Acessibilidade / Reportar erro

Saúde e Trabalho na visão de trabalhadores da estiva do Porto Ferroviário, Rio Grande do Sul, Brasil

Resumos

O objetivo principal deste artigo é conhecer e analisar a visão dos trabalhadores da estiva sobre a saúde e o trabalho no Porto Seco Ferroviário, do Município de Uruguaiana, no Estado do Rio Grande do Sul. Participaram do estudo dezesseis estivadores sob a perspectiva metodológica da pesquisa qualitativa. O trabalho de campo ocorreu mediante a realização de entrevistas individuais, por meio da aplicação de um roteiro de pesquisa semiestruturado com perguntas abertas. Quanto à análise dos dados, foi adotada a técnica de "análise do discurso", chegando-se à definição de cinco categorias temáticas de interpretação. Constatou-se que, na perspectiva dos trabalhadores, o trabalho na estiva se distingue tanto pelo peso da labuta, árdua e intensa, quanto pelo sentido de satisfação no tocante ao aspecto colaborativo e coletivo do trabalho, enfatizando o lado humano do labor. Observaram-se ainda muitos relatos sobre acidentes de trabalho e a identificação de riscos que podem ser evitados mediante a implementação de mudanças na organização e nas condições de trabalho.

Trabalho em estiva; Saúde do trabalhador; Condições de trabalho; Porto seco ferroviário


The main goal of this study is to understand and analyse the perspective of dockworkers on health and labour at the Railway Dry Port of the Municipality of Uruguaiana in the State of Rio Grande do Sul (RS), Brazil. Sixteen dockworkers participated in the study under the methodological approach of qualitative research. The fieldwork was conducted through individual interviews by applying a semi-structured research script with open-ended questions. For the data analysis, the "discourse analysis" method was adopted, leading to the definition of five thematic categories of interpretation. From the perspective of dockworkers, dock work differs in both the weight of toil, which is hard and intense, and the sense of satisfaction regarding the collaborative and collective aspect of labour, emphasising the human side of labour. Several reports on work accidents and the identification of hazards that may be avoided by implementing changes in the organisation and work conditions were also noted.

Dock work; Occupational health; Working conditions; Railway Dry Port


Introdução

No recente cenário econômico brasileiro é possível verificar a existência de uma estrutura heterogênea de trabalho, onde se misturam características do labor, que poderiam ser consideradas como arcaicas e modernas11. Alves G. O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo: Boitempo; 2000.. Em que pese a introdução de novas tecnologias e os novos padrões de produção, mantiveram-se, no decurso da história, formas de exploração do capital que estão naturalizadas, como sendo parte inerente dos processos de labor humano. Certamente, o trabalho em estiva distingue-se pelas difíceis condições de trabalho as quais foram observadas por historiadores em registros referentes ao século dezenove: Hobsbawn22. Hobsbawn E. Os trabalhadores: estudos sobre a história do operariado. São Paulo: Paz e terra; 2000. constatou que, no fim da década de 1880, não havia no trabalho da estiva dos portos londrinos nenhum equipamento mecânico, como guindastes ou guinchos: o trabalho da estiva apresentava-se em suas técnicas mais arcaicas22. Hobsbawn E. Os trabalhadores: estudos sobre a história do operariado. São Paulo: Paz e terra; 2000.. O autor observou, também, que a revolução técnica de mecanização da estiva, de carga e descarga, teve um progresso muito lento. De fato, observa-se nos estudos contemporâneos sobre o trabalho em estiva a constatação da preponderância do serviço braçal, mormente no levantamento manual de carga33. Cavalcante FFG, Gomes ACN, Nogueira FRA, Farias JLM, Pinheiro JMR, Albuquerque EV, Farias ALP, Cabral GB, Magalhães FAC, Gomide M. Estudo sobre os riscos da profissão de estivador do Porto do Mucuripe em Fortaleza. Cien Saude Colet 2005; 10(Supl.):101-110. , 44. Gomes JC, Junqueira LAP. Cultura e transformação do trabalho no porto de Santos. Rev. Adm. Pública 2008; 42(6):1095-1119.. Além disso, estudos como o de Soares et al.55. Soares JFS, Cezar-Vaz MR, Mendoza-Sassi RA, Almeida TL, Muccillo-Baisch AL, Soares MCF, Costa VZ. Percepção dos trabalhadores avulsos sobre os riscos ocupacionais no porto do Rio Grande, Rio Grande do Sul, Brasil. Cad Saude Publica 2008; 24(6):1251-1259. nos possibilitam afirmar que na estiva convivem algumas das formas "arcaicas" e "modernas" de trabalho, expressas pela notória interação entre os velhos riscos ergonômicos, como o uso excessivo da força muscular, e os novos riscos tecnológicos suscitados pela modernização dos portos, que requerem maior agilidade por parte dos trabalhadores, na movimentação portuária.

Nos dias de hoje, ainda é comum encontrar países onde o trabalho de manuseio de cargas se mantém com as características utilizadas há muitas décadas, como no Brasil. É possível encontrar locais onde são transportadas manualmente cargas que superam os cem quilos33. Cavalcante FFG, Gomes ACN, Nogueira FRA, Farias JLM, Pinheiro JMR, Albuquerque EV, Farias ALP, Cabral GB, Magalhães FAC, Gomide M. Estudo sobre os riscos da profissão de estivador do Porto do Mucuripe em Fortaleza. Cien Saude Colet 2005; 10(Supl.):101-110..

Para Pena e Gomes66. Pena P, Gomes A. A exploração do corpo no trabalho ao longo da história. In: Vasconcelos LF, Oliveira MH, organizadores. Saúde, Trabalho e Direito: uma trajetória crítica e a crítica de uma trajetória. Rio de Janeiro: Educam; 2011. p. 559-598., a história revela que modos de exploração do corpo resultam em agravos na esfera da saúde do trabalhador, em conformidade com seus respectivos processos de trabalho. As mudanças, no trabalho em estiva na perspectiva da saúde do trabalhador, implicariam transformações de ordem técnica e cultural no trabalho para estabelecer a precedência da dignidade humana e da saúde diante dos interesses privados e econômicos.

Vale lembrar que o processo nos portos foi impulsionado pela ordem mundial de globalização, ampliando o comércio internacional e impulsionando os mercados a importar e exportar mais. Nesta perspectiva, o transporte de cargas ascende como um instrumento importante na composição logística dos países com vistas a alcançar o desenvolvimento e o crescimento dos mesmos.

No que tange aos portos secos, o contrato dos trabalhadores é regido pela Consolidação das Leis do Trabalho - CLT77. Brasil. Decreto-Lei nº5.452 de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Diário Oficial da União 1943; 9 ago., diferente da legislação dos demais portuários. Com relação às atividades desenvolvidas, elas se constituem da movimentação, arrumação e manuseio de mercadorias alfandegadas, destinadas à importação ou à exportação, pois tais portos estão situados em regiões fiscais e podem se constituir como aduanas ou armazéns alfandegados e interiorizados pelo país. Essas atividades propiciam benefícios tributários aos importadores e exportadores, além de serviços de armazenagem e manuseio de mercadorias, ou mesmo, serviços conexos relativos à movimentação de mercadorias88. Brasil. Ministério da Fazenda. Receita Federal do Brasil. Locais/Recintos Aduaneiros. Portos Secos. 2012. [acessado 2013 jul 18]. Disponível em: http://www.receita.fazenda.gov.br/aduana/LocaisRecintosAduaneiros/PortosSecos/Default.htm
http://www.receita.fazenda.gov.br/aduana...
.

Ainda no que se refere à legislação, a NR-29 (Norma Regulamentadora de Segurança e Saúde no Trabalho Portuário) é referência quando o assunto é situações de risco e condições de trabalho em Portos. Contudo, embora existam legislações específicas a respeito da atividade de trabalho portuária, observa-se, no plano empírico, a persistência da precariedade das condições de trabalho. Destaca-se ainda a escassez dos estudos e pesquisas publicadas sobre o tema33. Cavalcante FFG, Gomes ACN, Nogueira FRA, Farias JLM, Pinheiro JMR, Albuquerque EV, Farias ALP, Cabral GB, Magalhães FAC, Gomide M. Estudo sobre os riscos da profissão de estivador do Porto do Mucuripe em Fortaleza. Cien Saude Colet 2005; 10(Supl.):101-110.. Não obstante, entendemos que os processos de trabalho portuário precisam obter visibilidade e análise crítica, enfatizando o seu lado humano e os efeitos sobre a saúde dos trabalhadores. Destarte, nesse artigo temos como objetivo principal, conhecer e analisar a perspectiva dos trabalhadores da estiva sobre a saúde e o trabalho no Porto Seco Ferroviário do Município de Uruguaiana no Estado do Rio Grande do Sul.

Este estudo adota a vertente crítica do campo da saúde do trabalhador como perspectiva de análise sobre as relações entre trabalho e saúde. Por esse ângulo, a produção de conhecimento do campo tem ênfase no próprio trabalhador, considerado como sujeito político coletivo, e portador de um saber derivado da experiência do trabalho. Assim sendo, podemos afirmar com Oddone99. Oddone I. Reflexiones sobre el modelo obrero italiano. Rev Sindical Salud, Trabajo y Medio Ambiente 2007; 2(5):4-8. que as situações concretas de trabalho, tão bem conhecidas pelos trabalhadores, formam parte essencial do conhecimento científico.

Metodologia

Esta pesquisa é de caráter qualitativo, cuja perspectiva epistemológica e metodológica filia-se a uma linhagem interpretativa da realidade e dos materiais advindos do campo de estudo1010. Bauer M, Gaskell G, organizadores. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis: Vozes; 2008.. Segundo Minayo1111. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco; 2010., a visão qualitativa amplia as articulações da realidade, que abrange as dimensões da objetividade e da subjetividade e, alcança, ainda, outras espessuras da vida como o econômico, o político, o religioso e o simbólico.

O cenário desta pesquisa é o Porto Seco Ferroviário, localizado na BR 290 do Município de Uruguaiana, no Estado do Rio Grande do Sul/RS. Aceitaram participar do estudo 16 estivadores de um total de 24 trabalhadores que realizam o serviço de estiva de cargas em vagões de trem. Do total de 24 trabalhadores, cinco (05) estavam afastados por motivos de doença e três (03) se recusaram a participar do estudo.

O trabalho de campo ocorreu mediante a realização de entrevistas individuais, por meio da aplicação de um roteiro semiestruturado com perguntas abertas. A coleta foi realizada durante os meses de julho e agosto de 2010, sendo o agendamento das entrevistas realizado por intermédio do Coordenador de Operações do Porto Seco Ferroviário. A coleta dos dados propriamente dita ocorreu nos intervalos existentes durante a jornada de trabalho, no período de reposicionamento das composições férreas.

Visando aos aspectos éticos da pesquisa e em respeito à Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde1212. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 196 de 10 de outubro de 1996. Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos. Diário Oficial da União 1996; 16 out., o projeto foi encaminhado para o Comitê de Ética em Pesquisa na Área da Saúde da Universidade Federal do Pampa - UNIPAMPA. O mesmo recebeu, também, parecer favorável no Comitê de Ética e Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública - Fundação Oswaldo Cruz.

Quanto à análise dos dados, adotamos como técnica a "análise do discurso"1313. Gill R. Análise do discurso. In: Bauer M, Gaskell G, organizadores. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis, RJ: Vozes; 2008. p. 244-270., lançando mão do método de classificação temática1111. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco; 2010.. Primeiramente, realizamos leitura exaustiva dos materiais advindos das transcrições das entrevistas, em seguida foram destacadas as falas mais significativas em relação ao propósito desse estudo, ou seja, conhecer os aspectos relacionados à saúde e ao trabalho na estiva a partir do ponto de vista dos trabalhadores. Classificamos essas falas por grupos temáticos, adotando como critérios: a frequência, a semelhança e a relevância do material. Desse modo, após agruparmos as falas por similaridade de significado, chegamos à definição de cinco categorias temáticas de interpretação, sendo elas: os sentidos do trabalho na estiva; aspectos do processo de trabalho; saúde do trabalhador da estiva; riscos no trabalho e acidentes de trabalho.

Observe ainda que criamos um artifício para proteção da identificação dos entrevistados por número de ordem de entrevista. Assim, o primeiro trabalhador entrevistado foi designado por E1, o segundo, por E2, e assim sucessivamente.

Resultados e Discussão

Os sentidos do trabalho na estiva

É um trabalho pesado, mas a gente tem que fazer, por enquanto ainda não arrumaram outra maneira de ser feito, por enquanto ele tem que ser assim desenvolvido. [...] É um trabalho manual (E1).

Aqui realmente o serviço é braçal. Assim, bem dizer, bruto, um serviço bruto (E3).

Manualmente [...]. Geralmente, carrega no ombro [...] alguns levam na mão, como dizem, na mão grande, às vezes é um pouco mais difícil, mas é mais rápido (E16).

O sentido de trabalho que encontramos, sob o ângulo de compreensão do trabalhador da estiva entrevistado, em alusão à sua própria atividade de trabalho, foi o de trabalho "bruto", "pesado", "braçal' e "manual". Essas adjetivações nos levam a qualificar o labor exercido na estiva como essencialmente desgastante, cujas condições expõem os trabalhadores ao dispêndio demasiado de força muscular e desgaste excessivo. Trata-se de um trabalho árduo e intenso, com atividade exaustiva e repetitiva. Observa-se ainda que, no sentido atribuído pelos entrevistados, à sua própria atividade laboral, além do significado de força física, transparece um sentimento de desvalorização social. Percebe-se a separação, do ponto de vista do trabalhador, entre a atividade manual e a intelectual. Com efeito, na organização do trabalho da estiva salta aos olhos a exigência de atributos do corpo. No entanto, é preciso refutar a divisão tradicional entre "trabalho de concepção" e "trabalho de execução", como bem preconizam os princípios da ergonomia e da psicodinâmica do trabalho. Consoante Dejours1414. Dejours C. O trabalho como enigma. In: Lancman S, Sznelwar L, organizadores. Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Rio de Janeiro, Brasília: Fiocruz, Paralelo 15; 2004. p. 127-140., "todo trabalho é sempre trabalho de concepção", pois os trabalhadores projetam de antemão o seu desenvolvimento. Assim, toda atividade laboral exige uma mobilização cognitiva que demanda inventividade e criatividade.

A compreensão dominante segundo a qual o trabalho em estiva exige, exclusivamente, o desempenho do labor braçal e da força física, em detrimento do trabalho intelectual, contribui para o empobrecimento de visão sobre esta atividade e, por conseguinte, para a desvalorização social desse trabalho, acentuando a sua vulnerabilidade frente ao capital.

Os trabalhadores descreveram, frequentemente, como qualidade natural do trabalho de movimentação de carga, a indispensável condição física para o seu desenvolvimento. Há no discurso dos trabalhadores uma naturalização e banalização da intensidade do uso do vigor físico exigido pelo trabalho. Ao descreverem a dinâmica de desenvolvimento do trabalho que realizam, os trabalhadores mencionam a hipersolicitação do corpo, e em especial de partes como os ombros, as pernas e os braços. Durante os relatos, os entrevistados fizeram uso de uma linguagem usual do trabalho como o termo "na mão grande", que representa, de forma metafórica e superlativa, a imagem do trabalhador a respeito do seu próprio corpo na realização da tarefa de trabalho. Guérin et al.1515. Guérin F, Laville A, Daniellou F, Duraffourg J, Kerguelen A. Compreender o trabalho para transformá-lo: a prática da ergonomia. São Paulo: Edgard Blücher; Fundação Vanzolini; 2001.afirmam que o uso de vocabulário próprio no trabalho refere-se a códigos que expõem tanto o contexto quanto o engajamento dos sujeitos na ação. São modos de interpretação sobre a própria atividade de trabalho.

Nessa linha de observação, os trabalhadores fizeram uso de uma linguagem jocosa comum, uma forma de tratamento entre eles, que traduz a imagem e a autoimagem, em caricatura, do trabalho dos estivadores. Ouvimos termos como: "galo", "atleta", "pau-ferro" e "peão". Além disso, pronunciaram a palavra "companheiro", significando a explícita cooperação e cumplicidade para a realização colaborativa do labor na estiva.

Quanto à expressão "trabalho bruto", percebe-se uma referência recorrente a uma atividade com características rudimentares e grosseiras, contrapondo-se ao sentido de sensível e de frágil. O gênero no trabalho da estiva é algo marcante, a brutalidade do serviço parece se relacionar com uma forte simbologia da masculinidade, que é constituída por valores sociais e do próprio trabalho1616. Costa PTM. A construção da masculinidade e a banalidade do mal: outros aspectos do trabalho escravo contemporâneo. Cad. Pagu 2008; 31:173-198.. Desse modo, a divisão sexual do trabalho pode justificar um trabalho bruto, acessível somente para os fortes, sendo a coragem um importante valor moral a orientar as relações sociais e o ethos masculino do trabalho na estiva1717. Machin R, Couto MT, Rossi CCS. Representações de trabalhadores portuários de Santos-SP sobre a relação trabalho-saúde. Saude Soc 2009; 18(4):639-651..

Destacamos ainda que, durante as entrevistas, houve a afirmativa: "por enquanto ainda não arrumaram outra maneira de ser feito ele". Cabe lembrarmos, mais uma vez, dos registros do historiador Hobsbawn22. Hobsbawn E. Os trabalhadores: estudos sobre a história do operariado. São Paulo: Paz e terra; 2000.a respeito da primitividade do trabalho em estiva, mostrando as limitações humanas na realização das suas tarefas. Além disso, a literatura a respeito do assunto, relativa à melhoria das condições de trabalho na estiva, torna visível uma importante polêmica que tem por base as relações existentes entre trabalho e capital: estudos realizados por Gomes e Junqueira44. Gomes JC, Junqueira LAP. Cultura e transformação do trabalho no porto de Santos. Rev. Adm. Pública 2008; 42(6):1095-1119. a respeito do trabalho de estivadores, no porto de Santos, verificaram que mudanças no trabalho da estiva põem em evidência a dimensão dos conflitos advindos dos processos de transformação e introdução de novas tecnologias. Convém mencionarmos que a introdução de tecnologias tende a gerar a diminuição de vagas, o aumento do desemprego e o aumento da incerteza do trabalho1818. Bauman Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2001., o que pode levar os trabalhadores a lutarem pela manutenção dos seus postos de trabalho, resistindo à suposta ameaça das novas tecnologias. Contudo, Gomes e Junqueira44. Gomes JC, Junqueira LAP. Cultura e transformação do trabalho no porto de Santos. Rev. Adm. Pública 2008; 42(6):1095-1119. mostram que as resistências ao processo de modernização, por parte dos trabalhadores, não se relacionam somente a aspectos de ordem econômica ou técnica, mas também a elementos culturais, o que deve ser aprofundado com novas pesquisas.

Outro importante aspecto mencionado pelos trabalhadores da estiva diz respeito ao ponto de vista sobre a motivação do trabalho:

Minha motivação é saber que todo final do mês o dinheiro estará na minha conta, e minha família vai ter o que comer, beber, o que vestir(E5).

O serviço hoje em dia está ruim por aí, é um serviço que a gente precisa, não só eu como todos precisam. Se pudessem não fazer aquilo ali todas essas hora não estavam aí (E1).

Nesse grupo de falas é possível a identificação do trabalho como elemento de necessidade humana e social, em contraposição a ideia de liberdade. Para Marx1919. Marx K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Abril Cultural; 1974., o verdadeiro reino da liberdade se realiza no domínio do homem socializado no trabalho, ou seja, sujeitando o trabalho ao seu controle, conseguindo isso com o menor dispêndio de energia e sob as condições mais favoráveis e dignas de realização de sua natureza humana. Em outras palavras, a escolha por um trabalho, de modo livre, é condição para as pessoas se realizarem como sujeitos particulares e sociais2020. Mészáros I. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo Editorial; 2004. , 2121. Harvey D. O enigma do capital: e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo; 2011.. Entretanto, sob a égide do capitalismo, o desemprego subjuga o trabalho, fazendo os trabalhadores aceitarem baixos salários e toda ordem de condições precárias de trabalho2222. Oliveira RP, Iriart JAB. Representações do trabalho entre trabalhadores informais da construção civil. Psicol Estud 2008; 13(3):437-445..

Gomes e Junqueira44. Gomes JC, Junqueira LAP. Cultura e transformação do trabalho no porto de Santos. Rev. Adm. Pública 2008; 42(6):1095-1119. destacam algumas peculiaridades da atividade em estiva, constatada por relações de forte autoritarismo, do uso extensivo da força de trabalho não qualificada e da adoção de estruturas de remuneração voltadas para instituir a divisão social e coletiva do trabalho, além do controle sobre os trabalhadores. De fato, a vulnerabilidade e a precariedade, em tempos de "modernidade liquida", são a marca das relações laborais, sendo que a sobrevivência em termos de trabalho e de emprego é excessivamente frágil1818. Bauman Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2001.. Por conseguinte, o contexto do mundo do trabalho contribui de modo significativo para o aumento do número de trabalhadores que passam a buscar sua subsistência através de um trabalho informal, na maioria das vezes em condições totalmente insalubres e inseguras, executando serviços arriscados e perigosos2222. Oliveira RP, Iriart JAB. Representações do trabalho entre trabalhadores informais da construção civil. Psicol Estud 2008; 13(3):437-445..

Quanto à afirmação dos entrevistados a respeito de que a motivação do trabalho está relacionada ao sustento da sua família, verifica-se que a família emerge como um dos centros do discurso do trabalhador da estiva. O trabalho é visto como uma incumbência e missão, visto que é através dele que a família será mantida1717. Machin R, Couto MT, Rossi CCS. Representações de trabalhadores portuários de Santos-SP sobre a relação trabalho-saúde. Saude Soc 2009; 18(4):639-651..

Entretanto, encontramos nos relatos dos trabalhadores, contrapondo-se, aparentemente, a essa compreensão da forçosa necessidade do trabalho, a categoria "eu gosto de trabalhar nesta atividade":

Eu gosto mais é do convívio com o pessoal, pessoal humilde que dá para tê-los como meus amigos, mas amigos mesmo, tipo uma família. Brincamos, nos respeitamos, é por isso que a gente gosta de trabalhar (E8).

...também é importante, e eu sei que estou ajudando outras pessoas porque essa parte que faz a importação e exportação vai para outros países, outros produtos, e muita gente só vê o trabalho (E11).

Alguns entrevistados afirmaram que estão no trabalho da estiva porque gostam, pois compartilham experiências de vida com colegas e mantêm relações de afeto e amizade, desvinculando a ideia de permanência no trabalho unicamente por necessidade econômica e material.

Gomes e Junqueira44. Gomes JC, Junqueira LAP. Cultura e transformação do trabalho no porto de Santos. Rev. Adm. Pública 2008; 42(6):1095-1119. chamam a atenção para o fato de que a cooperação e a amizade no trabalho da estiva estão em estreita conexão com o processo produtivo. Segundo os autores, pode-se constatar que na esfera do trabalho, em primeiro plano, existe a mediação dos sentidos de companheirismo e laços de amizade. Da mesma forma, verificamos, por meio das entrevistas, os sentidos sobre as relações de sociabilidade no trabalho, que se efetivam por uma relação que oscila entre o peso da labuta e o lado humano do labor.

Repare ainda que um trabalhador entrevistado correlaciona a importância da contribuição do seu trabalho à dinâmica do mercado, ao relacionar o transbordo de mercadorias aos processos de importação e de exportação. É fato que o trabalhador da estiva faz parte, como sujeito, da engrenagem mercantil e que seu trabalho, certamente, não se constitui em mera mercadoria, pois produz valores sociais e humanos.

Aspectos do processo de trabalho

[...] um ajuda o outro. O carregamento eu vou te explicar, é bem simples, nós somos uma equipe, um ajuda o outro, um abaixa e carrega a bolsa, pulsemos para o outro. Levantamos para diminuir o peso, carga de 50 kg no teu ombro, no peito, ou carregava assim na mão (E8).

Tem uma gurizada que pulseia a bolsa para o outro, ai tem uns pau-ferro que pegam na mão grande, cada um vai na sua. O certo, as do chão, era o quis do companheiro, é poucos que fazem assim, a maioria faz só na brutalidade(E13).

Nas entrevistas foi possível distinguir uma dimensão imprescindível do trabalho da estiva que é precisamente o seu aspecto colaborativo e coletivo. Os estivadores reconhecem na equipe as bases efetivas para o desenvolvimento do trabalho. Ao discorrerem sobre a ajuda mútua na execução das atividades laborais mencionam a parceria como mecanismo facilitador da consecução do trabalho. Sobressai ainda nesse bloco de falas o sentido de fortalecimento das relações humanas pelo trabalho, dos vínculos de amizade e cooperação entre os estivadores. Assim, a ação solidária se contrapõe a uma racionalidade puramente econômica do trabalho e estabelece relações humanas, rompendo com a concepção dominante de que a lida na estiva seja apenas "força" ou "brutalidade", e deste modo sendo possível enxergar homens, e não somente "mãos" e "braços"2323. Engels F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Rio de Janeiro: Martins Fontes; 1975.. De fato, nenhum trabalhador individual produz isoladamente na estiva, porquanto cada trabalhador é em realidade um componente do trabalhador coletivo e a soma total do serviço realizado.

O termo 'quis', mencionados pelos entrevistados, representaria a ação compartilhada para o soerguimento das sacas ou bolsas, facilitando o trabalho e tornando-o menos nocivo. A expressão 'quis', assim como outras palavras que apareceram no decurso das entrevistas, faz parte do vocabulário próprio utilizado pelos trabalhadores. Foi identificado em várias falas, também, o termo 'pulseia', o qual designa o ato de levantar a saca ou bolsa para o colega, a fim de diminuir o peso de levantamento sobre o ombro. Certamente, são expressões que evidenciam a solidariedade perante o excesso de esforço físico que o trabalho exige dos estivadores. A riqueza da sintaxe existente na comunicação no trabalho da estiva evidencia um patrimônio em relação ao trabalho da comunicação, que carece de novos estudos. No que tange à comunicação pela linguagem no trabalho, Faïta2424. Faïta D. A linguagem como atividade. In: Schwartz Y, Durrive L, organizadores. Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana. Niterói: UFF; 2007. p. 167-188. afirma que é "a linguagem que dá sentido às nossas ações". De acordo com o autor, a maneira como construímos nosso discurso e como produzimos enunciados se dá no sentido de construir e reconstruir as relações. A comunicação no trabalho serve, antes, para reconstruir parcialmente, com os interlocutores, o sentido das palavras.

Quanto ao processo de trabalho, os estivadores fizeram uso da expressão "nós fazemos diversos tipos de serviço num só" que traduz, em parte, o grande número de tarefas que compõem o trabalho na estiva e o ritmo intenso ao qual os trabalhadores são submetidos:

[...] nós fazemos diversos tipos de serviço num só, entende? Não tem como eu te especificar: eu não só carrego bolsa. Eu carrego bolsa, eu paleio, eu puxo cabo, eu carrego palanquilha, eu amarro barra chata, eu carrego ferro (E5).

[...] A gente procura fazer com rapidez o serviço [...]tem que dar rendimento [...] Não importa se nós tiver entre doze, quinze ou vinte galo, nós temos que terminar, tem que se virar nos trinta (E6).

É possível identificar na fala dos trabalhadores o processo de trabalho na estiva, por meio da descrição do conjunto de atividades e da multiplicidade de funções que são executadas, como nas palavras dos entrevistados, independente do número de trabalhadores presente no dia, bem como da quantidade de carga a ser movimentada. O transbordo de cargas no porto seco ferroviário de Uruguaiana é realizado de forma manual, utilizando estritamente a força humana para sua consumação. No entanto, o processo em si é determinado pelo conferente, que decide o trabalho a ser executado. Destaca-se nesse ponto o aspecto referente à exploração da mão de obra e à intensificação do trabalho. Segundo Guérin et al.1515. Guérin F, Laville A, Daniellou F, Duraffourg J, Kerguelen A. Compreender o trabalho para transformá-lo: a prática da ergonomia. São Paulo: Edgard Blücher; Fundação Vanzolini; 2001., a intensificação do trabalho diz respeito ao uso que é feito das capacidades cognitivas e fisiológicas dos trabalhadores.

A intensificação está relacionada a um aumento deliberado na cadência de trabalho e na diminuição de trabalhadores, mantendo-se a quantidade de produção. Essa situação pode ser bastante desfavorável aos trabalhadores, devendo, segundo os autores, ser objeto de negociação coletiva, para que se efetivem as mudanças laborais necessárias.

A saúde do trabalhador da estiva, [...] quando está muito quente mesmo, dá uma pressão ali e vai acelerando, dá uma estafa (E2).

[...] parece que tu te acostuma, teu corpo já está meio anestesiado no final do dia, nem dor sente [...]. Tu não tem disposição para brincar com teu filho ou para conversar e tomar um chimarrão com tua mulher (E3).

Nessa categoria de análise, chama atenção a expressão usada pelo trabalhador: "corpo anestesiado", evidenciando que a manipulação e transbordo das sacas, de forma intensa, gera o cansaço e o esgotamento físico, aumentando a exposição dos trabalhadores aos riscos laborais. Isso é possível verificar quando eles relacionam que o excesso de peso das sacas e a intensa demanda de movimentação da carga os levam a exaustão e, como referido pelos trabalhadores, a uma "estafa física".

Estudos desenvolvidos em portos marítimos2525. Almeida MCV, Cezar-Vaz MR, Soares JFS, Silva MRS. Prevalência de doenças musculoesqueléticas em trabalhadores portuários avulsos. Rev. Latino-Am. Enfermagem 2012, 20(2):243-250.evidenciam a estiva como uma categoria profissional, entre os trabalhadores portuários, que apresenta maior número de casos de patologias osteomusculares. De acordo com os autores, foi encontrada associação estatística entre doenças osteomusculares e os trabalhadores com mais de 50 anos de idade e com tempo de atuação na estiva superior a 21 anos. Esses dados constituem premissas associativas ao ritmo e à intensidade do trabalho que impõe resultados diretos na saúde dos estivadores.

Considere-se, então, que a queixa dos trabalhadores, denominadas como "estafa física", parece relacionar-se com a intensidade do trabalho e o peso excessivo das cargas, tornando vulneráveis a saúde e o corpo do estivador. Guérin et al.1515. Guérin F, Laville A, Daniellou F, Duraffourg J, Kerguelen A. Compreender o trabalho para transformá-lo: a prática da ergonomia. São Paulo: Edgard Blücher; Fundação Vanzolini; 2001. utilizam a categoria "fadiga física" para caracterizar um conjunto de sinais que ocorre em circunstancias de trabalho considerados "pesados" e, ainda, realizados sob pressão. Segundo os autores, as diferentes formas de fadiga significam, frequentemente, que o trabalho exige o uso das capacidades dos trabalhadores até o limite, e que podem apresentar repercussões nas relações sociais e familiares, conforme verificamos na fala do entrevistado.

Baseados nos relatos dos trabalhadores, podemos aqui destacar algumas razões para ocorrência da "estafa física" na estiva, a saber: o reduzido número de trabalhadores envolvidos na transposição do carregamento; a quantidade elevada de carga e, ainda, a pressão por resultados advinda dos superiores. Pode-se assim afirmar que a designada "estafa física" constitui-se como parte das próprias condições e organização do trabalho na estiva, devendo ser revista à luz do que preconizam as normas de segurança no trabalho, do aporte teórico da ergonomia da atividade e dos preceitos do campo da saúde do trabalhador. Deve-se levar em conta, ainda, principalmente, a experiência e o saber dos trabalhadores. Consoante Guérin et al.1515. Guérin F, Laville A, Daniellou F, Duraffourg J, Kerguelen A. Compreender o trabalho para transformá-lo: a prática da ergonomia. São Paulo: Edgard Blücher; Fundação Vanzolini; 2001., não se pode esquecer que os trabalhadores que exercem atividades laborais consideradas "pesadas" são aqueles que ainda estão em condições de poder suportá-las. Desse modo, são necessários estudos com estivadores que deixaram seus postos de trabalho para aprofundamento das informações relativas ao estado de saúde desse grupo.

Às vezes, eles mexem comigo dizendo que já estou velhinho e não tenho mais condições de levar 2 ou 3 bolsas. Não, eu procuro me cuidar guris, que não adianta eu carregar hoje 2 bolsas e amanhã não poder com meia bolsa, nem nada ou andar todo encurvado, todo dolorido, então vamos devagar numa bolsa. Vamos na calma (E15).

Segundo Canguilhem2626. Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense universitária; 2012., a normatividade ou a criação de novas normas biológicas acontecem por meio do questionamento das normas usuais, por ocasião de situações críticas. Para Canguilhem2626. Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense universitária; 2012.: "Em se tratando da doença, o homem normal é aquele que experimenta a certeza de poder frear, nele mesmo, um processo que, em outros, iria até o fim da linha". Observa-se que a fala do trabalhador refere-se a um saber construído pela experiência, de um modo operatório próprio, ao declarar: "Vamos na calma", o trabalhador exprime um papel ativo na preservação e na construção da sua saúde. Para Dejours1414. Dejours C. O trabalho como enigma. In: Lancman S, Sznelwar L, organizadores. Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Rio de Janeiro, Brasília: Fiocruz, Paralelo 15; 2004. p. 127-140., os trabalhadores podem ensinar aos pesquisadores os modos como inventam, criam e geram o trabalho real, contribuindo para a transformação concreta dos ambientes nocivos de trabalho.

[...] a saúde está sempre em jogo porque às vezes a gente pega sol, pega chuva (E6).

Observou-se, nos relatos, que os entrevistados reconhecem os danos que a labuta na estiva pode causar à saúde, como incapacitações e morbidades. Verifica-se que os sentidos atribuídos ao trabalho, sob a perspectiva da saúde, referem-se a sofrimento, medo e insegurança, com repercussões cotidianas em suas vidas. Ainda no que tange à saúde, chama a atenção, nessa categoria temática de interpretação, a afirmativa do trabalhador: "a saúde está sempre em jogo". Para Canguilhem2626. Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense universitária; 2012., nos adaptamos a circunstancias impostas, enquanto for compatível com a vida. A vida não é apenas submissão ao meio, assim a saúde acontece como uma maneira de se instaurar novas normas vitais: "Não existe absolutamente vida sem normas de vida". Com Canguilhem, compreendemos que a vitalidade orgânica se desenvolve em plasticidade com o meio. A ideia de "jogar" com a saúde e a vida, referida pelo trabalhador, pode significar a necessidade do trabalhador atribuir valores ao seu trabalho como sendo peculiarmente perigoso, exigindo astúcia, inteligência e sagacidade, como num jogo, para prevalecer frente às adversidades do meio. Nesse caso, a concepção de Canguilhem2626. Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense universitária; 2012., de acordo com a qual, "abusar da saúde faz parte da saúde", é apropriada para compreendermos a relação entre a saúde e os modos de vida no labor da estiva.

Riscos no trabalho

Olha, o risco está quando a gente trabalha a noite, porque envolve luz e frio e coisa. Ou em dias de chuva, que é o risco mais perigoso [...]. Tem o tempo, a chuva, o sol, tudo isso nos deixa em risco, porque a saúde da gente que está sofrendo (E1).

Risco aqui é o cheiro do adubo, o pó, areia, a manobra (E12).

[...] tem, como se diz, o risco físico, tem o biológico, tem o mais para nós aqui, o ergonômico aquele que é o risco do peso [...] eles se baseiam e carregam às vezes de 2 a 3 bolsas. Isso aí não pode porque, com o tempo, a coluna do cara não aguenta (E15).

No ângulo de compreensão dos trabalhadores da estiva, as intempéries agravam os riscos de acidentes. A chuva e o frio, bem como o calor intenso, são fatores desfavoráveis ao desenvolvimento das atividades da estiva. A chuva, em específico, pode expor ainda mais os trabalhadores aos riscos de acidentes, pois a prancha (instrumental de trabalho que serve para deslocamento durante o transbordo entre os vagões ou entre o vagão e o chão), quando molhada, fica escorregadia, possibilitando deslizes, escorregões e quedas dos trabalhadores no desenvolvimento do transbordo, gerando protrusões e acidentes graves. Até mesmo a colocação de lonas de proteção contra a chuva torna-se desfavorável aos trabalhadores, visto serem improvisos que podem gerar mais insegurança e precariedade no trabalho.

Em estudo realizado por Machin et al.1717. Machin R, Couto MT, Rossi CCS. Representações de trabalhadores portuários de Santos-SP sobre a relação trabalho-saúde. Saude Soc 2009; 18(4):639-651., as autoras consideram que a dimensão de gênero no trabalho portuário, que exige força física, virilidade e coragem, pode conformar atitudes nos trabalhadores de assumir riscos e desafios além de suas capacidades físico-psíquicas, colaborando com a ocorrência de acidentes de trabalho e adoecimento.

O adoecer correlaciona o tempo de trabalho ao esforço físico para carregamento das sacas, causando danos à coluna dos estivadores, como referido (E15). Picoloto e Silveira2727. Picoloto D, Silveira E. Prevalência de sintomas osteomusculares e fatores associados em trabalhadores de uma indústria metalúrgica de Canoas - RS. Cien Saude Colet 2008; 13(2):507-516. destacam a coluna com maior prevalência de queixas, com destaque à região lombar.

Vale lembrar ainda dos riscos mecânicos e dos riscos ergonômicos que se instalam diante dos imprevistos que podem surgir no decurso do trabalho no porto ferroviário, como: acidentes com pontas de ferro e de madeira, parafusos frouxos, buracos, entre outros. Cabe mencionarmos, em relação especificamente aos riscos mecânicos, o uso das estruturas de ferro, como as "pranchas" e dos chamados "burros". Esse último ("burros") refere-se a um arranjo laboral, trata-se de um empilhado de sacas ou bolsas de areia que servem para amparar e sustentar a prancha, que por sua vez, é uma espécie de ponte que é posicionada entre o chão de terra e o vagão ou entre os vagões. Os burros podem desintegrar-se provocando acidentes, mormente quando os estivadores caminham com as sacas ou bolsas pesadas sobre as pranchas. Quanto aos riscos químicos e biológicos, os trabalhadores relatam sofrerem exposição a alguns produtos dentro dos vagões de trem, faltando informações seguras a respeito dos produtos. Foram frequentes queixas relativas a odores fortes, a pó e a poeira na movimentação das sacas como possível fonte de exposição. Ressalta-se ainda a pouca ventilação e o confinamento dos trabalhadores quando realizam tarefas dentro dos vagões.

Acidentes de trabalho

[...] Lembro de uma vez que eram umas 8 horas da noite e nós fazíamos um vagão, já prontos para terminar, e aí de repente a prancha escorregou, como estava molhado, correu para o lado e pegou na canela dele e chegou a aparecer o osso da canela dele sabe (E3).

[...] dia de chuva mesmo dão uma capa, nos dão uma capa que usa dois dias e rasga tudo e não dão os EPI que era para nós ter. [...] em trabalhar nós somos o melhor para a firma e sempre levamos a toca, o peão leva a toca (E14).

[...] se machuca e aí nós somos a mesma coisa que um cachorro mal atendido, levam na Santa Casa ali e o cara é igual um cachorro para ser atendido, nós somos os últimos (E14).

Nesse bloco de falas sobressai a consideração do porto ser um local de trabalho perigoso, com grande ocorrência de acidentes, alguns até fatais1717. Machin R, Couto MT, Rossi CCS. Representações de trabalhadores portuários de Santos-SP sobre a relação trabalho-saúde. Saude Soc 2009; 18(4):639-651.. Os trabalhadores identificam os acidentes referindo-se a tropeços, resvalos, quedas, entre outros. Eles relacionaram os acidentes a aspectos da organização do trabalho e às precárias condições laborais. Mencionaram, ainda, a falta de suporte por parte do empregador, apontando, por exemplo, a deficiência de provimento dos equipamentos de proteção individual (EPI), o que está em contradição com a lei (NR 29). Durante as entrevistas foi possível tomar conhecimento de insatisfações e sentimentos de descontentamento no trabalho, como sugerido pela expressão "leva a toca" (E14), aludindo que os estivadores sentem-se enganados e trapaceados, no que se refere ao atendimento dos seus direitos.

De acordo com Santana et al.2828. Santana VS, Araújo-Filho JB, Albuquerque-Oliveira PR, Barbosa-Branco A. Acidentes de trabalho: custos previdenciários e dias de trabalho perdidos. Rev Saude Publica 2006; 40(6):1004-1012., os acidentes de trabalho, no Brasil, ocorrem em níveis elevados, sendo necessárias medidas de prevenção por serem situações essencialmente evitáveis. É fato, também, que existe uma nebulosa realidade no que diz respeito às notificações dos acidentes de trabalho no país. O sub-registro estimado em pesquisas realizadas em diversas regiões atinge valores acima de 70% para acidentes fatais e 90% para os não fatais. Podemos afirmar que a precariedade do trabalho em estiva se expressa tanto pela informalidade e insegurança dos vínculos, quanto pelo conjunto de fatores que configuram uma organização de trabalho desfavorável e ameaçadora aos trabalhadores, demandando políticas de proteção à sua saúde.

Para Soares et al.2929. Soares JFS, Cezar-Vaz MR, Sant'Ana CF. Prevenção de agravos e promoção da saúde: um estudo com trabalhadores portuários. Texto contexto - enferm 2011; 20(3):425-434., o trabalhador portuário, quando consciente das exposições e das precárias condições a que está submetido no seu ambiente de trabalho, pode atuar como protagonista na prevenção de doenças e acidentes, viabilizando as mudanças necessárias para tornar o local de trabalho menos insalubre e perigoso. Destarte, foram muitos relatos sobre acidentes de trabalho no porto seco ferroviário. Por isso que consideramos necessárias ações de vigilância, integradas entre órgãos sindicais e governamentais, com vistas ao cumprimento da lei no tocante às normas de saúde e segurança no trabalho e à garantia dos direitos sociais. Pode-se verificar principalmente na última fala desta categoria de análise que os trabalhadores ressentem-se de mecanismos mínimo de proteção social, como atendimento digno de saúde em caso de acidentes de trabalho e cobertura (financeira) adequada ao tempo que estiverem afastados por motivos de saúde.

Considerações finais

Este estudo possibilitou-nos entender, baseados nas análises das falas, que são imprescindíveis mudanças nas condições de trabalho na estiva, frente às limitações humanas na realização das suas tarefas. No decurso da pesquisa, ouvimos dos trabalhadores sugestões a respeito de melhorias das condições de trabalho do porto seco ferroviário. Sendo as mais citadas:

  • - A necessidade de que o espaço de trabalho seja coberto, à semelhança de galpões, para evitar a excessiva exposição climática;

  • - Instalação de um sistema de eletricidade seguro com a colocação de luminosidade por todo o local do transbordo;

  • - Instauração de equipamentos e de novas tecnologias para facilitar o transporte de cargas, como esteiras rolantes;

  • - Efetivação da participação dos trabalhadores da estiva no gerenciamento das situações de risco presentes no ambiente do Porto Seco ferroviário, e nas ações de intervenção para mudanças na organização do trabalho, conforme recomenda a lei.

Esses pontos devem ser objeto de negociação coletiva, para que se efetivem mudanças na organização do trabalho e na criação de legislação específica, como a existente para os trabalhadores dos portos aquaviários. Quanto ao processo de trabalho, os estivadores descreveram o grande número de tarefas e o ritmo intenso aos quais os trabalhadores são submetidos. No entanto, constatamos que, na perspectiva dos trabalhadores, o trabalho na estiva se distingue tanto pelo peso da labuta, árdua e intensa, quanto pelo sentido de satisfação no tocante ao aspecto colaborativo e coletivo do trabalho, enfatizando o lado humano do labor.

Observaram-se muitos relatos sobre acidentes de trabalho, assim sendo consideramos necessárias ações de vigilância, integradas entre órgãos sindicais e governamentais, com vistas ao cumprimento da lei no tocante às normas de saúde e segurança no trabalho e a garantia dos direitos sociais. Por fim, entendemos que a desnaturalização do adoecimento e dos acidentes em decorrência das más condições de trabalho na estiva é um imperativo humano que exige medidas e ações de vigilância nos locais de trabalho, integrando órgãos públicos e sindicais.

References

  • 1
    Alves G. O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo: Boitempo; 2000.
  • 2
    Hobsbawn E. Os trabalhadores: estudos sobre a história do operariado. São Paulo: Paz e terra; 2000.
  • 3
    Cavalcante FFG, Gomes ACN, Nogueira FRA, Farias JLM, Pinheiro JMR, Albuquerque EV, Farias ALP, Cabral GB, Magalhães FAC, Gomide M. Estudo sobre os riscos da profissão de estivador do Porto do Mucuripe em Fortaleza. Cien Saude Colet 2005; 10(Supl.):101-110.
  • 4
    Gomes JC, Junqueira LAP. Cultura e transformação do trabalho no porto de Santos. Rev. Adm. Pública 2008; 42(6):1095-1119.
  • 5
    Soares JFS, Cezar-Vaz MR, Mendoza-Sassi RA, Almeida TL, Muccillo-Baisch AL, Soares MCF, Costa VZ. Percepção dos trabalhadores avulsos sobre os riscos ocupacionais no porto do Rio Grande, Rio Grande do Sul, Brasil. Cad Saude Publica 2008; 24(6):1251-1259.
  • 6
    Pena P, Gomes A. A exploração do corpo no trabalho ao longo da história. In: Vasconcelos LF, Oliveira MH, organizadores. Saúde, Trabalho e Direito: uma trajetória crítica e a crítica de uma trajetória. Rio de Janeiro: Educam; 2011. p. 559-598.
  • 7
    Brasil. Decreto-Lei nº5.452 de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Diário Oficial da União 1943; 9 ago.
  • 8
    Brasil. Ministério da Fazenda. Receita Federal do Brasil. Locais/Recintos Aduaneiros. Portos Secos. 2012. [acessado 2013 jul 18]. Disponível em: http://www.receita.fazenda.gov.br/aduana/LocaisRecintosAduaneiros/PortosSecos/Default.htm
    » http://www.receita.fazenda.gov.br/aduana/LocaisRecintosAduaneiros/PortosSecos/Default.htm
  • 9
    Oddone I. Reflexiones sobre el modelo obrero italiano. Rev Sindical Salud, Trabajo y Medio Ambiente 2007; 2(5):4-8.
  • 10
    Bauer M, Gaskell G, organizadores. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis: Vozes; 2008.
  • 11
    Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco; 2010.
  • 12
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 196 de 10 de outubro de 1996. Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos. Diário Oficial da União 1996; 16 out.
  • 13
    Gill R. Análise do discurso. In: Bauer M, Gaskell G, organizadores. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis, RJ: Vozes; 2008. p. 244-270.
  • 14
    Dejours C. O trabalho como enigma. In: Lancman S, Sznelwar L, organizadores. Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Rio de Janeiro, Brasília: Fiocruz, Paralelo 15; 2004. p. 127-140.
  • 15
    Guérin F, Laville A, Daniellou F, Duraffourg J, Kerguelen A. Compreender o trabalho para transformá-lo: a prática da ergonomia. São Paulo: Edgard Blücher; Fundação Vanzolini; 2001.
  • 16
    Costa PTM. A construção da masculinidade e a banalidade do mal: outros aspectos do trabalho escravo contemporâneo. Cad. Pagu 2008; 31:173-198.
  • 17
    Machin R, Couto MT, Rossi CCS. Representações de trabalhadores portuários de Santos-SP sobre a relação trabalho-saúde. Saude Soc 2009; 18(4):639-651.
  • 18
    Bauman Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2001.
  • 19
    Marx K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Abril Cultural; 1974.
  • 20
    Mészáros I. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo Editorial; 2004.
  • 21
    Harvey D. O enigma do capital: e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo; 2011.
  • 22
    Oliveira RP, Iriart JAB. Representações do trabalho entre trabalhadores informais da construção civil. Psicol Estud 2008; 13(3):437-445.
  • 23
    Engels F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Rio de Janeiro: Martins Fontes; 1975.
  • 24
    Faïta D. A linguagem como atividade. In: Schwartz Y, Durrive L, organizadores. Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana. Niterói: UFF; 2007. p. 167-188.
  • 25
    Almeida MCV, Cezar-Vaz MR, Soares JFS, Silva MRS. Prevalência de doenças musculoesqueléticas em trabalhadores portuários avulsos. Rev. Latino-Am. Enfermagem 2012, 20(2):243-250.
  • 26
    Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense universitária; 2012.
  • 27
    Picoloto D, Silveira E. Prevalência de sintomas osteomusculares e fatores associados em trabalhadores de uma indústria metalúrgica de Canoas - RS. Cien Saude Colet 2008; 13(2):507-516.
  • 28
    Santana VS, Araújo-Filho JB, Albuquerque-Oliveira PR, Barbosa-Branco A. Acidentes de trabalho: custos previdenciários e dias de trabalho perdidos. Rev Saude Publica 2006; 40(6):1004-1012.
  • 29
    Soares JFS, Cezar-Vaz MR, Sant'Ana CF. Prevenção de agravos e promoção da saúde: um estudo com trabalhadores portuários. Texto contexto - enferm 2011; 20(3):425-434.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2015

Histórico

  • Recebido
    07 Mar 2014
  • Aceito
    04 Out 2014
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cienciasaudecoletiva@fiocruz.br