Resumo
O objetivo desse artigo foi analisar resultados oriundos da implementação do projeto Territórios Integrados de Atenção à Saúde (TEIAS) em uma capital brasileira. Estudo quantitativo, com base em dados secundários provenientes dos bancos de dados e-Gestor AB, e-SUS, Prontuário Eletrônico do Cidadão, Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica e de relatórios gerenciais do projeto TEIAS, referentes ao período de 2020 a agosto de 2023. Os resultados sugerem a potência das estratégias de inovação, para o fortalecimento da Atenção Primária à Saúde (APS) por meio da formação profissional alinhada às características e demandas dos territórios, do aumento da cobertura da APS, do incremento da oferta e da resolutividade, e da avaliação dos usuários dos serviços. Concluiu-se que as inovações contribuíram para a ampliação e qualificação do acesso à APS, sendo os avanços mais evidentes relativos ao processo formativo dos profissionais em nível de residência (radicalmente orientado para os atributos da APS) e a incorporação de novas práticas até então não realizadas pela APS no território em questão.
Palavras-chave: Inovação; Atenção Primária à Saúde; Estratégia Saúde da Família; Sistema Único de Saúde; Mato Grosso do Sul
Abstract
This article aimed to analyze the results of implementing the Integrated Health Care Territories (TEIAS) project in a Brazilian capital. The quantitative study was based on secondary data from the e-Gestor AB, e-SUS, the Electronic Citizen Record, the Primary Care Health Information System, and the TEIAS project management reports from 2020 to August 2023. The results suggest the power of innovation strategies for strengthening Primary Health Care (PHC) through professional training aligned with the characteristics and demands of the territories, increasing PHC coverage, service provision, resolution, and service user evaluation. We concluded that innovations expanded and improved access to PHC, and the most significant advances were achieved in training professionals at the residency level (strictly oriented towards PHC attributes) and incorporating new practices not previously performed by PHC into the territory in question.
Key words: Innovation; Primary Health Care; Family Health Strategy; Unified Health System; Mato Grosso do Sul
Resumen
El objetivo de este artículo fue analizar los resultados de la implantación del proyecto Territorios Integrados de Atención a la Salud (TEIAS) en una capital brasileña. Se trata de un estudio cuantitativo basado en datos secundarios del e-Gestor AB, el e-SUS, el Historial Electrónico del Ciudadano, el Sistema de Información en Salud para la Atención Básica y los informes de gestión del proyecto TEIAS para el período comprendido entre 2020 y agosto de 2023. Los resultados sugieren el poder de las estrategias de innovación para fortalecer la atención primaria de salud (APS) a través de la formación profesional alineada con las características y demandas de los territorios, del aumento de la cobertura de la APS, del aumento de la oferta y la resolutividad y de la evaluación de los usuarios de los servicios. Se concluyó que las innovaciones contribuyeron a la ampliación y cualificación del acceso a la APS, siendo los avances más evidentes los relacionados con el proceso de formación de los profesionales en el nivel de residencia (orientado radicalmente hacia los atributos de la APS) y la incorporación de nuevas prácticas no realizadas anteriormente por la APS en el territorio en cuestión.
Palabras clave: Innovación; Atención Primaria de Salud; Estrategia Salud de la Familia; Sistema Único de Salud; Mato Grosso do Sul
Introdução
Nas últimas décadas, constatam-se avanços substanciais na saúde global. Contudo, em todo o mundo, há um percentual expressivo de pessoas que ainda têm necessidades de saúde não atendidas1. Como uma das estratégias para enfrentar esses desafios, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) trazem os sistemas de saúde com Cobertura Universal entre suas metas1-3. Para o alcance da Cobertura Universal e dos ODS, os Cuidados Primários em Saúde (CPS) são fundamentais2, pois apresentam melhores e mais equitativos resultados em saúde, proporcionando proteção financeira mais consistente aos cidadãos4 e, quando operam de maneira multidisciplinar e com alta qualidade, fortalecem os sistemas de saúde em países de baixa, média e alta renda5.
O Brasil é uma referência mundial no fortalecimento da APS, com investimentos progressivos desde os anos 1990, onde os CPS são desenvolvidos por meio da Estratégia Saúde da Família (ESF)6. Trata-se da maior estratégia de APS comunitária do mundo7, responsável por 79,73% da população brasileira (aproximadamente 170 milhões de pessoas) no final de 20238.
No contexto brasileiro, há evidências dos impactos positivos da expansão do acesso aos serviços de APS sobre vários indicadores de saúde8-13 e redução das desigualdades em saúde14. Em que pese a relevância da ampliação do acesso à APS para a saúde dos brasileiros, são limitados os estudos sobre diferentes modelos de cuidados e melhoria da qualidade da atenção na ESF. Sistemas de saúde mais fortalecidos e qualificados estão associados a melhores resultados de saúde e ao crescimento mais lento nas despesas com atenção à saúde5. O cuidado qualificado é a centralidade de todos os sistemas de saúde, e deve estar na prioridade dos objetivos a serem alcançados, visto que não há sentido no direito humano à saúde sem cuidados de boa qualidade1. Esses cuidados podem ser expressos pela medição do grau de extensão e orientação dos atributos da APS definidos por Starfield15.
Paralelamente, há muitos questionamentos sobre a viabilidade e sustentabilidade dos sistemas de saúde universais, e o fortalecimento da APS é a melhor ferramenta para enfrentar tais desafios3. Iniciativas que proporcionem o fortalecimento da APS são necessárias e recomendadas, e, nessa direção, é importante dar visibilidade a ações inovadoras, propulsoras de mudanças que agregam valor aos serviços de saúde e que tragam respostas satisfatórias aos problemas enfrentados pelos usuários, trabalhadores, gestores e formuladores de políticas públicas de saúde3,16.
Tais desafios são somados aos impactos resultantes das reformas neoliberais infringidas ao SUS a partir de 2016. Com políticas de austeridade fiscal, agravadas por uma gestão do SUS equivocada e perversa, que se estabeleceu no período 2018-2022, aumentou-se as desigualdades no acesso aos serviços de saúde. Assim, diante de um contexto já precarizado, a saúde pública no Brasil foi atravessada, talvez, pela mais desastrosa gestão da pandemia, em nível mundial.
Tais fatos contribuíram para a fragilização de todo o sistema de saúde brasileiro, com impactos expressivos na APS e ESF.
Nesse contexto, o projeto “TEIAS-Campo Grande/MS”17, iniciativa da Fiocruz-RJ e Secretaria Municipal de Saúde de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, posicionou-se no cenário nacional, com o objetivo de fortalecer e consolidar as estratégias implementadas e dar continuidade à ampliação do acesso, apoiando o Sistema Único de Saúde (SUS) na manutenção dos serviços de um Distrito de Saúde Escola, por meio de ações estratégicas na Rede de Atenção à Saúde (RAS). Trata-se de uma experiência iniciada em 2020, com resultados interessantes e relevantes em vários âmbitos da APS. Dar visibilidade a tais experiências e apresentar os resultados obtidos são iniciativas importantes para impulsionar a APS em diferentes contextos, inspirar mudanças político-assistenciais e fortalecer os sistemas de saúde de cobertura universal. Esse projeto trouxe algumas iniciativas de formação, monitoramento e avaliação semelhantes às aplicadas no município do Rio de Janeiro, que, a partir de 2009, implementou uma reforma nos cuidados de saúde primários18,19.
O objetivo desse artigo foi analisar resultados oriundos da implementação do projeto TEIAS-Campo Grande/MS.
Método
Contexto do Estudo
O estudo ocorreu em Campo Grande-MS, com população de 898.100 habitantes (32,6% da população total do estado, segundo o Censo Demográfico 2022 do IBGE20 e Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHGM) de 0,78420. Em janeiro de 2023, a cobertura da APS era de 84,9%8. O município é dividido administrativamente em sete Regiões Urbanas: Centro, Segredo, Prosa, Bandeira, Anhanduizinho, Lagoa e Imbirussu, que por sua vez são subdivididas em bairros8.
Diante dos desafios do fortalecimento da APS, sobretudo a ampliação e qualificação do acesso, que contribui para uma RAS mais resolutiva, em 2020, o projeto TEIAS foi implementado nesta capital. Consiste de um movimento de inovação em saúde, e vem ao encontro das melhores recomendações nacionais e internacionais para a implementação de sistemas de saúde públicos, robustos e eficientes3,21.
O objetivo estratégico do TEIAS é o desenvolvimento de inovações tecnológicas em saúde, abrangendo serviços e produtos para o fortalecimento da APS, ampliando o acesso e qualificando a RAS. Tem como principal premissa a qualificação dos serviços de saúde, com base na transformação dos processos de trabalho das equipes de saúde da família e saúde bucal, com expressiva orientação para os atributos da APS. Para tanto, os caminhos adotados são o apoio a ações baseadas em evidências científicas e aplicáveis na prática, bem como a ações que já tenham sido empregadas com êxito em outras realidades, adaptadas para a realidade local. A centralidade do projeto está na adoção de tecnologias assistenciais, de gestão e de comunicação que fortaleçam o SUS, com ênfase na formação de profissionais por meio das residências em saúde da família e comunidade, médica e multiprofissional.
Além disso, o TEIAS incorpora na qualificação dos serviços a implantação de inovações tecnológicas no âmbito da saúde para a adequada coordenação do cuidado dos usuários, com o desenvolvimento de ferramentas para o monitoramento da APS e vigilância em saúde (por exemplo, a ferramenta “Onde Ser Atendido22”, a “Carteira de Serviços da APS”, o instrumento de avaliação dos atributos da atenção primária na perspectiva dos usuários adultos (uso do Primary Care Assessment Tool - PCATool). Também foi criada uma plataforma de telemedicina, com a implementação de um serviço de teleinterconsultas com a interação entre médicos residentes e usuários da APS com médicos especialistas da RAS.
Desenho do estudo
Trata-se de um estudo com abordagem mista (transversal e longitudinal), com base em dados secundários provenientes dos bancos de dados e-Gestor AB (acesso livre), e-SUS, Prontuário Eletrônico do Cidadão (PEC), Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica (SISAB) fornecidos pela Secretaria Municipal de Saúde (SESAU); dados provenientes de relatórios gerenciais do projeto TEIAS no município estudado, no período de 2020 a agosto de 2023.
Variáveis e indicadores
Além da evolução da cobertura da APS antes e após a implementação do TEIAS, foram analisadas distintas variáveis (Quadro 1).
Aspectos éticos
O projeto foi submetido à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e aprovado sob o parecer número 6.511.491, CAEE 75540023.6.0000.0021.
Resultados
Os resultados obtidos no período de três anos e meio do projeto TEIAS permitem identificar avanços, e demonstrar sua potência como indutor de transformações na APS, por meio de ações planejadas e implementadas especificamente para o território em que se insere. Investindo em estratégias inovadoras no campo da formação, do planejamento e do processo de trabalho em saúde, o projeto TEIAS se consolidou como relevante dispositivo de apoio e de mobilização institucional, com vistas ao fortalecimento da APS e da RAS.
Até o momento da elaboração desse manuscrito, o número de estudantes egressos das residências foi de 269 profissionais especialistas em Saúde da Família e Comunidade que atuam em todo o território nacional. Em março de 2024, havia 89 alunos e 74 residentes nos programas de Residência Multiprofissional e Residência Médica, respectivamente. Houve grande adesão de profissionais de saúde de várias regiões do país e não apenas de Mato Grosso do Sul. Deve-se lembrar que, no período de 2020 a 2021, início da implantação do TEIAS, Campo Grande também vivenciou o período pandêmico por COVID-19, marco histórico que certamente influenciou os resultados referentes a esse período.
Ampliação da cobertura populacional de Equipes de Saúde da Família
Como eixo central de todas as inovações que foram implementadas, ocorreu aumento do número de equipes de saúde da família (eSF) e, por consequência, houve a ampliação da cobertura populacional de APS nas áreas de abrangência do TEIAS. No biênio 2019-2020 foram implementadas nove unidades de saúde da família, contendo 30 eSF, cobrindo um território de aproximadamente 105 mil pessoas. Consolidados os avanços do projeto no período e o crescente número de profissionais inscritos para as residências, o projeto avançou em 2022 para 11 unidades, passando a responder por 34 eSF e impactando a vida de mais de 119 mil pessoas. O último passo foi dado em 2023, vinculando 12 unidades no total, 37 eSF, responsáveis pelo cuidado de cerca 129.500 pessoas. No período anterior e posterior ao TEIAS, houve aumento da cobertura potencial populacional de APS, passando de 38,5% (dezembro de 2017, antes do TEIAS), para 88,5% (dezembro de 2023, após o TEIAS)8 (Gráfico 1).
Evolução do número de eSF e cobertura potencial populacional de APS antes (2017-2019) e depois (2020-2023) do TEIAS. Campo Grande, Mato Grosso do Sul, 2017-2023.
Em maio de 2022, ocorreu um aumento expressivo de 40% nas eSF homologadas, passando para 176 equipes financiadas pelo Ministério da Saúde (MS). Foram implantadas 90 equipes de Atenção Primária (eAP), inspiradas no modelo TEIAS/Fiocruz. Em 2023, este quantitativo passou para 197 eSF financiadas e 55 eAP. Desse modo, a capital sul-mato-grossense, que em 2018 se encontrava como a penúltima capital brasileira no ranking de cobertura da APS, passou a figurar entre as cinco melhores capitais na região Centro-Sul do Brasil, no que se refere à cobertura potencial populacional de eSF (Tabela 1).
Atendimentos e procedimentos realizados
O período de análise apresentou um aumento considerável nos números de atendimentos em todas as áreas, especialmente na medicina, na enfermagem e na odontologia. Esse aumento ocorreu mesmo com as variações das trocas anuais de turmas de residentes, com o período pandêmico da COVID-19 e com a necessidade de deslocamento dos residentes para a realização de atendimentos em outros serviços da RAS (Tabela 2).
No período de 2019 a 2022, os atendimentos médicos apresentaram uma evolução de 255,8%. Quando individualizamos a produção por unidade (dados não tabulados) verifica-se um aumento exponencial, reforçando a importância da qualificação de profissionais na modalidade ensino e serviço. Em relação à enfermagem, havia poucos registros sobre as consultas antes da implantação do projeto, pois desenvolviam prioritariamente atividades de triagem e classificação de risco. Após o início do projeto, no período de 2020 a 2022, houve um aumento de 300,5% no acesso às consultas de enfermagem, resultantes de atendimentos no pré-natal e puericultura, no acompanhamento aos pacientes nas diferentes linhas de cuidado e ciclos de vida e no acolhimento à demanda espontânea da unidade. No contexto dos atendimentos odontológicos, ocorreu um aumento de 127,2% entre os anos de 2019 a 2022. Nesse quesito, os dados registrados até agosto de 2023 sugerem aumento do quantitativo estimado para o ano de 2023 em aproximadamente 238%, quando comparado aos atendimentos realizados no ano-base de 2019.
O aumento do número de atendimentos gerou, naturalmente, a diminuição de encaminhamentos para a atenção secundária, garantindo a realização de exames e a melhora na resolutividade das demandas. Uma das iniciativas inovadoras que contribuíram nessa direção foi a teleinterconsulta, que é uma parceria entre o projeto TEIAS, a SESAU Campo Grande e o LAIS/Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), tendo sido implantada na capital em 7 de dezembro de 2021. É uma modalidade de atendimento com especialistas visando a ampliação da resolutividade das eSF. Teve início com a cardiologia (269 consultas), partindo para outras especialidades como a psiquiatria (187), nefrologia (77) e gastroenterologia (58), somando 591 atendimentos, com análises para a incorporação de novas especialidades nessa modalidade de cuidado no território. No momento da escrita deste artigo está em fase final de elaboração a ampliação do serviço de teleinterconsultas para a área da fisioterapia musculoesquelética direcionada aos usuários com afecções musculoesqueléticas/dores crônicas23.
Outra iniciativa que constitui um dos pilares para o aumento da resolutividade foi a a inclusão, no rol de atividades dos profissionais, de procedimentos individualizados que até então não eram realizados pela APS como pequenas cirurgias, cantoplastias, exéreses de pele, suturas, retiradas de corpo estranho do nariz e ouvido, agulhamento a seco, inserção de DIU, assim como outros procedimentos da tabela do Sistema de Gerenciamento da Tabela SIGTAP24.
Entre nove procedimentos selecionados, típicos da APS, e que são realizados pelas equipes da residência em Medicina de Família e Comunidade e da residência Multiprofissional em Saúde da Família, o desempenho das eSF do TEIAS foram superiores em relação às eSF que não faziam parte do projeto (Tabela 3).
Discussão
Os resultados apresentados sugerem a potência das estratégias de inovação, como as desenvolvidas e implementadas pelo projeto TEIAS, para o fortalecimento da APS por meio do aumento da cobertura populacional de serviços de APS, da formação profissional alinhada às características e demandas dos territórios, da ampliação do acesso aos serviços, inclusive com ampliação do horário de atendimento das unidades. Isto torna-se relevante, pois nos sistemas universais de saúde e complexos como o SUS, as inovações acerca da otimização de processos e políticas de saúde são essenciais para sua sustentabilidade3.
Nesse sentido, faz-se necessário reiterar que os efeitos do projeto TEIAS refletem, processualmente, o investimento, com recursos públicos federais, no planejamento e implementação de inovações que datam desde 2020. Na oportunidade, esforços micro e macropolíticos foram implementados, com a finalidade de expandir, consolidar e ampliar o acesso à APS, a formação de profissionais, a utilização de tecnologias resolutivas, o aprimoramento da regulação e a efetivação do papel ordenador da APS25.
Quanto à formação profissional na e para a APS, acreditamos que o impacto desta na realidade da comunidade esteja relacionado às ações indutivas de desenvolvimento de padrões baseados em competências e para a acreditação de práticas, educação e formação em promoção da saúde, que são potentes para a qualificação do processo de trabalho26. Dessa forma, reitera-se o papel formador e ordenador da APS no contexto do SUS, de modo que se promova o alinhamento da formação profissional em resposta às necessidades e demandas específicas de cada território, com forte orientação comunitária, associada às melhores evidências.
No projeto TEIAS, essa formação profissional sempre foi alicerçada pelas ações de Educação Permanente em Saúde (EPS), com ênfase para o desenvolvimento de competências e habilidades que extrapolam a prática clínica. Apostou-se em um modelo de processo ensino-aprendizagem que contempla as relações entre a equipe interprofissional e usuários, noções de gestão, os atributos da APS e atenção às condições sensíveis à APS, tendo como finalidade o fortalecimento da ESF. Houve o aumento da cobertura da APS no município, pela inserção direta de estudantes-trabalhadores no contexto local, o que permaneceu em incursão em 2023, com o início da segunda turma tanto da residência multiprofissional quanto de medicina de família e comunidade. Isto está em consonância a estudos anteriores que destacam a ESF brasileira como estruturante da APS, na medida em que ampliou a oferta de serviços e a integralidade das ações27, promoveu a expansão da cobertura e altos níveis de governança, relacionadas à diminuição de taxas de mortalidade evitáveis10, além de ser a melhor estratégia para uma APS forte, se articulada à sedimentação de seus atributos e de tecnologias assistenciais e de gestão21.
Promoveu-se maiores taxas de resolutividade, principalmente entre as equipes do projeto TEIAS, com diminuição de taxas de encaminhamentos, incorporação de procedimentos até então não realizados na APS do município e ampliação de horários de atendimento em unidades de saúde de ESF estratégicas, em territórios mais vulneráveis. Assim, fortaleceu-se a ESF, implicando reorientação de fluxos em relação à atenção especializada, impactando diretamente na redução de filas para consultas por especialistas3. Apresentar e analisar tais resultados é relevante, considerando que muitos estudos analisam os impactos do aumento da cobertura e do acesso à ESF, no entanto, são limitados os estudos que ampliam as análises do aumento de acesso para o aumento da qualidade da atenção5 e da resolutividade. Pesquisar, debater e problematizar a qualidade e resolutividade da saúde como direito humano deve ser uma prioridade em todo o contexto global1.
Por meio das inovações implementadas, em sentido coletivo, identificam-se necessidades comunitárias que nem sempre são demandas. Nesta perspectiva, a APS põe-se frente ao desafio de desvelar desfechos que são inerentes a este nível de atenção, permeados por condicionantes e determinantes socioeconômicos/culturais28 que se imbricam ao processo saúde-doença e ao próprio SUS. Assim, faz-se necessário o olhar atento da gestão para a identificação de pontos complexos e de fragilidade de atuação, para que ações de inovação sejam direcionadas especificamente para seu controle, em tempo oportuno.
Nesse sentido, como imposição do período da COVID-19 entre 2020 e 2021, a APS se reorganizou para seu enfrentamento. Os residentes do projeto TEIAS foram realocados em funções estratégicas para atender as necessidades da comunidade. Além disso, por iniciativa do projeto e da SESAU-CG, implementou-se, de forma mais incisiva, o telessaúde e as teleinterconsultas, estratégias que permanecem no rol de atividades dos profissionais da APS, mesmo depois de controlada a pandemia. Estas são realizadas de forma sistemática por profissionais da medicina, como forma de Educação Permanente em Saúde e flexibilização de oportunidade de consultas, evitando-se deslocamentos desnecessários e até impraticáveis, acúmulo de demandas reprimidas e formação de filas. Isto traz um ganho expressivo em termos de incorporação de novas práticas na APS, tendo em vista que a utilização destas tecnologias provê informações confiáveis, atualizadas e transferíveis para a prática clínica, além de ser efetiva ferramenta educativa, ampliando-se acesso e qualidade, com redução de custos28.
Assim, ressalta-se que o projeto TEIAS, em consonância com a literatura atual, já avançou muito na ampliação do acesso à APS, melhorou a qualidade e a resolutividade dos serviços, fortaleceu o vínculo com usuários, promovendo a continuidade do cuidado, contribuindo para o fortalecimento do SUS, sua eficiência e sustentabilidade3.
A principal limitação desse estudo diz respeito ao fato de que os dados são alusivos a uma realidade local. Porém, esta é suplantada pela relevância das iniciativas de inovação aqui apresentadas e que, mesmo que não possam ser generalizadas, devido à diversidade da APS/ESF nos territórios, podem servir de exemplo de experiência a inspirar projetos de inovações em outros locais. Recentemente, o município de Dourados, em Mato Grosso do Sul, distante 220 km da capital do estado, também consolidou termo de parceria semelhante com a Fiocruz-RJ para desenvolvimento de um conjunto de ações semelhantes àquelas implantadas pelo TEIAS-Campo Grande/MS. As atividades dos programas de Residência em Medicina de Família e Comunidade e Multiprofissional em Saúde da Família tiveram início em março/202429, de forma contextualizada às necessidades da RAS e dos territórios de saúde do município de Dourados, utilizando-se a expertise e transferência tecnológica para a realização de ações do mesmo grupo que atua em Campo Grande.
Estudos futuros necessitam ser realizados com delineamentos mais específicos, contemplando a análise de indicadores e processos que distingam unidades de saúde participantes e não participantes do projeto TEIAS, assim como estudos que investiguem a satisfação dos usuários em função das ofertas implementadas por meio do Projeto TEIAS. Assim, de forma mais analítica e comparativa, poderemos desvelar o impacto deste projeto na transformação da realidade local dos territórios em que se insere, avançando na proposição de superação de fragilidades e otimização de suas potencialidades.
Conclusão
As inovações propostas pelo projeto TEIAS têm a potencialidade de qualificar a ampliação da cobertura da APS e da oferta de serviços de saúde com maior resolutividade do cuidado. Os dados apresentados sugerem que as inovações que mais contribuíram nesse sentido foram o processo formativo dos profissionais em nível de residência, radicalmente orientado para os atributos da APS, e a incorporação de novas práticas até então não realizadas pela APS no território em questão. Dentre estas, destacaram-se a inclusão, como rotina prática, da realização de procedimentos ambulatoriais e a utilização das teleinterconsultas. Campo Grande destacou-se em 2023 como a capital da Região Centro-Oeste com maior cobertura de eSF da Região Centro-Oeste, atingindo cerca de 90% de sua população-residente. Ampliar o acesso é importante, mas desenvolver serviços de qualidade é outro aspecto a ser considerado.
Para isso, o eixo de educação e formação para a promoção da saúde também figura como um segundo desafio para as residências do projeto TEIAS, principalmente no que se refere à complexidade do tema e ao condicionamento de sua efetividade à existência de ações intersetoriais amplas, que nem sempre estão ao alcance da gestão, tampouco dos residentes. Este posicionamento é relevante, tendo em vista que promover saúde extrapola o simples estímulo a hábitos saudáveis, sendo necessária a busca contínua pela emancipação e autonomia dos usuários, com garantias sociais que favoreçam a vida digna30.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
21 Out 2024 -
Data do Fascículo
Nov 2024
Histórico
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Recebido
10 Abr 2024 -
Aceito
07 Maio 2024 -
Publicado
09 Maio 2024