Análise de casos de feminicídio em Campinas, SP, Brasil, entre 2018 e 2019 por meio do modelo ecológico da violência

Caicedo-Roa, Mônica; Cordeiro, Ricardo Carlos

doi:10.1590/1413-81232023281.09612022

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ARTIGO • Ciênc. saúde coletiva 28 (01) • Jan 2023 • https://doi.org/10.1590/1413-81232023281.09612022 linkcopiar

Análise de casos de feminicídio em Campinas, SP, Brasil, entre 2018 e 2019 por meio do modelo ecológico da violência

Autoria SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Resumo

A violência letal contra a mulher é um fenômeno complexo e multidimensional no qual interseccionam e confluem um amplo número de fatores para que aconteça um feminicídio em um momento e lugar específico. Identificaram-se os principais fatores que contribuíram na ocorrência de feminicídios na cidade de Campinas no período de janeiro de 2018 a dezembro de 2019. Foram feitas entrevistas com membros da família, amigos, vizinhos, testemunhas e agentes de saúde sobre 24 casos de feminicídio utilizando a técnica da autópsia verbal. As autópsias foram complementadas, quando possível, com informações veiculadas na mídia e informes de autópsia clínica. Para o processo de análise de dados, foram realizadas narrativas dos casos resgatando os aspectos mais importantes das autópsias verbais e organizando os fatores encontrados nos quatro níveis do modelo ecológico da violência utilizado pela Organização Mundial da Saúde: individual, relacional, comunitário e social. Estruturou-se a análise em categorias seguindo uma abordagem dedutiva. Partindo de casos particulares delimitados no tempo (2018 e 2019) e no espaço (a cidade de Campinas), espera-se compreender o fenômeno da violência letal contra as mulheres em sua dimensão mais ampla.

Palavras-chave:
Violência de gênero; Feminicídio; Análise de gênero na saúde; Perspectiva de gênero

Característica sociodemográficas dos casos de feminicídio	Provável motivação/gatilho e mecanismos empregados para causar a morte
Alana: Mulher de 38 anos, branca com estudos de pós-graduação.	O companheiro tinha ciúmes por suspeitar que ela estava em outro relacionamento. Sofreu 16 disparos de arma de fogo.
Antonieta: Mulher de 49 anos, parda, com ensino superior completo, casada e operadora de máquina em uma empresa de rede de pesca.	Estupro. Sofreu trauma cranioencefálico com barra de cano.
Carina: Mulher de 25 anos, branca, solteira e atendente de serviços em rodovia.	Teve um desentendimento com namorado. Sofreu golpes de faca no peito, na mandíbula, sobrancelha e lábio e ferimentos letais no pulmão e coração (duração do relacionamento: um mês).
Dorelia: Mulher de 75 anos, parda, sem estudos, casada e atendente de bar em bairro.	Teve um desentendimento por causa de dinheiro com o filho que a espancou e empurrou causando TCE.
Eva: Mulher de 41 anos, branca, autônoma.	Desentendimento pelo término do relacionamento, ele a agrediu com uma facada no lado direito do peito para que aprendesse a não o desafiar.
Flávia: Mulher de 40 anos, preta, casada e catadora de reciclagem.	Desentendimento do casal. Sofreu espancamento e queimadura com gasolina.
Franciele: Mulher de 34 anos, branca, com ensino superior completo, casada e funcionária administrativa de um mercado.	O companheiro não queria aceitar o término do relacionamento e tinha ciúmes de um suposto novo parceiro. Sofreu estrangulamento.
Jeannete: Adolescente de 19 anos, parda, com ensino fundamental incompleto, solteira, vinculada ao tráfico.	Tinha vínculo e dívidas com o tráfico. Sofreu 31 perfurações no tórax e abdômen, sinais de agressão sexual.
Majô: Mulher de 29 anos, preta, casada.	Estupro. Sofreu asfixia mecânica e esganadura.
Marcela: Adolescente de 13 anos, parda, com ensino fundamental incompleto, em união estável e atendente de serviços em buffet.	Desentendimento do casal, ele não queria que ela saísse de casa. Sofreu ferimento a bala na coxa com grande perda sanguínea.
Martina: Mulher de 26 anos, branca, com ensino superior incompleto, solteira e estudante da área da saúde.	Não se conhece o gatilho da agressão. Sofreu esganadura e asfixia usando um fio do celular por parte do namorado.
Martha: Mulher de 32 anos, branca, com ensino fundamental incompleto, solteira e garçonete.	Término de relacionamento e suspeita de ter relacionamentos com outros homens. Sofreu espancamento e agressão com faca na região cervical.
Miranda: Mulher de 40 anos, parda, com ensino fundamental incompleto, casada e atendente de serviços em uma sorveteria.	Estupro. Sofreu golpes de faca e posteriormente foi degolada.
Nicolaza: Mulher de 50 anos, branca, com ensino superior incompleto, solteira e faxineira.	Tinha suspeita de gravidez e o agressor não queria que a esposa soubesse da infidelidade. Sofreu enforcamento e golpe na cabeça.
Neusa: Mulher de 54 anos, branca, com ensino médio incompleto, solteira e comerciante.	Término de relacionamento. Sofreu queimadura com gasolina em 95% da superfície corporal.
Olivia: Mulher de 64 anos, branca, separada e aposentada.	Não quis entregar para o neto o dinheiro da pensão. Sofreu ferimento por arma branca, corte no pescoço com arma branca.
Orquídea: Mulher de 82 anos, branca, com ensino fundamental incompleto, viúva e aposentada.	Sofreu golpes múltiplos de faca, garfo e tesoura de podar grama de um agressor que a confundiu com a mulher (neta da vítima) com quem ele havia recém terminado um relacionamento (duração do relacionamento: três meses).
Ramona: Mulher de 31 anos, branca, com ensino médio incompleto, casada e atendente de serviços dos Correios.	Tinha uma relação com um companheiro altamente violento, que a agredia fisicamente com regularidade. Sofreu espancamento com paulada e chutes na cabeça.
Samanta: Mulher de 28 anos, parda, com ensino superior incompleto, separada e atendente em um depósito de bebidas.	Término de relacionamento. Sofreu enforcamento. Houve simulação de suicídio.
Sílvia: mulher de 43 anos, preta, com ensino médio incompleto, solteira, faxineira e trabalhadora sexual.	Suspeita de ser HIV+. Sofreu enforcamento, espancamento e queimadura do corpo.
Thaisa: Mulher de 24 anos, branca, solteira e trabalhadora sexual.	Teve um filho do agressor e ele não queria que a esposa soubesse da infidelidade. Sofreu espancamento e seu o corpo ficou enterrado por aproximadamente um mês.
Taciana: Mulher de 21 anos, preta, solteira e tesoureira de mercado.	Término de relacionamento. Sofreu 15 impactos de bala.
Valentina: Mulher de 31 anos, parda, com ensino superior incompleto, solteira e atendente de serviços em um lava-rápido.	Desentendimento por dinheiro com companheiro. Sofreu ferimentos cervicais, torácicos e abdominais com arma branca. (duração do relacionamento: quatro meses).
Valeriana: Mulher de 32 anos, parda, solteira e cozinheira.	Se relacionou sexualmente com outros parceiros. Sofreu espancamento e agressão com faca no pescoço pelo companheiro (duração do relacionamento: três meses).

Nível (n)	Categoria (n)	Elementos do nível (n)
Relacional (97)	Relacionamento violento (37)	Relacionamento com um homem violento (19). Antecedente de relacionamento abusivo (6). Relacionamento curto (4). Se relacionar com um homem casado (2). Agressores múltiplos (2). Outros (4).
	Questões comportamentais do agresor (25)	Ser ameaçada de morte (6). Consumo problemático de Spas pelo agressor (4). Comportamento controlador do companheiro (4). Ameaça ou tentativa de suicídio do agressor (3). Desentendimento prévio com o agressor (3). Antecedente de depressão do agressor (2). Outros (3).
	Separação e término de relacionamento (12)	Término de relacionamento (7). Dificuldade do agressor de aceitar o termo do relacionamento (2). Antecedente de término de relacionamento (2). Outros (1).
	Rede de apoio deficiente (10)	Rede de apoio deficiente (5). Relações familiares conflitivas (2). Outros (3).
	Dificuldades financeiras do agressor (4)	Desemprego do agressor (2). Outros (2).
	Agressão sexual (3)	Sofrer agressão sexual (3).
	Subestimação do risco de morte (3)	Disponibilidade e acesso a armas de fogo para os agressores (2). Outros (1).
	Prisão (3)	Relacionamento com um homem com antecedente de prisão (2). Outros (1).
Individual (96)	Gênero (24)	Identidade de gênero feminina (24).
	Condições econômicas (14)	Baixo nível socioeconômico (10). Ambiente físico insalubre (2). Outros (2).
	Procedência (11)	Procedência fora de São Paulo (11).
	Consumo de Spas (10)	Consumo problemático de Spas (10).
	Condições educativas (9)	Baixo nível de escolaridade (7). Abandono dos estudos (2).
	Estar só (6)	Estar só em casa (5). Outros (1).
	Idade (5)	Idade (adolescente 1, idosa 4).
	Condições familiares (5)	Exposição/testemunhar violência na infância (3). Outros (2).
	Gravidez (3)	Suspeita ou gravidez de um agressor (3).
	Raça (3)	Raça negra (3).
	Ocupação (2)	Trabalho sexual (2).
Social (80)	Misoginia (40)	Cultura misógina (19). Alta tolerância social ao comportamento violento contra as mulheres (17). Falta de mecanismos para lidar com questões emocionais de dependência e de término de relacionamentos (2). Outros (2).
	Machismo (27)	Cultura machista (24). Cultura que valoriza a monogamia (2). Outros (1).
	Violência e falta de coesão social (8)	Cultura violenta (2). Morte como estratégia de vingança e resolução de conflitos (2). Falta de coesão social (2). Outros (2).
	Preconceito (5)	Estigma e discriminação contra pessoas usuárias de Spas (2). Outros (3).
Comunitário (64)	Condições econômicas (14)	Falta de oportunidades de emprego (6). Baixo nível socioeconômico (4). Bairro sem vias pavimentadas (2). Outros (2).
	Conduta violenta dos agressores (14)	Disponibilidade e acesso de armas de fogo para os agressores (5). Uso da violência como meio de resolução de conflitos (3). Falta de coesão comunitária (2). Outros (4).
	Relação com as instituições de justiça (11)	Sistema prisional focado na punição e não na ressocialização dos presos (5). Outros (5).
	Violência por tráfico de drogas e crime organizado (8)	Comunidade com violência por tráfico de drogas e crime organizado (6). Outros (2).
	Substâncias psicoactivas 6)	Falta de um sistema efetivo de reabilitação e reintegração das pessoas com consumo problemático de substâncias psicoativas (4). Consumo de substâncias psicoativas amplamente difundido na comunidade (2).
	Redes de apoio para mulheres (4)	Falta de redes de apoio para mulheres em situações de violência (2). Falta de mecanismos para lidar com questões emocionais de dependência e de término de relacionamentos (2).

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