Acessibilidade / Reportar erro

Os catadores de lixo e o processo de emancipação social

Waste material pickers and emancipation process

Resumos

O artigo tece comentários sobre o processo de organização de duas associações de catadores de materiais recicláveis. Traz à tona a problemática da exclusão, enfatizando a necessidade de inserção dos segmentos sociais marginalizados. Focaliza, como caminho de inserção, a recriação de espaços com ambiente apropriado ao desenvolvimento da criatividade e, conseqüentemente, ao processo de emancipação social. Apresenta o Pequeno Grupo como solo provisório para existência humana, onde o poder decisório se manifesta a partir da interação dinâmica entre o singular e o coletivo.

Educação popular; Gestão de resíduos sólidos; Catadores de lixo; Criatividade e emancipação social


The article describes the organizing process of two associations of waste and recyclings material pickers. The question of social exclusion emerges emphasizing therefore the urgent socially comeback of left out segments of people. It shows that the way to resocializing is the creation of environmentally approprieted spaces to develop creativity leading thus to self emancipation. The small group is seen as a transitory ground of human life, where the power to decide comes out as an interplay of individuals and collectives bodies.

Waste material pickers; Environment; Education; Creativity and emancipacion


ARTIGO ARTICLE

Os catadores de lixo e o processo de emancipação social

Waste material pickers and emancipation process

Marta Pimenta Velloso

Núcleo de Estudos em Direitos Humanos, CSEGSF/ENSP/Fiocruz. Rua Leopoldo Bulhões 1.480, térreo, Manguinhos, 21041-210, Rio de Janeiro RJ. marta.velloso@ensp.fiocruz.br

RESUMO

O artigo tece comentários sobre o processo de organização de duas associações de catadores de materiais recicláveis. Traz à tona a problemática da exclusão, enfatizando a necessidade de inserção dos segmentos sociais marginalizados. Focaliza, como caminho de inserção, a recriação de espaços com ambiente apropriado ao desenvolvimento da criatividade e, conseqüentemente, ao processo de emancipação social. Apresenta o Pequeno Grupo como solo provisório para existência humana, onde o poder decisório se manifesta a partir da interação dinâmica entre o singular e o coletivo.

Palavras-chave: Educação popular, Gestão de resíduos sólidos, Catadores de lixo, Criatividade e emancipação social

ABSTRACT

The article describes the organizing process of two associations of waste and recyclings material pickers. The question of social exclusion emerges emphasizing therefore the urgent socially comeback of left out segments of people. It shows that the way to resocializing is the creation of environmentally approprieted spaces to develop creativity leading thus to self emancipation. The small group is seen as a transitory ground of human life, where the power to decide comes out as an interplay of individuals and collectives bodies.

Key words: Waste material pickers, Environment, Education, Creativity and emancipacion

Introdução

A convivência com as comunidades carentes do entorno de Manguinhos, somada aos estudos com catadores de lixo durante a tese, conduziu-me à reflexão sobre a exclusão social e a inserção profissional. Neste sentido podemos observar que na sociedade contemporânea, o consumo de produtos e serviços tem gerado resíduos em excesso. Atualmente, o homem costuma ser valorizado pela capacidade de consumo. O sujeito em busca da integração com o espaço social tem se deparado com um mundo onde, desamparado e desabrigado, procura acolhimento para o seu sentimento de despedaçamento. Na ausência ou na impossibilidade desse acolhimento, o homem costuma considerar intocáveis os ideais estabelecidos pela moral social. Diante da impotência gerada por uma ideologia não condizente com a sua realidade, o sujeito pode tornar-se alienado, sendo incapaz de questionar os valores vigentes e, menos ainda, de reagir, instituindo dessa forma uma sociabilidade marginal e muitas vezes perversa.

Num quadro geral de grande escassez de oportunidades de inserção profissional, Capucha (1998) identificou um tipo de situação em que o maior obstáculo é a qualidade de vida das pessoas (habitação precária, má alimentação, baixa escolaridade, alta taxa de natalidade, elevada delinqüência e problemas de saúde). Além disso, o autor aponta outros fatores como as fracas qualificações e capacidades; acomodação a círculos de pobreza instalada; e adoção de modos de vida marginais.

Assim, no caso dos segmentos mais pobres da sociedade, que sofrem formas extremas de exclusão social, a sua inserção vai depender da reinvenção de alternativas de produção de estrutura não capitalista. A organização de catadores em associações ou cooperativas, segundo estudos realizados por Santos & Rodriguez (2002), deve ocorrer concomitantemente a um processo integrado de transformação cultural, social e política dos seus membros.

O processo associativo deve contar, em curto prazo, com a vontade do poder público em articular o planejamento da reciclagem com a inserção social. Esta articulação já pode ser observada em algumas cidades brasileiras, onde as organizações em associações ou em cooperativas de catadores tiveram o apoio das administrações municipais, que providenciaram o suporte básico (Fischer, 1996; Oliveira, 2001). As organizações, criadas para atingir esse objetivo, devem viabilizar a construção de políticas públicas de reciclagem e coleta seletiva do lixo como alternativa para gerar renda, propiciando a inserção social dos grupos marginalizados.

Entretanto, em médio prazo, devem ser reinventadas novas formas de inserção social para os catadores, que, com a diminuição do consumo de produtos ou da produção de resíduos descartáveis, devem ser incentivados a buscar novas e melhores alternativas de trabalho e renda.

Neste contexto, o presente estudo tem como objetivo subsidiar o processo de organização dos catadores de materiais recicláveis. Assim, foi preciso buscar uma melhor apreensão sobre o catador e seu processo associativo, ou melhor, seu comportamento diante dos restos; sua maneira de imaginar o mundo; sua sensibilidade quanto às atividades criativas e as mudanças relacionadas à sua participação em ações coletivas.

A população estudada abrangeu os catadores organizados em duas associações. Como instrumentos de coleta de dados foi utilizada a entrevista com os catadores, com os orientadores e com os administradores das organizações. A observação participante do pesquisador no ambiente de trabalho e nas reuniões dos nichos pesquisados veio enriquecer a entrevista. A análise dos dados ou a percepção do pesquisador foi centrada na seguinte questão: Como o desenvolvimento do potencial de criatividade humano pode atuar no processo de emancipação de grupos, de comunidades e da sociedade?

Desenvolvimento da criatividade e processo de emancipação social

Este item busca relacionar a interação dinâmica do desenvolvimento do potencial de criação do sujeito, segundo a concepção de Winnicott e de Guattari, com a discussão sobre o processo de emancipação social de Boaventura de Sousa Santos e da autonomia de Castoriadis.

A idéia de autonomia aparece no trabalho de Castoriadis (1987), não só como uma idéia filosófica ou epistemológica, mas também como uma idéia essencialmente política, que tem sua origem na constante preocupação do autor com a questão revolucionária, a autotransformação da sociedade. O exemplo desta possível transformação social é dado pelo partido comunista, ou melhor, através do partido stalinista, quando ensaia a tomada do poder. As massas estão com ele e, portanto, deveria tratar-se de uma revolução. Contudo, não se trata de uma revolução, pois essas massas são dirigidas pelo partido stalinista, não há a criação de organismos autônomos. Um período revolucionário só acontece, quando a população forma e institui seus próprios órgãos autônomos, isto é, organismos que não recebem suas diretrizes de fora ou que não estão submetidos a uma direção e a um controle de uma instância à parte, de um partido ou do Estado. Uma revolução se dá, quando a população entra em atividade para dotar-se a si mesma de suas normas e formas de organização.

Neste contexto, Santos (2001) ressalta que Marx, para criticar radicalmente a democracia liberal, contrapõe ao sujeito monumental, que é o Estado liberal, um outro sujeito monumental, a classe operária. A classe operária é uma subjetividade coletiva, capaz de autoconsciência (a classe para si), a qual conteria em si as subjetividades individuais de todos os seus componentes produtores. Acontece que a subjetividade coletiva da classe tende igualmente a reduzir a equivalência e indiferença às especificidades e às diferenças que fundam a personalidade, a autonomia e a liberdade dos sujeitos. O conceito de classe visava contrapor-se à homogeneização reguladora do capitalismo, com a homogeneização emancipadora da subjetividade coletiva dos trabalhadores. Hoje sabemos que o capitalismo, em vez de homogeneizar globalmente os trabalhadores, se alimentou das diferenças existentes.

A relação entre cidadania e subjetividade é bem complexa, envolvendo profunda reflexão sobre a responsabilidade e a singularidade humana. Santos (2001) explicita que a subjetividade incorpora, além de direitos e deveres, particularidades de potencial infinito, que conferem cunho próprio e único à personalidade. Mas, os direitos e deveres são elaborados em normas gerais e abstratas, reduzindo a individualidade ao que nela há de universal, ou seja, transforma os sujeitos em unidades iguais e passíveis de substituição.

Nas administrações burocráticas, públicas ou privadas, os homens são intercambiáveis como força de produção. Na sociedade de consumo tornam-se consumistas e vítimas do desperdício. A cidadania não deve estar restrita à igualdade de direitos e deveres, mas também considerar a diferença da subjetividade, isto é, não deixar de lado diferenças peculiares entre raças, gênero, culturas e a questão do sujeito.

As contradições geradas pelo próprio mercado hegemônico, diante de sua força produtiva, assim como o isolamento do movimento operário, ou a difusão social de novas formas de produção, propiciaram a emergência de Novos Movimentos Sociais (NMSs). Para Santos (2001), os NMSs podem representar o ponto de interseção na discussão destas contradições, que são a relação entre regulação e emancipação e a relação entre subjetividade e cidadania. Para o autor, a grande novidade desses movimentos sociais consiste na crítica construtiva tanto da regulação social capitalista, como da emancipação social socialista, como foi definida pelo Marxismo. Os NMSs denunciam com veemência os excessos de regulação da modernidade. Tais excessos atingem os meios de produção e sua reprodução na vida das pessoas. O meio de produção capitalista vem ocasionando as guerras, a poluição, o racismo, o machismo e o consumismo. A consciência da população sobre essas drásticas conseqüências tem gerado um outro paradigma social, fundamentado não só nos bens materiais, mas principalmente na cultura e no bem-estar. Valores como cultura e bem-estar, em nome dos quais se lutam, são universais e globais, atingindo desde grupos sociais com interesses específicos – as mulheres, as minorias étnicas, os favelados e os homossexuais – até aqueles levados pelos interesses da humanidade no seu todo, como o movimento ecológico e os movimentos pacifistas. Entretanto, esses movimentos sociais devem permanecer atentos nas suas reivindicações, para não serem reduzidos a palavras-chavão, caindo na rotina do consumo e se transformando em mais uma tensão.

Os novos movimentos sociais representam a afirmação da subjetividade sobre a cidadania, que deve ser fundada na expressão do novo e na atividade criadora, na luta pela emancipação pessoal, social e cultural. As novas demandas pautam-se por formas organizativas – democracia participativa – diferentes das que presidiam a luta pela cidadania no sistema socialista, capitalista e neoliberal – democracia representativa. Os seus protagonistas não são as classes sociais e sim os grupos sociais, ora maiores, ora menores que classes, com contornos mais ou menos definidos, em vista de interesses coletivos por vezes muito localizados, mas potencialmente universalizáveis.

Os NMSs, imbuídos das suas especificidades, também devem veicular e alimentar as singularidades dos sujeitos que o constituem, ou seja, a mediação entre a subjetividade individual e coletiva deve estar sempre presente, uma vez que o grupo é formado por sujeitos. Tal mediação deve ser entendida como a integração do mundo interno do sujeito com o externo, ou seja, a integração da sua singularidade com o seu grupo social.

Na busca desta interação, procurando transformar a sociedade, Guattari (1990) apresenta como alternativa a ecosofia – que consiste na articulação ético-política entre os três registros ecológicos: o meio ambiente, as relações sociais e a subjetividade humana. Segundo o autor, não será possível uma verdadeira resposta à crise ecológica, a não ser que seja em escala planetária e com a condição de que se opere uma autêntica revolução política, social e cultural, reorientando os objetivos da produção de bens materiais e imateriais.

Esta revolução deverá engendrar, não só a relação de forças visíveis em grande escala, mas também os domínios moleculares de sensibilidade, de inteligência e de desejo. A projeção amplamente imaginária da oposição, classe operária/burguesia, poderá ser substituída pelas novas problemáticas multipolares das três ecologias, ou seja, as antigas lutas de classes e os seus mitos de referência poderão ser substituídos pela complexa interação das três ecologias. Entretanto, tal substituição não é mecânica nem automática, ela parece emergir de forma lenta, gradual e receptiva às mutações necessárias para adaptação interativa entre as diferentes singularidades e o seu ambiente.

O processo de criação do sujeito está vinculado ao seu desenvolvimento emocional, à sua sensibilidade e à cultura. Quando abordamos o ser criativo, devemos pensar na interação da cultura no desenvolvimento do seu potencial de criatividade. A cultura reconhecida como dominante ou universal deixa de lado outras especificidades culturais, tornando-se abstrata e não representativa das demais. Segundo Santos (1997), a concepção multicultural de direitos humanos pode servir como instrumento para se atingir a emancipação social. Os direitos humanos só poderão desenvolver o seu potencial de emancipação, quando se libertarem do seu falso universalismo e se tornarem verdadeiramente multiculturais. As versões emancipadoras do multiculturalismo baseiam-se no reconhecimento das diferenças e da coexistência de uma vida em comum, para além das diferenças de vários tipos. As condições para a transformação dos direitos humanos num projeto cosmopolita fundamentam-se na promoção de diálogos interculturais, sobre preocupações semelhantes e sobre critérios políticos para distinguir política progressista da conservadora, capacidade de desarme e emancipação da regulação. Santos & Arriscado (2003) nomeiam de hermenêutica diatópica este diálogo intercultural – que consiste na prática de interpretação e de tradução entre culturas, através das quais se amplia a consciência da incompletude de cada cultura envolvida no diálogo e se cria a disponibilidade para a elaboração de culturas híbridas, mais ricas de dignidade humana e mais amplamente partilhadas. A hermenêutica diatópica, visando à escolha da cultura mais adequada, deve adotar dois imperativos interculturais:

1) Das diferentes versões de uma dada cultura, deve ser escolhida aquela que representa o círculo mais amplo de reciprocidade dentro dessa cultura, a versão que vai mais longe no reconhecimento do outro.

2) Os grupos sociais, ou a pessoa, têm o direito de ser iguais, quando a diferença os inferioriza; e o direito a ser diferentes, quando a igualdade os descaracteriza.

Os direitos humanos, elaborados para preservar a dignidade do homem, devem respeitar as diferenças peculiares de uma raça, do gênero, de um determinado segmento social, de uma outra escolha grupal e das vicissitudes do sujeito. Nestas condições, e seguindo os imperativos interculturais da hermenêutica diatópica, os direitos humanos poderão ser utilizados como instrumentos para a emancipação social.

O sujeito começa a criar o seu mundo interior, a partir do momento que se percebe como um ser independente da sua mãe, ou seja, a partir desse momento, ele se sente incompleto e se ocupa na busca da sua completude. Assim, o ideal de completude surge na fase da desilusão ou na fase da separação eu – não eu. Nesta fase, o sujeito sente um grande vazio e parte em busca do sentimento de completude que foi perdido na fase da desilusão. Ele só alcança a maturidade, quando se aceita como um ser incompleto, ou seja, quando perde a ilusão. Esta aceitação pode propiciar a sua nomeação ou o seu reconhecimento no pequeno grupo, bem como a sua singular interação com o coletivo.

Aqui, vou me deter no desenvolvimento do potencial de criação do sujeito que, além da cultura, interage dinamicamente com os seus processos de maturação. Segundo Winnicott (1970), o potencial de criação do sujeito começa a ser desenvolvido entre a fase da ilusão e a da desilusão, ao que ele nomeia como fase transicional. Para ele, no indivíduo neurologicamente sadio, ou seja, com capacidade cerebral e uma inteligência razoável, existe a potencialidade para a capacidade de criar, mas a atualização desta capacidade dependerá de um ambiente facilitador. Tal ambiente é aquele que propicia algumas experiências básicas por um período de tempo suficientemente longo. Estas experiências podem se situar em duas áreas: a da ilusão e da desilusão. Na área da ilusão – a mãe-ambiente fornece ao bebê a "experiência da onipotência", não há separação do eu – não eu, é o momento da ilusão, que funda a experiência do ser sem interrupções insuportáveis, estabelecendo o sentimento de completude. A área da desilusão, depois de estabelecido o sentimento de completude, poderá ser vivida de forma a criar um espaço potencial entre a mãe e o bebê – o objeto transicional, símbolo da união mãe-bebê, que ocupará o espaço potencial no momento em que se der a separação eu – não eu. Inaugura-se, aqui, a capacidade de simbolizar – indispensável ao processo de criação do sujeito.

A partir do momento em que o ser humano lactante começa a se ver como um ser separado da mãe – como um outro ser independente – ele dá início à construção do seu mundo interior. Winnicott (1970) explicita que o desenvolvimento satisfatório de uma criança requer o seu envolvimento com o mundo. Assim, o envolver-se com o mundo está vinculado ao desenvolvimento da capacidade de se pré-ocupar (concern). Tal capacidade se dá, mediante a presença da mãe-objeto e da mãe-ambiente, ou daquela que substitui a mãe nas suas funções. A mãe-objeto é por quem o bebê sente amor e ódio; ilusão e desilusão; pulsão de construção e destruição. Já a mãe-ambiente representa o amparo que a criança deve sentir durante as suas brincadeiras ou ocupações. Em circunstâncias favoráveis, a mãe, ou a sua substituta, recebe toda a carga dos impulsos do bebê, como a mãe que pode ser amada ou a pessoa a quem se pode fazer reparações. Só assim, as ansiedades e as fantasias sobre esses impulsos tornam-se toleráveis para o bebê, que pode experimentar a culpa ou retê-la totalmente, na expectativa de uma oportunidade para fazer a sua reparação.

Nos estágios iniciais do desenvolvimento humano, se não houver uma figura materna de confiança para receber o gesto de reparação, a culpa se torna intolerável e a pré-ocupação (concern) não pode ser sentida. O fracasso da reparação leva à perda da capacidade de se pré-ocupar e à sua substituição por formas primitivas de culpa e ansiedade.

A capacidade de se pré-ocupar pode ser resgatada, quando o sujeito toma consciência da sua culpa e conseqüente autodestruição. Isto se dá através de um processo construtivo, ou seja, quando o ser humano se torna apto a recuperar sua qualidade de criar, de ser original. Viver criativamente constitui um estado saudável e o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida. Em contraste, existe um comportamento de submissão com a realidade externa, em que o mundo, em todos os seus detalhes, é reconhecido apenas como algo que exige ajuste e adaptação. Tal estado de submissão é uma base doentia para a vida.

Neste sentido, Winnicott (1975) se refere à criatividade do sujeito como uma condição universal para ele estar vivo, isto é, a interação da sua realidade interna com a realidade externa. Num sujeito com capacidade cerebral razoável e inteligência suficiente para se tornar uma pessoa ativa e participar da vida comunitária, tudo o que acontece é criativo. Inversamente, fatores ambientais que venham a sufocar seus processos criativos podem torná-lo submisso e doente.

O desenvolvimento do potencial de criação do sujeito está relacionado a um ambiente propício, ou seja, um ambiente onde ele possa ter espaço para desenvolver a sua singularidade e reintegrá-la à realidade externa através de atividades culturais, sociais e políticas. Esse espaço é, pois, um interno imerso e fundado no mundo, ou seja, a inserção do sujeito na sociedade deve se dar por meio de sua interação dinâmica com o mundo externo. Os momentos internos (sujeito) se justapõem aos momentos externos (mundo comum), alguns desaparecem, outros emergem e é a criação desses momentos justapostos o que permite a afirmação do nosso ser no mundo. Segundo Momberger (2000), a construção da identidade do sujeito acontece mediante a dialética de tais momentos, que são opostos e complementares – interno/externo, psíquico/material, imaginário/real, subjetivo/objetivo, individual/coletivo.

Os momentos internos do sujeito, quando sentidos pela maioria dos homens, podem ser transformados em realidade. A criação de uma outra realidade poderá vir à luz, através da manifestação dos sentimentos e das emoções de sujeitos. Assim, a realidade interna de sujeitos, interagindo com a realidade externa, pode contribuir para o processo de emancipação de pequenos grupos, comunidades ou sociedades. Somente a partir desses fatores, essenciais para o desenvolvimento da criatividade, podemos gerar o que Santos & Rodriguez (2002) se referem como recriação da promessa de emancipação social.

A satisfação na ocupação ou em busca da autonomia

Este item descreve o estudo realizado nas duas associações de catadores de lixo. A associação "A" está localizada na cidade de Belo Horizonte em Minas Gerais, enquanto a "B" se situa na cidade de Petrópolis, no Estado do Rio de Janeiro. Ambas têm apoio da Companhia de Limpeza Urbana da Cidade e de mediadores, que atuam junto dos associados.

Na associação "A" entrevistamos a administradora (catadora fundadora); três orientadores das "oficinas de arte a partir do lixo", sendo um deles o precursor; e três associados. Na associação "B" foram entrevistados três associados, sendo um deles o catador fundador; e a mediadora do processo associativo. A análise das entrevistas foi enriquecida pela observação participante do pesquisador no local da pesquisa (Becker, 1994), ao que Ginzburg (1989) se refere como observação da subjetividade dos personagens, ou seja, dos detalhes ou das pegadas percebidas nas suas falas, gestos e expressões, que funcionam como o sinal da direção a ser seguida. O período da pesquisa na associação "A" foi em julho de 2002. Enquanto na "B", por estar mais acessível, foi de outubro de 2002 a dezembro de 2003.

Os roteiros das entrevistas semi-estruturadas foram elaborados de acordo com duas categorias estabelecidas: 1) administradores, orientadores e mediadores das associações e, 2) catadores de materiais recicláveis e aprendizes da arte de reciclar.

Aos primeiros foram dirigidas as seguintes questões: início da associação (data da fundação, número de associados, mediadores); número atual de associados; produtividade (individual ou coletiva); requisitos para se associar (exigências da associação e o que ela oferece); venda do material arrecadado (empresas de reciclagem ou atravessadores); destino final do lixo na cidade; como é divulgado o trabalho da associação (como os catadores se aproximam, se existe algum trabalho da associação para trazê-los até ela); existência de algum trabalho de arte a partir do lixo; os catadores fazem algum curso antes de se tornarem sócios; quais os benefícios propiciados aos associados (cesta básica, aposentadoria, creche, escola, férias, décimo terceiro salário, serviços de saúde, moradia); quais os documentos existentes na associação (jornal, revista, estatuto, boletim).

Aos segundos foram dirigidas as seguintes questões: como eles percebem o trabalho; como as pessoas percebem o trabalho deles; sempre foi catador ou já teve outra ocupação; quais as possíveis melhorias para o associado; como preservar a associação; como se sente trabalhando com material desprezado, que é transformado em um novo objeto reutilizável ou decorativo.

Perfil e estruturação das associações

Na associação "A", os catadores tiveram o apoio da Pastoral de Rua da Igreja Católica de Belo Horizonte. Eles queriam trabalhar, mas não conseguiam o aval da prefeitura. No início, começaram a se reunir debaixo do viaduto, depois no quintal (debaixo das árvores) de uma casa velha no bairro do Barro Preto. Mais tarde, um padre, da Casa do Trabalhador, emprestou a casa para as reuniões e assim foi surgindo a idéia de se fundar uma associação.

Os catadores começaram a fazer passeata na porta da Prefeitura de Belo Horizonte. Com esse movimento e por meio dos contatos com as autoridades afins, conseguiram o seu primeiro galpão (onde já moravam clandestinamente) e, assim, puderam iniciar o processo de armazenamento do papelão com o aval da prefeitura. Após cinco meses, eles verificaram as tabelas de preço para o papelão e, negociaram a sua venda pelo melhor preço de mercado, formando o capital de giro.

Antes da associação, os catadores ganhavam o carrinho dos atravessadores de materiais recicláveis para quem eles trabalhavam e vendiam esse material por preço já estipulado. Depois de associados, o processo de trabalho foi se transformando: os catadores começaram a ter consciência dos seus direitos de cidadão – creche e escola para os filhos, moradia, melhores condições de trabalho e de remuneração. Hoje, no galpão onde há doze anos já funciona a associação, o catador chega com o seu carrinho carregado de material. Nesse espaço, ele separa os diferentes materiais recicláveis, que são prensados, pesados e vendidos pelo preço de mercado às empresas de reciclagens ou às intermediárias no processo. A produção é individual, ou seja, cada um recebe de acordo com a sua produção diária, que é registrada num microcomputador.

Existe uma parceria com a prefeitura, ela faz o convênio, mas é a associação quem administra, ou seja, a prefeitura cede alguns funcionários para a área administrativa, mas eles trabalham em conjunto com os catadores. A associação foi fundada em 1990, possuindo registro de fundação e estatuto. Ela tem um outro galpão, que é um grande espaço físico, onde trabalham mais de cem pessoas. Neste galpão, os catadores recebem os caminhões da coleta seletiva do lixo (quatro da prefeitura e dois alugados pela associação) e fazem a sua triagem, separando os diferentes tipos de resíduos, enquanto os catadores do primeiro galpão saem com suas carrocinhas para catar o lixo nas ruas.

Para tornar-se sócio, o catador deve pagar a mensalidade de três reais e fazer um curso de capacitação com duração de três meses, período em que recebe orientações sobre a importância do seu trabalho para a sustentação do meio ambiente e toma conhecimento das normas da associação que devem ser obedecidas. A associação conta com 366 associados, mas, incluídas suas famílias, são 1.500 beneficiados. A associação está levando sua experiência para 33 municípios, para retirar os catadores do lixão e trazê-los para a organização. As assistentes sociais vão até os lixões e instruem os catadores, visando à melhoria das suas condições de vida e trabalho.

Na associação já está em andamento o projeto de uma creche, onde as mães que trabalham no galpão poderão deixar suas crianças. Entre as catadoras é comum, logo após o parto, a retomada do trabalho. Com isso, o recém-nascido vai para a rua com a mãe, transportado no carrinho de coleta. Algumas escolas possuem convênio com a associação, ou seja, algumas vagas são reservadas aos filhos dos catadores. Na própria associação há um treinamento em marcenaria para adolescentes. Neste treinamento, eles aprendem a recuperar móveis – que são descartados no lixo ou doados por instituições e domicílios –, transformando-os em belas peças decorativas. Na marcenaria, também são construídos os carrinhos da associação, identificados com seu nome, telefone e endereço. Os associados ganham o carrinho e o uniforme. Eles ainda não possuem carteira assinada, convênio com serviços de saúde, pensão ou aposentadoria. Falam da dificuldade do reconhecimento da profissão "catador de lixo".

A maioria dos catadores fez parte da população de rua. Eles viviam em condições de miséria no local onde atualmente funciona a sede da associação, que vem fortalecendo, perante a população, a imagem deles como trabalhadores.

Além dos galpões de triagem, a associação também desenvolve atividades culturais, criativas e lúdicas. Ao atravessar a rua do primeiro galpão, visualizamos um prédio de três andares, conhecido como Bar Recicla. Este bar, que funciona no andar térreo do edifício, foi todo construído com material reaproveitado – cadeiras, mesas, balcão e objetos de decoração. Nele, também há uma pequena loja destinada ao comércio de objetos, feitos pelos artesãos e artistas da associação, com papel reciclado e com outros materiais reutilizados. No bar, em geral à noite, acontecem atividades culturais, tais como, espetáculos musicais, reuniões e encontros.

O prédio onde fica o Bar Recicla é uma parceria da associação com a prefeitura. Seu principal objetivo é acolher a população desabrigada que é encaminhada pela prefeitura, pela pastoral de rua ou pela própria associação para os setores de aprendizado – corte e costura, oficina de papel reciclado e atividades criativas como pintura e escultura. Eles aprendem um ofício sob a orientação de artistas plásticos e são levados ao abrigo da cidade. Também já está em andamento um setor de informática. Na fase inicial do aprendizado, eles ganham uma menor remuneração. Mais tarde, quando já fazem do ofício o seu meio de subsistência, além de ganharem mais, são incentivados ou indicados a buscar novas oportunidades de trabalho.

A parte lúdica é revivida todos os anos, na preparação das fantasias, nos ensaios do bloco da associação e durante o Carnaval da cidade. As fantasias são elaboradas pelo orientador da oficina de arte (artista plástico) em conjunto com o catador (dono da fantasia). As fantasias e os adereços do bloco são feitos com material descartado.

A associação "B" teve seu suporte de fundação no Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade (CAAL). O Centro pertence à Universidade Cândido Mendes, sendo sediado na antiga casa do professor Alceu em Petrópolis, onde ele costumava passar as férias de verão. Após sua morte, a casa foi comprada pelo professor Cândido Mendes, que a transformou no CAAL. Neste Centro está sendo desenvolvido o Projeto dos Catadores de Papel, que apóia a associação dos catadores de papel e papelão da cidade de Petrópolis.

Em 1995, o CAAL deu início ao Projeto dos Papeleiros, cujo trabalho, iniciado com 16 papeleiros, três dos quais já falecidos, prossegue hoje com oito deles, todos em idade avançada. A maioria começou a catar papel para o pai, prosseguindo, após seu falecimento, com o trabalho na carroça de coleta. Assim, a vida deles parecia ser uma rotina, já estavam acostumados ao sacrifício da privação. O suporte do Centro pode ser visto como uma luz no fim do túnel, já que existe uma instituição preocupada com a atividade que eles realizavam há muitos anos. A princípio, achavam que não daria certo, mas hoje acreditam que vão conseguir os benefícios almejados com a força do grupo.

Para se associar é preciso ser catador; participar das reuniões na última quinta-feira do mês e contribuir com dez reais (para a caderneta de poupança da associação), o que muitos tiveram dificuldade em aceitar – sempre trabalharam por conta própria e quando falta algo, eles costumam dar um jeito para conseguir. A associação também possui um estatuto, que deve ser seguido pelos seus associados. Nas reuniões, os papeleiros manifestam seus ideais mais concretos – um espaço físico de trabalho bem maior, que possibilite a separação e o armazenamento de outros materiais recicláveis além do papel. Outro problema discutido é o peso dos fardos de papel – as indústrias compradoras parecem não pagar os fardos de acordo com a pesagem, que eles fazem antes da sua venda.

Antes da associação, não havia um local para acondicionar o papel recolhido e, por isso, vendiam para o ferro-velho da cidade pelo preço que pediam. Não havia outra alternativa, além de catar e vender ou cata aqui, vende ali – como dizem os papeleiros. Também não tinham como negociar o preço do material com as indústrias compradoras. Hoje, sabem que existe uma tabela de preços nas industrias e, assim, podem melhor negociar o fruto do seu trabalho.

A companhia de limpeza da cidade compra semanalmente o papel coletado pelos catadores e vende para empresas de reciclagem. O pagamento é recebido de acordo com a produção de cada um, que é pesada e registrada em papeleta – eles recebem 75% do valor do material coletado e os 25% restantes vão para a associação. Com esse valor depositado, a associação paga o décimo terceiro salário e outros pequenos benefícios (cesta básica e carrinhos para coleta do lixo) para os seus associados.

Atores sociais e mediadores

Na associação "A", os catadores falam das vantagens da moradia, da alimentação, dos instrumentos de trabalho, dos direitos trabalhistas, de escola e creche para os filhos. Eles possuem um local de trabalho para a família, onde podem armazenar os resíduos coletados para depois selecioná-los e vendê-los. Também existem algumas vagas reservadas em escolas e a possibilidade de uma formação profissional para os filhos – trabalhar como marceneiro, prática que adquirem reformando móveis usados. Além disso, eles têm refeições por um preço acessível e opções de lazer no Bar Recicla – música ao vivo, teatro e acesso às atividades artísticas. No Carnaval, participam na elaboração das fantasias e na organização do bloco da associação.

A organização vem fortalecendo a sua imagem de trabalhador perante a população. A situação de desamparo, na qual se encontravam antes do processo associativo, pode ser claramente percebida nas suas falas:

...Teve uma época que aconteceu um massacre muito grande; eles chegaram aqui, onde morávamos sem dignidade nenhuma, e tomaram tudo. A gente já não tinha nada e eles levaram tudo e jogaram no aterro...

...A população não aceitava a gente. Achava a gente marginal vagabundo. Você tem que provar que é viável, tem que gerar trabalho e renda...

...A associação dá, mas ensina pensar. Aqui na associação nada é de graça – o restaurante é pago (dois reais). Agora não dá para dar...

A associação é respeitada na cidade e já reconhecida pelos catadores de outros Estados como referência nacional. A população identifica os carrinhos dos associados e contribui na entrega do material a ser reciclado ou reformado. Apesar do incentivo dispensado pela prefeitura na organização da associação, ainda observamos pelas ruas da cidade catadores que preferem trabalhar como autônomos ou independentes. A catadora, uma das fundadoras, conta que alguns associados retornam aos depósitos de lixo, onde viviam antes de se associarem. Ela explica que existe até um trabalho das assistentes sociais para trazer esses catadores de volta para a associação, onde possuem um local de trabalho mais adequado, uniforme, instrumentos de proteção e recebem abrigo ou casas para morar. Esta opção nos leva a refletir sobre a organização em questão, isto é, como criar mecanismos de inserção sempre atuantes?

O processo de inserção social começou a ser trabalhado através das oficinas de "arte a partir do lixo". A artista plástica Águida Zanon desenvolveu um trabalho para melhorar a auto-estima dos catadores e daqueles que lá foram acolhidos. Ela realizou oficinas de arte na associação durante oito anos, buscando, através do diálogo com eles, descobrir alguma festa popular que os despertasse para o processo de criatividade.

As oficinas eram desenvolvidas utilizando o material que eles catavam, criando uma outra linguagem para esse material. Trabalhar usando o material reciclável é trabalhar a auto-estima do próprio catador – diz a artista, que trabalhou com diversas faixas etárias, desde crianças bem pequenas até idosos. A festa popular que despertou maior interesse foi o Carnaval. A artista começou a construir as fantasias de carnaval e cada um participava na escolha e na elaboração da sua fantasia.

A meta da oficina, segundo a artista, é a de desenvolver a arte com um olhar na psicologia. Assim, através desse processo, o catador vai percebendo que ele pode ser um reciclador, ou seja, ele pode ascender a outra condição social – ele vai percebendo que a sua sobrevivência pode se dar a partir da transformação do lixo em matéria-prima, gerando um novo produto. Atualmente, dois artistas plásticos dão continuidade ao trabalho da artista precursora, com os associados. Eles trabalham com os catadores e com os desabrigados.

Wilson, ex-desabrigado, foi acolhido pela associação há quatro anos. Quando criança, ele passou pela Fundação Estadual de Bem-Estar do Menor (Febem), onde iniciou os seus primeiros contatos com o trabalho artesanal. Fala que se sente muito bem na associação, principalmente, na sua interação com o grupo de trabalho. Sofreu muito na primeira infância, mas hoje se sente vitorioso. Considera esta vitória como dele próprio, que lutou muito para superar os maus-tratos sofridos no passado. Apreendeu a técnica da arte e hoje é especialista na criação de oratórios. Ele comenta sobre a sua mudança de vida e, como se tornou um artista dos oratórios:

...Lá no Bar Recicla só tinha uma fileira de oratórios, então o administrador pediu para completar a parede para ficar um lugar só de oratórios. Então a gente fez e aqueles que sobraram estão na loja para vender. É tudo imaginação, você pega o bichinho e põe ali dentro e vê de longe, ficou legal? Ficou, aí você tem que ver algo que combine com o animal. Ali eu pus um monte de capim verde (aponta para o papel verde e picado), já tem alguma coisa a ver...

...A mudança não é da vida é da gente mesmo. A mudança é a gente que tem que fazer. Falar que a associação mudou minha vida não é nada, eu cumpro meu horário de trabalho de 9 às 17 horas, então quer dizer minha mão-de-obra está ralando. É claro que a união que a gente tem aqui é muito importante, para mim isso é uma terapia muito grande para minha mente, para meu corpo. Faz mais bem ficar mexendo com arte do que ficar aí fora, aceitando o que todo mundo oferece que é droga. Aqui você tem horário de trabalho, você sai daqui já não tem vontade de ir para rua e vai para casa. Vou ficar na rua, dormir na rua? Agora é diferente, você se aprofunda no trabalho e gosta daqui. Cada dia, você passa a gostar mais. A mente vem refletindo e só criando idéias novas, aquelas coisas do mundo vão ficando para trás, um novo mundo você vai observando, para trás você vai esquecendo...

Teobaldo, ex-desabrigado, nasceu e cresceu na cidade de Recife e chegou a trabalhar como vigilante na polícia militar, mas fala sobre as conseqüências do uso da bebida alcoólica na sua vida e do seu processo de adaptação na associação:

...A cachaça me derrubou. Aí eu caí no mundo, passei por Alagoas, Bahia e vim para cá. Fui para o Rio, não deu certo. Fui para São Paulo. Aí cheguei aqui e comecei a mexer com desenho. Comecei a desenhar pessoas. Depois pensei: se sei desenhar, também sei pintar. Aí pintei esses quadros, que estão lá embaixo. Penso em crescer mais e mais, na parte de arte e, fazer meu cantinho ali (fala indicando seu local de trabalho), você pode deixar o pincel lá e ninguém vai falar. Cheguei aqui em 98, cheguei e fiquei lá do outro lado, trabalhando na oficina de papel, fazendo bloquinhos, só que a minha cabeça não dá, em termos de criatividade ela é forte. Eu estou aqui, mas já estou pensando em outra coisa. Aí saí da associação e voltei para o Rio novamente. Muita coisa aconteceu, mas voltei para BH, consegui morar na república e me chamaram para trabalhar no bar aqui, mas senti que não era para mim e saí fora. Aí eu vim para cá e comecei a pintar, foi o lugar certo. Tenho que valorizar o que eu sei fazer. A associação está dando uma força e por que não segurar essa força e fazer alguma coisa com ela? Na questão de pintar eu sou paciente demais com relação ao que faço (fala mostrando a igreja que fez) eu gostaria de fazer as cadeirinhas e um altar, mas as pessoas aqui estão com pressa e dizem: não Teobaldo, tem que colocar lá embaixo na lojinha ou no mostruário de arte da associação...

Na associação "B" os catadores identificam os pontos positivos e negativos da associação. Os primeiros, ainda estão vinculados aos ganhos materiais, em curto prazo – o décimo terceiro salário; o tabelamento de preço do material a ser vendido; um espaço de trabalho mais amplo, onde possam armazenar os diversos materiais recicláveis; e o intercâmbio de experiências entre os companheiros das associações e cooperativas de catadores. Já os segundos são identificados como a descrença dos catadores na associação. Eles ainda se encontram atrelados à Companhia de Limpeza Urbana da cidade, que oferece instrumentos ou recursos humanos em troca da negociação no preço dos recicláveis.

Na reunião mensal da associação, realizada em 24 de novembro de 2003, mais uma vez foi demonstrada a insatisfação dos catadores de se encontrarem atrelados à Companhia de Limpeza Urbana. A Companhia comprava o material que eles coletavam e, depois, o vendia para a empresa de reciclagem. Finalmente, eles conseguiram saldar a dívida com a companhia, isto é, eles poderiam vender o material coletado diretamente para a empresa de reciclagem. Mas continuam contrariados, pois ainda são vistos pela população como empregados da Empresa de Limpeza da Prefeitura. A mistura entre a Companhia de Limpeza e a associação incomoda ao catador, que vem lutando pelo reconhecimento, pelos direitos trabalhistas e pela autonomia da profissão, através da associação. Esta situação, pode ser sentida no episódio, narrado pelo catador, quando alguém, em vez de referir-se à associação sobre o valor arrecadado na venda do papel, refere-se à Companhia de limpeza. Quanto é que a Companhia está pagando pelo papel? – ao que ele responde – "Eu não sei, eu não trabalho para a Companhia de Limpeza da Cidade".

Walter, catador entrevistado da associação, fala sobre a satisfação que sente em participar dos encontros entre as diversas associações e cooperativas nacionais. Estes encontros proporcionam novas idéias e também valorizam a profissão, que está sendo cada vez mais reconhecida e divulgada. Na visão do catador, a troca de experiências é fundamental para o crescimento da associação, que, ao divulgar o seu trabalho, além do intercâmbio dos membros da categoria, também propicia o contato com os outros profissionais e com o público em geral. Ao falar sobre a importância dessa troca, ele pergunta:

...E você, como chegou até nós? Você não está aqui por um acaso, você está aqui, porque alguém falou com você da gente. Então, se a gente não sair do nosso cantinho, não seremos conhecidos...

O catador começou a trabalhar no ofício há doze anos. Antes, trabalhava como motorista, mas ficou desempregado. Assim, começou a catar papel, até encontrar outro emprego. Mais tarde, apesar de ter conseguido retornar a sua antiga profissão, Walter optou em ser catador. Tal opção, segundo ele, está relacionada à sua contrariedade em ter de se submeter ao patrão ou abrir mão da sua autonomia. Há um tecido social a se tornar, cada vez mais abrangente, em suas formas de solidificar a inserção.

A decisão de sobreviver dos restos da sociedade mudou radicalmente a vida de Walter. A princípio, até sua família protestou, mas acabou aceitando. Alguns amigos deixaram de freqüentar sua casa. No entanto, outros deram parabéns e conservaram a amizade.

O catador conta que, ao retornar à ocupação, apesar de ter sentido uma decepção, ele cresceu pessoalmente. A decepção foi a de saber que havia muita gente desempregada. Muitos profissionais, assim como motoristas de ônibus, que ao serem demitidos foram catar papel nas ruas da cidade. O crescimento pessoal foi o de perceber que existia uma nova perspectiva de ganhar a vida, sem precisar roubar. Observam-se uma amplificação e uma solidificação da consciência de inserção, de uma forma de estar no mundo. Assim, Walter fala com entusiasmo sobre a nova descoberta:

...Eu vou roubar? Isso não! Eu vou ajudar a natureza, eu vou catar o peti, o plástico, o papelão, os alumínios. Hoje é essa a grandeza que eu tive. A grandeza de ver que ainda há um ponto de emprego, diante de toda dificuldade que tem. Daqui, alguns anos vai faltar latinha para gente, vai faltar o papel para gente, é tanta gente catando...

A ocupação de catar papel ou outro material qualquer, do ponto de vista de Walter, um dia vai terminar. Hoje, seus filhos ainda são pequenos, mas amanhã, quando adultos, ele, como catador, não poderá financiar os seus estudos. Diante dessa impossibilidade, teme para eles um futuro bem pior do que a vida atual. A única opção viável, que ele percebe, no momento, é passar de catador para atravessador, ou seja, em vez de vender o material, ele compraria para revender às indústrias de reciclagem, obtendo um lucro maior. É interessante observar que a condição de inserção permite sonhos, antes impossíveis.

Segundo o catador, depois de associado, sua vida não mudou. Ele se sente decepcionado com o desinteresse dos colegas da associação. Acabou de voltar de Belo Horizonte, onde foi participar do Encontro Nacional de Catadores, e os seus colegas não se interessaram pelas informações que ele obteve e repassou na reunião mensal da associação. Mostra os folhetos e as revistas, que foram esquecidos pelos colegas em cima da mesa, expressando a sua mágoa. Mas, por outro lado, também deixa perceber, que tem consciência das crises e superações presentes em todo trabalho.

...Na reunião de lá, eu me senti o mais importante que eu poderia ser, mas, eu sabia que, quando chegasse aqui, que eu ia ter uma decepção. Eu gostaria que a gente crescesse, cada cooperativa crescesse. Talvez, chegar no ponto da Asmare ou Ricamare. Hoje, as pessoas não sabem o que estão fazendo com a natureza. Então, nesse ponto, que nós estamos hoje, eu não estou satisfeito. Tem uma parte que estou e uma parte que não. Como eu já vi em outros lugares, a pessoa lutar e levar, os mesmos problemas que nós temos aqui. A mesma decepção que eu tive na reunião, as pessoas do Rio de Janeiro, de Belo Horizonte e das cidades todas tiveram...

Do ponto de vista dos associados, o mais importante, no momento, continua sendo um espaço mais amplo de trabalho. A prefeitura já se comprometeu a pagar o aluguel, mas existe o preconceito da população em relação ao lixo. Segundo os catadores, a população também confunde o local de separação de materiais recicláveis com o depósito de lixo. Mas, eles concordam que o local pretendido deve ficar distante do centro da cidade. Também entendem que a Companhia de Limpeza Urbana está apoiando o seu trabalho e, por esse motivo, a faixa fixada no local, deve explicitar apenas o apoio. O espaço de trabalho, sendo distante, torna necessária a compra de uma kombi, que possibilite o transporte de materiais do Centro da cidade para o local mais afastado.

Atualmente existem apenas seis associados na Associação "B". Um deles voltou a beber ficando impossibilitado de cumprir as tarefas estipuladas e outro parece não ter obedecido às normas da associação – ele começou a armazenar outro tipo de reciclável no espaço da associação e, quando chamado para dar explicação, declarou não querer mais ser associado. Mas, entraram mais três, que ainda se encontram no período de experiência de seis meses. Como diz José, catador entrevistado: "...Está sempre entrando e saindo gente. Sai um, outro entra..."

Nas reuniões da Associação observei que a mediadora – educadora e assistente da presidência da CAAL – estava sempre procurando entender os catadores, interagindo em cada ato de decisão da categoria. Assim, a mediação parece se dar com os sujeitos da situação, isto é, de um lado os agentes da associação e de outro os agentes da Companhia de limpeza da cidade.

Também me chamou a atenção o comentário feito pela educadora, de que cada um tem uma função a cumprir na organização. Walter é comunicativo e, por isso, está sempre buscando novas idéias nos encontros da categoria. José gosta de ensinar o ofício aos novos colegas. O fundamental dessa diferença é manifestado na integração dos catadores, ou seja, na interação das suas subjetividades que, apesar de se fazerem representar na totalidade, devem manter a singularidade no todo.

Considerações finais

Partindo da premissa que a organização de pequenos grupos, de comunidades ou da sociedade como um todo, vai depender da criatividade e da autonomia dos seus sujeitos – como os catadores de materiais recicláveis, que ainda sofrem formas extremas de exclusão social, poderão ser inseridos?

Os catadores, quando organizados em associações ou cooperativas, podem tornar-se um pequeno grupo e, através dele, dar vazão ao seu processo de criatividade. Mas, para isso, necessitam de liberdade, auto-estima e pertença social.

A imagem negativa da sociedade sobre os catadores interage com a auto-imagem que ele formou de si próprio. Quando não organizados, são vistos como marginais à sociedade. No entanto, ao se organizarem, também sofrem discriminações.

O poder público, ao garantir o suporte básico para a Associação "B", não tem respeitado o direito de decisão da categoria. A ordenação de espaços tem persistido a uma compulsão à repetição, ou seja, tendem a reproduzir as formas do poder hegemônico. Na organização do Terceiro Setor, os mesmos erros são repetidos com freqüência, a participação dos seus membros nos processos de decisão se dá no sentido vertical – de cima para baixo – e não no sentido horizontal ou debatido entre os membros formadores da Organização. Tal fato desencadeia a descrença e a desunião entre os membros formadores do pequeno grupo, impedindo ou dificultando o desenvolvimento do potencial de criatividade dos sujeitos e, conseqüentemente, o processo de emancipação social.

Segundo os estudos realizados por Monteiro (2004), em geral o Estado parte de um modelo uniforme, inibindo a diversidade de estruturas e a criatividade social na intervenção.

O referido autor ainda faz uma crítica ao poder público que não considera novas modalidades de apoio, fundamentadas na vivência dos associados. Entretanto, ele enfatiza que são conhecidas as limitações decorrentes de um processo de parceria, quando uma das partes detém escassa força de negociação. Apesar de caracterizadas como coordenação negociada de distintos recursos e interesses, qualquer parceria tem dificuldades em sobreviver a marcadas assimetrias de poder. Neste sentido, a negociação explícita não é negociada de forma aberta e horizontal, sendo o debate filtrado por fatores externos ou alheios a ela.

No presente estudo observamos uma desconfiança mútua na relação de parceria entre o poder público e as associações. Nas associações, quanto ao modo como os serviços públicos tendem a assumir uma atitude diretora. Já no poder público, quanto à capacidade de gestão dessas iniciativas.

É preciso criar a dinâmica de novas práticas, a fim de ilustrar novos discursos e não deixar coagular esses novos discursos. As iniciativas de natureza solidárias poderão propiciar um quadro de mudanças e ajudar a consolidar a contribuição das organizações, como espaços autônomos e reconhecidos de afirmação coletiva e visão transformadora da sociedade. As experiências observadas demonstram que a recuperação da iniciativa e da capacidade de fazer proporciona uma legitimidade ao processo associativo, sendo fundamental à redefinição dos termos em que se dão as relações com o Estado e o reconhecimento por parte dele.

A associação "A" tem apresentado resultados positivos com a criação das oficinas de "Arte a partir do Lixo". Neste sentido, fica registrada a importância de se criarem espaços com ambiente apropriado para atender às especificidades de cada comunidade, no qual permaneça o respeito à singularidade de cada componente do grupo e a sua interação dinâmica com o coletivo.

O homem, quando lhe é possibilitado desenvolver o seu potencial de criatividade, não precisa copiar soluções estabelecidas por outras realidades divergentes da sua. Assim, imbuído da sua capacidade inata de criação, ele, vencendo a angústia, pode ordenar e formatar suas idéias e criar o seu universo, suas leis e seu lugar no mundo, de acordo com seu desejo. No entanto, para alcançar a criatividade e a emancipação, torna-se necessário que tanto os catadores de lixo, como a sociedade, sofram transformações simultâneas no seu aspecto econômico, político e cultural.

A criação de soluções para resolver os problemas do lixo, desde a produção até o seu destino final, deve partir de cada pessoa do grupo, ou seja, o singular deve interagir com o coletivo, formando um todo e, desta forma, desenvolver medidas a favor da saúde pública. Entretanto, cabe lembrar que esse todo não é constituído pelo simples somatório das suas partes, uma vez que cada parte continua mantendo a sua singularidade.

Agradecimento

À CAPES, pela concessão da Bolsa Sanduíche para a complementação do doutorado, no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra/Portugal, onde sob a co-orientação de João Nunes Arriscado escrevi o capítulo que deu origem ao presente artigo.

Artigo apresentado em 3/12/2004

Aprovado em 21/04/2005

Versão final apresentada em 2/06/2005

  • Becker HS 1994. Métodos em pesquisa de ciências sociais. Hucitec, São Paulo.
  • Capucha LMA 1998. Exclusão social e acesso ao emprego: paralelas que podem convergir. Sociedade & Trabalho 3:61-69.
  • Castoriadis C 1987. As encruzilhadas do labirinto II: os domínios do homem. (Trad. de José Oscar de Almeida). Paz e Terra, Rio de Janeiro.
  • Fischer NB 1996. Educação popular em tempos de mulheres papeleiras. A fala dos excluídos. Cadernos Cedes 38:100-112.
  • Ginzburg 1989. Sinais: Raízes de um paradigma indiciário, pp. 143-180. In Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história (Trad. de Frederico Carotti). Cia das Letras, São Paulo.
  • Guattari F 1990. As três ecologias. (Trad. de Maria Cristina Bittencourt). 10Ş ed.. Papirus, Campinas.
  • Momberger CD 2000. Les histoires de vie: de l'invention de soi au projet de formation. Anthropos, Paris.
  • Monteiro AA 2004. Renunciar à autonomia ou o movimento associativo numa encruzilhada. Revista Crítica de Ciências Sociais 69:139-157.
  • Oliveira MV 2001. Entre ruas, lembranças e palavras: a trajetória dos catadores de papel em Belo Horizonte. Dissertação de mestrado, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
  • Santos BS & Arriscado NJ 2003. Para ampliar o cânone do reconhecimento da diferença e da igualdade, pp. 25-68. In BS Santos (org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.
  • Santos BS & Rodriguez C 2002. Para ampliar o cânone da produção, pp. 23-77. In BS Santos (org.). Produzir para viver: os caminhos da produção não capitalista. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.
  • Santos BS 1997. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de Ciências Sociais 48:11-32.
  • Santos BS 2001. Subjetividade, cidadania e emancipação, pp. 235-280. In Pela mão de Alice. Cortez, São Paulo.
  • Winnicott DW 1970. Processus de maturation chez l'enfant Payot, Paris.
  • Winnicott DW 1975. O brincar e a realidade Imago, Rio de Janeiro.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2005

Histórico

  • Recebido
    03 Dez 2004
  • Revisado
    21 Abr 2005
  • Aceito
    02 Jun 2005
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cienciasaudecoletiva@fiocruz.br