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Pesquisa qualitativa de serviços de saúde

RESENHAS REVIEWS

Everardo Duarte Nunes

Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Unicamp

Bosi MLM & Mercado FJ, organizadores. Pesquisa qualitativa de serviços de saúde. Maria Lúcia Magalhães Bosi & Francisco Javier Mercado. Editora Vozes, Petrópolis, 2004, 607p.

No momento em que ocorre um recrudescimento da pesquisa qualitativa e da avaliação de serviços de saúde, este livro apresenta uma dupla importância: primeiro porque retoma a relevância desse tipo de pesquisa e, segundo, porque situa a complexa questão da avaliação de serviços em um patamar conceitual de destaque para o campo da saúde pública e coletiva.

Para os profissionais que militam há mais tempo na área da saúde, é sobremodo gratificante verificar como o tema da avaliação não sucumbiu aos ditames de uma visão conservadora e reducionista e pode retirar do passado algumas lições, ampliando o seu espectro de possibilidades teóricas e aplicadas.

Para mim, dentre as lembranças mais antigas deste campo, cito aquela que nos legou Avedis Donabedian (1919-2000), quando, nos anos 60 produziu um trabalho importante, intitulado Evaluating the quality of medical care. Sabem os estudiosos da avaliação que Donabedian continuaria a sua profícua carreira com os trabalhos dos anos 80 e 90, tratando do seu tema preferido – a qualidade do cuidado médico, quer seja apontando "os sete pilares" da avaliação, as relações com a epidemiologia, o custo e principalmente referenciando este tema em seus aspectos conceituais e epistemológicos, embora não isento de algumas críticas. Sabe-se, também, que a destacada contribuição deste autor foi especialmente de caráter teórico-conceitual ao situar a avaliação em seu tríplice aspecto como estrutura, processo e resultado.

Hoje, diferente dos anos 60 e 70, quando não existiam tantas especializações temáticas na área da saúde pública (ainda não se usava o termo saúde coletiva), e as ciências sociais tomavam a dianteira sobre certos assuntos (a pesquisa avaliativa tem suas raízes nos Estados Unidos, nos anos 50, junto com as ciências sociais, época em que o interesse por esse tema era provocado pelas críticas aos serviços públicos e à ação social), há uma farta bibliografia sobre o assunto. Isto não significa que todos os assuntos correlatos à avaliação estejam resolvidos, que ao lado de outros, como o da subjetividade, passam a ser objeto de debates. Disto resulta a relevância deste trabalho.

Este livro traz para o leitor um alentado conjunto de capítulos que se distribuem de forma a dar uma visão bastante completa do tema. Mais ainda, associa ao tema a questão da pesquisa qualitativa, como acima enunciado e aqui repetido, pois é uma das marcas da originalidade das abordagens realizadas, não deixando de lado uma atualizada reflexão sobre essa intrincada questão metodológica.

Muitas são as questões suscitadas pelo livro. Como foi apontado em outros momentos, quando analisei a avaliação em saúde, considero importante tratar este tema como campo de estudo sociológico (os organizadores deste livro tomam como referência a noção de campo de Pierre Bourdieu, o que me parece extremamente oportuno), especialmente se considerarmos que avaliação não constitui um conceito ou uma categoria sociológica. De outro lado, a riqueza das abordagens trazidas pela revisão teórica e relato das experiências recoloca o pensar sobre a avaliação, no sentido que ela permite percursos que vão do indivíduo ao sistema, em termos das unidades de análise, como também da abordagem objetiva à subjetiva, ao centrar-se em indicadores com precisão objetiva ou nos valores que dimensionam a avaliação das práticas políticas e sociais. Em realidade, tudo pode ser objeto de avaliação e conceituá-la não é tão simples; alguns autores compilaram cerca de 20 diferentes definições do termo, mas ele adquire características especiais quando o seu objeto é a saúde, mais que isso, o sistema de saúde. Assim, a objetivação da avaliação pressupõe o sistema, e este, tomado como parte de outro campo – o das políticas públicas.

Todo este preâmbulo quer preparar o leitor para percorrer um trajeto que se abre com densos capítulos teóricos, de autores que se destacam no campo da avaliação tanto como investigação avaliativa, avaliação para decisão e avaliação para gestão. Uchimura, Bosi, Deslandes, Gomes, Tanaka, Melo, Mercado-Martinez, Infante, Abreu trouxeram em seus textos, na Parte I, como rotulam os organizadores do livro, reflexões que se estendem às questões teóricas e sobre o estado da arte da avaliação e da pesquisa qualitativa.

O resgate da subjetividade, que faltava nos trabalhos clássicos de avaliação, é tomado com destaque, acoplado ao fato de que não basta a quantificação para mensurar a qualidade e que a singularidade e as marcas simbólicas que os eventos imprimem nos indivíduos são fundamentais para analisar os sistemas/serviços de saúde. Da mesma forma, o enfrentamento da pesquisa qualitativa coloca desafios, tanto em seu pólo técnico como no pólo teórico-analítico. Retomar a hermenêutica é o caminho apontado pelos autores, não como "reprodução, mas a construção negociada do sentido dado pelo autor e pelo intérprete". Nesse sentido, a vertente antropológica é básica para construir o referencial interpretativo na pesquisa qualitativa em saúde. Destaco, ainda, no conjunto de reflexões, aquelas que se dedicam a apontar as diferenças básicas entre a pesquisa qualitativa e a avaliação no processo de gestão, com seus objetivos, enfoques e metodologias específicos.

Sendo central neste livro a questão da pesquisa qualitativa, o enriquecimento desta abordagem é dado com um extenso trabalho que analisa os padecimentos crônicos e sua atenção, ressaltando aspectos teóricos e metodológicos tais como: a relação quantificação e pesquisa qualitativa, variáveis, descrição, análise e interpretação, esquema seqüencial versus circular, manejo manual versus programas informatizados, etc. Ressalta o cuidado nas abordagens combinadas, a fim de que não se tornem "inadequadas frente a incompatibilidade dos pressupostos teóricos e epistemológicos". Outro exemplo interessante da utilização da pesquisa qualitativa é a de um trabalho realizado no México, abordando o fenômeno das queixas médicas, com base nas narrações feitas pelos usuários. Os limites da resenha não permitem detalhar este estudo que traz importante contribuição, ao "proporcionar uma visão geral dos processos sociais implícitos nas queixas médicas".

A segunda parte do livro oferece ao leitor uma série de estudos que primam pela originalidade e qualidade, retratando experiências empíricas sobre/em serviços de saúde, em diferentes países, regiões e contextos sociais.

No primeiro artigo, Godoy e Bosi analisam a gravidez não planejada na perspectiva de usuárias de um serviço pré-natal. Destaca-se, dentre outros aspectos, a interessante revisão que trata dos estudos qualitativos, especialmente, na América Latina, que tratam da fertilidade, menstruação, gravidez, aborto e anticoncepção e a perspectiva de analisar o planejamento de uma gravidez além do modelo biomédico, embora este continue sendo orientador "da rede perceptiva das práticas dessas mulheres". No trabalho sobre o pré-natal e a transmissão vertical do HIV, Barbosa e Casanova analisam a perspectiva de profissionais da rede pública de saúde do Município do Rio de Janeiro. O tema da saúde reprodutiva é abordado na visão daqueles que prestam os serviços de saúde, utilizando o referencial de Bosi denominado "conteúdo da consciência" – ideologias e valores que informam a práxis em saúde.

Ortega, Infante e Palácios, em pesquisa realizada no México, analisam os dilemas advindos da duplicação de serviços de saúde como expressão da insatisfação dos pacientes. A atual leitura do itinerário do paciente (a antiga denominação era carreira) fornece elementos fundamentais para se conhecer os motivos que levam os pacientes a duplicarem os serviços médicos que foram registrados nas queixas médicas. Outro estudo realizado no México, por Mercado-Martinez, Alcântara-Hernández, Tejada Tayabas, Lara Flores e Sánchez-Flores, analisa o atendimento médico aos doentes crônicos, marcando as diferenças entre as perspectivas dos médicos, das enfermeiras e das pessoas doentes. Aqui, também, a idéia é a de desenvolver metodologias que permitam recuperar a voz de diversos agentes sociais e construir modelos de atendimento às doenças crônicas a partir das necessidades e propostas da população. O estudo levanta elementos para se considerar a existência de perspectivas hegemônicas e subalternas entre os profissionais de saúde, bem como as relações pouco igualitárias no campo sanitário.

A fim de poder avaliar os serviços em saúde mental, sob a perspectiva dos usuários e profissionais, Rodriguez Del Barrio, Corin, Poirel e Drolet apresentam um trabalho com expressiva densidade teórica com base na fenomenologia e em estudo empírico realizado em Quebec. Os autores analisam os discursos que emergem dos modelos de integração dos serviços e como estes repercutem sobre os planejadores e sobre as trajetórias dos usuários.

Na seqüência de estudos que tratam das perspectivas de profissionais e usuários e serviços de saúde, Bosi e Affonso analisam cuidados básicos da rede pública no Município do Rio de Janeiro. O foco deste trabalho é o do direito à saúde e a participação popular captado por meio de relatos e depoimentos, na busca de compreender o "desafio de construção de uma consciência sanitária".

Outro tema importante nesta Coletânea refere-se à violência intrafamiliar a partir de quatro histórias ocorridas em duas localidades de Niterói e a intervenção de profissionais do Programa Médico de Família nessas situações. Foi abordado por Cavalcanti e Minayo e relatam não somente a mobilização e dificuldades que essa situação provoca para os profissionais, mas a visão dos moradores que vivenciam as situações de conflito e violência.

Os dois últimos artigos apresentados tratam, respectivamente, dos seguintes temas: sexualidade, imigração e prevenção da Aids, de Pla, Ros, Fernández, Pérez, Llena e Vega; venda de serviços de saúde no México, de Ugalde e Homedes. No primeiro, é analisada uma experiência de avaliação qualitativa/participativa de experiências nacionais de intervenção em atenção primária realizada em Barcelona (Catalunha, Espanha) visando conhecer os estereótipos socioculturais subjacentes às práticas profissionais sobre os temas em destaque; e no segundo, os autores relatam como ocorre a venda de serviços públicos de saúde, como expressam os pesquisadores, naquilo que constitui o sistema de cotas de participação.

Resenhar textos que perfazem 598 páginas não é tarefa simples, especialmente quando se tem em mãos assuntos complexos e que sob a rubrica de avaliação englobam uma rede de conceitos e teorias bastante diversificados. Ao se tentar esta súmula, penso, simplesmente, estar encaminhando o leitor para uma jornada ao interior de um campo de conhecimento dos mais instigantes e que para os profissionais da saúde e das áreas das ciências sociais é de fundamental importância. A busca de uma perspectiva metodológica que assegure aos estudiosos um pensar ampliado, que vai além do método, é um dos grandes momentos deste livro. Destaque-se, ainda, que esta obra é produto de um projeto coletivo entre pesquisadores brasileiros, latino-americanos e espanhóis o que garantiu expressiva diversidade das populações estudadas, dos contextos e dos sistemas de saúde.

Muito pode se aprender com este livro, mas eu concluiria citando o autor que abriu esta resenha. Em 1986, ao receber o Prêmio de Investigação em Serviços de Saúde, Donabedian disse o seguinte: Em todo o meu trabalho tratei de incorporar a convicção apaixonante de que o mundo das idéias e o mundo da ação não estão separados, como alguns pensam, mas que são inseparáveis um do outro. As idéias, em particular, são as forças verdadeiras que dão forma ao mundo tangível (Donabedian, 2000). Penso que a perspectiva adotada no livro revaloriza essa visão, trazendo para o debate não apenas a preocupação de construir espaços teóricos e metodológicos adequados, mas a certeza de que eles possam servir para orientar as ações políticas e mudanças sociais na saúde.

Referências bibliográficas

Donabedian A 1966. Evaluating the Quality of Medical Care. Milbank Memorial Fund. Quarterly 44:166-206.

Donabedian A 2000. Response. Baxter American Foundation Health Services Research Prize, 1986. Documento não publicado. Citado por Frenk, J. In memorian. Salud Pública de México 43(6):556-557.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    Abr 2005
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