmente - ainda mais na vigência da construção de redes regionalizadas e na incorporação do enfoque da promoção da saúde, que é bem mais amplo do que a atual política de promoção da saúde. Outro aspecto ressaltado pelo autor, que tem correspondência direta com os desafios apresentados para a construção do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, diz respeito às desigualdades estruturais e funcionais dos entes e das regiões, que, se não impedem a negociação, agregam dificuldade à concretização dos pactos e acordos firmados.

Edna Covem nos traz um ponto de vista institucional e muito privilegiado, de quem tem participado do processo de negociação do GT VS da Tripartite. E que, mesmo antes, acompanhou esse processo na esfera estadual, tanto na sua relação com a esfera federal quanto na relação do seu estado com os municípios de Goiás.

Ela ressalta uma discordância que muito nos satisfaz, ao informar a crescente participação da vigilância sanitária nos espaços da gestão do SUS e a criação do Subgrupo Visa do GTVS/CIT. Essa criação poderia ser vista como uma retomada, em outro patamar, daquele anterior comitê de vigilância que congregava os serviços de vigilância das três esferas de governo antes do Pacto de Gestão?

Um argumento que temos explorado recentemente é que talvez a parcial coincidência no tempo do processo de elaboração do Plano Diretor de Vigilância Sanitária, o PDVisa - tão importante como processo quanto pelo seu resultado, um conjunto extenso de diretrizes construídas pelos serviços das três esferas de governo -, com a revisão dos instrumentos normativos do SUS, que culminaram com o Pacto de Gestão, tenha contribuído para essa ainda pequena, mas crescente participação. Ademais, a necessidade de os serviços de vigilância sanitária discutirem o SUS na dimensão do planejamento e da gestão, e não só os seus muitos dilemas cotidianos, pode ter contribuído para esse crescimento da participação.

A questão dos modelos e da competição de projetos no campo das vigilâncias - que se trouxe como um dado do contexto - de certa forma dominou a cena. Para outro momento, ficaram as questões acerca do financiamento tripartite do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária e a fragilidade do seu modelo de repartição de recursos federais, instável nas regras e potencialmente gerador e conservador de desigualdades por privilegiar a igualdade - um valor per capita nacionalmente unificado. Mas a postergação desses temas no debate atual nos parece correta, pois o financiamento depende de qual é o projeto.

Ponto de chegada, ponto de partida... Agradecemos novamente aos debatedores pelo privilégio de termos contado com eles, e pelo que nos proporcionaram/proporcionam neste debate, que não se encerra aqui. Ele recomeça e nos leva a reiterar - mais uma vez e sempre - que a reforma sanitária é muito mais do que a reforma administrativa do sistema de saúde, e que a vigilância sanitária nisso tudo tem a dor e a delícia de ser uma atividade do campo da saúde, que manifesta sua potência dentro e fora dos limites setoriais.

  • 1
    Pestana MVC, Mendes EV. Pacto de gestão: da municipalização autárquica à regionalização cooperativa. Belo Horizonte: Secretaria de Estado de Saúde; 2004.
  • 2
    Teixeira CF, Paim JS, Vilasbôas AL. SUS, modelos assistenciais e vigilância da saúde. Informe Epidemiológico do SUS 1998; 7(2):7-28.
  • 3
    De Seta MH, Reis LGC. As vigilâncias do campo da saúde: aportes e implicações para a gestão de sistemas e de serviços de saúde. In: Oliveira RG, Grabois V, Mendes Júnior WVO, organizadores. Qualificação de gestores do SUS Rio de Janeiro: EAD/Ensp; 2009. p. 201-347.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Nov 2010
  • Data do Fascículo
    Nov 2010
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